Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
94/21.5GATND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: DIREITO AO SILÊNCIO
DEPOIMENTO INDIRECTO
PROVA ILEGAL
Data do Acordão: 06/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: DECLARADA A NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 129.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – É ilegal considerar que a afirmação feita por uma criança que se encontrava no local dos factos e que não chegou a ser identificada nem ouvida em audiência de julgamento integra as diligências cautelares que os agentes da autoridade empreenderam com vista ao apuramento dos factos e não pode, por isso, servir de suporte à fundamentação do factualismo dado como provado, pois corresponde a uma forma de subverter a ratio subjacente à valoração do depoimento indireto, consagrado no artigo 129.º do Código de Processo Penal.

II – O depoimento indirecto só pode ser valorado, segundo o princípio da livre apreciação da prova, se conjugado e cotejado com o depoimento directo, da pessoa referenciada de quem se ouviu dizer, traduzindo-se o confronto entre os depoimentos indirecto e directo, nas suas eventuais contradições ou convergências, afinal, no exame crítico da prova exigido pelo n.º 2 do artigo 374.º, nº 2.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência, na 4ª Secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

I

1. Nos presentes autos,  foi o arguido AA, condenado na pena de 12 (doze) meses de prisão efetiva pela prática, pela autoria material de um crime de violação de imposições, proibições e interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal.

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            2. Da sentença recorre o arguido que formula as seguintes conclusões de recurso:

            1. O tribunal “a quo” procedeu a uma apreciação arbitrária da prova, fazendo uso da mera impressão gerada no seu espírito;

            2. Os pontos 4) a 8) da sentença devem ser dados como não provados;

3. O Tribunal a quo, alicerça a sua convicção nos depoimentos de testemunhas “do diz que disse”.

4. As declarações prestadas pela testemunha BB, foram prestadas em ambiente informal (desde logo não redigido a auto, nem assinado pela testemunha) aos agentes da GNR, recolhido em hora e local diferentes daqueles onde, alegadamente, tinha sido cometido o crime.

5. A valoração do depoimento da testemunha BB, uma vez que a própria testemunha de que se ouviu dizer prestou, em julgamento, esclarecimentos explicando e dando outra versão da inicialmente declarada consubstancia prova proibida, expurgada de juízo valorativo.

6. Aliás, no caso concreto da testemunha BB, bastaria o seu direito ao silencio em audiência de discussão e julgamento (Artigo 134.º do CPP- Recusa de depoimento), uma vez que vive em união de facto com o arguido, para que a demais prova, fosse proibida e valorada.

7. A testemunha BB declarou aos agentes autuantes da GNR, na presença das demais testemunhas, que tinha sido o arguido o condutor da sua viatura, afinal, não tinha condições físicas nem humanas para poder declarar o que declarou.

8. BB, à hora e data dos factos, encontrava-se a trabalhar em ..., a uma distância de 22/23Km, cujo percurso até ao local dos factos, demora cerca de 30 minutos.

16. Jamais poderão ser valoradas aquelas declarações, apenas porque foram prestadas aos agentes da GNR, quando em audiência de discussão de julgamento a mesma testemunha, confirma e atesta que não viu o arguido a conduzir o veículo, nem tinha condições para o poder afirmar.

19. O auto redigido e elaborado pelos agentes da GNR, não faz menção a mais nenhum elemento ou facto, limitando-se a informar que a Manda D. BB disse que foi o arguido o condutor da viatura;

20. Sabendo os Agentes da GNR que a D. BB estava a trabalhar, num local distante do local onde ocorreram os factos, deveriam indagar da razão para apurar o porquê daquelas declarações;

27. Nunca o Tribunal poderia dar como provado que foi o arguido o condutor, menos ainda se podendo aceitar que o Tribunal diga que o militar CC ouviu uma criança a afirmar que o condutor era o arguido. É falso!


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3. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público …

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5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu … parecer …[1][2]

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            6. O recorrente respondeu ao parecer do Ministério Público, …

            7. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.    


II

            Questões suscitadas pelo recorrente:

            1. Impugnação da matéria de facto provada versus valoração de prova proibida e nulidade por falta de fundamentação.

            2. A espécie (escolha) da pena e a medida concreta desta, eventual suspensão na sua execução e/ou cumprimento em regime de permanência na habitação versus a não realização de relatório social.


III

            1. São os seguintes os factos dados como provados e não provados na sentença:

            1) Por decisão datada de 13 de novembro de 2020, proferida no âmbito do processo comum singular nº 25/20...., que correu termos neste tribunal, confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 07.04.2021, transitada em julgado, foi o arguido AA condenado, em cúmulo jurídico na pena de 9 (nove) meses de prisão, a ser cumprida no domicilio com recurso a vigilância eletrónica, sendo autorizada a sua saída do domicilio para trabalho e tratamentos médicos, conjuntamente com plano de reinserção social a definir pela DGRSP, que aborde, entre outros, o tratamento ao alcoolismo.

            2) Ao abrigo do preceituado no artigo 69º, nº 1, do Código Penal, foi ainda o arguido, condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 2 (dois) anos.

            3) O arguido procedeu à entrega da carta de condução em 13.04.2021, para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.

4) No dia 29 de julho de 2021, pelas 16H15, o arguido AA, conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca ...”, modelo ...56, com a matrícula ..-..-QF, propriedade de BB, pela EN ...28, Km 63, em ... - ..., quando foi interveniente em acidente de viação (despiste).

