Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3607/17.3T8PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO CARVALHO MARTINS
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
PRINCÍPIO DA OFICIOSIDADE
NECESSIDADE DA CASA
SENTENÇA
NULIDADE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 06/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS.1793 CC, 3, 615, 662, 987, 990 CPC
Sumário: 1.- A providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges pode ser decidida com matéria de facto não alegada pelo requerente ou pelo requerido. Na verdade, tal providência, embora sujeita ao princípio do pedido (cfr. art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil e 3.º, n.º 1, do CPC), tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. art.ºs 1409.º, n.º 2, e 1413.º do CPC - 986º e 990º NCPC), em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da “providência”, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos.

2.- O tribunal pode decidir o mérito da mesma por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita (cfr. art.º 1410.º do CPC - 987º NCPC).

3.- A necessidade da casa (ou, melhor, a premência da necessidade) é o factor principal e determinante a atender na decisão judicial, porque é a ela que se reportam tanto a “situação patrimonial” dos cônjuges, como o “interesse dos filhos”.

4.- Os factores enunciados nos arts 990º NCPC ( atribuição de casa de morada de família) e 1793º Código Civil ( casa de morada de família), não se encontram ordenados segundo qualquer hierarquia de valores, não podendo, contudo, deixar de prevalecer a capacidade económica de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos menores.

5.- A falta de fundamentação geradora do vício da nulidade a que se refere o art. 668.°, aI. b). do anterior CPC (art. 615.°. aI. b), do NCPC (2013)) é a falta absoluta de fundamentos e no que tange a falta de fundamentos de facto, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação de todos os factos que julgue provados, situação que não se confunde com a insuficiência de factualidade apurada para justificar a decisão, caso em que haverá erro de apreciação ou de julgamento.

6.- Não tendo o juiz "a quo" tomado a iniciativa de suprir a insuficiência de factos e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a (re)apreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 662.°. n.º. 2, aI. c) do NCPC, deve a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1.ª instância, devendo o Tribunal "a quo" ordenar, oficiosamente, a realização das diligências necessárias, com vista a alcançar a verdade material, também no âmbito do poder-dever de direcção do processo, produzindo decisão de conformidade.

7.- O tribunal (art. 615ºNCPC) deve conhecer de todas as questões de mérito suscitadas pelas partes, ou que sejam de conhecimento oficioso, salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras. A violação desse dever de pronúncia importa a nulidade da sentença, não se integrando, porém, no conceito jurídico-processual de "questão", os argumentos jurídicos discreteados no âmbito das questões a solucionar.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A Causa:

M (…), residente (…) (...) , veio interpor a presente ação de atribuição da casa de morada de família, contra V (…) residente na mesma morada, alegando, em síntese, que:

foi instaurada ação de divórcio entre as partes, sendo que ambas residem na mesma morada de família, bem comum do casal;

a A. encontra-se reformada por invalidez, auferindo apenas o valor mensal de €382,46;

não tem condições de saúde para aumentar os seus rendimentos, nem para procurar casa de habitação para si e para o seu filho;

contrariamente, o R. é uma pessoa autónoma, vivendo desafogadamente, e tendo facilidade em procurar nova casa para habitar.

 Conclui, pedindo sejam a casa de morada de família e o seu uso atribuídos, em definitivo, à A.

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Realizada tentativa de conciliação, não houve acordo entre as partes, tendo-se determinado a citação do R. para, em querendo, deduzir oposição, nos termos previstos no n.º 2, do artigo 990.º, do Código de Processo Civil.

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 O R. deduziu oposição, alegando, em síntese, que:

 a casa de morada de família é seu bem próprio;

é o R. que cuida do filho do casal, o qual nem sequer fala com a A.;

a A. tem condições para procurar nova casa;

 Conclui, pedindo a improcedência do pedido.

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Foi elaborado despacho de convite ao aperfeiçoamento dos articulados iniciais, ao qual ambas as partes responderam.

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Oportunamente, foi proferida decisão onde se consagrou que:

«Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente, por não provada, a presente ação, absolvendo-se o R. do pedido.

Custas da ação a suportar pela A. (art.º 527.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil)».

