Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
274/10.9TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PILAR OLIVEIRA
Descritores: LIVRO DE RECLAMAÇÕES
COIMA
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 12/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 4º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 18º CRP, 2º, Nº 1, 3º, Nº 1, AL. ), Nº 4 E 9º, Nº 1 AL. A) E Nº 3 D.L. 156/05 DE 15/9
Sumário: É inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, o nº 3 do art.º 9º do D.L. 156/05 de 15/9.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No processo de recurso de contra-ordenação nº 274/10.9TBCBR do 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Coimbra GD..., Lda., impugnou a decisão proferida pelo Ministério da Economia e da Inovação, que a condenou na coima de € 15.000,00 (quinze mil euros) pela prática de contra-ordenação p. e p. na alínea b) do n.º 1 e n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, punível pela alínea a) do n.º 1, conjugado com o n.º 3 do artigo 9.º do referido Decreto-Lei.

Por sentença de 29 de Abril de 2010 foi decidido, na parcial procedência do recurso de impugnação judicial, condenar a arguida GD..., Lda. pela prática de uma contra-ordenação prevista pela alínea b) do n.º 1 e n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro e punível pela alínea a) do n.º 1, conjugada com o n.º 3 do artigo 9.º do referido Decreto-Lei, na coima de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).

Inconformada com a decisão dela recorreu a arguida, rematando a correspondente motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
1. De harmonia com o disposto no art° 204° da CRP, "Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados";
2. O núcleo essencial do direito fundamental dos consumidores à "qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos" não é afectado pelo facto de o fornecedor de bens ou prestador de serviços não facultar ao consumidor o livro de reclamações de forma imediata;
3. O conteúdo essencial do preceito previsto no artigo 61 °/1 da Constituição da República Portuguesa é atingido de forma desproporcionada quando a lei prevê no art° 9°/1, alínea a) e 3 do Decreto-Lei n° 156/05, de 15 de Setembro a aplicação de uma coima mínima de 15.00,00 €;
4. A aplicação à recorrente de uma coima, ainda que reduzida a metade por via de atenuação especial, no montante de 7.500,00 € é, ainda assim, manifestamente desproporcional, ilegal e até imoral, comparativamente com o valor que o legislador quis proteger - o do consumidor;
5. As normas previstas no artigo 9.º/1, alínea a) e 3 do Decreto-Lei nº 156/05, de 15 de Setembro, segundo a interpretação normativa que lhes foi conferida pelo tribunal a quo, são claramente inconstitucionais por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no art° 18° da Constituição da República Portuguesa;
6. A sentença sub judice deve ser imediatamente revogada, com a consequente absolvição da recorrente da coima que lhe foi aplicada.
Termos em que V. Excias, revogando a douta sentença sob censura, farão a tão curial JUSTIÇA!

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que não merece provimento.

Admitido o recurso e remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
Nos termos artigos 2° n° 1, 3° n° 1, al. b), n° 4 e 9° nº 1, al. a) e nº 3 do D. L. nº 156/05de 15/9 a coima mínima aplicável é no montante de 15.000 €.
À recorrente foi aplicada a coima de €7500, porque o Mmº juiz atendeu à ausência de antecedentes criminais da arguida e ao lapso de tempo decorrido sobre a prática dos factos e atenuou especialmente a pena.
No preâmbulo do D.L. 156/05 de 15/09 o livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tomam mais acessível o exercício do direito de queixa ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu.
Esta medida é de primordial importância para a defesa dos direitos do consumidor.
Porém ao punir com coimas tão elevadas a infracção das regras estabelecidas no DL 156/05, não se pode "incentivar e encorajar a sua utilização", conforme pretende o preâmbulo do diploma. Entendemos que neste diploma o legislador esqueceu princípios constitucionais, como o da proporcionalidade.