5) O arguido AA após o acidente abandonou o local.

6) O arguido AA conduziu o veiculo automóvel na via pública, encontrando-se proibido por sentença judicial de conduzir veículos motorizados.

7) O arguido AA agindo de forma deliberada, livre e consciente desrespeitou uma proibição que lhe havia sido imposta a título de pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor por sentença criminal, tendo consciência que ao conduzir o veiculo automóvel na via publica durante o período da proibição do exercício da condução estava a violar aquela proibição, ainda assim, quis conduzir o veículo em causa.

8) Bem sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime.

Mais se provou que,

9) Em razão do acidente referido em 4), a viatura de marca ...”, modelo ...56, com a matrícula ..-..-QF, foi para a sucata, tendo BB recebido cerca de 80/100€.

10) BB não participou tal acidente nem ao seguro, nem às autoridades policiais, designadamente a informar que o veículo lhe tinha sido furtado e/ou utilizado sem a sua autorização.

11) O arguido vive em união de facto com BB desde 2013.


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2.2 FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevância para a decisão a proferir, não ficaram por provar quaisquer factos.


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            2. Fundamenta o tribunal recorrido a matéria de facto nos seguintes termos:

            A convicção do tribunal relativamente aos factos provados alicerçou-se exclusivamente na análise crítica de toda a prova documental e nos depoimentos das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento.

            Nesta análise, importa desde logo referir que a circunstância de o arguido não ter prestado quaisquer declarações (naturalmente, no exercício de um direito) em nada comprometeu a convicção criada pela restante prova produzida, pois como é sabido se o silêncio não o pode prejudicar, não o pode seguramente beneficiar.

Com este entendimento, veja-se, inter alia, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13 de janeiro de 2010, ao referir que “se o uso do direito ao silêncio não poderá em caso algum prejudicar o arguido, também o não deverá beneficiar”, ou como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Fevereiro de 2008, “o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios”.

Com efeito, toda a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, merecendo nesta análise particular realce os depoimentos das testemunhas DD, EE, FF (GNR) e CC (GNR), com todos a confirmarem que a companheira do arguido (BB), na noite dos factos em causa, afirmou que tinha sido o arguido a conduzir aquela viatura, sendo que as testemunhas DD e EE, amigos desta, referiram, depois de instados para o efeito, que essa afirmação foi “pronta” e feita sem qualquer dúvida, de forma livre e sem qualquer coação, o que, aliás, acaba por ser corroborado pelo facto de a companheira do arguido nunca ter chegado sequer a participar o sinistro à seguradora nem às autoridades policiais o alegado furto da viatura ou a sua utilização sem a sua autorização, como ainda se procurou veicular no decurso do julgamento.

E se os depoimentos das duas identificadas testemunhas (amigas da companheira do arguido) não nos mereceram quaisquer reservas, o mesmo se refira quanto aos depoimentos dos agentes de autoridade, porquanto depuseram de forma séria, credível e detalhada e, nessa medida, mereceram inteira credibilidade do Tribunal.

E pese embora os agentes não tenham presenciado o arguido a conduzir, mereceram-nos, ainda assim, credibilidade ao referir que este facto foi, como se disse, confirmado pela própria companheira do arguido numa altura em que foram chamados para se deslocar ao local onde esta se encontrava em virtude de o arguido ter ameaçado que deitava fogo à casa se esta não lhe entregasse as chaves do outro carro.

Além disso, e nesse mesmo dia, antes de se deslocarem à casa onde se encontrava a companheira do arguido, os identificados militares foram chamados à ocorrência do descrito despiste e, numa altura em que estavam a controlar o trânsito, o militar CC ouviu uma criança que se encontrava no local com as demais pessoas que entretanto ali se concentraram e afirmou que quem ia a conduzir aquela viatura era o arguido, todavia, devido ao trabalho e dificuldade com que se confrontaram na resolução do problema de trânsito que ali se gerou, já não conseguiram identificar a criança que fez a afirmação, de modo a poder inquiri-la quanto aos factos em apreço.

Todavia, dúvidas não restam, que quer esta última afirmação ouvida no próprio local do despiste, quer as declarações prestadas pela própria companheira do arguido surgem na sequência das diligências cautelares que os agentes de autoridade tiveram de empreender com vista ao apuramento dos factos para os quais foram chamados e que depois de devidamente articulados entre si não deixam dúvidas quanto aos factos dados como provados, até porque na hora do acidente a companheira do arguido estava a trabalhar e a viatura sinistrada tinha ficado em casa onde só se encontrava o arguido.

Isto é, nas sobreditas circunstâncias de tempo e espaço, só o arguido tinha acesso àquela viatura.

