Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
266/22.5T8NLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
DESIGNAÇÃO DO ACOMPANHANTE
LAÇOS AFECTIVOS ENTRE ACOMPANHANTE E ACOMPANHADO
ALTERAÇÃO JUDICIAL DO REGIME DE ACOMPANHAMENTO
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 138.º A 140.º; 143.º, 1 E 2; 145.º A 147.º; 149.º; 150.º; 1671.º A 1675.º; 1717.º E 1721 E SEG.S DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. - No âmbito do regime de maiores acompanhados, o acompanhamento deve ser deferido, na falta de escolha pelo acompanhado (ou incapacidade para tanto) ou pelo seu representante legal, a quem melhor salvaguardar o interesse imperioso da pessoa do acompanhado, sendo este o critério a atender para a designação, não assumindo relevo outros interesses, que não se centrem na pessoa do acompanhado, quadro de ponderação em que tem de ser considerada a inclinação/preferência afetiva do mesmo.
2. - Se o cônjuge do acompanhado ainda reúne, apesar da sua idade avançada, condições físicas/funcionais e psicológicas/mentais para o exercício do cargo de acompanhante, não sendo de admitir um exercício do cargo – de feição intuitu personae – por interposta pessoa, sabido que se mantêm entre os cônjuges, no caso, os laços familiares e afetivos próprios do casamento, razão pela qual o acompanhado se inclina, no plano afetivo, sem reservas, apesar da sua esfera de incapacidade, para a pessoa da esposa como sua acompanhante de eleição, embora existam três filhos, um dos quais em condições de exercer tal cargo, tendo acolhido temporariamente o pai em sua casa, na sequência da doença deste, deve a designação recair sobre tal cônjuge, que mostra ser a pessoa que continua a manter uma relação de maior proximidade, afetiva, familiar e geográfica, com a pessoa carecida de acompanhamento, a qual vive em permanência em lar com condições adequadas para tanto.
3. - Deve proceder-se à alteração judicial do regime concreto do acompanhamento sempre que as circunstâncias o determinem, como permite, em qualquer altura, a norma do art.º 139.º, n.º 2, do CCiv., à luz do imperioso interesse do acompanhado, para sua proteção e seu bem-estar, sabido ainda que se trata de processo especial a que são aplicáveis as normas dos processos de jurisdição voluntária – quanto aos poderes do tribunal, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes –, razão pela qual, nas providências a tomar, o julgador não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo adotar em cada caso a solução mais conveniente e oportuna.
Decisão Texto Integral:

                                                          ***

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

AA, com os sinais dos autos,

intentou ação especial de acompanhamento de maior,

relativamente a BB (seu pai), também com os sinais dos autos,

pedindo que seja decretado o acompanhamento deste, por razões de saúde, com a aplicação das medidas de acompanhamento de representação geral e de administração total de bens, sendo nomeada a Requerente, enquanto filha do Requerido, para exercer as funções de acompanhante, ou CC, também filha do Requerido, caso se entenda nomear mais de um acompanhante.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- o Requerido, pessoa casada, reformada e pai de três filhos, sofreu um AVC isquémico, tendo, por isso, passado a necessitar de cuidados continuados e apoio permanente de terceiros para as tarefas e necessidades básicas da sua vida diária;

- quando o Requerido teve alta da unidade de cuidados continuados, foi viver para a casa da Requerente, em ..., até surgir uma vaga na casa na Fundação ..., no concelho ..., onde se encontra atualmente, sendo portador de uma incapacidade de 81%, apresentando um discurso impercetível, não conseguindo formular juízos de valor, nem orientar-se adequadamente, para além de não reconhecer o dinheiro nem o valor económico dos bens, necessitando de permanente ajuda de outrem;

- a esposa do Requerido, pessoa com 76 anos de idade, padece de doenças e debilidades, não tendo capacidade para sozinha prestar continuadamente os cuidados de que o Requerido carece.

O Requerido contestou, pugnando pela improcedência da ação e alegando, em defesa por impugnação, que:

- no essencial, os factos articulados na petição inicial não correspondem à verdade, pois que não necessita de cuidados médicos permanentes nem depende totalmente de terceiros, está orientado no tempo e no espaço, reconhece a sua família, conhece o dinheiro e o seu valor e não sofre de qualquer défice cognitivo ou intelectual;

- não possui bens nem necessidade de praticar qualquer negócio jurídico, pelo que não carece de outrem para o representar;

- a entender-se que necessita de acompanhamento, pretende manter-se no lar onde se encontra e que seja nomeada sua acompanhante a sua esposa, DD.

Junto relatório pericial, no mesmo se concluiu que o examinado (o Requerido) não mostra capacidade de compreensão e de livre autodeterminação para exercer pessoal e diretamente os seus direitos.

Procedeu-se à audição do Requerido/beneficiário, deferindo-se o suprimento da autorização deste para o pedido de acompanhamento e considerando-se a Requerente parte legítima nos autos, sendo que esta veio opor-se a que seja nomeada acompanhante a aludida DD, a qual, por sua vez, defendeu dever a nomeação recair sobre si, enquanto esposa do dito beneficiário.