Ao legislador são cometidos limites que deverão ser observados, ao mesmo tempo que outros limites decorrem da própria C.R.P. e do direito em geral. Por conseguinte, o poder discricionário nunca poderá ser entendido como uma carta em branco, mas como uma ordem para a realização da justiça na situação concreta. Toma-se por isso necessário respeitar o princípio constitucional da proporcionalidade.
A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na CRP, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. (art.º 18°, 2 CRP). O direito do consumidor é um direito fundamental de natureza análoga, sendo por isso equiparável aos direitos, liberdades e garantias, sendo-lhe assim aplicável o art° 18° nº 2 da C.R.P ..
Como diz o Prof Gomes Canotilho, "Admitido que um meio seja ajustado e necessário para alcançar determinado fim, mesmo neste caso dever perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à "carga coactiva" da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim.
Trata-se, pois, de uma questão de "medida" ou "desmedida" para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim." Ver - Gomes Canotilho, Direito Constitucional" Edição pag. 316.
"A primeira das "entidades públicas" subordinadas aos direitos liberdades e garantias é o Estado (em sentido estrito), quer enquanto legislador, quer enquanto administração, quer enquanto juiz. O primeiro não pode emitir normas incompatíveis com os direitos fundamentais, sob pena de inconstitucionalidade O terceiro está obrigado a decidir o direito para o caso em conformidade com as normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias e a contribuir para o desenvolvimento judicial do direito privado através da aplicação directa dessas mesmas normas. " - Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, pag. 383.
Fazendo a comparação do regime punitivo das infracções deste DL, com outros entre nós vigentes, com a mesma natureza contra-ordenacional e que poderá eventualmente vir a causar maiores danos à sociedade, como por exemplo as infracções de natureza contra­ordenacional ao Código da Estrada, verificamos que a moldura abstracta da punição desta infração é manifestamente desproporcional ao fim que se pretende alcançar, que é a proteção que o consumidor possui relativamente à qualidade dos bens, à proteção da saúde e segurança, mas que colide com o direito à iniciativa económica privada, face à dificuldade que as empresas sentem em dar escrupuloso cumprimento a todas as normas implementadas, sob pena de, se o não fizerem, serem punidas com coimas que representam montantes muito superiores ao lucro que obtêm com a actividade que desenvolvem, como aconteceu no caso vertente.
Subscrevemos integralmente o que se decidiu sobre esta matéria no Ac. deste Tribunal da Relação de 09/12/2009 no Proc n° 79/09.0TBCBR, em que foi Desembargador relator o Exmo Dr. Trindade, pelo que deverá considerar-se a inconstitucionalidade do art° 9º do DL 156/05, por violação do art° 18º da C.R.P ..
Nestes termos, emitimos parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente não exerceu o direito de resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Fundamentos da Decisão Recorrida
São os seguintes os fundamentos da decisão recorrida:
Da nulidade da decisão administrativa:
Veio a impugnante pugnar pela nulidade da decisão administrativa, por violação do art.º 119.º, al. c) do C.P.P., aplicável por força do disposto no art.º 41.º do R.G.C.O.C. e art.º 58.º, n.º 1, al. c) do R.G.C.O.C., bem como das linhas de orientação consignadas nos arts. 2.º, al. a) e 3.º, al. p) da Lei n.º 13/95, de 5 de Maio.
Dispõe o art.º 119.º, al. c) do C.P.P. (aplicável por força do disposto no art.º 41.º do R.G.C.O.C.) que constitui nulidade insanável a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.
Ora, o que a arguida vem invocar como causa da existência de tal nulidade é o facto de, ouvidas as suas testemunhas e apresentada a sua defesa, a autoridade administrativa não ter decidido com base no que foi dito por aquelas e alegado na defesa.
Tais argumentos não se subsumem à alínea do artigo do C.P.P. invocado, até porque é dito pela própria arguida que apresentou a sua defesa.
Como tal, não tendo havido ausência da impugnante ou do seu defensor em acto em que fosse obrigatória a sua comparência, não estará verificada a nulidade prevista no art.º 119.º, al. c) do C.P.P.