E sem embargo, como se disse, de o arguido não ter prestado declarações, num direito que a lei lhe reserva, entende-se, ainda assim, que os preditos depoimentos dos referidos militares são passíveis de valoração. Não tem aqui aplicação o preceituado no artigo 356.º, n.º7 do Código de Processo Penal. Com este nosso entendimento, veja-se, entre muito outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Março de 2007, se é certo que “as chamadas "conversas informais" dos arguidos com os agentes policiais, antes de serem constituídos arguidos, não podem ser valorizadas em sede probatória. Já constituem meio de prova válida os depoimentos dos órgãos de polícia criminal sobre a actividade investigatória que realizam, como buscas e apreensões, ainda que levada a cabo com a colaboração ou informação de suspeitos”. Com efeito, e como bem se salienta neste Acórdão, as diligências de prova realizadas no decurso das diligências de investigação “ganham autonomia relativamente às declarações prestadas pelo suspeito”, de forma que ainda que tais meios de prova sejam “adquiridos na sequência de informações prestadas pelos suspeitos, são diversos delas e não um seu puro complemento”. Alertando que há que “distinguir entre as chamadas «conversas informais» mantidas pelos órgãos de polícia criminal com arguidos e suspeitos - as quais, em rigor, são processualmente inexistentes e incognoscíveis(6) - e a actividade investigatória realizada pelo mesmos órgãos de polícia criminal (as diligências probatórias realizadas e as provas obtidas) na sequência dessas «conversas»”. Os órgãos de polícia criminal contanto que deponham sobre a atividade investigatória que realizaram, ainda que desenvolvida na sequência da colaboração ou a informação de suspeitos, não depõem sobre matérias proibidas, “já que depõem, não sobre factos que lhes tenham sido transmitidos, antes, sobre o resultado da sua percepção directa, colhida durante a realização da actividade investigatória autónoma, embora sequencial”, não consubstanciado, pois, depoimento indireto ou proibido nos termos do artigo 356.º do Código de Processo Penal.

Nada impede que os agentes de investigação, em audiência, deponham sobre o conteúdo dessas diligências, incluindo sobre o conteúdo das conversas havidas com suspeitos que, entretanto, foram constituídos arguidos e mesmo que estes, na audiência, se remetam ao silêncio, desde que essas conversas não visem contornar ou iludir a proibição contida no nº7 do art.356, do C.P.P.

Com idêntico entendimento, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Janeiro de 2012 ao sublinhar que “nada impede que os agentes de investigação, em audiência, deponham sobre o conteúdo dessas diligências, incluindo sobre o conteúdo das conversas havidas com suspeitos que, entretanto, foram constituídos arguidos e mesmo que estes, na audiência, se remetam ao silêncio (…)”. Enfatizando, refere ainda este Acórdão que “o OPC que, no exercício das suas funções, encontra a vítima de um crime, não está impedido de, em audiência, relatar a conversa que nesse momento teve com a mesma, não cabendo essas declarações na previsão daquele art.356, nº7”.

Ou ainda o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Julho de 2008 ao sumariar que “deve ser valorado em audiência de julgamento o depoimento de um agente da autoridade que, no exercício das suas funções, ao tomar conta de uma ocorrência, foi informado por um interveniente em acidente de viação, que era ele o condutor” no âmbito de um processo em que o arguido vinha acusado da prática de um crime de condução em estado de embriaguez.

Ou também, e por último, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2007 ao salientar que “relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer”, pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação” e que as coisas são bem diferentes “quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP). Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo. VI - Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito.

Finalizando, refere-se de forma esclarecedora neste acórdão que “o que o art. 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249.º do Código de Processo Penal”. Nessa medida, e no seguimento da jurisprudência citada, é entendimento deste Tribunal que o depoimento dos identificados agentes que, na data se deslocaram ao local nessa qualidade, constitui meio de prova processualmente válido e admissível, a valorar, como a demais prova testemunhal, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.

No fundo, aquilo que emerge destes acórdãos e de outros acórdãos é que os arguidos muito embora não possam ser prejudicados pelo seu silêncio, não podem ser beneficiados com o mesmo, pois que os mesmos confrontados com uma versão credível dos factos, prescindiram do direito de contar a sua versão, inclusivamente de negar os factos ou pondo em causa o modo como os mesmos foram configurados.

Não o tendo feito, como se disse, no exercício de um direito que lhe assiste, não pode é, na perspetiva deste Tribunal, e neste momento, pretender ser beneficiado com o seu próprio silêncio quando a versão apresentada pela restante prova produzida se apresentou como absolutamente credível e convincente quanto à forma como os factos dados como provados ocorreram.

De facto, como esclarecedoramente se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de janeiro de 2008, “tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça que o silêncio, sendo um direito do arguido, não pode prejudicá-lo, mas também dele não pode colher benefícios. Se o arguido prescinde, com o seu silêncio, de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem um conhecimento pessoal, não pode, depois, pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio”[3].

De modo que, e em síntese, dir-se-á apenas que o facto de o arguido não ter prestado declarações em nada beliscou a credibilidade da restante prova, mormente a das testemunhas inquiridas, que, com a respetiva razão de ciência, depuseram de forma objetiva e com conhecimento direto dos factos, lograram convencer o Tribunal quanto à versão dos factos dados como provados, tanto mais que na parte da frente da viatura sinistrada foi encontrado o telemóvel do arguido, como os agentes de autoridade tiveram a oportunidade de confirmar.

Aliás, num caso não inteiramente semelhante, mas cujos considerandos se aplicam com as necessárias adaptações ao presente caso, veja-se o Acórdão do TEDH de 08.02.1996 (que opôs John Murray contra o Reino Unido) e em que este Tribunal foi chamado a intervir para apreciar uma questão de valoração do silêncio do arguido[4].

Neste caso, o referido John Murray foi detido pela polícia quando descia as escadas de um prédio onde foi encontrado um sequestrado e os respetivos sequestradores (militantes do IRA), sendo que aquele durante o inquérito e durante o julgamento recusou-se sempre a prestar declarações, o que não impediu o juiz de julgamento de estabelecer fortes inferências que levaram a sua condenação, com base na recusa deste explicar a sua presença naquele local.