Após a audição da Requerente e da aludida esposa do Requerido, com normal tramitação e instrução dos autos, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

«a) decreto o acompanhamento do maior BB, com a medida de acompanhamento de representação geral;

b) decreto a incapacidade de BB para o exercício dos seguintes direitos pessoais: casar, constituir união de facto, perfilhar, adoptar, cuidar e educar filhos ou adoptados, escolher profissão, de se deslocar livremente no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de manter relações com quem entender e de outorgar testamentos e procurações, e para todos os actos de administração e gestão do seu património, incluindo a celebração de negócios da vida corrente;

c) nomeio AA como acompanhante de BB;

d) determino a constituição do Conselho de Família, a ser integrado por DD, e CC;

e) determino a apresentação da relação de bens do maior acompanhado, pela acompanhante AA, incluindo estado da partilha em que o acompanhado também é herdeiro;

f) fixo a data da prolação da presente sentença a data a partir da qual a medida de acompanhamento decretada se torna conveniente;

g) determino que, caso nada entretanto seja requerido, a revisão da medida de acompanhamento aplicada ao maior acompanhado tenha lugar decorridos cinco anos após a data do trânsito em julgado da presente sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 155.º do Código Civil, devendo, oportunamente, os autos aguardar no arquivo e que seis meses antes do aludido prazo os mesmos sejam requisitados ao arquivo e vão com vista ao Ministério Público após junção de certidão de assento de nascimento actualizada do maior acompanhado.».

Inconformado com o assim decidido, veio o Requerido interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([1]):

«

Ao decretar-se, na Douta Sentença recorrida, o acompanhamento do maior BB com a medida de acompanhamento de representação geral.

E ao decretar-se a incapacidade do ora Recorrente para o exercício de direitos pessoais de casar, constituir união de facto, perfilhar, adotar, cuidar e educar os filhos ou adoptados, escolher profissão, de se deslocar livremente no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de manter relações com quem entender e de outorgar testamentos e procurações e para todos os actos de administração e gestão do seu património.

Isso representa uma clara violação dos seus direitos de personalidade tanto mais que recorrente não admite que se encontre incapacitado e a sua esposa mantem todas as qualidades para poder praticar por ele todos os actos da sua vida corrente e sem necessidade de medidas de acompanhamento.

Por outro lado, em face do exposto e do vasto património que o Recorrente está prestes a receber a nomeação da filha AA como acompanhante do seu pai viola claramente a lei.

Que para além de o privar do património a que tem direito e de ser reconhecido não ser necessário qualquer tipo de acompanhamento.

Contraria a sua própria vontade pois na sua audição pessoal e directa, referiu claramente não aceitar que lhe fosse nomeado acompanhante qualquer dos filhos e consequentemente, a requerente AA. ( - Incidente dos autos de fls.__,. Ref.ª 92823170)

E que, caso tal viesse a mostrar-se absolutamente necessário, deveria ser nomeada acompanhante de maior a sua esposa DD, por ter todas as capacidades para desempenhar tais funções.

Verificando-se, igualmente, em tais circunstâncias, a desnecessidade de constituição do Conselho de Família.

Pelo que decidindo-se em contrário do que se deixa exposto a douta Sentença recorrida para além de não ser justa, viola além do mais o disposto nos art.ºs 27, 139, 141, 1675, 1676, 2003, 2009 e 2015 do Código Civil e art.º 12 da Constituição da República Portuguesa.

PELO EXPOSTO e ainda pelo que doutamente será suprido por V.ªs Ex:ªs deve dar-se provimento ao presente recurso, revogar-se a douta Sentença recorrida que deve ser substituída por outra na qual se decida pela improcedência da acção por o ora recorrente não necessitar de qualquer medida de acompanhamento, com o que esse Venerando Tribunal uma vez mais fára inteira JUSTIÇA!».

Foi apresentada contra-alegação recursiva pela Requerente, pugnando pela total improcedência do recurso interposto.

Também o M.º P.º contra-alegou, concluindo pela improcedência total do recurso.

O recurso foi admitido, como de apelação, com efeito suspensivo da decisão impugnada e subida imediata e nos próprios autos, tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime recursivo.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber ([3]):

a) Se foi impugnada a decisão da matéria de facto e, em caso de resposta afirmativa, se deve ser alterado o quadro fáctico da sentença, por se mostrar ter havido erro no julgamento respetivo;

b) Se – em qualquer caso – deve ser alterada a decisão de direito, em termos de:

1. - Ser decidido que o Requerido/Recorrente não necessita de qualquer medida de acompanhamento, por não se encontrar incapacitado, com a consequente improcedência da ação (cfr. conclusão 3.ª do Apelante);

2. - Caso assim não se entenda, mantendo-se o decretamento da incapacidade e a medida de acompanhamento, a amplitude da medida, com referência ao âmbito da incapacidade, é excessiva, assim violando os direitos de personalidade do Recorrente (conclusões 2.ª e 3.ª do Apelante);

3. - Ser afastada a nomeação de acompanhante que recaiu sobre a Requerente, filha do Apelante, por tal nomeação ser contrária à vontade deste, devendo antes ser nomeada para o cargo a esposa do Recorrente, por reunir todos os requisitos para a função (conclusões 6.ª e 7.ª).

