Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
975/10.1T2AGD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: SIMULAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
PERSONALIDADE COLECTIVA
LEVANTAMENTO
Data do Acordão: 02/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBV ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.334, 394, 762 CC, 1 E 5 CSC
Sumário: 1. Havendo documento(s) que indicie(m) uma aparência de prova acerca do intuito simulatório é consentido o recurso à prova testemunhal da simulação, por parte dos simuladores, uma vez que o facto a provar já se tornou verosímil.

2. A personalidade jurídica das sociedades comerciais e das sociedades civis sob forma comercial (art.ºs 1º, n.º 4 e 5º, do CSC) confere-lhes uma individualidade jurídica que se não confunde com a dos sócios.

3. Por trás da desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva está, sempre, a necessidade de corrigir comportamentos ilícitos, fraudulentos, de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade com violação das regras de boa fé e em prejuízo de terceiros.

Decisão Texto Integral:       Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

 

            I. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa instaurada por M (…), por si e como legal representante de sua filha menor, A (…) contra MD (…), PR (…) e SG (…), estes vieram deduzir oposição à execução, alegando, em síntese;

- subjacente às “declarações de dívida” e letras dadas à execução está a celebração de um contrato de trespasse, onde as partes não declararam o valor real, com o intuito de os exequentes se furtarem ao pagamento de impostos, tendo o pagamento da diferença de valor sido assumido através daquelas “declarações de dívida”;

- os executados tiveram que suportar os custos com as obras de isolamento térmico e acústico do estabelecimento em causa, no valor de € 83 248, a cujo pagamento se obrigaram os exequentes através do referido contrato de trespasse;

- para realização das obras tiveram que parar o estabelecimento comercial durante a época balnear, pelo que sofreram um prejuízo no valor de € 66 752.

Pretendem, assim, obter a compensação dos valores referenciados com o da quantia exequenda e concluem que não houve qualquer incumprimento da sua parte, pelo que não são devidos os juros pedidos pelos exequentes.

Os exequentes contestaram pugnando pela improcedência da oposição à execução, dizendo, além do mais, que não existe qualquer ligação entre o “empréstimo” que é base das letras dadas à execução e o trespasse entre duas sociedades invocado pelos oponentes/executados e que não se verificam os requisitos para aplicação do instituto da compensação, porquanto o contrato de trespasse obriga a “O(…), Lda.”, e a “P (…), Lda.”, e não os sócios enquanto pessoas singulares. Pedem ainda a condenação dos oponentes como litigantes de má fé.

Foi proferido despacho saneador (tabelar) e dispensou-se a selecção da matéria de facto.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal julgou a oposição parcialmente procedente, operando a invocada compensação de créditos, com a consequente redução da quantia exequenda no montante de € 83 248 (oitenta e três mil, duzentos e quarenta e oito euros), e, atenta a simulação de preço efectuada em sede de contrato de trespasse – com o intuito de evitar o pagamento de obrigações fiscais –, ordenou o envio de diversos elementos do processo ao DIAP de Aveiro e ao Serviço de Finanças de Ílhavo, para os efeitos tidos por convenientes.

Inconformados com o assim decidido e visando a sua revogação e a improcedência da oposição, os exequentes interpuseram recurso de apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:

1ª - As confissões de dívida e as letras de câmbio, juntas com o requerimento executivo, não foram impugnadas pelos executados, e não foi posta em causa a sua assinatura nesses documentos apesar de expressamente imputada aos executados, pelo que os documentos dados à execução são documentos particulares com força probatória plena, por a respectiva assinatura estar aceite ou pelo menos não impugnada pelos executados.

2ª - Resulta dos documentos executivos, nomeadamente das confissões de dívida, que a exequente M (…) e seu falecido marido “emprestaram a quantia de € 75 000” e que os executados se “comprometem a pagar o aludido montante…”, factos plenamente provados pelo documento particular assinado pelos executados, até porque são contrários aos seus interesses.

3ª - Nos termos do art.º 393º, n.º 2 do Código Civil/CC, não podem provar-se factos contrários às aludidas declarações, nomeadamente, que o referido montante corresponde a um negócio diferente que não o empréstimo e que o empréstimo afinal vence juros, pelo que, admitida a prova testemunhal, os exequentes apresentaram, logo a seguir à produção de prova, requerimento a arguir a nulidade da prova testemunhal produzida pelas testemunhas (…), dado que, nos termos dos art.ºs 393º, n.º 2 e 394º, do CC, é inadmissível essa prova testemunhal, por contrária a documentos autênticos ou pretender a prova de contrato simulado.

4ª - Entendeu o tribunal recorrido que tal não se verificava, por haver um princípio de prova escrito que permitia essa admissibilidade de prova e indeferiu o requerido.

5ª - Esquece esse despacho que o contrato-promessa de trespasse, sendo assinado pela exequente e seu falecido marido, estes fazem-no na qualidade de gerentes de uma sociedade e que o empréstimo é a título pessoal, o mesmo se passando com o contrato de trespasse, em que nem os executados actuam a título pessoal.

6ª - Não existe princípio de prova nenhum quanto à relação de mútuo entre os exequentes e os executados e no que se refere à confissão de dívida substituída, ela refere o normal desenrolar de negociações do pedido de empréstimo, que entretanto foi reduzido.

7ª - Os documentos que se referem ao princípio de prova escrito não têm qualquer conexão com o caso concreto, por serem diferentes as pessoas jurídicas intervenientes nos documentos considerados como princípio de prova, sendo certo que estas soluções doutrinárias não têm consagração jurisprudencial, pela incerteza que acarretavam, nomeadamente quando se verifica, como no caso concreto, o falecimento de um interessado e o aproveitamento pelos devedores desse facto e pretendendo a lei assegurar através da proibição do art.º 394º, do CC, que não seja usada a prova testemunhal, em si mesma muito falível porque adaptável às circunstâncias, para obter um efeito destruidor dos objectivos do declarado no documento, cuja assinatura será a expressão de maior ponderação de quem assina.