Ora, o TEDH entendeu que “que nem o julgamento tinha sido injusto nem o principio da presunção de inocência tinha sido violado (não havendo, por conseguinte, violação do artigo 6.º, n.º1 e 2 da CEDH), já que a presença do acusado no prédio e a sua falta de explicação para o facto eram bastantes para a sua condenação com base no simples senso comum”.

Considerou ainda que “a questão de saber se o direito ao silêncio é, ou não, absoluto deve ser respondida negativamente, pois não se pode pretender que a decisão dum acusado de ficar calado durante todo o processo-crime não traga necessariamente implicações quando o juiz tiver de avaliar as provas que contra ele existem”.

De modo que, e em síntese, dir-se-á apenas que o facto de o arguido não ter prestado declarações, designadamente para simplesmente negar a prática dos factos, dar alguma explicação para a presença do seu telemóvel na parte da frente do carro ou apenas explicar porque é que se encontrava num café perto do local do acidente (em violação da pena de prisão em regime de permanência a que se encontrava sujeito), em nada beliscou a credibilidade da restante prova, mormente o das já referidas testemunhas que, com a respetiva razão de ciência, depuseram de forma objetiva e com conhecimento direto dos factos, logrando em articulação com a restante prova convencer o Tribunal quanto aos factos sobre os quais depuseram.

Revertendo para os elementos subjetivos dos crimes foram consideradas as regras da experiência comum em face dos relatados comportamentos do arguido e do contexto em que os factos foram praticados, tudo conjugado ainda com o teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento.

           


IV

            Apreciando:

            1ª Questão: a impugnação da matéria de facto provada versus valoração de prova proibida e nulidade por falta de fundamentação.

            Entende o recorrente que os pontos 4) a 8) da sentença devem ser dados como não provados.

            Os factos impugnados pelo recorrente têm o seguinte teor:

Fundamenta o recorrente a sua posição nomeadamente no seguinte:

            - O Tribunal a quo alicerça a sua convicção nos depoimentos de “ouvir dizer”;

            - Acontece que, a pessoa a quem as testemunhas “ouviram dizer”, a testemunha BB, foi ouvida em audiência, onde disse que não viu nem presenciou os factos e explica o porquê de ter dito o que disse perante as testemunhas cujo depoimento o tribunal valorou.

- O tribunal não atendeu às suas explicações em julgamento;

- O tribunal não explicita de que factos conhecidos retira a verificação de factos desconhecidos;

- Não se pode aceitar que o tribunal valore positivamente o depoimento da testemunha, o militar CC, só porque ouviu dizer a uma criança no local do acidente, que o condutor era o arguido, quando nem sequer se sabe quem é essa criança.

- O facto de ter sido encontrado um telemóvel, alegadamente pertença do arguido, na viatura, não é suficiente para se afirmar que o arguido era o condutor da viatura.

- O mesmo se diga quanto à não participação do acidente, pela proprietária do veículo, quer à seguradora quer à entidade policial.

- A decisão é nula ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, por violação do disposto no nº 2 do artigo 374º, no artigo 97º, ambos do CPP e no artigo 205º da Constituição da República.


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Compulsado o teor do factualismo provado com a respetiva motivação, conforme supra reproduzida (não se afigurando necessária uma vez mais, aqui, a sua reprodução), importa dizer o seguinte:

Efetivamente, a não prestação de declarações pelo arguido em audiência, é um direito que lhe assiste. E se é certo que o exercício do direito ao silêncio não o pode prejudicar, com certeza que também não o pode beneficiar. Mas vigorando no nosso direito processual penal o princípio do acusatório e a presunção de inocência do arguido, compete exclusivamente à acusação provar a culpabilidade deste. Pelo que se afiguram algo exageradas as várias referências que o julgador a quo faz na fundamentação a propósito de o arguido se ter remetido ao silêncio, retirando-lhe de algum modo não só a natureza de um efetivo direito mas dando azo a que se conjeture que afinal o silêncio o prejudicou!!

Esta apreciação em jeito de crítica apenas é feita porque a fundamentação inicia-se com a questão do exercício do direito ao silêncio do arguido e continua praticamente ao longo da mesma (fundamentação), sendo mote não só para justificar as diligências realizadas pelas testemunhas agentes da GNR e respetivos depoimentos prestados, como para lhes aferir idoneidade e credibilidade e ainda para, como se anotou, concluir-se na motivação:

“No fundo, aquilo que emerge destes acórdãos e de outros acórdãos é que os arguidos muito embora não possam ser prejudicados pelo seu silêncio, não podem ser beneficiados com o mesmo, pois que os mesmos confrontados com uma versão credível dos factos, prescindiram do direito de contar a sua versão, inclusivamente de negar os factos ou pondo em causa o modo como os mesmos foram configurados.

Não o tendo feito, como se disse, no exercício de um direito que lhe assiste, não pode é, na perspetiva deste Tribunal, e neste momento, pretender ser beneficiado com o seu próprio silêncio quando a versão apresentada pela restante prova produzida se apresentou como absolutamente credível e convincente quanto à forma como os factos dados como provados ocorreram.

(…)

De modo que, e em síntese, dir-se-á apenas que o facto de o arguido não ter prestado declarações em nada beliscou a credibilidade da restante prova, mormente a das testemunhas inquiridas, que, com a respetiva razão de ciência, depuseram de forma objetiva e com conhecimento direto dos factos, lograram convencer o Tribunal quanto à versão dos factos dados como provados, tanto mais que na parte da frente da viatura sinistrada foi encontrado o telemóvel do arguido, como os agentes de autoridade tiveram a oportunidade de confirmar”.