III – Fundamentação

A) Matéria de facto

1. - Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como provada:

1.º O requerido nasceu no dia .../.../1945, e desde 16 de Maio de 2022 que se encontra no Lar ..., sito em ...;

2.º O requerido é casado com DD, a qual, à presente data, tem 83 anos;

3.º O requerido casou com DD, no dia 14 de Março de 1986, sem convenção antenupcial;

4.º O requerido tem uma incapacidade de 81 %, conferida em 16 de Novembro de 2021;

5.º Em 28 de Março de 2021, o requerido sofreu um AVC isquémico ACM esquerda, foi assistido no Centro Hospitalar ..., e teve alta no dia 5 de Abril de 2021;

6.º O requerido esteve internado desde 8 de Abril de 2021 até 07 de Julho de 2021, na unidade de cuidados continuados UMDR da UCC ...;

7.º Após ter tido alta dos cuidados continuados foi viver para casa da requerente, durante cerca de 10 meses, até ingressar no Lar mencionado em 1.º;

8.º O contrato do Lar mencionado em 1.º foi celebrado com a requerente;

9.º O requerido apresenta clínica compatível com o diagnóstico nosológico de Demência Vascular Não Especificada correspondendo ao ponto F01.9 da 10.ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde (OMS);

10.º Tal patologia determina que o requerido tenha uma incapacidade que se estende pelo seu intelecto nas dimensões da cognição, compreensão e raciocínio, não possuindo capacidade que lhe permitam ter discernimento e as competências funcionais obrigatórias para se autodeterminar e exercer uma vida totalmente autónoma;

11.º O requerido toma medicamentos regularmente, mas não tem capacidade para os administrar de modo a cumprir a prescrição, sem ajuda de terceiros;

12.º O requerido comunica verbalmente com dificuldade, sendo o seu discurso de difícil percepção;

13.º O requerido não sabe a sua idade, nem o dia e mês em que nasceu;

14.º O requerido não conhece facialmente o dinheiro, e desconhece o seu real valor;

15.º O requerido não consegue realizar cálculos aritméticos simples;

16.º O requerido não consegue orientar-se de forma plena na sua pessoa, no tempo e no espaço;

17.º O requerido está dependente de terceiros para as actividades relacionadas com alimentação, vestuário e higiene;

18.º O requerido não tem capacidade plena para escolher quem pretende que seja nomeado para exercer o cargo de seu acompanhante;

19.º AA, sua filha, preocupa-se com o bem-estar do requerido, visitando-o no Lar onde se encontra, pelo menos, uma vez por mês;

20.º DD, sua esposa, preocupa-se com o bem-estar do requerido, visitando-o no Lar todas as semanas;

21.º O requerido não outorgou testamento vital ou mandato para a gestão dos seus interesses;

22.º O requerido auferiu o valor global de 13.211,62 €, no ano de 2021, a título de pensão de velhice;

23.º O valor mensal da pensão de velhice do requerido para o ano de 2022 foi de 945,07 €;”.

2. - E foi julgado como não provado:

«a) O requerido, após ingresso no Lar ..., em consequência dos tratamentos médicos das várias sessões de terapia e fisioterapia encontra-se em franca recuperação;

b) O requerido não necessita de cuidados médicos permanentes nem depende totalmente de terceiros.».

B) Da (não) impugnação da decisão relativa à matéria de facto

Nas suas conclusões de contra-alegação, invoca o M.º P.º que «O recurso interposto constitui, em rigor e na prática, a impugnação dos factos 10.º a 19.º dados como provados na sentença ora posta em crise», embora o Recorrente «expressamente apenas recorra de direito, invocando a violação das normas acima referidas, e só implicitamente impugne a matéria de facto», tudo para concluir que tal «recorrente não concretizou os pontos de facto que considera incorretamente julgados, não especificou os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, limitando-se (…) a enunciar a decisão alternativa que propõe» (conclusões 5.ª e 6.ª).

Por isso, como resulta da alegação/motivação de tal contra-alegação, posiciona-se o M.º P.º no sentido da rejeição do recurso nesta parte, por inobservância dos ónus a que alude o art.º 640.º do NCPCiv..

Cabe, assim, tomar posição a respeito, como se fará de seguida.

Caso pretendesse deduzir impugnação da decisão relativa à matéria de facto, esperava-se que o Apelante esclarecesse devidamente, não só quais os factos que, na sua ótica, foram julgados erradamente, como ainda quais as concretas provas que, uma vez criticamente analisadas/valoradas, obrigavam a uma decisão diversa da adotada, no sentido de delimitar, de forma motivada, o âmbito probatório da impugnação de facto, devendo, ademais, indicar o sentido – diverso – da decisão pretendida, ou seja, os concretos factos que pretendesse fossem julgados como provados ou como não provados ([4]).

É que, em sede de impugnação da decisão de facto, cabe ao Tribunal de recurso verificar se o juiz a quo julgou, ou não, adequadamente a matéria litigiosa, face aos elementos a que teve acesso, tratando-se, assim, da verificação quanto a um eventual erro de julgamento na apreciação/valoração das provas (formação e fundamentação da convicção), aferindo-se da adequação, ou não, desse julgamento.