8ª - Mostram-se violados pela decisão recorrida os comandos dos art.ºs 374º, 376º e 393º, n.º 2, do CC, pelo que tem de ser revogado o despacho que indeferiu a arguição de nulidade da produção de prova testemunhal contrária aos documentos que foram invocados como títulos executivos.

9ª - Suscitam também os opoentes que os documentos que servem de base à execução são documentos simulados.

10ª - Como não houve qualquer declaração da exequente e de seu falecido marido não se vê onde possa haver simulação, sendo certo que os executados confessam uma dívida aos exequentes, como pessoas físicas e individualmente consideradas e o eventual negócio dissimulado seria entre a sociedade de que a exequente e seu falecido marido eram gerentes e outra sociedade que os executados constituíram.

11ª - As “declarações de dívida” foram subscritas em 15.4.2007 [documentos 1 e 5 juntos como títulos executivos] e o contrato de trespasse celebrado entre as duas sociedades ocorreu em 30.4.2007, sendo certo que se não entende como fossem a exequente M (…) e seu falecido marido assumir como rendimentos pessoais, sujeitos a IRS com taxas progressivas, rendimentos que eram de uma sociedade, sujeita a IRC, a taxa fixa mais baixa aos quais eram descontadas despesas efectuadas, sendo, por isso, por demais evidente a inexistência de qualquer negócio simulado.

12ª - Mesmo que houvesse negócio simulado, não podiam os executados provar a sua existência com recurso a prova testemunhal, pois o art.º 394º, n.º 2, do CC, determina “a proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores”, pelo que não podiam os executados vir demonstrar a existência desse acordo por testemunhas, nem sequer com base em princípios de prova escrita.

13ª - Por isso, os exequentes apresentaram o supra referido requerimento, que foi indeferido, mas sem que seja apresentada nenhuma justificação específica quanto ao caso da simulação e violando o disposto no art.º 394º, n.º 2, do CC, pelo que tem de ser revogado o despacho que indeferiu a arguição de nulidade da produção de prova testemunhal usada pelos executados como simuladores tendente à prova do acordo simulatório do negócio dissimulado.

14ª - A matéria de facto das alíneas O) a S), conforme se alcança da fundamentação respectiva, foi considerada provada “com base nos documentos 45 a 52 dos presentes autos, aliados aos depoimentos das testemunhas (…) que na altura estavam à frente da imobiliária que intermediou a celebração do negócio entre os exequentes e os executados e as respectivas sociedades, merecendo a credibilidade do Tribunal pela forma isenta, clara e objectiva com que os prestaram”.

15ª- Se há situação em que as testemunhas não foram isentas foi a presente, pois declararam ser parentes do executado MD (…), o que devia ter levado o julgador a ser mais cauteloso na apreciação do seu depoimento e, além disso, não foram as referidas testemunhas tão peremptórias na ligação das “confissões de dívida” com o contrato, quando confrontadas com as datas em que as declarações foram emitidas e o contrato celebrado.

16ª - As questões dadas como provadas nas alíneas O) a S) devem ser respondidas como não provadas, com base nos depoimentos das aludidas testemunhas.

17ª - Por estarem em contradição com factos provados por documento com força probatória plena, devem, nos termos do art.º 646º, n.º 4, do CPC, considerarem-se não escritas as respostas à matéria de facto das alíneas O), P), Q), R), S) e T), dado que esses factos são considerados provados mas estão em oposição com os factos plenamente provados, ou seja, que as quantias devidas pelos executados resultam de um empréstimo da exequente M (...) e seu falecido marido

18ª - Foi a sociedade “P (…) Lda.”, quem adquiriu o estabelecimento com o mesmo nome na Barra, como consta da cláusula 1ª do contrato de trespasse.

19ª - A sociedade comercial existia antes deste negócio concreto, geriu como tal um estabelecimento comercial e transmitiu esse estabelecimento à sociedade formada pelos executados, mediante um contrato de trespasse válido e eficaz, tendo personalidade jurídica.

20ª - Nesse contrato, de acordo com o princípio da liberdade contratual, as partes fizeram inserir só no contrato de trespasse definitivo, pois essa cláusula não existia no contrato-promessa de trespasse, uma “cláusula 5”, onde acordaram que “além da responsabilidade referida antes, é ainda a primeira outorgante responsável pelos encargos que venham a ocorrer por força de uma eventual necessidade de insonorização do estabelecimento comercial, se a mesma tiver de ser realizada, devendo o seu pagamento ser efectuado pela primeira outorgante contra a entrega da factura”.

21ª - Trata-se de um acordo entre duas sociedades, regularmente constituídas e com personalidade jurídica, na qual uma delas assume uma obrigação de pagamento de uma reparação do estabelecimento comercial de que é dona e que transmite à outra por aquele contrato de trespasse, não se tendo provado quaisquer factos que demonstrem que a exequente M (…) e seu falecido marido tenham usado a personalidade colectiva da sociedade “P (…), Lda.”, de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros.

22ª - Apenas transmitiram um estabelecimento comercial por meio de trespasse, sendo certo que esse estabelecimento era ao tempo do trespasse propriedade da referida sociedade que o havia explorado - a obrigação era da sociedade e não dos sócios, individualmente considerados, pois era a sociedade que era a proprietária do estabelecimento comercial trespassado, e não existe qualquer suporte fáctico para desconsiderar a personalidade colectiva da sociedade “P (…)Lda.”, pois não está demonstrada a utilização abusiva da personalidade colectiva, antes os factos provados apontam para a sua utilização de forma correcta e em termos de boa fé.

23ª - A responsabilização dos exequentes pela referida dívida da sociedade é um acto sem qualquer fundamento, antes resulta de uma emocional imposição pré-intuída de obrigar os exequentes em claro e arbitrário benefício dos executados, pelo que, ao violar o art.º 5º do Código das Sociedades Comerciais, tem de ser revogada a sentença recorrida na parte em que declarou que os exequentes eram devedores aos executados das despesas de isolamento acústico, para efeitos de forçar a compensação pretendida pelos executados.