A recorrente vem, ainda, basear a nulidade da decisão na al. c) do n.º 1 do art.º 58.º do R.G.C.O.C. (que surgiu na lei na sequência das linhas de orientação consignadas nos arts. 2.º, al. a) e 3.º, al. p) da Lei n.º 13/95, de 5 de Maio), uma vez que a autoridade administrativa se limita a condenar a impugnante como autora de uma contra-ordenação, não havendo uma correcta fundamentação quanto à verificação do dolo da arguida.
Nos termos do art.º 58.º, al. c) do R.G.C.O.C., a decisão administrativa final deve conter a fundamentação da decisão.
Citando o ac. de 09/09/2008 do TRE, pr. 1680/08-1, “os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória visam assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa…A lei não define qual o âmbito ou rigor da fundamentação que aqui se impõe, mas é entendimento que não se impõe aqui uma fundamentação com o rigor e exigência que se impõem no art.º 374.º, n.º 2 do C.P.P…porque esta é uma decisão administrativa que não se confunde com a sentença penal…Não faz assim qualquer sentido que a decisão administrativa tenha de obedecer aos requisitos da sentença penal…Tal fundamentação será suficiente desde que se justifique as razões pelas quais é aplicada esta ou aquela sanção ao arguido, de modo que este, lendo a decisão, se possa aperceber, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, das razões pelas quais é condenado e, consequentemente, impugnar tais fundamentos”.
Ora, da decisão final, ainda que a arguida entenda que dos factos dados como provados não se retiram as conclusões descritas pela autoridade administrativa, são indicados os motivos por que se deram como provados os factos constantes da decisão, bem como são indicadas as bases legais para a condenação, não se podendo concluir pela existência dos vícios elencados na al. c) do art.º 58.º do R.G.C.O.C.
Acresce que na decisão administrativa se faz referência expressa ao dolo, na modalidade de dolo necessário – cfr. fls. 38 – o que basta para fundamentar a decisão tomada.
De qualquer modo e mesmo que se tivesse por verificados tais vícios invocados pela recorrente, nunca se estaria na presença de uma nulidade mas tão só de uma irregularidade. Citando António Beça Pereira, em “Regime Geral das Contra-Ordenações e coimas”, 6.ª edição, Almedina, pág. 58 “Não se estabelece qualquer consequência para a inobservância, na decisão condenatória da autoridade administrativa, de algum dos requisitos previstos neste artigo (58.º)…Nesse caso, não se deverá aplicar, subsidiariamente, o disposto no art.º 379.º do C.P.P. (nulidades da sentença) uma vez que, se o arguido interpuser recurso da decisão condenatória, esta, nos termos do art.º 62.º, n.º 1, converter-se-á em acusação. Também não se deve recorrer ao disposto no art.º 283.º, n.º 3 do C.P.P. (nulidades da acusação) visto que, se não for interposto recurso da decisão condenatória, esta não chega a assumir a natureza de acusação…
E considerando que o art.º 118.º, n.º 1 do C.P.P., ex vi do art.º 41.º do R.G.C.O.C., prescreve que só são nulidades aquelas que como tal estiverem legalmente previstas, conclui que “a inobservância dos requisitos estabelecidos para a decisão condenatória da autoridade administrativa consiste (apenas) numa irregularidade…”.
Assim, conclui-se pela inexistência de qualquer nulidade da sentença.
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Inexistem quaisquer outras nulidades, excepções ou questões prévias que, obstando ao conhecimento do objecto do processo, o Tribunal possa, desde já, conhecer.
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Factos provados:
Encontram-se provados os seguintes factos:
A) No dia 9 de Outubro de 2007, no estabelecimento de bebidas designado comercialmente por “CAFÉ …”, sito na rua …, Coimbra, a arguida não disponibilizou o livro de reclamações ao cliente R....
B) Tendo comunicado ao reclamante que só lhe facultaria o mesmo se este se identificasse.
C) O cliente pretendia reclamar das condições do serviço que lhe estava a ser prestado.