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M (…), Autora, já devidamente identificada, nos autos de processo à margem referenciados, a qual litiga com pedido de apoio judiciário deferido nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono, nos autos principais de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, tendo sido notificada da sentença que absolveu o Réu do pedido, e não se conformando com a mesma, dela veio interpor recurso de APELAÇÃO, a subir imediatamente, nos próprios autos, e com efeito suspensivo, nos termos dos artigos 990º e nº 3, 638º nº 1, 644º nº 1-a), 645º, 647º nºs 1, 2 e 3 e 990º nº 3, todos do CPC, alegando e concluindo que:

(…)

Não foram produzidas quaisquer contra-alegações.

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II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

São ocorrências materiais, com interesse para a decisão da causa a materialidade invocada e que consta do elemento redactorial dos Autos, assim revelada, em tal contexto.

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Nos termos do art. 635º do NCPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto no art. 608º do mesmo Código.

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Das conclusões de Recurso - ressaltam as seguintes questões elencadas, na sua formulação originária, de parte, a considerar na sua própria matriz holística:

I.

3º - A Autora alegou os factos justificativos da necessidade da sua permanência da casa de morada de familia, o que consubstancia a causa de pedir correspondente ao pedido de atribuição definitiva da casa de morada de familia.

4º - Para apreciar essa causa de pedir e conhecer desse pedido, é suficiente a alegação e prova dos factos atinentes à posse - in casu, à composse em termos da comunhão conjugal do direito de propriedade - face ao disposto no artº 1268º do CC nos termos do qual o possuidor goza da presunção da titularidade do direito;

5º - Não sendo essencial ao objecto da lide o apuramento exacto e definitivo da titularidade do imóvel, porque, tratando-se, in casu, de um processo de jurisdição voluntária, nada impede – nem evita - a futura discussão e decisão, em sede de inventário ou nos meios comuns, da titularidade e forma de aquisição do direito de propriedade do referido imóvel - Cfr. Artº 1793º nº 3 do CC e Artº 988º nº 1 do CPC.

Apreciando, diga-se, nos termos em que vêm erigidas estas questões, que se trata de “pedido de atribuição definitiva da casa de morada de família”, na indicada (por alegação/conclusão) correspondência da causa de pedir ao pedido formulado.

Para sua análise, precise-se, desde logo, delimitando quadrantes referenciais, se configurar como incontroverso e incontrovertível que “a titularidade da propriedade não faz presumir a posse. Na verdade, prevendo o art. 1268º, nº 1 do Código Civil (presunção da titularidade do direito), que o possuidor seja presuntivamente o titular do direito respectivo, não prevê a lei igual presunção para o titular do direito em relação à respectiva posse. (Cf. Ac. RL., de 2.6.1999:BMJ, 488º-407).

Por sua vez, celebrado o casamento, surge no seu seio a figura de um património colectivo com dois titulares que não são possuidores de qualquer quota do mesmo, não podendo, igualmente, dispor dele, ou realizá-lo, enquanto o matrimónio se mantiver na sua amplitude. Entre os bens que integram este acervo patrimonial, conta-se a chamada casa de morada de família, onde se centraliza tendencialmente toda a sua vida pessoal e de relação. Compreende-se, desta arte, a protecção que a lei faz rodear tal local, reflectindo-se na circunstância de o legislador, em caso de divórcio (já acontecido no caso - cf. fls.33), conceder a casa ao cônjuge mais necessitado. Sendo que tal atribuição pressupõe que a partilha dos bens do casal ainda não foi feita, já que, em tal caso, não faria qualquer sentido haver a possibilidade de, por virtude da estabilidade das relações jurídicas, implicadas directa ou indirectamente com esta problemática, a todo o tempo se levantar a questão em análise. (Cf. Ac. STJ, de14.11.2013, Proc. nº396/09: Sumários, 3013, p. 726).

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Dito isto, mais se consigne que a providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges pode ser decidida com matéria de facto não alegada pelo requerente ou pelo requerido.

Na verdade, tal providência, embora sujeita ao princípio do pedido (cfr. art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil e 3.º, n.º 1, do CPC), tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. art.ºs 1409.º, n.º 2, e 1413.º do CPC - 986º e 990º NCPC), em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da “providência”, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos.