24ª - Também não era possível a compensação, pois o crédito das benfeitorias feitas por imposição municipal é um crédito da sociedade “O (…), Lda.”, e foi esta sociedade quem pagou as referidas obras.

25ª - A credora da quantia referida é a sociedade “O (…) Lda.”; as anotações manuscritas constantes da factura e do recibo revelam bem que esses documentos foram lançados na contabilidade da sociedade, pelo que os executados, tendo feito inserir em despesas os trabalhos de isolamentos acústicos, assim diminuído a matéria colectável da sociedade para efeitos de impostos, vêm agora reclamar o mesmo crédito, como seu perante os exequentes.

26ª - Provou-se que o crédito derivado da realização dos trabalhos de isolamentos acústicos no estabelecimento é um crédito de que é titular activo a referida sociedade O (…) Lda.”, e sujeito passivo a mencionada “P (…), Lda.”

27ª - Por falta da reciprocidade de credor e devedor, não pode ser declarada a compensação entre o crédito exequendo e aquele crédito derivado da realização dos trabalhos de isolamento acústico, pelo que tem de ser revogada a sentença recorrida na parte em que declarou a compensação entre o crédito exequendo, de que os exequentes são titulares e o crédito derivado da realização dos trabalhos de isolamento acústico, de que os executados não são titulares e a cujo pagamento os exequentes não estão obrigados.

28ª - Conforme se alcança das confissões de dívida dadas à execução, “o não pagamento de qualquer uma das prestações implica o vencimento imediato das restantes” e esta seria também a conclusão a que se chegaria por aplicação do art.º 781º, do CC.

29ª - Aceitando os executados o não pagamento de prestações, com fundamento na sua própria interpretação das obrigações contratuais, o tribunal tem de reconhecer que incorreram em mora, pois não pagarem no tempo acordado algumas das prestações e é insubsistente a causa por eles invocada para tal falta (art.º 804º, n.º 2, do CC).

            Os oponentes responderam sustentando a improcedência do recurso.

Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso - art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, na redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8)[1], importa conhecer as seguintes questões fundamentais: a) se foram violadas regras de direito probatório material e/ou há que modificar a decisão de facto; b) se deverá ter lugar a pretendida compensação de créditos e respectivas consequências.  


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) Foram dados à execução os dois documentos intitulados confissão de dívida, constantes de fls. 10 e 16 e as letras de fls. 11 e 17 dos autos principais.[2] (A)

b) A exequente M (…) e o seu falecido marido A (…) eram (únicos) sócios e gerentes de uma sociedade por quotas, denominada “P (…) Lda.”, com sede na Barra e cujo objecto consistia no fabrico próprio de panificação, pastelaria e pizzas, cafetaria e charcutaria. (B)

c) No início do ano de 2007, os executados mostraram-se interessados em adquirir as quotas da dita sociedade, tendo proposto efectuar uma cessão de quotas. (C)

d) Em alternativa à cessão de quotas, fizeram um contrato de trespasse. (D)

e) Em 29.3.2007 é elaborado um contrato-promessa de trespasse entre a “P (…)Lda.”, como primeira outorgante, representada pelos referidos sócios e gerentes, e MD (…) e PR (…) (executados), como segundos outorgantes[3]. (E)

f) A primeira outorgante era dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial (objecto do negócio) de padaria e pastelaria instalado e a funcionar na Praia da Barra. (F)

g) Através de tal contrato, a primeira outorgante prometeu trespassar para os segundos outorgantes ou para quem estes indicassem o supra referido estabelecimento comercial na sua universalidade, composta por todos os pertences e clientela pelo preço de € 412 500. (G)

h) Consta do referido contrato que o preço seria pago:

- No acto da outorga da assinatura do contrato-promessa os executados entregaram a quantia de € 10 000 da qual a primeira outorgante deu plena quitação.

- No dia 01.5.2007 seria paga a quantia de € 70 000.

- A quantia de € 120 000 seria paga até ao dia 08.6.2007 no acto da celebração da escritura pública.

- A restante quantia de € 212 500 seria paga em 7 prestações anuais, sendo as primeiras 6 no valor de € 33 928 e a última no valor de € 8 932.

- A primeira prestação seria paga a 05.9.2007. (H)

i) No dia 01.5.2007 é celebrado entre M (…) e mulher, A (…) (proprietária da fracção onde se situa o estabelecimento comercial) e a sociedade que os executados constituíram entretanto, denominada “O (…), Lda.”, um contrato de arrendamento comercial. (I)

j) No dia 30.4.2007 é celebrado o contrato de trespasse[4]. (J)

k) De acordo com o contrato de trespasse, o preço acordado para o trespasse passou a ser de € 50 000 do qual a 1ª outorgante deu plena quitação. (K)

l) Por outro lado, constam em tal contrato como outorgantes “P (…)Lda.” (1ª outorgante), representada por AR (…) e MR (…) e “O (…), Lda.” (2ª outorgante), representada pelos executados.[5] (L)

m) Neste contrato, a 1ª outorgante, representada pelos exequentes[6], declarou-se responsável pelos encargos que venham a ocorrer por força de uma eventual necessidade de insonorização do estabelecimento comercial, se a mesma tiver de ser realizada, devendo o seu pagamento ser efectuado pela primeira outorgante contra a entrega da factura.[7] (M)

n) Em 15.4.2007, os aqui executados celebraram também com os exequentes[8] uma confissão de dívida, na qual cada um assumia que era devedor da quantia de € 106 250, tendo sido, inclusivamente, elaborado um plano de pagamento segundo o qual a última prestação seria paga em 05.9.2013. (N)

o) Isto porque, além de não quererem pagar impostos, os exequentes[9] diminuíram o valor acordado para o contrato de trespasse de comum acordo e porque a contabilidade não reflectia o valor pelo qual o estabelecimento tinha sido negociado com os executados, passou a ser o valor do trespasse de € 300 000. (O)

p) Tal valor correspondia a € 106 250 a pagar por cada executado, o que dava € 212 500, ao qual acrescia o valor já pago aquando da celebração do contrato-promessa. (P)

q) Foram dadas sem efeito as aludidas confissões de dívida e substituídas[10] pelas dadas à execução. (Q)

r) Porque foram alteradas as datas de pagamento, assim:

- Os executados entregaram aos exequentes em 01.5.2007 a quantia de € 10 000.