Para tanto, se o Tribunal de 2.ª instância é chamado a fazer o seu julgamento dessa específica matéria de facto, o mesmo é comummente restrito a pontos concretos questionados – os objeto de recurso, no mesmo delimitados –, procedendo-se a reapreciação com base em determinados elementos de prova, concretamente elencados, designadamente certos depoimentos indicados pela parte recorrente, tudo por forma a verificar se as provas produzidas impunham decisão diversa (art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Como bem explicita Abrantes Geraldes ([5]), a rejeição do recurso – total ou parcial – quanto à decisão de facto deve verificar-se, para além do mais, na situação de “Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, tal como “dos concretos meios probatórios” a respeito e/ou da “posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”. E acrescenta que “Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça. Rigor a que deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida …” ([6]).

No caso, o Recorrente não afirmou em parte alguma, designadamente nas conclusões recursivas – mas também na antecedente motivação/alegação –, pretender impugnar a decisão de facto, consabido que as conclusões definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, pelo que ali deve sempre o recorrente indicar, expressa e obrigatoriamente, os fundamentos por que pede a alteração da decisão (cfr. art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Não tendo, em parte alguma, o aqui Recorrente sinalizado pretender impugnar a decisão de facto, resta concluir que não foi deduzida tal impugnação, a qual, por isso, não faz parte do objeto da apelação, o que afasta o conhecimento e sindicância pela Relação da decisão de facto plasmada na sentença.

Caso assim não se entendesse, forçoso sempre seria concluir que o Recorrente não observou qualquer dos ónus a que alude o art.º 640.º do NCPCiv., notando-se total omissão a respeito nas conclusões, tal como na respetiva alegação (que contém a motivação/fundamentação da apelação).

Vício este determinante da “imediata rejeição do recurso na respetiva parte”, como dispõe o preceito imperativo dos n.ºs 1 e 2, al.ª a), do art.º 640.º do NCPCiv. ([7]).

Em suma, faltando, in casu, a observância dos ditos ónus legais a cargo do Apelante, comprometida ficaria, por razão de ordem formal, a impugnação da decisão de facto, restando, por isso, a rejeição dessa parte do recurso.

Queda-se, pois, inalterada e, assim, tornada definitiva, a parte fáctica da sentença recorrida.

C) Da impugnação de direito

1. - Dos requisitos legais de decretamento da medida aplicada

Como visto, refere o Recorrente que não se encontra incapacitado, não necessitando de qualquer medida de acompanhamento, muito menos nos termos amplos em que determinado na sentença recorrida, o que até viola claramente, na sua ótica, os seus direitos de personalidade.

Vejamos, antes de mais, os dados legais aplicáveis.

Dispõe o art.º 138.º do CCiv. que «O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código» (itálico aditado).

Neste âmbito, é inequívoco que:

«1 - O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.

2 - Em qualquer altura do processo, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido» (art.º 139.º do mesmo Cód.).

De nunca esquecer, ainda, que:

«1 - O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.

2 - A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.» (art.º 140.º do mesmo Cód.).

Sendo o aqui Requerido/Recorrente casado – no regime supletivo da comunhão de adquiridos (cfr. ponto 3 dos factos provados e art.ºs 1717.º e 1721.º e segs. do CCiv.) –, importa atentar também nas disposições legais atinentes aos efeitos do casamento quanto às pessoas e aos bens dos cônjuges (cfr. art.ºs 1671.º e segs. do CCiv.).

É sabido que, na vigência do casamento, vale o princípio da igualdade dos cônjuges, do qual decorre que a direção da família pertence a ambos os cônjuges, que devem acordar sobre a orientação da vida em comum tendo em conta o bem da família e os interesses de um e outro (art.º 1671.º, n.º 2, do CCiv.).

Consabida a proteção que o sistema jurídico confere à família, não oferece dúvidas que os cônjuges estão sujeitos a diversos deveres entre si, como dispõe o art.º 1672.º do CCiv., estando «reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência» (destaque aditado) e devendo, na medida do possível, salvaguardar-se a «unidade da vida familiar» (art.º 1673.º, n.º 1, do CCiv.).

Quanto aos aludidos deveres «de cooperação e de assistência que no caso caibam», estabelece o art.º 1674.º do CCiv. que «O dever de cooperação importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram».

Já o seguinte art.º 1675.º (quanto ao dever conjugal de assistência) dispõe assim:

«1. O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar.

2. O dever de assistência mantém-se durante a separação de facto se esta não for imputável a qualquer dos cônjuges.

(…)».

Voltando à disciplina do regime do acompanhamento de maiores, prevê o art.º 145.º do CCiv. (quanto ao âmbito e conteúdo do acompanhamento) o seguinte:

«1 - O acompanhamento limita-se ao necessário.

2 - Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:

(…)

b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;

c) Administração total ou parcial de bens;

d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;

e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.

3 - Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.

4 - A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.

5 - À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes.».

Dúvidas não existem, por outro lado, de que no centro deste regime de acompanhamento está sempre o acompanhado e o seu interesse, sendo este que importa preservar e dispondo, nesta linha, o art.º 146.º do CCiv. (com a epígrafe «Cuidado e diligência») que:

«1 - No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.