Além disso, o tribunal pode decidir o mérito da mesma por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita (cfr. art.º 1410.º do CPC - 987º NCPC).

O predomínio, nos processos de jurisdição voluntária, dos referidos princípios do inquisitório sobre o dispositivo e da equidade sobre a legalidade decorre dos mesmos se caracterizarem, em geral, pela inexistência de um conflito de interesses a compor e pela existência de um só interesse a regular, embora podendo haver um conflito de opiniões ou representações acerca do mesmo interesse (cfr. Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, pág. 72).

Flui do antedito, ser decisiva, para a aferição da procedência ou da improcedência da requerida atribuição da casa de morada de família, a matéria de facto a ser dada por provada e não provada pelo tribunal «a quo», ainda que por indagação oficiosa.

Ora a consideração da factualidade (nem sequer dada, ou não, por assente pela 1.ª Instância -, não obstante os termos em que o foi, vem, em dimensão inerente, alegada pelas partes), não foi, ainda integrada como componente processual capaz de determinar decisão adrede de conveniência, na sua imprescindível suficiência para decidir o mérito da providência, recte, causa e, por consequência - nessa dimensão -, o mérito do recurso. O que, só por si, e nesta tipologia de acção, constitui fundamento de anulação da sentença recorrida, ao abrigo do n.º 4 do art.º 712.º do CPC - 662º NCPC (Cf. Ac. RG, de 25.05.2010, Proc. nº 3554/05.1TBVCT-B.G1: Relator: Pereira da Rocha).

O que impõe a reconsideração dos factos que consubstanciam virtualidade decisória suficiente, integrando-os com outros, que se haverão de consubstanciar através de suporte adrede, a determinar através de ordenada junção às partes ou a organismos individualizados -, que o Tribunal haja por imprescindíveis, para o efeito.

Por seu turno, a possibilitar a apreciação do “incidente”, através da imprescindível produção de prova, uma vez que as razões invocadas pelas partes já a densificam, minimamente, cumprindo, agora, proceder à sua absoluta integração, insista-se tendo em consideração a específica tipologia da acção em causa (Cf. Ac. RL, de 9.06.2005, Proc. nº 1443/2005-6, Relator: Ferreira Lopes). Sendo que o circunstancialismo fáctico, a provar-se, justifica, efectivamente, o decretamento da medida requerida.

Sendo esta a resposta às questões em I. colocadas, afirmativa, mas com base nas razões ora em perfil.

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7º - Não tendo o Réu juntado prova da sua exclusiva titularidade do imóvel e este não se encontrando registado – o que afasta a presunção de titularidade do imóvel de que este poderia beneficiar nos termos do artº 7º do CRP – a prova dos factos alegados atinentes à posse da Autora (composse) faria presumir a sua contitularidade do direito de propriedade do imóvel, bastando isso, para, no que ao pedido efectivamente formulado interessa, decidir a atribuição definitiva da casa de morada de familia.

- Competia ao Tribunal "a quo" apreciar os factos alegados pela Autora atinentes à posse e à possibilidade de aquisição, por usucapião, da titularidade do imóvel em termos de comunhão conjugal, ainda que indiciariamente, como pressuposto da apreciação e procedência do pedido da Autora efectivamente formulado e em causa na presente acção, devendo, para tanto, ter ordenado o prosseguimento dos autos para produção da prova requerida por ambas as partes.

9º - Não o tendo feito, a sentença recorrida padece do vicio de omissão de pronuncia estando, por conseguinte, ferida de nulidade, face ao disposto no artº 615º nº 1 -d) do CPC, nulidade essa que ora se invoca para os efeitos do artº 617º nº 1 do CPC e demais efeitos legais.

Depois do que se deixou dito na antecedente resposta - a pretexto, desde logo dos ditames do art. 1268º, nº 1 do Código Civil -, o problema encontra-se já recentrado na sua verdadeira sede noemática. A saber, a necessidade da casa (ou, melhor, a premência da necessidade) o factor principal e determinante a atender na decisão judicial, porque é a ela que se reportam tanto a “situação patrimonial” dos cônjuges, como o “interesse dos filhos”.