- Nessa mesma data, cada um dos executados entregou aos exequentes a quantia de € 35 000 (totalizando € 70 000), mediante cheque, tendo-se comprometido os exequentes a apenas depositarem os cheques em 08.6.2007. (R)

s) Nas confissões de dívida substituídas foi ainda alterado o montante em dívida por cada um dos executados que passou de € 106 250 a € 75 000. (S)

t) Isto porque, além das quantias supra mencionadas entregues aos exequentes, foi-lhes também paga a quantia de € 50 000 aquando da outorga do contrato de trespasse em 30.4.2007. (T)

u) Em 30.9.2007, a “O (…), Lda.”, foi notificada pela Câmara Municipal de Ílhavo para efectuar obras de isolamento térmico e acústico e foi dado conhecimento aos exequentes do orçamento para as mesmas. (U)

v) Em 23.01.2008, os executados, como representantes da sociedade, remeteram aos exequentes, tal como havia sido acordado, o valor que havia despendido com as obras[11], que ascendeu a € 83 248. (V)

w) Aquando do vencimento das letras de € 10 000 dadas à execução, em 05.7.2007, já se encontravam os executados a efectuar as obras no estabelecimento comercial trespassado. (W)

x) Para dar cumprimento à empreitada referente à insonorização e ao isolamento térmico, os executados tiveram que encerrar o estabelecimento comercial durante a época balnear. (X)

2. Os recorrentes afirmam que a sentença sob censura violou as regras que proíbem a prova testemunhal para a demonstração de existência de declarações contrárias a documento com força probatória plena, bem como para a demonstração de acordo simulatório por parte de simuladores, e que foram consideradas credíveis testemunhas que manifestamente o não eram; dizem ainda, designadamente, que “para tornar os exequentes devedores dos executados”, foi desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade de que a exequente M (…) e seu falecido marido eram sócios, aceitando que os executados eram credores de uma quantia facturada a uma sociedade de que eles são sócios (e que inseriu a factura e o recibo respectivos na sua contabilidade), para decretar a almejada compensação de créditos, “tudo bem urdido, mas um claro e nítido atropelo das regras jurídicas em vigor no nosso sistema jurídico” (fls. 192).

3. Salvo o devido respeito, e como se exporá de seguida, o presente caso é um exemplo, de entre tantos outros, da forma como se processam determinados negócios numa sociedade em que “prospera” a economia paralela - figura e realidade que existe, prejudica a maioria dos cidadãos (e algumas empresas) e vai tendo cada vez mais defensores e beneficiários…

4. A alteração, pela Relação, da decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, só pode verificar-se se ocorrer alguma das situações (excepcionais) contempladas no n.º 1 do art.º 712º e que são as seguintes: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

Preceitua-se no n.º 2 do mesmo art.º:

No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

            No recurso em que se vise a impugnação da matéria de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida (art.º 685º-B, n.º 1).

No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto n.º 2 do artigo 522º-C[12], incumbe ainda ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição (n.º 2, do mesmo art.º).

Na sequência do alargamento dos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto, por parte da Relação, tem a jurisprudência convergido em determinados parâmetros de intervenção, considerado, desde logo, o preâmbulo do DL 39/95, de 15.02[13], com destaque para o entendimento de que o recurso não pode visar a obtenção de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, mas tão-só obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador[14] - o Tribunal da Relação deve apreciar a matéria impugnada efectuando uma apreciação autónoma da prova produzida, no sentido de que o objecto precípuo de cognição não é a coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto, mas antes a apreciação e valoração da prova produzida, labor que contudo se orienta para a detecção de qualquer erro de julgamento naquela decisão da matéria de facto; por isso, não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento[15] [se assim não fosse, a impugnação da matéria de facto não constituiria um verdadeiro recurso, como sucede no nosso direito constituído, mas antes um meio processual de provocar uma repetição, ainda que parcial, do julgamento da matéria de facto][16].

            5. Lidas as “conclusões” da alegação de recurso e o explanado na respectiva fundamentação, os recorrentes dizem pretender a alteração da decisão da matéria de facto, alegando, nomeadamente, que se há situação em que as testemunhas não foram isentas foi a presente, pois as testemunhas (…) declararam ser parentes do executado MD (…), o que devia ter levado o julgador a ser mais cauteloso na apreciação do seu depoimento e, além disso, não foram tão peremptórias na ligação das confissões de dívida com o contrato, quando confrontadas com as datas em que as declarações foram emitidas e o contrato celebrado, concluindo que a matéria dada como provada nas alíneas O) a S) [cf. II. 1. alíneas o) a s), supra] deve ser respondida como não provada, considerados aqueles depoimentos.

Referem depois que, por estarem em contradição com factos provados por documento com força probatória plena, devem, nos termos do art.º 646º, n.º 4, considerar-se não escritas as respostas à matéria de facto constante das alíneas O), P), Q), R), S) e T) [II. 1. alíneas o) a t), supra], dado que esses factos, tidos como provados, estão em oposição com os factos plenamente provados, ou seja, que as quantias devidas pelos executados resultam de um empréstimo da exequente M (…) e seu falecido marido.