D) A arguida conhecia as regras que estabelecem a obrigatoriedade de entrega do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral.
E) Agiu livre e voluntariamente, sabendo que como consequência necessária da sua conduta praticava uma contra-ordenação.
F) A arguida obteve, em 2006, um resultado líquido do exercício negativo de € 87.502,30.
G) Não são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais à recorrente.
H) A polícia tomou conta da ocorrência no local, por participação do reclamante.
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Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa, mormente que:
- Nunca foi negado o livro de reclamações ao reclamante, estando o mesmo sempre em cima do balcão.
- O reclamante se encontrava incapaz de redigir ou verberar qualquer reclamação, atento o seu estado eufórico e de desorientação provocado pelo excessivo consumo de álcool.
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Os factos dados como provados e não provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.
Assim, os factos dados como provados assentam na prova documental de fls. 8 (reclamação apresentada), declaração de IRC de fls. 11 e declarações do reclamante R… . Com efeito, este, de forma convincente e credível, descreveu os factos como os consideramos provados, explicando como os factos ocorreram e como lhe foi negado o livro de reclamações, por não ter entregue o seu bilhete de identidade.
O agente de autoridade que se deslocou ao local – A... – embora não tendo presenciado os fatos, corroborou a versão do denunciante, pois confirmou que o livro de reclamações só foi entregue ao reclamante quando já se encontrava no local.
As testemunhas de defesa – J... e L... -, ambos funcionários da recorrente, não presenciaram a troca de palavras do reclamante com o gerente do estabelecimento, embora tenham confirmado que eles conversaram, pelo que desconheciam se efectivamente o livro de reclamações foi negado por o reclamante não se ter identificado. Referiram, ainda, que o livro foi facultado antes da chegada da polícia, o que não corresponde à verdade, pois o agente de autoridade, que não tem qualquer interesse na causa, confirmou o auto de notícia, onde expressamente consta que o livro só foi facultado depois de se ter deslocado ao café.
Em suma, estas testemunhas não nos mereceram credibilidade e depuseram tentando desculpabilizar a sua entidade patronal.
Quanto aos factos relatados em E), a sua prova resulta da conjugação dos restantes factos dados como provados. Como se refere no Ac. da R.P. de 23.02.93, B.M.J. 324/620, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”. No mesmo sentido vide Ac. da R.P. 0140379, de 03.10.2001, Ac. R.G. 1559/05.1, de 14.12.2005, ambos em www.jurisprudencia.vlex.pt.
Não se fez prova quanto aos factos dados como não provados.
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DO DIREITO
À arguida foi aplicada uma coima pela prática de contra-ordenação, p. e p. pela al. b) do n.º 1 e n.º 4 do art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, punível pela al. a) do n.º 1, conjugado com o n.º 3 do art.º 9.º do referido Decreto-Lei.
Prescreve a al. b) do n.º 1 do art.º 3.º do Decreto-Lei supra mencionado que: “1—O fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a: b) Facultar imediata e gratuitamente ao utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado;”.
Já o n.º 4 do mesmo artigo determina que “4—Quando o livro de reclamações não for imediatamente facultado ao utente, este pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para fiscalizar o sector em causa”.
Com tais obrigações, visou-se reforçar os procedimentos de defesa dos direitos dos consumidores e utentes no âmbito do fornecimento de bens e prestação de serviços, instituindo a obrigatoriedade de existência e disponibilização do livro de reclamações em todos os estabelecimentos constantes do anexo I do diploma.
Segundo a al. a) i) do anexo I, estão obrigados a ter e a disponibilizar livro de reclamações os :“a) Estabelecimentos de venda ao público e de prestação de serviços: i) Estabelecimento de comércio a retalho e conjuntos comerciais a que se refere a Lei n.º 12/2004, de 30 de Março;”
Por sua vez, o art.º 3.º, al. c) da Lei 12/2204 define estabelecimento de comércio a retalho como “o local em que se exerce a actividade de comércio a retalho, tal como é definida na alínea b) do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 339/85, de 21 de Agosto;”, sendo que a al. b) do n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 339/85, determina que exerce a actividade de comércio a retalho toda a pessoa física ou colectiva que, a título habitual e profissional, compra mercadorias em seu próprio nome e por sua própria conta e as revende directamente ao consumidor final.
