Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
944/06.6TBGRD.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO
ENERGIA ELÉCTRICA
PRESUNÇÃO DE CULPA
INCÊNDIO
Data do Acordão: 04/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 798º E 799º CC
Sumário: I – A existência de curto-circuito seguido de incêndio, em que aquele funciona como ignição, cabe na previsão do nº 4 do artº 2º do RQS (Regulamento da Qualidade de Serviço).

II – O facto da interrupção no fornecimento de energia ter excedido 4 horas não significa, por si só, falta de empenho e zelo na reposição de energia eléctrica.

III – Para afastar a presunção de culpa vazada no artº 799º do CC, o fornecedor tem de alegar e provar que agiu com zelo e diligência de um “bom pai de família” e que o incumprimento no fornecimento de energia não derivou de culpa sua e/ou que se ficou a dever a caso fortuito ou de força maior.

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que constituem o tribunal da relação de Coimbra.

                1. Relatório

A..., Lda. pessoa colectiva n.º ..., com sede na ..., intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário contra EDP – Distribuição de Energia, SA, pessoa colectiva n.º ..., com sede na ..., peticionando a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €6.835,23, sendo €6.085,23, a título de danos patrimoniais e €750,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da citação até integral pagamento, bem como numa indemnização a liquidar em execução de sentença relativa aos lucros cessantes. Alegou, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de fornecimento de energia eléctrica e entre as 21H45 do dia 31 de Maio de 2005 e as 13H45 do dia 1 de Junho do mesmo ano, na sede e local de laboração da autora, ocorreu um corte ininterrupto no fornecimento de energia eléctrica, que se deveu a um curto-circuito na Subestação da Guarda, seguido de um foco de incêndio, o que foi causa directa e adequada dos prejuízos por si sofridos, quer patrimoniais, quer não patrimoniais. Com efeito, no exercício da sua actividade comercial, presta a terceiros serviços WEB através do alojamento de páginas de internet, possuindo seis servidores a funcionar com as respectivas UPS´s que, porém, apenas possuem autonomia durante quatro horas. Devido ao corte ininterrupto de energia durante cerca de 16 horas, não foi possível manter os servidores a funcionar, o que impediu a autora de efectuar a facturação durante cerca de meio-dia de trabalho e abalou a sua imagem. A actividade exercida pela ré – distribuição e condução de energia eléctrica – é uma actividade perigosa por natureza, pelo que se presume a sua culpa na produção dos danos.


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                A ré foi regularmente citada.

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A ré deduziu contestação, alegando que a rede eléctrica da Subestação da Guarda foi implantada de acordo com o projecto aprovado pela Fiscalização Oficial e em obediência às legis artis, motivo pelo qual está licenciada e, além disso, sempre se manteve em óptimo estado de conservação. De facto, a Subestação da Guarda foi sempre objecto da sua parte da adequada fiscalização e de várias acções de manutenção preventiva, durante as quais foram analisados todos os pontos tecnicamente relevantes dos componentes da rede eléctrica e, inclusivamente a rede de MT e BT foi vistoriada pouco tempo antes do sinistro. A ré respeitou sempre todas as recomendações internacionais quanto à conservação da sua Subestação e das respectivas redes eléctricas, sendo que as instalações eléctricas da autora são abastecidas de energia eléctrica de baixa tensão no quadro do Regulamento da Qualidade de Serviço, em conformidade com a NP EN 50.160. Por isso, foi a autora quem não acautelou as condições técnicas da instalação para assegurar a continuidade da alimentação de energia em caso de interrupção no seu fornecimento.

Aceita que no dia 31 de Maio de 2005 ocorreu um curto-circuito na Subestação da Guarda, mas o mesmo constituiu um incidente súbito e imprevisível, não susceptível de ser previamente detectado ou evitado com uma sua prudente conservação. É que as cablagens existentes na Subestação e afectadas pelo curto-circuito foram objecto de inspecções termográficas e de ensaios pouco tempo antes do sinistro. O incêndio provocado pelo curto-circuito tornou inoperacional o equipamento de comando e controle da Subestação, o que exigiu uma reparação demorada, mas prontamente levada a cabo.

Conclui, assim, pela improcedência da acção, já que os prejuízos, a terem ocorrido, deveram-se a culpa exclusiva da própria autora.


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A autora respondeu, impugnando o bom estado de conservação da rede eléctrica que assegura o abastecimento à autora, reiterando que o curto-circuito apenas ocorreu por falta de adequada manutenção da rede, não podendo desresponsabilizar a ré o facto de não possuir geradores que assegurem o fornecimento de energia para além das quatro horas. Pugna, deste modo, pela procedência da acção, dando por integralmente reproduzidas suas alegações para a economia da decisão.

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                No despacho saneador julgou-se a instância válida e regular.

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                Consignaram-se os factos assentes e seleccionou-se a matéria de facto pertinente à apreciação do litígio, a qual foi objecto de reclamações, desatendidas.

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                Realizou-se a audiência de julgamento com a documentação da prova, finda a qual designou-se dia e hora para a leitura da decisão que incidiu sobre a matéria de facto controvertida e sobre a qual não recaiu qualquer reclamação.

