Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1101/14.8T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: BENS COMUNS
DIVÓRCIO
INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
CASO JULGADO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 01/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 334, 1775, 2101 CC, 1419 CPC 1961
Sumário: 1. A sentença que decretou o divórcio por mútuo consentimento não constituiu caso julgado, relativamente à questão dos bens comuns do casal, ou à declarada falta deles, pois nada decidiu quanto a estes.

2. Além de irrenunciável, nos termos definidos pelo n.º 2 do art.º 2101º do CC, o direito de exigir a cessação da comunhão hereditária é, logicamente, imprescritível.

3. Assim, a actuação da A., no ano de 1983, em sede de acção de divórcio, em que, com o então marido, declara não existirem bens comuns do casal, e, no ano de 2014, nestes autos, quando no confronto com os herdeiros testamentários do seu ex-marido (instituídos como “únicos e universais herdeiros, de todos os bens que tiver à data da sua morte”) pede o reconhecimento de que o imóvel em causa nos autos fazia parte do património comum do casal e pretende fazer valer o direito à respectiva meação, não poderá ser qualificada como integradora de má fé, nomeadamente na exigente vertente do instituto do abuso de direito - nomeadamente nas modalidades de venire e supressio -, sendo que não ficaram minimamente beliscados quaisquer princípios ou normas de direito, designadamente os princípios da boa fé e da igualdade.

Decisão Texto Integral:     



       

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

            I. M (…) instaurou a presente acção declarativa comum contra A (…) e R (…) pedindo a condenação dos Réus a reconhecerem que é meeira no património comum do casal dissolvido por divórcio, composto pelo prédio urbano constituído por casa de rés-do-chão para habitação e logradouros, inscrito na matriz predial urbana, no ano de 1967, da freguesia de X... e Y..., sob o art.º 11... e descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de W... sob o n.º 22... [a)] e que aquele património comum do casal, dissolvido por divórcio em 12.12.1983 entre A. e A (…) nunca foi objecto de qualquer partilha [b)], bem como, depois de invocar a usucapião como forma de aquisição do prédio em causa [“c)”], a absterem-se da prática de actos que obstem ou perturbem a posse e o direito da A. sobre o referido prédio urbano [d)] e a verem declarados nulos e de nenhum efeito todos e quaisquer actos, escrituras, registos, averbamentos ou diligências que porventura tenham tido por objecto o prédio acima descrito [e)] e, por último, que seja ordenado o cancelamento de todos os registos efectuados sobre o mencionado prédio com base em quaisquer escrituras, testamentos, documentos particulares, bem como os registos posteriores junto das Conservatórias de Registo Predial [f)][1].

            Alegou, em síntese: em 27.11.1955, contraiu casamento, em primeiras e únicas núpcias de ambos, no regime de comunhão geral de bens, com A (…); aquela união dissolveu-se por divórcio por mútuo consentimento em 15.12.1983; do património comum do casal fazia parte o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de X... e Y... sob o art.º 11... e descrito sob o n.º 22... na CRP de W..., construído em terreno doado verbalmente pelos pais do falecido A..., a este e à A., já no estado de casados entre si, para aí erguerem a sua casa de habitação; as obras foram realizadas e custeadas inteiramente pela A. e o então falecido marido, que concluíram a moradia no ano de 1956 e efectuaram depois obras de conservação e melhoramento; o dissolvido casal nunca procedeu nem formalizou a partilha daquele bem comum; após o falecimento daquele seu ex-marido (em 19.9.2006), a A. continuou e continua a habitar o dito prédio urbano, o qual sempre constituiu o lar conjugal; a A. durante mais de 20, 30, 40, 50 anos está na posse do prédio, inicialmente na condição de proprietária/casada e após a morte de A..., como única e exclusiva dona, habitando-o, nela tomando refeições, dormindo, recebendo visitas e convivendo com pessoas de família, semeando, cultivando e colhendo os produtos nos logradouros adjacentes daquela habitação e zelando pela conservação e manutenção do prédio, o que fez e faz à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ininterruptamente e na convicção de exercer um direito próprio; quaisquer pretensos registos daquele prédio em nome dos Réus são necessariamente nulos e sem nenhum efeito, tanto mais que o património comum do casal de que faz parte a casa de habitação nunca foi objecto, até ao presente, de qualquer acto válido, nomeadamente de partilha; há pouco tempo os Réus começaram a tentar perturbar a posse da A., intimidando-a; irá requerer a partilha do património comum pertencente ao casal dissolvido.