Embora possamos dizer que os recorrentes apenas indicaram correctamente os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, mas, no tocante aos depoimentos gravados, sem a exactidão e a clareza previstas nos citados normativos da lei processual civil, parece-nos, ainda assim, que não se poderá concluir pela impossibilidade de verificar/apreciar a existência de erro na apreciação da prova (maxime, da prova testemunhal) sujeita à livre apreciação do Tribunal recorrido.

Porém, a questão decisiva prende-se com o invocado desrespeito de regras que proíbem a prova testemunhal.

6. Sabemos que o facto de estar estabelecida a autenticidade de um documento, seja ele autêntico ou particular, não equivale a considerar verdadeiras as declarações que deles constam. Um documento particular, assinado pelas partes e por elas aceite, faz apenas prova plena da materialidade das declarações nele contidas; mas já não faz prova plena quanto à exactidão das mesmas. A inexactidão das declarações pode ser demonstrada mediante a prova de algum dos vícios da vontade ou divergência entre a vontade e a declaração, mesmo recorrendo à prova testemunhal.

A prova da simulação entre os simuladores radica, muitas vezes, em indícios e ilações baseados em factos que à luz da experiência comum podem revelar a existência dos respectivos requisitos, sendo que o art.º 394º, n.º 2, do CC, na sua estrita literalidade, proíbe a prova testemunhal como elemento probatório do acordo simulatório e também do negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.

Todavia, a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que, nestes casos, é admissível prova testemunhal, se os factos probandos "aparecem" com alguma verosimilhança, em provas escritas; então, complementarmente, é admissível tal tipo de prova.[17]

7. Compulsados os autos, dúvidas não restam de que os diversos documentos juntos pelos oponentes [maxime, a fls. 21 – contrato-promessa de trespasse datado de 29.3.2007 -, 31, 38 – contrato de trespasse de 30.4.2007 -, e 45 e seguintes] consubstanciam uma inequívoca aparência de prova acerca do intuito simulatório, visando, sobretudo, prejudicar a Fazenda Nacional [com o não pagamento de impostos inerente ao negócio efectivamente realizado], mas não dissipavam todas as dúvidas que pudessem permanecer no espírito do julgador, face ao conteúdo das “confissões de dívida” dadas à execução e reproduzidas a fls. 228 e 234 [ditas em II. 1. a), supra], enquanto documentos particulares assinados pelos executados e, em princípio, com o significado e os efeitos previstos nos art.ºs 376, n.ºs 1 e 2[18] e 393º, n.º 2, do CC, razão pela qual a prova testemunhal era admissível.

Assim, mostra-se plenamente justificada a excepção à regras probatórias dos art.ºs 393º, n.º 2 e 394º, n.ºs 1 e 2, do CC,[19] ou seja, ao princípio da inadmissibilidade da prova testemunhal para prova de convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos com força probatória plena, bem como da existência de simulação negocial por parte dos simuladores, devendo dar-se o devido e necessário relevo à prova por testemunhas, já que os factos a provar – maxime, as circunstâncias atinentes à outorga ou à subscrição dos documentos de fls. 21, 38, 228 e 234 e sua razão de ser, bem como as posições das partes a partir de então e até ao surgimento do litígio – estão já tornados verosímeis por um princípio ou começo de prova por escrito.
            No caso em análise, a prova testemunhal apenas conduz a uma melhor concretização de uma realidade que desde logo se entrevê a partir da simples conjugação dos diversos documentos constantes dos autos, e se, por um lado, tal meio de prova, possibilitou averiguar das razões e/ou finalidade da celebração do “contrato” de fls. 38, por outro lado, as circunstâncias do caso também nos dizem não haver lugar para afirmar ou recear os “perigos” comummente associados à prova testemunhal ou daqueles que particularmente se ligam à admissibilidade de tal prova quando se pretenda demonstrar a existência de simulação, pois, além do mais, não está desacompanhada de tal princípio ou começo de prova; de resto, in casu, esta será uma solução que salvaguardará o princípio da verdade material e que possibilitará uma melhor justiça.

8. É assim inteiramente correcto o decido pelo Tribunal recorrido, mormente ao concluir pela existência de um começo/princípio de prova por escrito, a saber, o contrato-promessa de trepasse, o contrato de trespasse, a confissão de dívida inicial junta aos autos e as próprias confissões de dívida exequendas, todos eles celebrados no momento temporal que rodeou a celebração do contrato-promessa de trespasse, do contrato definitivo e das confissões de dívida, de onde se indicia a existência de um acordo simulatório (fls. 159), sendo que os escritos provêm das mesmas pessoas, no que toca à anterior confissão de dívida e às pessoas colectivas, cujo substracto pessoal é composto pelas mesmas partes que agora estão na presente execução, pelo que os documentos juntos aos autos, constituindo legitimamente o princípio de prova supra referenciado, permitem que seja admissível a prova testemunhal produzida e que o Tribunal baseie a sua convicção na mesma, aliado aos documentos supra referenciados (160).

  Por outro lado, ouvida na íntegra a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, apenas se poderá concluir que nada justifica a introdução de quaisquer modificações à decisão de facto, designadamente à indicada na presente impugnação, pois o Tribunal recorrido deu o devido relevo a toda a prova documental junta aos autos [designadamente, a fls. 21 a 43, 45 a 52, 53 a 63 e 84 a 119] e aos depoimentos produzidos.