2 - O acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada.».

Sabe-se ainda que (cfr. art.º 147.º do CCiv., na senda do princípio da menor ingerência e da proporcionalidade), quanto a «Direitos pessoais e negócios da vida corrente»:

«1 - O exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.

2 - São pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.».

Por outro lado, «O acompanhamento cessa ou é modificado mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justificaram» (art.º 149.º, n.º 1, do CCiv.).

E, quanto a conflito de interesses (art.º 150.º do CCiv.):

«1 - O acompanhante deve abster-se de agir em conflito de interesses com o acompanhado.

2 - A violação do dever referido no número anterior tem as consequências previstas no artigo 261.º

3 - Sendo necessário, cabe-lhe requerer ao tribunal autorização ou as medidas concretamente convenientes.».

Atentando na especificidade do caso dos autos, de acordo com a factualidade provada, deve notar-se que estão verificados, em ponderação geral, os requisitos de aplicação da medida de acompanhamento do Recorrente.

Com efeito, este padece de verificada incapacidade, como tal limitadora da assunção e exercício de direitos e deveres no âmbito da sua vida pessoal, familiar e social.

É que vem provado que o Requerido/Recorrente é portador de uma incapacidade de 81 %, após ter sofrido, em 28/03/2021, um AVC isquémico ACM esquerda.

Na sequência, apresenta clínica compatível com o diagnóstico nosológico de demência vascular não especificada, patologia determinante de uma incapacidade intelectual, nas dimensões da cognição, compreensão e raciocínio, deixando-o sem capacidades que lhe permitam ter discernimento e competências funcionais para se autodeterminar e exercer uma vida com total autonomia.

Assim, embora tomando medicamentos regularmente, o Requerido não tem capacidade para os administrar de modo a cumprir a correspondente prescrição sem ajuda de terceiros, não sabe a sua idade, nem o dia e mês em que nasceu, não conhece o dinheiro, nem o seu real valor, para além de não conseguir realizar cálculos aritméticos simples, nem orientar-se de forma plena na sua pessoa, no tempo e no espaço.

Assim, está dependente de terceiros para as atividades básicas de existência (as relacionadas com alimentação, vestuário e higiene) e não apresenta capacidade plena para escolher quem pretende que seja nomeado para exercer o cargo de seu acompanhante.

Forçoso é concluir, por isso, que o Recorrente está afetado de incapacidade, por razões de saúde, que o impossibilita de exercer – plena, pessoal e conscientemente – os seus direitos e cumprir os seus deveres, salientando-se a dita demência vascular não especificada, determinante de incapacidade intelectual, nas dimensões cognitiva, de compreensão e raciocínio, o que o deixa sem a capacidade de discernimento e autodeterminação necessárias ao exercício de uma vida totalmente autónoma.

Assim sendo, nada haverá a censurar, nesta parte, à decisão recorrida, improcedendo as conclusões do Recorrente no sentido de não sofrer de incapacidade ou de não estar afetado na sua autonomia de vida ou, ainda, de, com o apoio da esposa, não carecer de medidas de acompanhamento.

Daí que importe apreciar, de seguida, a questão – suscitada – do âmbito/extensão da medida aplicada.

2. - Do âmbito/extensão da medida aplicada

Esgrime o Recorrente no sentido de questionar a amplitude da medida aplicada, com referência ao âmbito da sua incapacidade, reputando-a de excessiva, ao ponto de violar os seus direitos de personalidade.

Relativamente a tal amplitude, é certo que foi determinado no dispositivo da sentença apelada que a incapacidade para o exercício de direitos pessoais se estende, amplamente, a casar ([8]), constituir união de facto, perfilhar, adotar, cuidar e educar filhos ou adotados, escolher profissão, de se deslocar livremente no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de manter relações com quem entender e de outorgar testamentos e procurações, e para todos os atos de administração e gestão do seu património, incluindo a celebração de negócios da vida corrente.

Já se viu que, relativamente ao exercício pelo acompanhado de direitos pessoais, tal como a celebração de negócios da vida corrente, a esfera é de liberdade, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário.

Também se constatou que, por força da lei, no que concerne ao âmbito do acompanhamento, este se limita ao necessário, sempre na perspetiva do interesse do acompanhado, e não de outrem.

Isso mesmo é reconhecido na sentença em crise, quando ali se afirma, na respetiva fundamentação de direito, que «o acompanhamento se limita ao estritamente necessário».

Ora, se vale aqui o princípio da necessidade e da proporcionalidade e se o interesse a focar é o do acompanhado, e não de outrem, cabe perguntar se não será excessiva uma alargada esfera de limitação, como a imposta e impugnada, de exercício de direitos pessoais, ao ponto de englobar o direito de se casar, quando se trata, inequivocamente, de pessoa já casada, cuja idade se aproxima dos oitenta anos, que não poderá casar-se sem previamente se divorciar.