             Os Réus contestaram, alegando, em resumo[2]: a petição inicial (p. i.) é manifestamente inepta por incompatibilidade dos pedidos e contradição entre a causa de pedir e os pedidos; é falso que do casamento da A. com o referido A (…) existissem bens comuns do casal, sendo que isso mesmo resulta da acta de divórcio cujo processo correu termos sob o n.º 112/83 do 1º juízo/2ª secção/tribunal recorrido; após a dissolução do casamento a A. deixou de residir com o ex-marido e quando voltou a residir na casa do A (…), fê-lo derivado a desavenças com a sua família, e porque não tinha para onde ir; o ex-marido da A. enquanto esteve doente sempre foi tratado pelo seu filho, nora e seus netos, aqui Réus; a A. bem sabe que nenhum direito tem sobre o alegado prédio urbano, o qual é propriedade dos Réus; a A. permaneceu e permanece no prédio urbano, propriedade agora dos Réus, por benevolência daquele A (…)e actualmente dos Réus, os quais, atendendo à idade da A. e enquanto sua avó, o foram permitindo; os Réus são os únicos proprietários do prédio urbano em causa nos autos, conforme é do conhecimento da A. e se comprova pelo registo predial, prédio que adquiriram como legado, em partes iguais, por testamento outorgado no dia 12.5.2005, no Cartório Notarial da Z..., pelo falecido A (…)[3]; todas as obras realizadas no imóvel foram feitas unicamente pelo falecido A (…) e pelos Réus, na pessoa de seu pai, por volta do ano de 2007; ainda que algum direito houvesse por parte da A., atenta o seu comportamento e posição assumidos, sempre a mesma litigaria manifestamente com abuso de direito, porquanto a A. em sede de acção de divórcio assume e afirma perante o Tribunal não existirem bens comuns do casamento entre si e o falecido A (…), e desde 2006 e até à data da propositura da acção nunca reclamou a propriedade de qualquer imóvel, não tendo os Réus conhecimento de que o tenha feito anteriormente; face aos factos referidos, a A. nunca poderia agora vir alegar que a conduta dos Réus constitui o fundamento dos pedidos em causa nos presentes autos, assumindo uma posição manifestamente contraditória, sob pena de abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”; a conduta processual da A. sempre integraria assim um ostensivo abuso dos pretensos direitos invocados, na modalidade de supressio e desequilíbrio do exercício, pois decorrido tal período de tempo e face aos factos referidos, nunca seria admissível a conduta processual em análise; desde sempre os Réus por si e pelos seus antecessores estiveram na posse do aludido prédio, construído de novo pelo A (…) em terreno doado pelos pais deste - pagam as contribuições devidas pelo imóvel, bem como praticam actos efectivos de posse, nomeadamente conservando o prédio urbano e semeando, cultivando e colhendo os frutos do logradouro, nele habitando fazendo obras de manutenção e beneficiação, vigiando-o, nele recebendo visitas, confeccionando as suas refeições, pernoitando e todos os demais actos próprios dos proprietários, fazendo-o de forma ininterrupta e até à presente data, à vista de toda a gente, com conhecimento da generalidade das pessoas, designadamente dos proprietários dos prédios vizinhos, dos moradores das povoações mais próximas e da aqui A., sem oposição de quem quer que seja, actos materiais por eles levados a cabo no exercício do seu direito de propriedade sobre tal prédio. Concluíram pedindo que sejam julgadas procedentes as excepções invocadas e os Réus absolvidos da instância ou, caso assim não se entenda, que seja a acção julgada improcedente, por não provada, e os Réus absolvidos dos pedidos.

            A A. respondeu concluindo pela improcedência da matéria de excepção e como na p. i. - referiu, além do mais, que os Réus, gozando apenas de uma presunção de registo, vêm agora alegar actos constitutivos/forma de aquisição, bem como actos de posse, em plena contradição com a realidade e com os factos mencionados por estes em sede de contestação, inicialmente apresentada e que não podem nesta data aproveitar os Réus do facto de na conferência de divórcio de mútuo consentimento as partes terem declarado a inexistência de bens comuns, pois estas são meras declarações de partes, sem carácter vinculativo e sem qualquer valor de reconhecimento de direitos - e pedindo a condenação dos Réus como litigantes de má fé, em multa e no pagamento à A. de uma indemnização de valor nunca inferior a € 3 000.