Ora, enuncia o art.º 1.º do R.G.C.O.C., que “Constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”.
Por sua vez, o art.º 8.º do mesmo normativo dispõe que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos, com negligência.
Invoca a arguida que deverá ser absolvida, uma vez que não praticou qualquer infracção e, caso assim não se entenda, deverá beneficiar de especial atenuação da pena, uma vez que é infractora primária e não retirou qualquer benefício económico com a prática do ilícito, pelo que deverá ser a coima aplicada reduzida ao valor de € 500.
O tipo objectivo em análise implica que não seja facultado, por estabelecimento a que a tal esteja obrigado, livro de reclamações.
Já o tipo subjectivo admite o dolo ou a negligência (art.º 9.º, n.º 2 do DL 156/2005).
Passando à análise dos factos dados como provados e no que concerne ao tipo objectivo, resulta que a arguida, no dia 9 de Outubro de 2007, no estabelecimento de bebidas designado comercialmente por “CAFÉ …”, sito na rua …Coimbra, não disponibilizou o livro de reclamações ao cliente R..., tendo comunicado ao reclamante que só lhe facultaria o mesmo se este se identificasse.
Convém referir que o art.º 3.º, n.º 3 do DL 156/2005 estabelece que o fornecedor de bens ou prestador de serviços ou o funcionário do estabelecimento não pode condicionar a apresentação do livro de reclamações, designadamente, à necessidade de identificação do utente.
Assim, encontram-se preenchidos os elementos do tipo objectivo.
Quanto ao elemento subjectivo, foi dado como provado que a arguida conhecia as regras que estabelecem a obrigatoriedade de apresentação de livro de reclamações a todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral. Agiu livre e voluntariamente, sabendo que como consequência necessária da sua conduta praticava uma contra-ordenação.
Assim, a arguida actuou com dolo, pois agiu representando um facto que preenche um tipo de contra-ordenação.
Encontra-se, portanto, preenchido o elemento subjectivo (art.º 14.º do C.P. e 8.º e 32.º do R.G.C.O.C.).
Inexistem causas de justificação e de desculpação
Consubstanciada está, assim, a prática, pela arguida, da contra-ordenação prevista pela al. b) do n.º 1 e n.º 4 do art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro.
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Da escolha e medida concreta da sanção
Feito o enquadramento jurídico da conduta da arguida, importa agora determinar a sanção a aplicar e respectiva medida.
Estabelece o artigo 18.º do R.G.C.O.C. que os factores a atender na determinação concreta da coima a aplicar são a gravidade da contra-ordenação, a culpa do agente, a sua situação económica e o benefício económico que o mesmo tenha retirado dos factos praticados.
Nos termos da al. a) do n.º 1, conjugado com o n.º 3 do Decreto Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, a contra-ordenação pela qual a arguida responde é punível com coima entre € 3.500,00 a € 30000,00, sendo que, verificando-se a circunstância prevista no n.º 4 do art.º 3.º (“Quando o livro de reclamações não for imediatamente facultado ao utente, este pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para fiscalizar o sector em causa”), o montante da coima a aplicar não poderá ser inferior a metade do montante máximo da coima prevista.
Resulta dos autos, com relevo para a determinação da sanção, que:
- a contra-ordenação é de gravidade média, uma vez que a norma visa reforçar os procedimentos de defesa do consumidor que acaba, a maior parte das vezes, por estar numa situação desfavorável e, com a sua violação, o consumidor não faz valer os seus interesses;
- a contra-ordenação foi praticada a título de dolo necessário (como já constava da decisão administrativa) ;
- quanto à situação económica da arguida, apenas se provou que obteve em 2006 um resultado líquido do exercício de - € 87.502,30;
- não se conhece qualquer benefício com a prática da contra-ordenação;
-a impugnante não tem quaisquer antecedentes contra-ordenacionais.