Também não se vislumbra que, na situação em que se encontra, de doença e de idade/velhice, e com o apego que demonstra ao seu cônjuge – com quem está casado há várias décadas, pretendendo a esposa para acompanhante, em vez de qualquer dos filhos, sendo por ela visitado semanalmente –, o Requerido/Apelante possa pensar em constituir união de facto, perfilhar, adotar, cuidar e educar filhos (os que já tem, de si em idade adulta e com autonomia de vida, ou outros que agora gerasse) ou adotados, bem como escolher profissão (que profissão poderia agora escolher e exercer, quando, para além de idoso, está incapacitado nos termos descritos na parte fáctica da sentença?).

Se o acompanhamento se deve cingir ao estritamente necessário – ser «orientado sempre por um padrão de necessidade», como também dito na decisão recorrida – e deve ser «gizado de modo a salvaguardar até ao limite a vontade do acompanhado», como também salientado na sentença, e o interesse do mesmo, então a intromissão na sua vida, quanto ao exercício de direitos de caráter pessoal, não deve ir além do que se mostrar razoável, em função das circunstâncias apuradas do caso, de molde a não privar totalmente aquele que se pretende ver protegido do exercício, por si, dos seus direitos, nem anular/prejudicar o seu bem-estar e a sua esfera de vida familiar, a comunhão de vida com o cônjuge, que também deve ser protegida, tanto mais que não é clara a dimensão/amplitude de afetação da sua capacidade de tomar decisões, posto haver de distinguir-se entre incapacidade física e funcional – ou seja, sem afetação da capacidade de decisão – e incapacidade intelectual/mental, sendo que, quanto a esta última, o que se sabe é que lhe falta uma capacidade (de orientação e escolha/decisão) plena.

Assim, a sua incapacidade não é total, nem sequer a nível físico, não se sabendo quantificar a esfera remanescente (existente) de capacidade intelectual/mental e de orientação, ou, dito de outro modo, de decisão e determinação.

O que se sabe é, como ressuma dos autos, que existe divergência – ou mesmo oposição – entre as posições defendidas pelo Requerido, por um lado, e pela Requerente, sua filha, por outro lado, pretendendo aquele dar preferência/prioridade à proximidade e acompanhamento pela esposa (que esta lhe dedica e, a seu ver, pode continuar a dedicar), em vez dos filhos, entre eles aquela Requerente.

Assim sendo, tudo ponderado, entende-se manter o âmbito de decretada incapacidade de exercício de direitos apenas quanto a deslocar-se livremente no país ou no estrangeiro, fixar domicílio e residência, manter relações com quem entender e outorgar testamentos e procurações, e para todos os atos de administração e gestão do seu património, incluindo a celebração de negócios da vida corrente.

No mais, deve nesta parte proceder a apelação, limitando-se a esfera de compressão do exercício, por si mesmo, de direitos de pendor pessoal ao estritamente necessário, sabido, ademais, que a Lei n.º 49/2018, de 14-08, que veio revogar o regime anterior (das interdições e inabilitações), instituindo o Regime Jurídico do Maior Acompanhado, se posiciona no sentido da primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível, da atenção à singularidade do caso concreto e da subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, no respeito pelas “vontades e preferências” do beneficiário, tudo enquadrado no princípio, mais abrangente, do respeito pela sua autonomia, impondo-se uma interpretação conforme à Convenção das Nações Unidas sobre Direitos das Pessoas com Deficiência – adotada em Nova Iorque em 30-03-2007 e a que Portugal aderiu ([9]).

3. - Da designação de acompanhante

Na sentença em crise, contra a vontade manifestada pelo Requerido, foi nomeada sua acompanhante a Requerente, como pretendido por esta, enquanto aquele pretendia – e continua a pretender agora, no recurso interposto – que o acompanhamento seja prestado pela esposa, a pessoa que com ele mantém relação mais próxima, visitando-o semanalmente.

A Requerente defendeu, desde o início dos autos, que a esposa do seu pai, pessoa idosa, padece de doenças e debilidades, não tendo capacidade, por isso, para exercer sozinha o cargo.

Compulsada a matéria de facto provada, apenas se retira desta que a esposa do Requerido tem – a data da sentença – 83 anos de idade, sendo, pois, pessoa idosa.

Nada mostra, porém, que seja pessoa doente ou afetada de qualquer incapacidade que a impeça de bem exercer o cargo, mormente se tivermos em conta que o Requerido se encontra em internamento (permanente) em lar adequado, onde lhe são prestados todos os cuidados necessários no seu dia-a-dia.

Aliás, a esposa do Requerido, a que este mostra significativo apego – por ser o seu cônjuge, a companheira de décadas de caminhada de vida –, reside em local próximo do dito lar, ao contrário dos filhos daquele (também a Requerente), visitando-o todas as semanas, o que nenhum dos filhos pode fazer, por residirem a considerável distância.

Em termos afetivos e de proximidade, a esposa do Requerido é, assim, a pessoa com melhores condições para o acompanhar – desde logo, por contar com a aceitação e adesão/afetividade deste –, sendo aquela a que ele dá inequívoca preferência/prioridade para o efeito ([10]).

E também a lei determina que se pondere a escolha que seja efetuada pelo acompanhado – ou pelo seu representante legal –, só na falta de escolha o acompanhamento sendo deferido à pessoa que melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário (art.º 143.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv.).