            A Mm.ª Juíza a quo, ouvidas as partes - depois de considerar que a matéria de facto relativamente à qual há acordo das partes nos articulados permitia conhecer, desde já, do mérito da causa - proferiu decisão de mérito, a 13.6.2018, julgando a acção procedente, pelo que veio a: a) Reconhecer que a A. é meeira no património comum do casal dissolvido por divórcio, composto pelo prédio urbano constituído por casa de rés-do-chão para habitação e logradouros, sito na ... n.º 00..., ... Y..., W..., inscrito na matriz predial urbana, no ano de 1967, da freguesia de X... e Y..., sob o art.º 11... e descrito na Conservatória do Registo Predial de W... sob o n.º 22...; b) Reconhecer que aquele património comum do casal, dissolvido por divórcio em 12.12.1983, entre A. e A (…) nunca foi objecto de qualquer partilha; c) Reconhecer que esse imóvel foi adquirido por usucapião a favor dos ex-cônjuges antes da dissolução do casamento por divórcio; d) Condenar os Réus a absterem-se da prática de actos que obstem ou perturbem a posse e o direito da A. sobre o referido prédio urbano; e) Declarar nulos e sem nenhum efeito todos e quaisquer actos, escrituras, registos, averbamentos ou diligências que porventura tenham tido por objecto o prédio acima descrito; f) Ordenar o cancelamento de todos os registos efectuados sobre o prédio identificado supra com base em quaisquer escrituras, testamentos, documentos particulares, bem como os registos posteriores junto da Conservatória do Registo Predial.
Inconformados, os Réus apelaram formulando as seguintes conclusões:

            (…)

            Violou, assim, a sentença recorrida os art.ºs 2101º, n.º 2 e 334º do CC, deve ser revogada por outra que absolva os Réus dos pedidos formulados pela A..

            A A. respondeu e concluiu que a) deve o requerimento de interposição de recurso ser liminarmente indeferido, por extemporâneo; b) ou, se assim não se entender, deve ser negado provimento ao recurso e manter-se na íntegra a decisão recorrida.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa conhecer e/ou reapreciar, principalmente, a relevância da actuação da A. em sede da acção de divórcio (em 1983), em que declarou não existirem bens comuns do casal, por contraposição à actuação subsequente, mormente no âmbito dos presentes autos, instaurados em 2014 (cf., sobretudo, a “conclusão 27ª” da alegação de recurso, supra).[4]


*

            II. 1. Releva para a decisão a factualidade (e a tramitação) que decorre do antecedente relatório, sendo que, sobretudo, no tocante ao enquadramento fáctico foi referido, com acerto, na 1ª parte da fundamentação da decisão sob censura:

            «Como já deixámos consignado no despacho de fls. 183 e 184, os Réus aceitam, na fase final da contestação aperfeiçoada, mais concretamente no art.º 73º deste articulado, que o terreno da casa foi doado aos pais de A (…), tendo a casa sido construída de novo por este, nesse terreno.[5]

            Logo, e por acordo das partes, terá que ter-se como assente que o terreno foi doado naqueles termos e a casa foi construída de novo com a intervenção de A (…), o qual era casado (…) com a A. no regime da comunhão geral de bens, conforme o respectivo assento de casamento junto a fls. 10.

            Deste modo, (…) a casa e o terreno correspondente, nele implantada, são bens comuns do casal que foi constituído pela A. e pelo mencionado A (…) pelo que se impunha a sua partilha em inventário para separação de meações.»

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            À data do mencionado processo de divórcio (1983) vigorava o seguinte quadro normativo:

            - Os cônjuges não têm de revelar a causa de divórcio, mas devem acordar sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça, o exercício do poder paternal relativamente aos filhos menores e o destino da casa de morada da família (art.º 1775º, n.º 2 do CC, na redacção conferida pelo DL n.º 496/77, de 25.11). Os cônjuges devem acordar ainda sobre o regime que vigorará, no período da pendência do processo, quanto à prestação de alimentos, ao exercício do poder paternal e à utilização da casa de morada da família (n.º 3).[6]