Os factores enunciados nestes preceitos legais (art. 990º NCPC - atribuição de casa de morada de família; art. 1793º Código Civil - casa de morada de família), não se encontram ordenados segundo qualquer hierarquia de valores, não podendo, contudo, deixar de prevalecer a capacidade económica de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos menores).

Quer isto dizer (e não há que buscar outras motivações!…), que, em caso de conflito, o tribunal tem de o resolver atribuindo ou a um, ou a outro, a casa em questão, não podendo impor a duas pessoas que acabaram de romper o seu laço familiar, divorciando-se, no circunstancialismo dos Autos, a convivência em comum, naquele espaço (Cf. Ac. RL, de 18.10.2007:CJ, 2007, 4º -119).

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Isto dito, mais se acrescente que o precedente judiciário referenciado como esteio adjuvante da decisão sob escrutínio - Ac. RE de 22.2.2018, Proc. nº 141/15.0T8ODM-A.E1, Relator: Bernardo Domingos -, versa sobre diferenciada singularidade. Por mero confronto e, como, aí, sai clangorado:

«(…) Apesar de vir impugnada a decisão de facto, entendemos que é dispensável a sua apreciação porquanto, a apelação tem necessariamente de proceder por falta de um dos requisitos legais para a atribuição à A., a título de arrendamento, da casa de morada de família. Na verdade nos termos do disposto no art.º 1793º nº do CC, a atribuição a um dos ex-cônjuges, da casa de morada de família, pressupõe que esta seja um bem comum do casal ou um bem próprio do outro ex-cônjuge (ou de um dos ex-cônjuges). Ora da matéria de facto dada como provada não resulta que a casa de morada de família seja bem comum do casal ou bem próprio do R.. A questão da propriedade mostra-se controvertida, porquanto não está definida, nem extraprocessualmente (registo a favor do casal ou de um dos cônjuges) nem foi decidida, ainda que incidentalmente, nos presentes autos. Assim sendo a acção terá necessariamente de improceder, por falta de prova de que a casa de morada de família é um bem comum do casal ou um bem próprio do R.. Diz-se que a casa foi construída pelo casal com recursos próprios. Porém isso é insuficiente para se poder dizer que se trata de um bem comum, porquanto a casa mostra-se construída em terreno alheio e não foi demostrada a aquisição deste por qualquer meio, nem sequer por via da acessão imobiliária.

Por outro lado a acção também terá de improceder, por violação do caso julgado, excepção que é do conhecimento oficioso. Na verdade está demonstrado nos autos que A. e R. estabeleceram um acordo quanto ao destino da casa de morada de família, para vigorar até á partilha dos bens comuns (vide Acta de fls. 121 da acção de divórcio). Este acordo foi homologado por sentença, transitada em julgado.

Nos termos do disposto no nº 3 do art.º 1793º do CC, «o regime fixado, (quanto á casa de morada de família) quer por homologação do acordo quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária». Este preceito foi introduzido pela Lei nº 61/2008 de 31/10. Antes da entrada em vigor desta lei, era entendimento maioritário da jurisprudência que o destino dado à casa de morada de família por acordo homologado, não podia ser alterado. Com a inovação introduzida pela Lei 61/2008, passou expressamente a consentir-se a alteração do regime nos mesmos moldes em que podem ser alteradas as decisões nos processos de jurisdição voluntária.

Nas providências a tomar no âmbito dos processos de jurisdição voluntária é verdade que o juiz não está subordinado a critérios de legalidade estrita, devendo, antes, adoptar as soluções que julgue mais convenientes e oportunas para o caso (art.º 987º do CPC), mas isso não o dispensa de respeitar, cumprir e fazer cumprir as normas processuais respectivas.

Os processos de jurisdição voluntária, para além da característica acabada de apontar em matéria de critérios de julgamento – não sujeição a critérios de legalidade estrita mas sim a ditames “ex-aequo et bono”- têm também outras características singulares de que se destaca a predominância do princípio do inquisitório na investigação dos factos e na obtenção das provas (art.º 986 n.º 2 do CPC) e a alterabilidade das decisões com base em alteração superveniente das circunstâncias que as determinaram (art.º 988º n.º 1 do CPC).