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Resulta da fundamentação decisória que para prova dos factos impugnados pelo arguido recorrente (factos 4 a 8), ou seja, de que “no dia 29 de julho de 2021, pelas 16H15, era o arguido AA que conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca ...”, modelo ...56, com a matrícula ..-..-QF, propriedade de BB, pela EN ...28, Km 63, em ... - ..., quando foi interveniente em acidente de viação (despiste)”, o julgador se apoiou essencialmente nos “depoimentos das testemunhas DD, EE, FF (GNR) e CC (GNR), por todos terem  confirmado que a companheira do arguido (BB), na noite dos factos em causa, afirmou que tinha sido o arguido a conduzir aquela viatura”.

Mais se reconhece na fundamentação da sentença que as ditas testemunhas não viram ou presenciaram o arguido a conduzir o veículo. E sobre a credibilidade que o depoimento das testemunhas que ouviram dizer à testemunha BB mereceu ao tribunal, afirma-se na fundamentação: as testemunhas DD e EE, amigos desta, referiram, depois de instados para o efeito, que essa afirmação foi “pronta” e feita sem qualquer dúvida, de forma livre e sem qualquer coação”.

E quanto à credibilidade merecida pelo depoimentos dos agentes de autoridade, diz o julgador que “depuseram de forma séria, credível e detalhada e, nessa medida, mereceram inteira credibilidade do Tribunal”.

Reforçando o julgador esta credibilidade, dizendo:  “pese embora os agentes não tenham presenciado o arguido a conduzir, mereceram-nos, ainda assim, credibilidade ao referir que este facto foi, como se disse, confirmado pela própria companheira do arguido numa altura em que foram chamados para se deslocar ao local onde esta se encontrava em virtude de o arguido ter ameaçado que deitava fogo à casa se esta não lhe entregasse as chaves do outro carro”.


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De toda esta fundamentação da sentença é indiscutível concluir que o depoimento indireto das testemunhas - de “ouvir dizer” – não tem como fonte direta o arguido – ou seja, as testemunhas não ouvir dizer da boca do arguido - mas sim “ouviram dizer” de uma terceira pessoa, uma testemunha que veio a ser ouvida nos autos sobre os factos.

Pelo que toda a teoria e justificação da sentença sobre a legalidade das diligências de investigação informais feitas pelos senhores agentes da GNR e consequente relevância probatória perde a relevância jurídica que lhe foi atribuída porque toda ela assenta no “ouvir dizer” do arguido e o que está exatamente em causa é uma questão depoimento indireto, o ouvir dizer de uma testemunha. Pelo que deve ser nesta perspetiva (de o “ouvir dizer” ter como fonte o que a testemunha disse), que a questão deve ser analisada. O que nos remete para o disposto no artigo 129º do Código de Processo Penal, que se passará a analisar.


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Regressando assim à fundamentação da sentença, independentemente da credibilidade assegurada pelo julgador quanto ao que tais testemunhas ouviram dizer à testemunha BB que por sinal também não viu ou presenciou a prática dos factos pelo arguido (segundo o depoimento da testemunha e conforme reconhecido na fundamentação da sentença[5]), o disposto no artigo 129º nº1 do Código de Processo Penal é perentório ao afirmar que “ Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova desta”.

Sabe-se que o nosso processo penal assenta no primado da imediação da prova e que só valem em julgamento para efeitos de formação e convicção do tribunal, as provas que tiverem sido produzidas e examinadas em audiência, com o respeito pelo princípio do contraditório – v. artigo 355º, nº 1, do Código de Processo Penal.

O Conselheiro Santos Cabral, in Código de Processo Penal Comentado, Juízes Conselheiros, Almedina, 2014, fls 486, em anotação ao artigo 129º deste diploma, escreve sobre a questão o seguinte, que se afigura oportuno aqui relembrar:

“ A essência da prova testemunhal reside, assim, na circunstância de a mesma se referir às declarações que efetua uma pessoa sobre o que percebeu pessoal e diretamente. A prova testemunhal carateriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual ou auditivamente.

O depoimento indireto refere-se a um meio de prova e não aos factos objeto de prova, pois o que está em causa não é o que a testemunha percecionou mas sim o que lhe foi transmitido por quem percecionou os factos. Assim, o depoimento indireto não incide sobre os factos que constituem objecto de prova mas sim sobre algo diferente, ou seja, sobre um depoimento que se ouviu.

(…)

Estando a validade do depoimento condicionada à possibilidade de o referenciado ser chamado a depor é evidente que sobre o juiz existirá o dever de proceder a tal chamamento quanto mais não seja porque tal lhe é imposto pelo próprio princípio da descoberta da verdade material. A omissão de tal dever, sem justificação, pode consubstanciar uma nulidade nos termos do artigo 120º, nº 2, alínea d).

(…)

O depoimento indirecto será objeto de valoração quando a testemunha referenciada comparecer, existindo então, a necessidade de, com observância do princípio da livre apreciação da prova, conjugar e cotejar o depoimento indirecto e o depoimento directo, esclarecendo e concluindo sobre eventuais contradições ou convergências[6]”.