            - Qualquer co-herdeiro ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir partilha quando lhe aprouver (art.º 2101º, n.º 1 do CC). Não pode renunciar-se ao direito de partilhar, mas pode convencionar-se que o património se conserve indiviso por certo prazo, que não exceda cinco anos; é lícito renovar este prazo, uma ou mais vezes, por nova convenção (n.º 2).[7]

            - O requerimento para a separação judicial de pessoas e bens ou para o divórcio por mútuo consentimento será assinado por ambos os cônjuges ou pelos seus procuradores e instruído com os seguintes documentos: a) Certidão de narrativa completa do registo de casamento; b) Relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respectivos valores; c) Acordo que hajam celebrado sobre o exercício do poder paternal relativamente aos filhos menores, se os houver; d) Acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que careça deles; e) Certidão da convenção antenupcial e do seu registo, se os houver; f) Acordo sobre o destino da casa de morada da família (art.º 1419º, n.º 1 do CPC, na redacção introduzida pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12). Caso outra coisa não resulte dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior (n.º 2).[8]

            3. Tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência - mormente no domínio daquele quadro normativo - que a relação de bens junta em processo de divórcio por mútuo consentimento não vincula os outorgantes para o futuro, já que ela não faz caso julgado quanto à natureza, qualidade, quantidade ou valor dos bens relacionados.[9]

            Apesar da lei processual exigir que se junte à petição de divórcio ou separação por mútuo consentimento a relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respectivos valores (art.º 1419º, n.º 1, alínea b), do CPC de 1961), o mesmo ocorrendo quando os cônjuges acordem, na tentativa de conciliação do processo de divórcio litigioso, em que a dissolução do casamento se faça por aquela forma (art.º 1407º, n.º 3 do mesmo Código), porém, os efeitos do caso julgado da sentença que a decrete não se estendem a essa relação, pois, é seguro, não se verifica a identidade de pedidos nem tem que haver entendimento prévio quanto à partilha dos bens do casal, que só os acordos quanto à prestação de alimentos, destino da casa de morada de família e exercício do poder paternal foram sujeitos a apreciação na mesma sentença (art.º 1776º, n.º 2 com referência ao art.º 1775º, n.º 2, do CC).[10] [11]

               4. Refere-se, ainda, na parte final da fundamentação da sentença recorrida:

            «(…) a declaração de que não há bens comuns do casal, no divórcio, não obsta a que se prove o contrário em acção própria, como é o caso desta, e, por outro lado, a conduta da A. descrita na contestação, a ser verdadeira, (…) não obstaria ao reconhecimento desse direito em sede judicial, tendo por base o alegado instituto do abuso de direito.

            Está provado pela respectiva certidão judicial junta aos autos que aquando da conferência de divórcio por mútuo consentimento os cônjuges declararam que não havia bens comuns do casal.

            Entendemos, todavia, que esta declaração não é vinculativa, mas meramente indicativa, não configurando qualquer renúncia ao direito de partilha.

            (…)

             Estando o património em causa por partilhar, a A. e o falecido A..., ao habitarem aquela casa, estavam a desfrutar de um direito próprio (…), nunca tendo a A. permanecido naquele imóvel “de favor”, como concluem os RR. na sua contestação.

            À comunhão conjugal no património comum do casal põe-se termo, como se sabe, por partilha judicial, em processo de inventário, ou partilha extrajudicial, por instrumento de partilha.

            Não tendo existido esta partilha, nem a A. nem o falecido A (…) exerceram qualquer posse individual sobre aquele imóvel, pelo que nunca os RR. podiam somar a sua posse à do falecido A (…) a fim de adquirir aquele imóvel por usucapião.

            (…)

            Não se vislumbra, por isso, na conduta da A. descrita pelos RR. na contestação, ainda que, hipoteticamente, considerada como provada na sua totalidade, matéria de facto que permita integrar o invocado abuso de direito.

            (…) ainda que o falecido A (…) tivesse instituído os mesmos [Réus] directamente herdeiros no direito de propriedade sobre o imóvel aqui em causa, pois, tendo a A. a posse física do imóvel, não tinha a mesma qualquer obrigação legal de atacar esse negócio jurídico.

            Podia fazê-lo, se fosse do seu conhecimento, mas, claramente, não estava obrigada a fazê-lo, e não corria o risco de a sua inércia configurar abuso de direito.