Como se disse, nos processos de jurisdição voluntária, as decisões, ao invés do que sucede nos outros tipos de processo, não são, após o seu trânsito em julgado, definitivas e imutáveis. Elas são alteráveis sempre que se alterarem as circunstâncias em que se fundaram. Trata-se duma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula “rebus sic stantibus” ou seja um caso julgado com efeitos temporalmente limitados. Mas desta especificidade da alterabilidade das resoluções nos processos de jurisdição voluntária, não decorre porém um menor valor, uma menor força ou menor eficácia da decisão. Na verdade enquanto não for alterada nos termos e pela forma processualmente adequada, pelo Tribunal competente, a decisão impõe-se tanto às partes, como a terceiros afectados pela mesma[6] (art.º 619º do CPC) e até ao próprio Tribunal – caso julgado material e formal – na medida em que proferida a decisão fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 613º n.º 1 do CPC) só podendo ser alterada nos termos prescritos na lei. Enquanto isso não suceder a decisão tem a plena força do caso julgado material.

Ora a alteração não é oficiosa. Pressupõe um pedido de quem tem legitimidade processual e pressupõe a alegação e prova da alteração das circunstâncias, que determinaram a decisão anterior.

Vista a petição inicial, em parte alguma se vislumbra qualquer alegação de factos que permitam concluir que houve alteração das circunstâncias, que justifique a alteração da decisão homologada por sentença. Na verdade a requerente nada alega a tal respeito, sendo certo que o seu agregado familiar é o mesmo que existia ao tempo do acordo. Se algo se modificou foi a situação do requerido, que então vivia só e agora constituiu nova família e vive com outra mulher. Ora não tendo sido alegados factos que demonstrem a alteração das circunstâncias de vida da requerente que justifiquem a alteração do acordo anteriormente homologado, nunca o tribunal poderia julgar procedente a acção, sob pena de violar flagrantemente a força do caso julgado, formado com a homologação do acordo sobre o destino da casa de morada de família (…)».

De que, de resto a sua própria e correspondente “síntese” - também por remissão intertextual expressiva -, é reveladora:

«I - Nos termos do disposto no art.º 1793º nº do CC, a atribuição a título de arrendamento, a um dos ex-cônjuges, da casa de morada de família, pressupõe que esta seja um bem comum do casal ou um bem próprio de um dos ex-cônjuge.

II – Não estando demonstrado nos autos que a propriedade, ou o usufruto da casa pertence ao ex-casal ou a um dos ex-cônjuges, o pedido tem necessariamente de improceder.

III – Tendo havido acordo homologado por sentença sobre o destino da casa de morada de família, a sua alteração, por via de acção prevista no art.º 990º do CPC, pressupõe ter havido alteração das circunstâncias que determinaram aquele acordo e que justifiquem a alteração da decisão nele contida. Não se alegando qualquer alteração das circunstâncias não pode o Tribunal deferir a pretensão do requerente, por manifesta falta dos pressupostos de facto da acção e violação da força do caso julgado».

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Sobrando, pois, nesta vinculação, acrescentar que são figuras distintas a nulidade processual e a nulidade da decisão: (i) os casos de nulidade da sentença, estão taxativamente enumerados no art. 615.° do NCPC, situam-se no campo restrito da produção da decisão e respeitam a vícios de conteúdo referentes à sua estrutura (n.º 1, als. b) e c» ou aos seus limites (n.º 1, als. d) e e), com os quais           não se confundem, também, os vícios de conteúdo consistentes em erros materiais (art. 614.°): (ii) as nulidades do processo respeitam à própria existência do acto ou às suas formalidades (art. 186.° e segs.).

São violações da lei cometidas em qualquer fase do processo, excepto na actividade específica da produção da sentença, onde se integram as nulidades secundárias ou inominadas, do art. 195.º do NCPC e traduzem-se em desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo prescrito na lei, que tanto podem resultar da prática de um acto que a lei não permita, como da omissão dum acto ou duma formalidade que a lei prescreva, e a que faça corresponder uma invalidação, mais ou menos extensa, de actos processuais (Cf. Ac. STJ, de 27.1.2015. Proc. 2251/05: Sumários. Jan./2015. p. 37).

Sendo esta a resposta às questões em II.

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III.