E, no tocante às testemunhas (…), ligados à “Imobiliária” que intermediou a celebração do negócio [vide “razão de ciência” indicada a fls. 144], afigura-se que demonstraram ter conhecimento directo dos factos e suficiente distanciamento em relação aos interesses em presença, não deixando a menor dúvida sobre a razão de ser dos procedimentos adoptados pela exequente M (…) e marido e pelos executados, no âmbito da negociação do estabelecimento comercial em causa [é correcto o explanado na decisão de facto, quando se diz que aquelas testemunhas esclareceram, designadamente: para que os exequentes não pagassem impostos, foi declarado o valor de 50.000 € no contrato de trespasse, ficando o remanescente do valor em dívida titulado pelos documentos de confissão de dívida dados à execução; (…) o valor do contrato-promessa de trespasse veio a ser reduzido, não só como uma forma de fuga ao pagamento de impostos, mas também porque a contabilidade demonstrou que o valor da facturação não correspondia ao que ali constava; fizeram uma reunião entre todos, tendo então sido celebrado o contrato de trespasse pelo valor de 50.000€, assinando cada um dos sócios os documentos de confissão de dívida no valor de 75.000€ cada, para pagamento do valor real do trespasse; (…) não se realizaram todos os negócios no mesmo dia - razão avançada para o facto de as “declarações de dívida” terem data anterior à do contrato de trespasse, e que convenceu o Tribunal “a quo” (que a esse respeito interrogou directamente a testemunha (…)), dado o tempo que demoraram as negociações e como teria que estar assegurado o pagamento do grosso do valor do trespasse, pelas confissões de dívida, antes de ser celebrado o contrato de trespasse por valor manifestamente inferior; os documentos de confissão de dívida dizem respeito ao valor do negócio do trespasse e não a qualquer empréstimo pessoal].

Indicam-se ainda algumas das expressões e afirmações das mencionadas testemunhas, bem elucidativas das circunstâncias do negócio (único negócio!) a que respeitam os documentos juntos aos autos:

 - Assim, referiu a testemunha (…)nomeadamente: “houve um trespasse de venda do negócio (…) que foi feito por uma cifra (…) que era o valor que se praticava (…), € 412 500”; “(…) para não pagarem tantos impostos fazem-se umas confissões de dívida…”; depois de algum tempo de exploração do estabelecimento pelos executados chegou-se à conclusão de que “o valor (o justo valor) do trespasse seria de € 300 000”; as partes no negócio acordaram “registar por € 50 000” e fazer “uma confissão de dívida por € 150 000” (valor então em dívida); o procedimento adoptado “usa-se muito, por causa de fugir aos impostos”; o bem trespassado pertencia à sociedade e não à M (…) e marido, “beneficiários” dos valores indicados nos documentos juntos com o requerimento executivo.

- O (…) afirmou, designadamente: “o contrato definitivo foi feito pelo valor de € 50 000 para não pagar tantos impostos”; não havia qualquer dívida dos executados aos sócios da P (…), Lda..

9. A prova testemunhal eventualmente relacionada com toda a negociação subjacente aos contrato-promessa e ao contrato definitivo documentados nos autos e de sentido contrário às “declarações de dívida” que lhes foram associadas, haveria de ter-se por admissível, na medida em que era complementar/coadjuvante de elementos de prova escritos e de particular relevância, principalmente, o contrato-promessa de fls. 21 e toda a documentação ligada ao trepasse do estabelecimento em causa e à efectiva execução da cláusula 5ª do contrato reproduzido a fls. 38, sendo por demais evidente a simulação do preço constante deste contrato - não se podendo aceitar que o preço acordado pudesse ser inferior ao valor das obras que se prefigurava terem de ser realizadas e a suportar pela trespassante, também não vemos como seja possível encontrar justificação bastante para uma diminuição do preço de aproximadamente 88 %, em cerca de um mês, e ainda que parcialmente justificado pela “contabilidade real” [cf. II. 1. o), supra], fazendo entrar os proventos na esfera privada dos sócios da sociedade trespassante e suscitando a intervenção, formalmente e a título pessoal, dos sócios da sociedade trespassária, ao subscreverem as aludidas “confissões de dívida”, em manifesto prejuízo da Fazenda Pública e, pelo menos, dos credores da sociedade trespassante.

Entende-se, pois, que estava/está ali, naqueles escritos, um suporte documental suficientemente forte para que, constituindo a base da convicção do julgador, se possa/deva, a partir dele, avançar para a respectiva complementação através de prova testemunhal, constituindo o princípio de prova que, como vimos, a doutrina e a jurisprudência vêm exigindo como seu requisito de admissibilidade.

Consequentemente, à luz da análise efectuada, admissível a prova testemunhal, nada a censurar à decisão de facto[20], que, assim, também não violou o preceituado no n.º 4 do art.º 646º[21].

Concluindo, é irrecusável, por um lado, que se verificava uma situação que permitia a produção de prova testemunhal e, por outro lado, a inexistência do invocado erro na apreciação da prova, soçobrando, desta forma, todas as “conclusões” da impugnação de facto.

10. Os oponentes pretenderam demonstrar que as quantias aludidas nas “confissões de dívida” não correspondem a quaisquer empréstimos, mas sim ao pagamento do preço do trespasse de um estabelecimento comercial realizado entre P (…)Lda., de que a exequente e seu falecido marido eram os únicos sócios, e O (…) Lda., sociedade de que os executados também eram os únicos sócios.

Os oponentes demonstraram que aquelas declarações correspondiam a parte do preço (real) do trespasse e que o contrato de trespasse de fls. 38 e as confissões de dívida constantes dos autos principais foram simulados.

E, nas palavras dos executados/oponentes, “tudo teria corrido bem, caso o estabelecimento comercial não tivesse tido problemas (…) que se prenderam com o isolamento acústico (…)” [cf. itens 26º e 27º da petição da oposição], sendo que a sociedade P (…), Lda., se obrigara a suportar o custo das correspondentes obras, e que foram feitas, tendo, ao invés, sido pagas pela O (…) Lda. (cf. documentos de fls. 61 e 84).

Essa a razão do não pagamento de algumas das “prestações acordadas” e da “compensação” do custo das obras com as “quantias em dívida”.

O aduzido pelos recorrentes, na apelação, assentava no pressuposto de que lhes assistia razão na impugnação de facto, o que, como vimos, não sucede.