Prescreve ainda o art.º 72.º-A do R.G.C.O.C. que o tribunal não poderá modificar a sanção aplicada pela autoridade administrativa, em prejuízo de qualquer dos arguidos.
Pretende a recorrente que a pena seja especialmente atenuada, sendo certo que, por força do disposto no artigo 18º, n.º 3 do RGCOC, quando tal ocorra os limites mínimos e máximos da coima são reduzidos para metade.
No caso dos autos, entendemos que a pena deve ser especialmente atenuada, considerando que a recorrente não tem condenações anteriores pela prática de contra-ordenações, nem se conhece que tenha condenações posteriores, as circunstâncias do caso, uma vez que apenas pretendiam que o reclamante se identificasse, o reclamante acabou por realizar a reclamação e os factos já datam de 9 de Outubro de 2007 – artigo 72º do Código Penal.
Tudo ponderado, fixo a coima a aplicar em € 7.500,00.
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III. Apreciação do Recurso
Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigo 412°, nº 1 do Código de Processo Penal). Vistas as conclusões apresentadas a única questão que se suscita para apreciação deste Tribunal consiste em saber se o artigo 9º, nº 1, alínea b) e nº 3 do Decreto-Lei nº 156/2005 15.9 é inconstitucional no segmento em que prevê que a coima mínima aplicável a pessoas colectivas é de 15.000 euros.

Apreciando:
O recorrente sustenta que o artigo 9º, nº 1, alínea a) e nº 3 do Decreto-Lei nº 156/05, de 15 de Setembro, segundo a interpretação normativa que lhe foi conferida pelo tribunal a quo, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 18° da Constituição da República Portuguesa, sendo os direitos em colisão os previstos nos artigos 60º e 61º da CRP.
A questão proposta já mereceu apreciação deste Tribunal nos seguintes termos:
" Nos termos dos artigos 2º, nº 1, 3º, nº 1, al. b), nº 4 e 9º, nº 1, al. a) e nº 3 do D.L. nº 156/05 de 15/9 a coima mínima é no montante de 15.000 €.
Perante tal montante mínimo a primeira coisa que queremos registar é a de que o legislador está desfasado da realidade, quando é certo que se impõe que ele tenha um conhecimento prático da vida.
O legislador não pode sensibilizar, educar, prevenir, mesmo punir, impondo um tal regime.
Como se diz no preâmbulo do D.L. 156/05 o livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu.
Consideramos esta medida de primordial importância para a defesa dos direitos do consumidor, já não consideramos que, com coimas deste montante, se possa "incentivar e encorajar a sua utilização"(preâmbulo do diploma). Diremos mais, se o consumidor tiver consciência destes montantes que pendem sobre a "cabeça" das entidades e estabelecimentos obviamente que se retrairá no exercício do direito que a lei lhe confere.
No caso o legislador olvidou princípios constitucionais.
Ao legislador são cometidos limites que deverão ser observados, ao mesmo tempo que outros limites decorrem da própria Constituição e do Direito em geral. Por conseguinte, o poder discricionário nunca poderá ser entendido como uma carta em branco, mas como uma ordem para a realização da justiça na situação concreta.
É necessário respeitar o princípio constitucional da proporcionalidade.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, já exigia expressamente que se observasse a proporcionalidade entre a gravidade do crime praticado e a sanção a ser aplicada. "a lei só deve cominar penas estritamente necessárias e proporcionais ao delito" (art.15). No entanto, o princípio da proporcionalidade é uma consagração do constitucionalismo moderno.
A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. (art.º 18°, 2 CRP).
"Admitido que um meio seja ajustado e necessário para alcançar determinado fim, mesmo neste caso dever perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à "carga coactiva" da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de "medida" ou "desmedida" para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim."( -Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4ª Edição pag. 316).