10º - A sentença recorrida limita-se a fazer uma referência genérica às regras de distribuição do ónus da prova para fundamentar a sua decisão de absolvição do Réu do pedido, não especificando o concreto fundamento de direito que justifica essa decisão, nem tão-pouco fazendo referência à disposição legal em que assenta a invocada distribuição do ónus da prova e a consequente absolvição do pedido.

11º - A sentença recorrida é, assim, nula, face ao disposto no artº 615º nº 1 -b) do CPC, nulidade essa que ora se invoca para os efeitos do artº 617º nº 1 do CPC e demais efeitos legais.

Neste segmento, referir que a falta de fundamentação geradora do vício da nulidade a que se refere o art. 668.°, aI. b). do anterior CPC (art. 615.°. aI. b), do NCPC (2013)) é a falta absoluta de fundamentos e no que tange a falta de fundamentos de facto, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação de todos os factos que julgue provados, situação que não se confunde com a insuficiência de factualidade apurada para justificar a decisão, caso em que haverá erro de apreciação ou de julgamento (Cf. Ac. STJ, de 25.11.2014, Proc. 458/04:Sumários, Nov./2014, p. 52).

Nessa dimensão, tendo em conta o que anteriormente se apreciou, a resposta à, necessariamente, afirmativa.

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IV.

13º - Porém, uma decisão assente nas regras de distribuição do ónus da prova pressupõe a prévia produção de prova dos factos alegados, in casu, a não prova do facto, como decorre do disposto nos artigos 410º e 416º do CPC;

Considera-se, haverá de se dizer, in limine, para o efeito, e por mero confronto, redactorial e conceitual, com o disposto no art. 416º NCPC (apresentação de coisas móveis ou imóveis)!..., em absoluto irrelevante, para a questão em perfil, o alcance de tal dispositivo legal.

Outro tanto, porém, se não diga do que dimana do outro normativo convocado (art. 410º NCPC - objecto da instrução), uma vez que, naturalmente, a instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova. Sendo inquestionável que "as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos", como o proclama o art. 341.º do Cód. Civil, ou, no domínio processual, "os factos necessitados de prova" (art. 410.°, in fine, deste Código), face ao pedido e causa de pedir invocados, ou à defesa deduzida, sejam eles essenciais, complementares, ou concretizadores, ou, mesmo, instrumentais.

Por sua vez, o disposto no art. 265.°. n.º 3 do CPC (411º NCPC – princípio do inquisitório), não descaracteriza, nem invalida, o princípio base do processo civil e que é o de que o impulso processual compete às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligência probatórias (Cf. Ac. STJ. de 28.3.2000: Sumários. 39.º-23). O que, nesta situação, se consumou nos termos evidenciados. Em todo o caso, o princípio inquisitório, em sentido restrito, está consagrado neste art. 411.°.NCPC, embora os poderes de iniciativa do juiz se restrinjam aos "factos de que lhe é lícito conhecer", o que, ex vi do disposto no art. 5.° do mesmo Diploma (NCPC), delimita o âmbito dos poderes de cognição do tribunal.

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O facto de, em conformidade com o art. 411.º do NCPC (2013), caber, hoje, ao juiz "realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer", não parece, mesmo que se trate de um poder-dever, que tenha o alcance de dispensar a parte de juntar tempestivamente o rol de testemunhas e outras provas (com respeito pelos prazos legais) - o que, no caso, foi feito, na forma evidenciada -, nem deve, tão pouco, permitir à parte furtar-se às consequências do incumprimento da junção da prova dentro do respectivo prazo (Cf. Ac. STJ. de 24.2.2015. Proc. 863/09: Sumários. 2015. p. 105; Ac. RG. de 18.2.2016: Proc. 2734110.2T.lVNF-A.G1.dgsi.Net).

Assim permite, não obstante, em termos de tessitura institucional de adequação, mais consagrar que o dever do juiz ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, quanto a factos que lhe é lícito conhecer, constitui um poder vinculado, de forma a permitir que o processo possa prosseguir com regularidade e possibilitar uma decisão de mérito sobre a pretensão das partes.

Resultando que o juiz do Tribunal "a quo", considerando exíguos os elementos probatórios constantes do processo, deveria, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 607.º. n.º. 1, do NCPC (conjugado com os arts. 6.º e 411.° do mesmo Código), lançar mão de todos os instrumentos legais ao seu alcance, para sanar tais dúvidas, e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para, no confronto com a demais prova produzida, consolidar a convicção do Tribunal sobre a decisão a proferir quanto à matéria de facto.