Por isso, face à factualidade dada como provada, apenas podemos concluir pela necessidade de repor a verdade da relação contratual efectivamente existente entre as duas mencionadas sociedades, com todas as suas implicações, nomeadamente, em matéria contabilística [os documentos relativos à facturação das obras e ao seu pagamento, reproduzidos a fls. 61 e 84, vão no sentido correcto, esperando-se apenas pelo completar da contabilização devida…] e fiscal, sendo que caberá à autoridade tributária diligenciar pela cobrança da importância do imposto devido e responsabilizar as pessoas singulares e colectivas envolvidas, sem prejuízo da acção penal que possa vir a ter lugar.

Voltando-nos para a presente execução, se é verdade que o montante despendido com a realização das mencionadas obras poderá/deverá ser deduzido ao valor do preço do trespasse ainda em dívida [em razão do “ponto 5” do contrato de trespasse e num procedimento de “compensação” entre créditos das ditas sociedades], o processo, tal como surge configurado e por tudo quanto ficou apurado, em bom rigor, carece de sentido.

11. Seguindo de perto a parte final da alegação dos recorrentes, dir-se-á que a exequente e seu falecido marido e os executados fizeram uso de procedimentos em manifesto benefício daqueles e com directo e correlativo prejuízo da Fazenda Nacional e dos credores da sociedade trespassante, que era a proprietária do estabelecimento comercial em causa.

Como é evidente, ao determinar a compensação de créditos (art.º 847º, do CC), o Tribunal recorrido não “responsabilizou” os exequentes pela dívida da sociedade trespassante, à luz do “ponto 5” do contrato de trespasse reproduzido a fls. 38, e não pretendeu “beneficiar” os executados, sendo que a compensação, atendendo à factualidade provada, diz obviamente respeito ao crédito derivado da realização dos trabalhos de isolamento acústico e pertence à sociedade O (…) Lda., a qual, de resto, pagou as referidas obras, verificando-se, assim, a necessária reciprocidade (credor/devedor).

Ao contrário do sustentado pelos recorrentes, não se poderá afirmar que “os exequentes são credores dos executados das quantias constantes das confissões de dívida e das letras de câmbio aceites”, perspectiva que ousaram levar ao requerimento executivo e que não se coíbem de manter, mas que não logrou obter a menor comprovação, demonstrando-se, antes, o que a esse respeito foi aduzido nos autos pelos oponentes.

Com o entendimento que se deixa expresso, e não tendo a decisão recorrida suscitado outros reparos, concluiu-se pela improcedência das demais “conclusões” da alegação de recurso.

12. A personalidade jurídica das sociedades comerciais (art.º 5º, do Código das Sociedades Comerciais/CSC) e das sociedades civis sob forma comercial (art.º 1º, n.º 4, do CSC) significa que são uma individualidade jurídica que se não confunde com a dos sócios.

Pese embora o objecto/finalidade da oposição à execução em apreço, o caso vertente não deixa de se enquadrar no âmbito da figura ou “instituto” da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas, mormente perspectivando-se a desconsideração como “desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros (…) - desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam[22], ou se na mesma se integrarem os casos em que ocorre a “confusão de esferas jurídicas”/a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios (quando não fique clara, na prática, a separação entre o património da sociedade e o património do sócio ou sócios).

Tal instituto permitirá a correcção de uma primeira imputação, ou, dito de outro modo, a correcção das consequências jurídicas decorrentes de um princípio jurídico de carácter geral, para atingir pessoa jurídica diferente da visada.

A lei não contem referência expressa a tal figura, mas as dimensão do princípio da boa fé – emergente do art.º 762º, n.º 2, conjugado com o art.º 334º, do CC – alcança-a.

Em qualquer caso a desconsideração tem carácter excepcional, já que derroga o princípio da separação consagrado pelo legislador e as consequências da desconsideração variam na razão directa do abuso, sendo que por trás da desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva está, sempre, a necessidade de corrigir comportamentos ilícitos, fraudulentos, de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade, seja actuando em abuso de direito, em fraude à lei ou, de forma mais geral, com violação das regras de boa fé e em prejuízo de terceiros.[23]

No caso em análise, parece-nos evidente que tal situação transparece com inegável nitidez dos factos apurados e dados como provados.

Em face da simulação de preço efectuada no contrato de trespasse e provada a razão da elaboração das “declarações de dívida” dadas à execução, conclui-se, como o Tribunal recorrido, que os exequentes não podem prevalecer-se do facto da (aparente/simulada) diversidade das pessoas que se obrigaram no contrato de trespasse e nos títulos apresentados na execução, sendo que, como atrás se referiu, em termos de acertamento de valores, nada nos diz que não se deva operar a dedução ao valor do preço devido pelo trespasse, pressupondo-se, igualmente, as rectificações/modificações necessárias, designadamente, na contabilidade das empresas envolvidas, de forma a que as movimentações patrimoniais em causa respeitem a realidade e sejam cumpridas as respectivas obrigações fiscais.


*

III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida, embora, parcialmente, com diferente fundamentação.

Custas da apelação pelos recorrentes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhes foi concedido (fls. 240 e 243).

Referenciando o ofício de fls. 251, remeta cópia do presente acórdão à Direcção de Finanças de Aveiro.


*


Fonte Ramos ( Relator )

Carlos Querido

Virgílio Mateus


[1] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[2] Documentos reproduzidos a fls. 228, 229, 234 e 235 dos presentes autos.
[3] A que se refere o documento de fls. 21 e seguintes.
[4] A que respeita o documento de fls. 38.
[5] Rectificou-se e simplificou-se a redacção atento o teor do documento de fls. 38 e o que consta de II. 1. i), supra.
[6] Não é correcto, porquanto intervieram (apenas) a exequente M (…) e o seu falecido marido [conforme resulta do documento de fls. 232/habilitação de herdeiros, A (…) faleceu a 25.9.2007] - a P (…)Lda., foi representada pelo A (…) e pela exequente M (…).
[7] Completou-se e rectificou-se considerado o teor do documento de fls. 38 (“ponto 5”).
[8] Tal documentação dizia respeito à exequente M (…) e ao falecido A (…).
[9] Também não é correcto, sendo que se pretendeu referir a exequente M (…) e o seu falecido marido.
[10] Corrigiu-se lapso manifesto (que também constava da decisão de facto/fls. 157), pois escrevera-se “substituí-las”.
[11] Mais propriamente, foi então comunicado o montante despendido com a realização das obras e enviada cópia da respectiva factura (cf. carta reproduzida a fls. 59).