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Do exposto e do preceituado no artigo 129º do Código de Processo Penal, é inequívoco desde já concluir que a fundamentação da sentença ao valorar nos termos em que o fez que “o militar CC ouviu uma criança que se encontrava no local com as demais pessoas que entretanto ali se concentraram e afirmou que quem ia a conduzir aquela viatura era o arguido”, não tendo tal criança sido ouvida em audiência nem sequer minimamente identificada, afirmando-se na motivação que “todavia, devido ao trabalho e dificuldade com que se confrontaram na resolução do problema de trânsito que ali se gerou, já não conseguiram identificar a criança que fez a afirmação, de modo a poder inquiri-la quanto aos factos em apreço”, não podia aquele depoimento ser valorado como o foi, por constituir prova ilegal. E o julgador ao pretender incluir esta afirmação da criança pretensamente no local dos factos como diligência de prova admissível nas ditas “diligências cautelares que os agentes de autoridade tiveram de empreender com vista ao apuramento dos factos”, corresponde a uma forma de subverter manifestamente a ratio subjacente à valoração do depoimento indireto consagrado no artigo 129º do Código de Processo Penal. O que significa que tal depoimento e respetiva valoração dada pelo julgador é legalmente inadmissível. Logo, não pode servir de suporte à fundamentação do factualismo dado como provado, concretamente quanto aos factos impugnados pelo recorrente por ser prova proibida.

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Quanto à testemunha BB, testemunha referenciada no “ouvir dizer” pelas outras testemunhas, foi a mesma efetivamente chamada e depor em audiência de julgamento sobre os factos, o que fez. Na audição, explicou a testemunha, como aliás se transcreve  abundantemente na motivação de recurso (sendo reproduzido nas conclusões apenas uma síntese do depoimento) que não presenciou ou viu o arguido a conduzir; que fez tal afirmação devido a mera conjetura, dedução ou suposição da sua parte pelos motivos que apresentou, de o carro estar em casa, de aí se encontrarem também as chaves do carro e em princípio o arguido estar em casa uma vez que cumpria uma pena de prisão em regime de permanência na habitação. Mais disse a testemunha que depois veio a saber pelo arguido que estiveram lá uns amigos e que estes é que conduziram o veículo.

Aliás, na fundamentação da sentença até se esclarece “até porque na hora do acidente a companheira do arguido estava a trabalhar e a viatura sinistrada tinha ficado em casa onde só se encontrava o arguido”.

Ora, o julgador atribuiu inteira credibilidade ao que as testemunhas ouviram dizer da testemunha BB com o fundamento de que “toda a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, merecendo nesta análise particular realce os depoimentos das testemunhas DD, EE, FF (GNR) e CC (GNR), com todos a confirmarem que a companheira do arguido (BB), na noite dos factos em causa, afirmou que tinha sido o arguido a conduzir aquela viatura, sendo que as testemunhas DD e EE, amigos desta, referiram, depois de instados para o efeito, que essa afirmação foi “pronta” e feita sem qualquer dúvida, de forma livre e sem qualquer coação, o que, aliás, acaba por ser corroborado pelo facto de a companheira do arguido nunca ter chegado sequer a participar o sinistro à seguradora nem às autoridades policiais o alegado furto da viatura ou a sua utilização sem a sua autorização, como ainda se procurou veicular no decurso do julgamento”.

O julgador conclui mesmo, na parte final da fundamentação, que “a versão apresentada pela restante[7] prova produzida se apresentou como absolutamente credível e convincente quanto à forma como os factos dados como provados ocorreram.


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Acontece que o julgador é perentório em afirmar uma absoluta credibilidade sobre o depoimento das testemunhas DD, EE, FF (GNR) e CC (GNR), quanto à forma como os factos dados como provados ocorreram, mas olvida um aspeto relevante: uma coisa é a credibilidade merecida quanto ao depoimento das testemunhas no sentido de que ouviram dizer da testemunha BB tal facto. Coisa diferente é saber/apurar se foi efetivamente o arguido que conduziu o veículo no circunstancialismo descrito nos autos, conforme provado no facto nº 4. E este facto, com todo o respeito pela posição do julgador a quo, não encontra resposta suficientemente fundamentada na sentença.

Como se afirmou já, o depoimento indireto, de per si, sem ouvir a pessoa referenciada, de quem se ouviu dizer, não pode servir como meio de prova. Tal depoimento indireto só poderá ser valorado segundo o princípio da livre apreciação da prova se conjugado e cotejado com o depoimento directo. Neste esclarecimento do julgador, do confronto entre os depoimentos indiretos e directo, nas suas eventuais contradições ou convergências, se traduz, afinal de contas, o exame crítico da prova como o exige o disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Compulsado o teor da fundamentação da sentença, em momento algum esta análise, crítica ou confronto é feito. O julgador a quo não dedica qualquer atenção e análise crítica ao depoimento da testemunha BB, sendo certo que é a testemunha chave para toda a análise e credibilidade da prova testemunhal produzida, sem prejuízo dos demais elementos probatórios fornecidos pelos autos, nomeadamente a título de prova indiciária, como se dirá mais adiante. Ou seja, a fundamentação da sentença é de todo omissa a qualquer exame crítico ao depoimento desta testemunha no sentido de lhe merecer credibilidade ou não, e essencialmente porquê. A fundamentação não aprecia nem se pronuncia sobre o efetivo depoimento da testemunha BB, confrontando e cotejando com o que foi ouvido pelas outras testemunhas, de modo a aferir a idoneidade e consistência do que a BB disse a essas mesmas testemunhas, nomeadamente o concreto circunstancialismo em que proferiu tal afirmação e a razão por que fez tal afirmação, quando resulta dos autos que a testemunha afinal nada viu ou presenciou e quando o seu depoimento difere do que disse a essas testemunhas. Não está em causa se a testemunha disse ou afirmou para essas testemunhas, tal facto. O que está em causa é se essa afirmação proferida no circunstancialismo já assinalado, pode ou deve ser tida como irrefutável e com a virtualidade probatória  no sentido de o tribunal a quo dar como assente, com base nessa afirmação, de que o condutor do veículo era o arguido, quando a testemunha BB explica em audiência que, não tendo presenciado ou visto o arguido a conduzir, a afirmação se deve a mera conjetura, dedução ou suposição da sua parte pelos motivos que apresentou.