            (…) em bom rigor, o testamento outorgado por A (…), falecido ex-marido da A., apenas institui os RR. como herdeiros de todos os bens que compõem a sua herança.

            Ora, apenas fazendo parte desta herança (…) o direito à meação nos bens comuns do casal do património comum adveniente do casamento com a A., os mesmos, por aquele testamento, são, em bom rigor, herdeiros na meação do património comum e ainda não partilhado, sendo o testamento, à partida, totalmente válido com este objecto.

            É ostensivo, por isso, que o registo da totalidade a favor dos RR. do imóvel em causa, que lograram obter pelo facto de o prédio, sendo antigo, não estar descrito no Registo Predial, não legitima o direito de aquisição daqueles nos termos em que está registado, mostrando-se registado direito diferente daquele que o título - testamento - lhes confere.

            Provado que se mostra (…) que o imóvel em causa foi doado a A (…), nele sendo implantada a casa, e sendo certo que o A (…)veio a ser casado com a A. no regime da comunhão geral de bens, o imóvel em causa, por força do previsto nos art.ºs 1732º e 1733º do CC, que ainda não foi objecto de partilha, integra o património comum do casal que foi constituído pela A. (…) e pelo então marido, A (…), que foram casados na comunhão geral de bens, tendo este casamento sido dissolvido por divórcio por sentença transitada em julgado em 12.12.1983, o que, desde já, aqui se reconhece.

            O registo da aquisição a favor dos RR., por ter sido efectuado com base em título que lhes não confere o direito que veio a ser registado, é nulo, e, como tal se declara.»

            5. Como vimos, o referido entendimento expresso na sentença recorrida revela-se pacífico na doutrina e na jurisprudência dos tribunais superiores, que vêm afirmando que a junção da relação de bens em acção de divórcio por mútuo consentimento constitui mera condição de prosseguimento da causa[12] e que o caso julgado da sentença que decreta o divórcio por mútuo consentimento, não tem quaisquer reflexos sobre a titularidade dos bens aí relacionados, nada obstando a que no futuro inventário para separação de meações (ou em acção de processo comum) se possa questionar a existência de outros bens não incluídos, bem como a natureza, comum ou própria, daqueles que constam da relação.

            6. Aderindo ao referido entendimento, concluiu-se pela improcedência da tese dos apelantes, mormente do invocado abuso de direito previsto no art.º 334º do CC, normativo que, de acordo com o ensinamento do Professor Antunes Varela, “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é ´clamorosa, sensível, evidente`, a divergência entre o ´resultado` da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente ´formal`, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo[13]

            Na verdade, considerando que a relação em apreço (ou a declaração de inexistência de bens comuns do casal) não beneficia da definitividade do caso julgado, não se poderá qualificar a conduta da A. como integradora de má fé, nomeadamente na exigente vertente do instituto do abuso de direito, não se vendo que conduta em concreto adoptada pela A. tenha revelado ou fosse susceptível de revelar ou configurar um venire contra factum proprium, não se vislumbrando que o seu (irrenunciável e imprescritível[14]) direito de partilhar o referido imóvel de que é titular esteja a ser exercido, nos presentes autos, em contradição com a sua conduta anterior.[15]

            Não se justificando outras considerações e sendo, pois, manifesto que não estão verificados os pressupostos do instituto do abuso de direito, nomeadamente nas modalidades de venire e supressio, também não ficaram minimamente beliscados quaisquer princípios ou normas de direito, designadamente os invocados princípios da boa fé e da igualdade.

            7. A relação especificada dos bens comuns do casal não importa o acordo dos cônjuges quanto à partilha dos respectivos bens, o que significa que se destina, tão-somente, a protegê-los contra os riscos de, após o divórcio, virem a ser surpreendidos com a acusação da respectiva omissão.[16]

            E, reafirma-se, a sentença que decreta o divórcio não constituiu caso julgado, relativamente à questão dos bens comuns do casal, ou à declarada falta deles, pois nada decidiu quanto a estes (não tendo fundamento legal concluir-se tal, a propósito da homologação dos acordos, nomeadamente, do que se refere à declaração especificada sobre a existência ou inexistência de bens comuns do casa).