[12] O nº 2 do artigo 522º-C prescreve que quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.

[13] Diploma que veio consagrar, na área do processo civil, a possibilidade da documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, assim se permitindo um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto.

[14] Refere-se no preâmbulo do referido diploma: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.

    Cf., sobre a mesma problemática, entre outros, o acórdão do STJ de 11.7.2006-processo 06A2009, publicado no “site” da dgsi.

[15] Vide Abrantes Geraldes in Julgar, n.º 4, Janeiro/Abril 2008, Reforma dos Recursos em Processo Civil, págs. 74 e seguintes.
[16] Cf., neste sentido, o acórdão desta Relação de 26.10.2010-processo 608/07.3TBCBR-A.C1, intervindo o relator do presente acórdão como “1º adjunto”.
   Como se afirma no acórdão do STJ de 15.9.2010-processo 241/05.4TTSNT.L1.S1, a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, que os art.ºs 690º-A, n.º 5, e 712º, n.ºs 1, alínea a), segunda parte, e 2, consagram, assume a amplitude de novo julgamento em matéria de facto, no sentido de que a Relação, na reapreciação das provas gravadas, dispõe dos mesmos poderes do tribunal de primeira instância, com vista à «detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso».
    Tal garantia visa, assim, a correcção de erros de julgamento tout court e não apenas os casos de manifestos ou notórios erros de julgamento.
[17] Neste sentido, na doutrina, vide L. Carvalho Fernandes, in A Prova da Simulação pelos Simuladores, em "O Direito", 124 (1992), págs. 593 e seguintes, que termina com a formulação das seguintes conclusões (págs. 615 e seguintes):
a) A interpretação estrita dos art.ºs 351º e 394º, n.º 2, do Código Civil, limitando fortemente a arguição da simulação pelos simuladores, pode conduzir a resultados injustos de aproveitamento do acto simulado por um dos simuladores em detrimento do outro;
b) A ponderação dos interesses em jogo postula, assim, uma interpretação restritiva desses preceitos, que atenue a limitação dos meios de prova disponíveis a que a letra da lei conduz:
c) Essa interpretação não pode, porém, pôr em causa a ´ratio´ desses preceitos, nem chegar ao ponto de sobrepor, à certeza da prova documental, a fragilidade e a falibilidade da prova testemunhal e por presunções judiciais;
d) Deste modo, a estes meios de prova só pode estar reservado o papel secundário de determinar o alcance de documentos que à simulação se refiram ou de complementar ou consolidar o começo de prova a que neles seja lícito fundar;
e) Sempre que, com base em documentos trazidos aos autos, o julgador possa formular uma primeira convicção relativamente à simulação de certo negócio jurídico, é legítimo recorrer-se ao depoimento de testemunhas sobre factos constantes do questionário e relativos a essa matéria com vista a confirmar ou a infirmar essa convicção [sublinhado nosso];
f) Como legítimo é, a partir desse mesmo começo de prova, pela via de presunções judiciais, deduzir a existência de simulação com base em factos assentes no processo.”
Também C. A. da Mota Pinto, in CJ, X, III, 9, escreve: "Constitui excepção à regra do art.º 394 ° e, por isso, deve ser permitida a prova por testemunhas no caso de o facto a provar estar já tornado verosímil por um começo de prova por escrito. Também deve ser admitida tal prova testemunhal existindo já prova documental susceptível de formar a convicção da verificação do facto alegado quando se trate de interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental".
Vide, ainda, com idêntico entendimento, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, págs. 330 e 341 e seguintes e Vaz Serra, in RLJ, 107º, págs. 311 e seguintes e BMJ, 112º, págs. 194 e seguintes.

Na Jurisprudência, cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 15.4.1993, 04.3.1997, 17.6.2003-processo 03A1565, 09.3.2004-processo 04B040, 21.5.2009-processo 08B1466, 23-02-2010-processo 566/06.1TVPRT.P1.S1 e 02.12.2010-processo 449/04.0TBOVR-A.P1.S1, da RP de 27.9.1994 e da RC de 09.12.1997, in CJ-STJ, I, 2, 61; V, 1, 121 e XI, 2, 112 (e “site” da dgsi); “site” da dgsi [o mencionado penúltimo acórdão do STJ também publicado na CJ-STJ, XVIII, 1, 71]; BMJ 439º, 655 e 472º, 576, respectivamente.

[18] Segundo o art.º 374º, n.º 1, do CC (para o qual remete o art.º 376º), a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, sendo que, nos termos doa art.º 376º, do CC, o documento particular, cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (n.º 1) e os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (…) (n.º 2).

[19] Segundo os referidos normativos:

- Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal (art.º 393º, n.º 1). Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena (art.º 393º, n.º 2).

- É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores (art.º 394º, n.º 1).

A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores. (art.º 394º, n.º 2).

[20] Sem prejuízo, é certo, das diversas rectificações introduzidas – cf. “notas 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11”, supra.
[21] Que preceitua: “Têm-se por não escritas as respostas do tribunal (…) sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
[22] Vide Pedro Cordeiro, A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, em Novas Perspectivas do Direito Comercial, Almedina, 1988, págs. 291 e seguintes.
[23] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 26.6.2007-processo 07A1274, 03.02.2009-processo 08A3991 e 12.5.2011-processo 280/07.0TBGVA.C1.S1, publicados no “site” da dgsi e ainda, o primeiro, na CJ-STJ, XV, 2, 131.