Ao tribunal a quo não basta apenas afirmar que no dia 29 de julho de 2021, pelas 16H15, o arguido AA, conduziu o veículo automóvel. Nem afirmar que o que as testemunhas ouviram da boca da testemunha BB é credível. Importa sobretudo e essencialmente explicar o porquê de assim o afirmar e decidir, de demonstrar e convencer que assim foi. Ou seja, para além da credibilidade da afirmação, no sentido de que esta foi proferida, importa essencialmente demonstrar a credibilidade do facto contido na afirmação, que mais não é do que o arguido ter ou não ter conduzido o veículo nos termos provados no facto nº 4. E isso o tribunal não fez. Ou seja, o modo ou os termos em que julgador valorou o que as testemunhas ouviram dizer, faz tábua rasa do disposto no artigo 129º do Código de Processo Penal e do concreto depoimento da testemunha  BB.       

É que o depoimento indireto é, por natureza, uma não perceção direta dos factos. E, por regra, tem como fonte o que é transmitido por alguém que percecionou esses factos. Todavia, no concreto caso, estamos perante um depoimento indireto que não tem como fonte direta, quem praticou os factos nem quem os presenciou ou percecionou. E se na situação normal do artigo 129º do Código de Processo Penal o depoimento  merece especiais cautelas na sua valoração e consequente formação da convicção do julgador, no concreto caso tais cautelas são especialmente redobradas e merecedoras de uma fundamentação lógica, credível e sobremaneira convincente sobre a valoração do factualismo provado e/ou não provado. Daí que se torne relevante todo o circunstancialismo em que o depoimento indireto aconteceu. Diremos mais, o cerne da valoração desloca-se do que tais testemunhas ouviram dizer da testemunha  BB para se focar nos motivos ou razões que levaram esta testemunha a proferir tal afirmação perante as demais testemunhas.

Mas este aspeto da questão remete-nos para a impugnação que o recorrente também faz da relevância dada pelo julgador à designada prova indiciária, quando a dado momento afirma:

“não descortinamos a partir de que factos conhecidos se retiraram os factos desconhecidos? É que neste caso é necessário dar por provado não só o facto base (o conhecido directamente), mas também o facto adquirido (o conhecido pela ilação), sendo imperioso que na fundamentação da decisão de facto se afirme clara e inequivocamente quais os factos directamente conhecidos que conduziram à ilação do facto desconhecido e as razões de tal conclusão” – conclusão nº 23.

É pertinente a observação do recorrente.

Se é certo que o tribunal dá como provado no facto nº 10, que “BB não participou tal acidente nem ao seguro, nem às autoridades policiais, designadamente a informar que o veículo lhe tinha sido furtado e/ou utilizado sem a sua autorização” no qual o tribunal se estriba em termos dedutivos para concluir/fundamentar que era o arguido o condutor do veículo (nos termos do facto provado nº 4), existe um outro facto que o julgador igualmente convoca nesta fundamentação dedutiva mas que não está devidamente esclarecido nos autos, não tendo sido dado como facto provado nem devidamente esclarecida na fundamentação a idoneidade do afirmado. Referimo-nos à afirmação feita pelo tribunal a quo de que “o facto de o arguido não ter prestado declarações em nada beliscou a credibilidade da restante prova, mormente a das testemunhas inquiridas, que, com a respetiva razão de ciência, depuseram de forma objetiva e com conhecimento direto dos factos, lograram convencer o Tribunal quanto à versão dos factos dados como provados, tanto mais que na parte da frente da viatura sinistrada foi encontrado o telemóvel do arguido[8], como os agentes de autoridade tiveram a oportunidade de confirmar”.

Sobre este concreto facto diz o recorrente na conclusão nº 30: “Quanto ao facto de se ter encontrado um telemóvel alegadamente propriedade do arguido dentro do veículo no lugar do pendura, mais uma vez se dirá que esse facto, não poderá ser suficiente e bastante para dar como provado que o arguido era o condutor do veículo à data e hora dos factos”.

Para que o tribunal a quo possa recorrer ao método indutivo, é indispensável que os ditos factos base resultem provados nos autos, que sejam dados como assentes, de modo indubitável. Como se decide no ac. do STJ de 12-09-2007 proferido no proc. nº 07P4588,

III - Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.

IV - A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.

V - O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.

Não constando tal facto do factualismo provado (que o telemóvel encontrado no veículo acidentado é pertença do arguido), não vemos como possa o julgador a quo dele retirar as respetivas consequências em termos de prova por presunção/dedução, sendo certo que a ocorrência desse facto deve ser sujeita ao princípio do contraditório e a sua prova (do facto), indicada e fundamentada na sentença.