A primeira das "entidades públicas" subordinadas aos direitos liberdades e garantias é o Estado (em sentido estrito), quer enquanto legislador, quer enquanto administração, quer enquanto juiz. O primeiro não pode emitir normas incompatíveis com os direitos fundamentais, sob pena de inconstitucionalidade… O terceiro está obrigado a decidir o direito para o caso em conformidade com as normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias e a contribuir para o desenvolvimento judicial do direito privado através da aplicação directa dessas mesmas normas."( -Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, pag. 383 )
Não conhecemos na legislação rodoviária, cuja violação dá origem a centenas de mortes anualmente, sanção que se aproxime do referido limite mínimo.
Não conhecemos na pequena e média criminalidade em que são postas em causa a integridade física, a honra, a propriedade etc. decisões condenatórias que se aproximem do referido limite mínimo.
É irrelevante nos termos que deixamos expostos a chamada à colação do preceituado no nº 3 do D.L. 433/82 (atenuação especial mínimo 7.500 €) ou o preceituado no art.º 88° do mesmo diploma (pagamento em prestações).
Concluímos, assim, pela inconstitucionalidade do normativo citado pela ofensa do princípio da proporcionalidade." (fim de transcrição).
Mas para melhor salientar a desproporção entre as finalidades pretendidas e as coimas previstas poderá ainda efectuar-se um exame comparativo entre estas e as aplicáveis a delitos contra-ordenacionais de natureza económica, alguns deles directamente relacionados com as actividades de prestação de serviços de alimentação e bebidas, cujas coimas variam entre o mínimo de 24,94 e o máximo de 4.987,98 euros (cfr. Decreto-Lei nº 28/84 de 20.1).
Será por demais evidente a desproporção existente entre a penalização prevista para a falta de cumprimento da obrigação de facultar o livro de reclamações que apenas se destina a facilitar o exercício pelo consumidor do seu direito de reclamação/queixa, por muito importante que este seja, (tendo outras formas de exercício) e a violação de regras da actividade económica que está em causa, como seja a venda de produtos alimentares com falta de requisitos ou a inobservância de regras de higiene, contra-ordenações puníveis com coima até 2.493,99 euros, notando-se que neste caso é manifesta a inutilidade do uso do livro de reclamações para que o consumidor possa, com eficácia, denunciar a situação (a constatação da falta de requisitos ou de higiene depende de exame a efectuar com brevidade não compatível com o prazo que o prestador de serviços tem para enviar a reclamação à entidade competente).
O princípio da proporcionalidade que vem consagrado no artigo 18º da CRP e que determina que eventuais restrições de direitos apenas se justificam na medida necessária à salvaguarda de outros direitos, é uma decorrência do mais lato princípio da igualdade previsto no artigo 13º do mesmo diploma constitucional.
E o princípio da igualdade determina tratamento igual de situações iguais e tratamento desigual de situações desiguais, o que já encerra uma ideia de proporcionalidade, de ponderação do que efectivamente é igual e merece idêntico tratamento e do que é desigual e merece tratamento diferenciado.
A resolução do conflito entre os direitos do consumidor e o direito à iniciativa económica privada (artigos 60º e 61º da CRP) deve partir do pressuposto de que nenhum deles pode ser objecto de perigo inutilização prática. Tal determina que as sanções estipuladas para a violação dos direitos do consumidor não possam ser de tal modo onerosas que ponham em perigo o direito ao exercício da actividade económica que esteja em causa a não ser em casos de extrema gravidade, o que está fora do horizonte de uma infracção isolada desta natureza a que tendencialmente serão aplicáveis coimas próximas do limite mínimo previsto.
E estamos, no caso, perante o exercício de actividade de restauração e bebidas que, quer seja exercida em nome individual, quer o seja em nome colectivo, está povoada de estabelecimentos de pequena dimensão e baixos rendimentos.