Mas, ainda aqui, não é ao acaso que o legislador optou por colocar, em termos abstratos, na primeira linha o cônjuge [al.ª a) do n.º 2 daquele art.º 143.º, tendo em conta a ligação familiar/conjugal e os inerentes laços afetivos, comummente existentes no casamento, sem separação] e somente em posição subsequente os filhos maiores [al.ª e)], muito embora possa em certos casos, por razões ponderosas implicadas, ser de nomear um filho em vez do cônjuge, bastando que aquele imperioso interesse do beneficiário assim o imponha, por se tratar do critério a atender em todas as situações.

A sentença centra-se, em desfavor da esposa do Apelante, entendendo não ser de nomear mais de um acompanhante, no facto, desde logo, de aquele estar dependente do auxílio de terceiros na sua vida diária.

Porém, é sabido que o Requerido/Recorrente se encontra em permanência num lar adequado para a sua atual condição, onde lhe são prestados todos os cuidados de que carece, pelo que não será o acompanhante a prestar-lhe – pessoal e materialmente – esses cuidados no dia-a-dia.

Aliás, se fosse necessária a prestação de cuidados próximos diários, a Requerente não poderia cumprir tal missão, atenta a distância a que reside e a sua visita apenas mensal ao seu pai, a não ser que deslocasse o pai para a sua zona de residência, o que somente poderia ocorrer em prejuízo, se não com o desfazer, da unidade familiar do seu pai (com o respetivo cônjuge), o que o mesmo mostra não aceitar e não deporia a favor do seu indeclinável interesse.

Numa tal perspetiva, a única pessoa que o poderia fazer – sem esse inconveniente –, por ter residência próxima, seria a esposa do Apelante, ainda que com recurso a terceiros para a execução de determinadas tarefas, por exemplo, no âmbito dos serviços de apoio ao domicílio (no caso, desnecessários, por permanência no dito lar).

É certo que a esposa do Requerido enfrentará limitações nas suas deslocações, como é normal numa pessoa com a sua idade, com menor disponibilidade de acesso, por si própria, a veículo automóvel para viajar, o que, todavia, não a impede – e é este, salvo o devido respeito, o fator a considerar – de ser quem mais visita o Requerido, deslocando-se ao lar todas as semanas para estar com ele, com o que justifica a proximidade necessária para cuidar dos seus interesses, tarefa de que é capaz, reconhecendo a sentença impugnada que aquela continua a «aparentar estar bem de saúde», apesar da sua «idade avançada».

Sabido que a idade, de per si, não é critério de exclusão, apenas se poderá retirar, neste contexto, dessa «idade avançada» que a esposa do Requerido, um dia, no futuro, deixará de ter condições para prosseguir com a tarefa do acompanhamento ([11]), dependendo, é certo, da longevidade de cada um deles.

Mas quando tal ocorrer – se assim vier a ocorrer –, será de proceder à alteração do regime concreto do acompanhamento, como permite, em qualquer altura, a norma do art.º 139.º, n.º 2, do CCiv. ([12]).

Acresce que estamos perante modo processual dotado de plasticidade bastante para lhe ser aplicável, como é, o regime dos processos de jurisdição voluntária ([13]), com as inerentes notas de conveniência e oportunidade de adoção de providências e de mutabilidade/alterabilidade decisória.

De notar ainda que, se o Requerido, na sequência da doença sofrida, foi residir temporariamente com a filha Requerente, a qual veio em seu socorro nessa fase difícil, por dispor de meios para tanto, o que não poderá deixar de ser aplaudido, tal não poderia apagar, como não apagou, as décadas de casamento entre tal Requerido e a sua esposa e os laços afetivos e de convivência assim criados entre eles, como é normal na vivência conjugal, que a doença não destruiu, antes provavelmente deixou fortalecidos, por a adversidade não impedir o mesmo Requerido de se querer manter, como expressou ao longo do processo, o mais próximo possível do cônjuge e na esfera de confiança e cuidados deste, havendo, então, de observar-se respeito pelas ditas “preferências”/inclinações do beneficiário, mormente as de cariz afetivo.

É louvável, obviamente, que a Requerente pretenda acompanhar o seu pai nesta fase de doença na velhice, razão pela qual aceitará, certamente, em postura de colaboração, integrar o conselho de família, continuando a visitar e auxiliar o Requerido, apesar da distância geográfica, tudo sem prejuízo de futuras reponderações do regime de acompanhamento a aplicar, se – e logo que – a situação o justificar.

Em suma, é de alterar, salvo o respeito devido, também nesta parte, a sentença, sendo nomeada como acompanhante do Requerido/Apelante, respeitando a inclinação/preferência (afetiva) deste, a sua esposa, enquanto a filha Requerente integrará o conselho de família.

(…)

 
***

V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar em parte procedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida, exceto quanto às al.ªs b), c), d) e e) do dispositivo da sentença impugnada, que passam a ter a seguinte redação:

«b) Decreta-se a incapacidade de BB para o exercício dos seguintes direitos pessoais: deslocar-se livremente no país ou no estrangeiro, fixar domicílio e residência, manter relações com quem entender e outorgar testamentos e procurações, e para todos os atos de administração e gestão do seu património, incluindo a celebração de negócios da vida corrente;

c) Nomeia-se DD (esposa) como acompanhante de BB;

d) Determina-se a constituição do Conselho de Família, a ser integrado por AA e CC (ambas filhas do acompanhado);

e) Determina-se a apresentação da relação de bens do maior acompanhado pela acompanhante referida, incluindo estado da partilha em que o acompanhado também é herdeiro;».