O Tribunal não pode ficar com dúvidas quando é possível saná-Ias com a realização de outras diligências de prova, devendo, até mesmo, ordená-Ias oficiosamente, caso não tenham sido requeridas pelas partes, estando tal procedimento inserido nos amplos poderes conferidos ao juiz (cfr. arts. 6.° e 411.º do NCPC).

Não tendo o juiz "a quo" tomado tal iniciativa e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a (re)apreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 662.°. n.º. 2, aI. c) do NCPC, deve a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1.ª instância, devendo o Tribunal "a quo" ordenar, oficiosamente, a realização das diligências necessárias, com vista a alcançar a verdade material, também no âmbito do poder-dever de direcção do processo (Cf. Ac. RG, de 12.5.2016: Proc. 3/14.8TJVNF.G1.dgsi.Net), produzindo decisão de conformidade.

O que, nestes precisos termos que se consagram, determina resposta afirmativa para a questão em IV.

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Com este esquisso, sai prejudicada a apreciação daquela outra questão, que vem configurada como

V.

17º - A falta de causa de pedir importa a ineptidão da petição inicial, e consequentemente, a nulidade de todo o processo nos termos do artº 186º nº 1 e nº 2 -a) do CPC, o que constitui excepção dilatória de conhecimento oficioso – Cfr. artº 577º -b) e 578º do CPC - que conduz à absolvição do Réu da instância nos termos do artº 576º nº 2 do CPC, e não, à absolvição do pedido.

18º - O Tribunal “ a quo”, ao decidir como decidiu, violou ainda as normas dos artigos 186º nº 1 e nº 2 -a), 577º-b) e 578º do CPC.

Exactamente, porque o tribunal (art. 615ºNCPC) deve conhecer de todas as questões de mérito suscitadas pelas partes, ou que sejam de conhecimento oficioso, salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras. A violação desse dever de pronúncia importa a nulidade da sentença, não se integrando, porém, no conceito jurídico-processual de "questão", os argumentos jurídicos discreteados no âmbito das questões a solucionar (Ac. STJ. de 10.12.2015. Proc. 886/06:Sumários, 2015, p. 706).

***

Podendo, deste modo, concluir-se, sumariando (art. 663º, nº 7, NCPC), que:

1.

A titularidade da propriedade não faz presumir a posse. Na verdade, prevendo o art. 1268º, nº 1 do Código Civil (presunção da titularidade do direito), que o possuidor seja presuntivamente o titular do direito respectivo, não prevê a lei igual presunção para o titular do direito em relação à respectiva posse.

2.

A providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges pode ser decidida com matéria de facto não alegada pelo requerente ou pelo requerido. Na verdade, tal providência, embora sujeita ao princípio do pedido (cfr. art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil e 3.º, n.º 1, do CPC), tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. art.ºs 1409.º, n.º 2, e 1413.º do CPC - 986º e 990º NCPC), em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da “providência”, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos.

3.

Além disso, o tribunal pode decidir o mérito da mesma por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita (cfr. art.º 1410.º do CPC - 987º NCPC). Para a aferição da procedência ou da improcedência da requerida atribuição da casa de morada de família, a matéria de facto a ser dada por provada e não provada pelo tribunal «a quo», ainda que por indagação oficiosa.

4.

Ora a consideração da factualidade (nem sequer dada, ou não, por assente pela 1.ª Instância -, não obstante os termos em que o foi, vem, em dimensão inerente, alegada pelas partes), não foi, ainda integrada como componente processual capaz de determinar decisão adrede de conveniência, na sua imprescindível suficiência para decidir o mérito da providência, recte, causa e, por consequência - nessa dimensão -, o mérito do recurso. O que, só por si, e nesta tipologia de acção, constitui fundamento de anulação da sentença recorrida, ao abrigo do n.º 4 do art.º 712.º do CPC - 662º NCPC.

5.