E no cotejo das situações estritamente ligadas ao direito à iniciativa económica privada (já sem ponderação simultânea dos direitos do consumidor) torna-se claro que as coimas terão de ter uma latitude que permita exercer com justeza e adequação o princípio da igualdade, de forma que o sacrifício imposto pela coima não só não constitua um obstáculo intolerável ao exercício da actividade nos casos em que o não deva ser (para esse efeito existem as sanções acessórias) como seja tendencialmente igual para estabelecimentos de pequena e grande dimensão.
Se coima de limite mínimo fixado em 15.000 manifestamente não respeita a proporcionalidade no cotejo com o direito dos consumidores, de igual modo também o não contempla, no cotejo com outras infracções de natureza económica. E se a função de defesa do direito dos consumidores do livro de reclamações pode justificar sancionamento em alguma medida mais gravoso do que a prevista para infracções também de natureza contra-ordenacional, não justificará certamente que a aplicação de uma coima possa constituir, em casos de pequena gravidade, um sério obstáculo à continuação do exercício da actividade.
Na análise do princípio da proporcionalidade não será despiciendo considerar que actualmente o salário mínimo nacional é de 475 euros mensais, quantia que, segundo o Estado, será a estritamente necessária para a subsistência das pessoas e deveria igualmente constituir um ponto de referência para o estabelecimento de sanções. O princípio da proporcionalidade cumprir-se-á em primeiro lugar adequando as sanções à realidade económica nacional e não a qualquer outra realidade supra-nacional.
A consideração de que o segmento normativo em causa é inconstitucional, não conduzirá, porém, à pretendida absolvição da arguida.
Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros em Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, em anotação ao artigo 282º, pág. 827, quando a validade da norma revogatória do direito anterior não é afectada pela inconstitucionalidade, como é o caso (está apenas em causa a inconstitucionalidade do limite mínimo estabelecido para coima e não a previsão como infracção contra-ordenacional da obrigação de facultar o livro de reclamações) "a solução se há-de buscar nas restantes normas do acto normativo parcialmente inconstitucional e do ordenamento jurídico em vigor".
Ou seja, o limite mínimo da coima aplicável deverá ser encontrado para a infracção simples de violação da obrigação de facultar o livro de reclamações (sem ter ocorrido intervenção da entidade policial). Nesse caso prevê o artigo 9º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 156/2005 coima mínima no valor de 3.500 euros.
Mas, a nosso ver, a previsão em causa continua a padecer do mesmo vício quanto estabelece coima mínima para pessoas colectivas de 3.500 euros, montante que também não respeita o princípio da proporcionalidade nos termos acima expostos.
E na falta de previsão válida para a contra-ordenação cometida por pessoas colectivas deverá então valer, igualmente para pessoas colectivas, a coima mínima prevista para pessoas singulares de 250 euros.
Sendo, assim a coima aplicável situar-se-á entre 250 e 30.000 euros.
Considerando as circunstâncias aludidas na decisão recorrida e que merecem ponderação no doseamento da coima, nos termos do artigo 18º, nº 1 do RGCO, deve a coima a aplicar à arguida/recorrente ser fixada em 400 euros.
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IV. Decisão
Nestes termos acordam em conceder provimento parcial ao recurso interposto pela arguida e, em consequência:
1. Declarar inconstitucional o segmento normativo do artigo 9º, nº 3 do Decreto-Lei nº 156/2005 de 15.9 que prevê a aplicação de coima mínima no valor de 15.000 euros;
2. Declarar inconstitucional o segmento normativo do artigo 9º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma que prevê a aplicação de coima mínima de 3.500 euros;
3. Condenar a recorrente na coima de 400 euros, revogando nessa medida a decisão recorrida;
4. Pelo seu decaimento parcial condenar a recorrente em custas, fixando a taxa de justiça devida em duas unidades de conta.
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Coimbra,
(Texto processado e integralmente revisto pela relatora.)

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(Maria Pilar Pereira de Oliveira)

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(José Eduardo Fernandes Martins)