Sem custas da apelação, atenta a isenção prevista na atual redação do art.º 4.º, n.º 2, al.ª h), do RCProc..


Coimbra, 07/11/2023

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

João Moreira do Carmo

Carlos Moreira


([1]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([2]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([3]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([4]) Cfr. art.º 640.º do NCPCiv., bem como Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 126 e segs., e Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, pág. 153, e ainda, no mesmo sentido, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, Lisboa, ps. 253 e segs.. Vide também Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, p. 80. No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência do STJ, podendo ver-se, por todos, os Acs. desse Tribunal Superior de 04/05/2010, Proc. 1712/07.3TJLSB.L1.S1 (Cons. Paulo Sá), e de 23/02/2010, Proc. 1718/07.2TVLSB.L1.S1 (Cons. Fonseca Ramos), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
([5]) Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., ps. 126 e seg..
([6]) Cfr. op. cit., ps. 128 e seg..

([7]) Como vem entendendo a jurisprudência dominante do STJ, “no âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações” – cfr. Ac. STJ de 09/02/2012, Proc. 1858/06.5TBMFR.L1.S1 (Cons. Abrantes Geraldes), disponível em www.dgsi.pt, com itálico aditado, bem como demais jurisprudência ali citada. No mesmo sentido, à luz do NCPCiv., cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., ps. 127 e seg..
([8]) Mas nada se especificando, por ser pessoa inequivocamente casada – e que, por isso, não poderá casar-se (novamente) sem dissolução do respetivo casamento –, quanto, por exemplo, a divorciar-se.
([9]) Cfr. Ac. STJ de 19-01-2023, Proc. 4060/19.2T8LRS.L1.S1 (Cons. Fátima Gomes), em www.dgsi.pt e também em Col. Jur. - Acs. do STJ, Tomo I/2023, ps. 35 e segs..
([10]) Perspetivamos aqui uma preferência afetiva/emocional e não intelectual/racional, do mesmo modo que também uma criança, apesar das suas limitações de discernimento, decisão e orientação (por força da idade e decorrente incapacidade de exercício de direitos), pode e deve ser ouvida, por exemplo no âmbito de processo de regulação do exercício de responsabilidades parentais, sobre as suas preferências quanto às figuras parentais e progenitor cuidador. E, se deve ser ouvida, a sua vontade também deve ser ponderada, apesar das ditas limitações de que seja portadora em idade infantil/juvenil.
([11]) Não se admitindo o exercício do cargo – de marcada feição intuitu personae – por interposta pessoa (mesmo que através de algum filho da acompanhante).
([12]) Veja-se, inter alia, o Ac. TRC de 05-04-2022, Proc. 389/20.5T8CDN.C1 (Rel. Fonte Ramos), em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «I- O regime jurídico do acompanhamento do maior permite ao tribunal ´escolher e adequar`, em cada situação ´concreta`, as medidas que melhor possam contribuir para alcançar o seu ´objeto`, que é, o de assegurar o bem-estar, a recuperação e o pleno exercício da sua capacidade de agir. // II- As medidas aplicadas estão sujeitas a um controlo periódico (consentâneo com a natureza casuística e reversível do acompanhamento); o próprio beneficiário poderá pedir a modificação do acompanhamento, v. g., no tocante à pessoa do acompanhante e concretas medidas aplicadas, ou a sua cessação.». Como enfatizado na fundamentação jurídica deste citado aresto, haverá casos em que se justifique «desencadear os procedimentos considerados adequados tendentes a uma oportuna/tempestiva reavaliação quer da sua situação de internamento e dos pressupostos que a determinaram, quer das medidas aqui questionadas com a eventual adoção de outras que melhor respondam à vontade da requerida e assegurem o seu bem estar (…).». E como ali rematado, citando doutrina a propósito, importa criar condições para «caminhar no sentido de “uma sábia e humana relação de compreensão e ajuda à pessoa doente, na sua diversa (psico)patologia e personalidade”, sendo que a mesma “deve ter direito ao tratamento mais eficaz e completo (...) para a recuperação da saúde e uma vida útil e satisfatória, sem estigmas, nem marginalizações”, desiderato, naturalmente, sempre possível.».
([13]) Como explicitado na fundamentação do Ac. TRC de 12-10-2021, Proc. 212/20.0T8PVC-A.C1 (Rel. Alberto Ruço), em www.dgsi.pt, “O artigo 891.º do Código de Processo Civil dispõe que ao processo especial de acompanhamento de maior se aplicam as normas dos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes e que «Em qualquer altura do processo, podem ser requeridas ou decretadas oficiosamente as medidas cautelares que a situação justificar.» // No que respeita aos «critérios de julgamento», o artigo 987.º do Código de Processo Civil dispõe que nas providências a tomar no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, «…o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.»”.