O que impõe a reconsideração dos factos que consubstanciam virtualidade decisória suficiente, integrando-os com outros, que se haverão de consubstanciar através de suporte adrede, a determinar através de ordenada junção às partes ou a organismos individualizados -, que o Tribunal haja por imprescindíveis, para o efeito.

6.

Por seu turno, a possibilitar a apreciação do “incidente”, através da imprescindível produção de prova, uma vez que as razões invocadas pelas partes já a densificam, minimamente, cumprindo, agora, proceder à sua absoluta integração, insista-se tendo em consideração a específica tipologia da acção em causa. Sendo que o circunstancialismo fáctico, a provar-se, justifica, efectivamente, o decretamento da medida requerida.

7.

A necessidade da casa (ou, melhor, a premência da necessidade) o factor principal e determinante a atender na decisão judicial, porque é a ela que se reportam tanto a “situação patrimonial” dos cônjuges, como o “interesse dos filhos”. Os factores enunciados nestes preceitos legais (art. 990º NCPC - atribuição de casa de morada de família; art. 1793º Código Civil - casa de morada de família), não se encontram ordenados segundo qualquer hierarquia de valores, não podendo, contudo, deixar de prevalecer a capacidade económica de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos menores).

8.

Quer isto dizer (e não há que buscar outras motivações!…), que, em caso de conflito, o tribunal tem de o resolver atribuindo ou a um, ou a outro, a casa em questão, não podendo impor a duas pessoas que acabaram de romper o seu laço familiar, divorciando-se, no circunstancialismo dos Autos, a convivência em comum, naquele espaço.

9.

A falta de fundamentação geradora do vício da nulidade a que se refere o art. 668.°, aI. b). do anterior CPC (art. 615.°. aI. b), do NCPC (2013)) é a falta absoluta de fundamentos e no que tange a falta de fundamentos de facto, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação de todos os factos que julgue provados, situação que não se confunde com a insuficiência de factualidade apurada para justificar a decisão, caso em que haverá erro de apreciação ou de julgamento.

10.

Resultando que o juiz do Tribunal "a quo", considerando exíguos os elementos probatórios constantes do processo, deveria, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 607.º. n.º. 1, do NCPC (conjugado com os arts. 6.º e 411.° do mesmo Código), lançar mão de todos os instrumentos legais ao seu alcance, para sanar tais dúvidas, e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para, no confronto com a demais prova produzida, consolidar a convicção do Tribunal sobre a decisão a proferir quanto à matéria de facto. O Tribunal não pode ficar com dúvidas quando é possível saná-Ias com a realização de outras diligências de prova, devendo, até mesmo, ordená-Ias oficiosamente, caso não tenham sido requeridas pelas partes, estando tal procedimento inserido nos amplos poderes conferidos ao juiz (cfr. arts. 6.° e 411.º do NCCC).

11.

Não tendo o juiz "a quo" tomado tal iniciativa e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a (re)apreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 662.°. n.º. 2, aI. c) do NCPC, deve a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1.ª instância, devendo o Tribunal "a quo" ordenar, oficiosamente, a realização das diligências necessárias, com vista a alcançar a verdade material, também no âmbito do poder-dever de direcção do processo, produzindo decisão de conformidade.

12.

O tribunal (art. 615ºNCPC) deve conhecer de todas as questões de mérito suscitadas pelas partes, ou que sejam de conhecimento oficioso, salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras. A violação desse dever de pronúncia importa a nulidade da sentença, não se integrando, porém, no conceito jurídico-processual de "questão", os argumentos jurídicos discreteados no âmbito das questões a solucionar.

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III. A Decisão:

Pelas razões expostas, concede-se provimento ao recurso interposto, pois, nesta conformidade, não constando da sentença do processo todos os elementos de prova que permitam a reapreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 662.°. n.º 2, aI. c) do NCPC, anula-se a decisão proferida pela 1.ª instância, consequentemente, ordenado o prosseguimento dos autos para produção da prova requerida por ambas as partes, devendo o Tribunal "a quo" ordenar oficiosamente a realização das diligências necessárias, com vista a alcançar a verdade material, também no âmbito do poder-dever de direcção do processo, produzindo decisão de correspondência.

Sem Custas.

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Coimbra,  11 de Junho de 2019.

António Carvalho Martins ( Relator)

Carlos Moreira

Moreira do Carmo