            8. Os cônjuges não podem modificar o seu estatuto patrimonial depois da celebração do casamento, não podendo, designadamente, bens comuns ser atribuídos, em propriedade exclusiva, a qualquer deles, ou os bens próprios entrar na comunhão ou ser transmitidos, onerosa ou irrevogavelmente, de um para o outro, com excepção do regime das doações entre casados, não havendo lugar à alteração do valor das massas patrimoniais do casal.

            E sendo a partilha dos bens do casal uma consequência da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges - a que, obviamente, só se procede, após esta cessação, por mútuo acordo -, é, porém, nula quando realizada, na pendência do casamento e antes de findas as relações patrimoniais.[17]

            Ademais, em princípio, o escopo do processo de divórcio não é a partilha de bens entre os cônjuges e nem para tanto se encontra vocacionado.

            9. Por conseguinte, nunca a declaração feita na tentativa de conciliação da acção de divórcio (12.5.1983/fls. 48) - segundo a qual não haveria bens a partilhar - poderia valer, nomeadamente como renúncia (desde logo, em momento algum renunciou a A./recorrida ao seu direito de propriedade, como meeira), na falta de norma especial que o admitisse como confissão.[18]

            10. Inexistindo caso julgado, não obstante a omissão do bem em apreço no mencionado processo de divórcio, apenas se poderá concluir, atento o regime de comunhão geral vigente para o casamento, que a questão da natureza desse bem podia ser suscitada nos presentes autos e dúvidas não restam de que nada de relevante foi aduzido susceptível de o afastar da comunhão de que sempre fez parte (cf. os art.ºs 1732º e 1733º do CC e os art.ºs 1108º e seguintes do Código de Seabra).

            11. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.       


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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.       

            Custas pelos Réus/apelantes.


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15.01.2019

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Alberto Ruço


           

           

             


[1] Considerou-se a petição inicial aperfeiçoada (e definitiva) de fls. 91, apresentada na sequência do despacho de fls. 89.
[2] Também aqui se considera a contestação aperfeiçoada de fls. 157, oferecida na sequência do despacho de fls. 154 (de 16.9.2016) e do recurso do apenso A..
[3] Veja-se, no entanto, o teor do testamento em causa reproduzido a fls. 77/172, do qual consta ter o outorgante/testador dito: «(…) Que não tem descendentes nem ascendentes vivos, pelo que pode dispor livremente de todos os seus bens./Que, por este testamento que é o primeiro que faz, institui, assim, como únicos e universais herdeiros, de todos os bens que tiver à data da sua morte, em comum e partes iguais, A (…) e R (…), ambos, solteiros, menores, naturais da referida freguesia da Y... onde residem

[4] Sendo por demais evidente, atento o âmbito da parte injuntiva da sentença recorrida (a amplitude do decidido), que se aplica ao recurso o prazo de interposição de 30 dias que resulta da aplicação conjugada dos art.ºs 638º, n.º 1 e 644º, n.º 1, alínea a) do CPC, e não o prazo de 15 dias conforme as disposições conjugadas dos art.ºs 638º, n.º 1 e 644º n.º 2, alínea f), do CPC.
[5] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[6] A actual redacção do art.º 1775º do CC é a seguinte (na redacção da Lei n.º 8/2017, de 03.3): «1 - O divórcio por mútuo consentimento pode ser instaurado a todo o tempo na conservatória do registo civil, mediante requerimento assinado pelos cônjuges ou seus procuradores, acompanhado pelos documentos seguintes: a) Relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respectivos valores, ou, caso os cônjuges optem por proceder à partilha daqueles bens nos termos dos artigos 272º-A a 272º-C do DL n.º 324/2007, de 28.9, acordo sobre a partilha ou pedido de elaboração do mesmo; b) Certidão da sentença judicial que tiver regulado o exercício das responsabilidades parentais ou acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais quando existam filhos menores e não tenha previamente havido regulação judicial; c) Acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça; d) Acordo sobre o destino da casa de morada de família; e) Certidão da escritura da convenção antenupcial, caso tenha sido celebrada. f) Acordo sobre o destino dos animais de companhia, caso existam. 2 - Caso outra coisa não resulte dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior.»
[7] Redacção primitiva e que permanece actual.
[8] A disposição similar (art.º 994º) do actual CPC (de 2013) reza o seguinte (redacção igual à introduzida ao art.º 1419º do CPC de 1961 pela reforma de 1995/96 – DL n.º 180/96, de 25.9): «1 - O requerimento para a separação judicial de pessoas e bens ou para o divórcio por mútuo consentimento é assinado por ambos os cônjuges ou pelos seus procuradores e instruído com os seguintes documentos: a) Certidão de narrativa completa do registo de casamento; b) Relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respectivos valores; c) Acordo que hajam celebrado sobre o exercício das responsabilidades parentais relativamente aos filhos menores, se os houver; d) Acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que careça deles; e) Certidão da convenção antenupcial e do seu registo, se os houver; f) Acordo sobre o destino da casa de morada da família. 2 - Caso outra coisa não resulte dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior.»