Se o julgador entendeu que se tratava (trata) de um facto relevante do qual pretendia fazer uso da prova indiciária/dedutiva e se o mesmo resultou da discussão em audiência – v. artigo 339º, nº 4, do Código de Processo Penal - , podia/deveria ter suscitado o incidente da alteração não substancial dos factos prevista no artigo 358º do Código de Processo Penal, dando seguidamente tal facto como provado, dele retirando as respetivas consequências legais.

Este raciocínio e critério aplica-se também a outros factos que, embora não constando do elenco do factualismo provado, o julgador deles igualmente deduz ter sido o arguido o condutor do veículo ...”, modelo ...56, com a matrícula ..-..-QF. Referimo-nos aos factos de este veículo - antes de circular e da ocorrência do acidente no dia 29 de julho de 2021, pelas 16H15, na EN ...28, Km 63, em ... - se encontrar em casa da testemunha  BB, sua proprietária e companheira do arguido, onde igualmente se encontravam as respetivas chaves do veículo por aí terem ficado e onde se encontrava apenas o arguido – por estar a cumprir pena de prisão em regime de permanência na habitação. Com efeito, afirma-se na fundamentação, a dado momento: “…até porque na hora do acidente a companheira do arguido estava a trabalhar e a viatura sinistrada tinha ficado em casa onde só se encontrava o arguido. Isto é, nas sobreditas circunstâncias de tempo e espaço, só o arguido tinha acesso àquela viatura”.

E ainda: “…e que, naquela data, o arguido se encontrava preso em regime de permanência na habitação, não se abstendo, assim, não só de violar a pena principal, mas a própria pena acessória…”.


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Em síntese:

Estado em causa a valoração de depoimento testemunhal indireto, de “ouvir dizer”, ao abrigo do disposto no artigo 129º, nº1, do Código de Processo Penal,  o mesmo só pode servir como meio de prova se a pessoa de quem se ouviu dizer, for chamada e ouvida em audiência.

No concreto caso, pese embora a referenciada pessoa que produziu a declaração tenha sido ouvida em julgamento, o tribunal recorrido não realizou o necessário e exigível exame crítico da prova produzida, nomeadamente o desta testemunha, conforme exigido pelo disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal. Este vício traduz-se na nulidade da sentença por força do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 379º do mesmo diploma legal.

Por sua vez, o depoimento da testemunha e militar CC de que ouviu uma criança que se encontrava no local com as demais pessoas que entretanto ali se concentraram e afirmou que quem ia a conduzir aquela viatura era o arguido, constitui prova proibida, logo legalmente inadmissível, dela não podendo ser retirada qualquer convicção e valoração do factualismo provado.

Não integrando o elenco dos factos provados que “na parte da frente da viatura sinistrada foi encontrado o telemóvel do arguido”, não pode o julgador dele retirar consequências legais em termos de prova por presunção ou método indutivo por não resultar dos autos que tal facto foi objeto de discussão em audiência, observado o princípio do contraditório e dado cumprimento ao disposto no artigo 358º, nº1, do Código de Processo Penal.

Este raciocínio e critério aplica-se também a outros factos que, embora não constando do elenco do factualismo provado, o julgador deles igualmente deduz ter sido o arguido o condutor do veículo ...”, modelo ...56, com a matrícula ..-..-QF, ou seja, que este veículo se encontrava em casa da testemunha BB, sua proprietária e companheira do arguido, onde igualmente se encontravam as respetivas chaves, casa onde na altura se encontrava apenas o arguido.


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Com a procedência da nulidade da sentença por falta de fundamentação, fica prejudicada a apreciação de todas as demais questões ou seja, da concreta apreciação da matéria de facto, a não realização de relatório social, a espécie/escolha da pena e a medida concreta desta, bem como a eventual suspensão da sua execução e/ou cumprimento em regime de permanência na habitação.

V

Dispositivo

Por todo o exposto, decide-se:

1. Julgar prova proibida, logo legalmente inadmissível, dela não podendo ser retirada qualquer valoração do factualismo provado, o depoimento da testemunha/militar CC sobre o que “ouviu a uma criança que se encontrava no local com as demais pessoas que entretanto ali se concentraram e afirmou que quem ia a conduzir aquela viatura era o arguido”.

2. Declarar que, não integrando o elenco dos factos provados que “na parte da frente da viatura sinistrada foi encontrado o telemóvel do arguido”, não pode o julgador dele retirar consequências legais em termos de prova por presunção ou método indutivo.

Raciocínio e critério aplicado igualmente aos factos de que o veículo ...”, modelo ...56, com a matrícula ..-..-QF, se encontrava em casa da testemunha BB, sua proprietária e companheira do arguido, onde igualmente se encontravam as respetivas chaves e onde na altura se encontrava apenas o arguido.

3. Declarar a nulidade da sentença de condenação do arguido por falta de fundamentação da mesma nos termos expostos, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 379º e nº 2 do artigo 374º, ambos do Código de Processo Penal.

4. Julgar prejudicada a apreciação de todas as demais questões suscitadas pelo recorrente AA.


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Sem custas.

Coimbra, 21.6.2023.

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários.





[1]
[2]
[3] Disponível in www.dgsi.pt
[4] Citado por Paulo de Sousa Mendes, in Lições de Direito Processual Penal, 2013, Almedina, p. 211.
[5] Onde se diz “até porque na hora do acidente a companheira do arguido estava a trabalhar e a viatura sinistrada tinha ficado em casa”.
[6] Sublinhado nosso.
[7] Esta restante prova é apenas o depoimento das testemunhas que ouviram a testemunha BB dizer que foi o arguido que conduziu o veículo.

[8] Sublinhado nosso.