[9] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 06.5.1987-processo 074807 [assim sumariado: «II - Os efeitos do caso julgado da sentença que decreta o divórcio entre os cônjuges não se estendem à relação especificada dos bens comuns do casal, a que se refere a alínea b) do n.º 1 do art.º 1419 do CPC.»], 02.11.2010-processo 726/08.0TBESP-D.P1.S1 [com o seguinte sumário: «A sentença que decretou o divórcio, por mútuo consentimento, não constituiu caso julgado, relativamente à questão do acordo de partilha parcial dos bens comuns do casal, quanto à posterior partilha dos mesmos.»] e 19.5.2016-processo 4091/07.5TVPRT.P1.S1, da RG de 13.02.2014-processo 941/11.0TMBRG.G1 [tendo-se concluído, designadamente: «II - O requerimento para o divórcio por mútuo consentimento, ou para a conversão do divórcio sem o consentimento do outro cônjuge em divórcio por mútuo consentimento deve fazer-se acompanhar dos documentos e acordos referidos nos art.ºs 1419º, do CPC e 1775º e sgs., do CC, nos quais se inclui a relação especificada dos bens comuns do casal com indicação dos respectivos valores. (…) IV – Assim, a relação de bens apenas subscrita por um dos cônjuges preenche aquele requisito formal mas não vincula o outro cônjuge que a ela não aderiu, não podendo constituir, quanto a este, confissão de que o património relacionado existe.»], RP de 23.02.2015-processo 4091/07.5TVPRT.P1 [onde se concluiu: «IV - A relação especificada dos bens comuns a que se reporta artigo o art.º 1419º, n.º 1, alínea b), do CPC não é abrangida pelos efeitos do caso julgado da sentença que decretou o divórcio por mútuo consentimento, não ficando precludida a possibilidade de qualquer dos cônjuges vir a reclamar a partilha de um bem comum omitido na referida relação. V - No entanto, à referida relação deverá ser atribuído um particular valor probatório: o cônjuge que ulteriormente vier a negar a existência, a qualificação ou o valor de um bem incluído na lista assinada por ambos é que tem o encargo da prova de que este existe, de que não lhe deve ser reconhecida tal qualificação ou atribuído aquele valor.»], da RC de 14.02.2006-processo 4056/05 [constando do respectivo sumário: «O caso julgado da sentença que decreta o divórcio, em acção de divórcio por mútuo consentimento, não cobre a titularidade dos bens aí relacionados, pelo que não obsta a que no futuro inventário para separação de meações se possa questionar se algum, ou alguns, desses bens são comuns ou propriedade de um só dos cônjuges.»], 21.01.2014-processo 1350/10.3TBPMS.C1 [assim sumariado: «1. Se é certo que a lei exige que o divórcio por mútuo consentimento seja instruído com uma “relação especificada de bens comuns” (cf. art. 1775º, nº1, al. a) do CC), a sentença do juiz não vai acrescentar qualquer valor a este documento, pois que não se forma sobre tal “caso julgado”. 2. Isto porque no processo de divórcio por mútuo consentimento não existe qualquer pedido ou decisão sobre a “existência” ou sobre a “titularidade” dos bens relacionados.»], 11.10.2017-processo 245/16.1T8CNT.C1 [subscrito pelo aqui relator na qualidade de 2º adjunto e que cita vasta jurisprudência e alguma doutrina, tendo-se aí concluído: «A relação de bens comuns apresentada em processo de divórcio consensual não faz caso julgado quanto a tal natureza, podendo esta ser discutida no processo de partilhas ou nos meios comuns.»], da RL de 06.10.2009-processo 3555/04.7TBVFX-1, 03.3.2011-processo 7398-C/1990.L1-2 e 11.7.2013-processo 3546/10.9TBVFX.L1-7 [assim sumariado: «O pressuposto de decretamento do divórcio previsto no art.º 1775º, n.º 1, al. a), do CC é a apresentação do documento relação especificada dos bens comuns e não a existência de acordo quanto aos bens comuns, nada obstando a que dessa relação sejam omitidos bens, que dela conste a declaração de inexistência de acordo quanto a determinados bens ou, até, que cada um dos cônjuges apresente a sua relação especificada de bens comuns, uma vez que os litígios sobre a mesma serão ulteriormente dirimidos no processo próprio.»] e da RE de 08.7.2008-processo 1587/08-2 [ficando sumariado que «O caso julgado da sentença que decreta o divórcio, em acção de divórcio por mútuo consentimento, não cobre a titularidade dos bens aí relacionados, pelo que não obsta a que no futuro inventário para separação de meações se possa questionar se algum, ou alguns, desses bens são comuns ou propriedade de um só dos cônjuges»] e 10.3.2010-processo 2214/09.9TBPTM.E1, publicados no “site” da dgsi.

[10] Vide J. A. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. III, Almedina, 4ª edição, 1991, pág. 365.
   Em idêntico sentido, e reportando-se ao regime jurídico introduzido em 2008, vide F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Imprensa da Universidade de Coimbra, Vol. I., 5ª edição, 2016, págs. 697 e seguintes [afirmando-se, a págs. 699, que que já aquando da reforma do direito da família de 1977, discutida a hipótese de obrigar os cônjuges a entenderem-se previamente quanto à partilha dos bens do casal, ela foi abandonada porque “Não se quis dificultar o exercício do direito ao divórcio nos casos, tão vulgares na prática, em que a partilha põe problemas complexos que os cônjuges não estão em condições de resolver na ocasião”] e Rita Lobo Xavier A relação especificada de bens comuns: relevância jurídica da sua apresentação no divórcio por mútuo consentimento, Revista Julgar n.º 8-2009, Coimbra Editora, págs. 21 e 25 e seguinte.

[11] Afirma-se também no cit. acórdão da RG de 13.02.2014-processo 941/11.0TMBRG.G1: «Serão os mesmos os motivos que presidiram à menor consideração que o legislador de 2008 votou à relação de bens, sendo manifesta a intenção de relegar para a partilha subsequente ao divórcio a resolução de todas as questões patrimoniais

[12] Cf., entre outros, os citados acórdãos da RG de 13.02.2014-processo 941/11.0TMBRG.G1, da RC de 14.02.2006-processo 4056/05, da RE de 08.7.2008-processo 1587/08-2 e do STJ de 19.5.2016-processo 4091/07.5TVPRT.P1.S1 [afirmando-se, na respectiva fundamentação, que “(…) não foi intuito do Legislador resolver automática e definitivamente a partilha dos bens comuns, mas antes assegurar o seguimento da acção.” e constando do ponto V do respectivo sumário: «A relação especificada dos bens comuns a que alude o art.º 1149º, al. b) do CPC anterior é unicamente condição para o prosseguimento do processo de divórcio sendo certo que o respectivo conteúdo não faz caso julgado constituindo apenas mera condição para o prosseguimento do processo.»].
[13] Vide Das Obrigações em Geral, Vol. I., 8ª edição, Almedina, 1994, págs. 552 e seguintes e RLJ, 128º, pág. 241; e, ainda, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I., 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, págs. 296 e seguintes - aí se refere, nomeadamente, que para que haja abuso de direito, se exige que o excesso cometido pelo respectivo titular, seja «manifesto»; citando Manuel Andrade, que seja «exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça (…) intoleravelmente ofensivo do nosso sentido ético jurídico»; citando Vaz Serra, que constitua uma «clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante».
[14] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. VI., Coimbra Editora, 1998, pág. 165.
[15] Cf., de entre vários, o citado acórdão da RP de 23.02.2015-processo 4091/07.5TVPRT.P1.
[16] Neste sentido, cf. o estudo referido na parte final da “nota 10”, supra.
[17] Cf. o citado acórdão do STJ de 02.11.2010-processo 726/08.0TBESP-D.P1.S1.
[18] Cf. os citados acórdãos da RG de 13.02.2014-processo 941/11.0TMBRG.G1 e do STJ de 19.5.2016-processo 4091/07.5TVPRT.P1.S1.