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Foi proferida sentença a fls. 283 e segs. que foi objecto de recurso por parte da ré, o qual foi julgado procedente, ordenando que se procedesse à alteração da factualidade assente e constante da base instrutória, bem como anulando parcialmente a resposta à matéria de facto (cf. fls. 436 e segs.).

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Realizou-se novamente a audiência de julgamento e a resposta à matéria de facto consta de fls. 474 e 475, sem reclamações

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                Conclusos os autos proferiu-se sentença que julgou a acção improcedente por não provada e consequentemente absolveu a ré dos pedidos contra si formulados.

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                Notificada da sentença a autora interpôs recurso – folhas 449 – que foi admitido como apelação, com subida imediata e nos autos e com efeito devolutivo – despacho de folhas 496

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                Notificada do despacho de admissão, a autora atravessou nos autos as suas doutas alegações que finalizou com as seguintes conclusões:

[…]


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                A ré/apelada contra alegou e suscitou as seguintes questões:

[…]


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                2. Delimitação do objecto do recurso

                As questões a decidir no recurso de apelação e em função das quais se fixa o objecto do recurso, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil, são as seguintes:

                2.1 – Questão prévia suscitada pela apelada:

Ø Associada à rejeição do recurso da matéria de facto por incumprimento dos ónus vazados no artigo 690ºA do CPC.

                2.2 – Recurso de apelação

Ø Nulidade da sentença – violação das alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 668º do CPC

Ø Impugnação da matéria de facto.

o Contradição entre os factos dados como provados e a prova produzida

o Decisão diversa das respostas dadas aos quesitos 61º, 62º, 63º e 64º da base instrutória

Ø Incumprimento contratual por parte da ré. Presunção de culpa – artigos 798º e 799º do CC.


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3. Colhidos os vistos, aprecia-se e decide-se

                3.1 Da questão prévia           

[…]


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                4. Recurso de apelação

4.1 – Nulidade da decisão por contradição entre factos provados e a decisão

[…]


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                3.2 – No que concerne à nulidade caracterizada pela oposição entre fundamentos e decisão

[…]


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                3.2 – Impugnação da matéria de facto

[…]


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                4 – Matéria de facto provada

[…]


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                5. Incumprimento contratual por parte da ré. Presunção de culpa – artigo 799º do CC

                Insurge-se a autora contra a sentença que absolveu a ré do pedido uma vez que à luz do RQS – nº 4 do artigo 2º – subsumiu o curto-circuito a um caso de força maior e a partir daí afastou a presunção de culpa.

                Alega a autora a existência de um contrato de fornecimento de energia eléctrica, mediante o pagamento do preço, a ré fornece-lhe energia eléctrica, conduzindo-a e entregando-a nas suas instalações.

                Seguindo de perto os ensinamentos vertidos no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 30 de Março de 2000, o contrato de fornecimento de energia eléctrica define-se como um contrato unitário duradouro, no qual as prestações das duas partes dependem da duração temporal e da utilização do bem ou serviço prestado e que vigora até que termine por qualquer causa, nomeadamente por caducidade, denúncia ou resolução. Mas a unitária relação complexa e duradoura dele resultante, não exclui que dela surjam obrigações de prestação instantânea, tal como o pagamento das facturas mensais (Revista nº 157/00, da 2ª Secção; Prof. Vaz Serra, RLJ Ano 215, pág. 239. No sentido de estarmos em presença de um contrato de compra e venda de coisa móvel, cf. Ac. STJ, datado de 6 de Maio de 1998, Revista 330/98 da 1ª Secção e em sentido contrário cf. Ac. do STJ, datado de 27 de Outubro de 1998, Revista 215/98, da 1ª Secção).


                5.1 - A autora estribando-se na existência de um corte de energia provocado por um curto-circuito que só foi restabelecido 16 horas depois o que lhe causou prejuízos em face da actividade por si desenvolvida, reclama a conde nação da ré no pagamento da quantia de € 6.835,23.
                A responsabilidade civil distingue-se em responsabilidade civil contratual ou extracontratual, resultando a primeira da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico por contraposição à segunda que se caracteriza pela violação de deveres ou vínculos jurídicos gerais, ou seja, deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos, ou até à prática de actos que, embora lícitos, produzem dano a outrem (Mário Júlio de Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 450).
                O Código Civil sistematiza a responsabilidade civil contratual (artigos 798º e seguintes do Código Civil), interessando a esta forma de responsabilidade os artigos 562º e seguintes do CC, na parte respeitante à obrigação de indemnizar em si mesma, independentemente da fonte de onde procede. Os pressupostos da responsabilidade civil contratual são: o incumprimento, a ilicitude, a culpa, o prejuízo sofrido pelo credor e o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo.
Na situação em apreço, a controvérsia não está relacionada com a ilicitude, com o nexo de causalidade ou sequer com os valores dos danos, mas antes radica única e exclusivamente na questão da culpa, impendendo sobre a ré EDP a prova que o incumprimento não resultou de culpa sua.
                Impõe a lei à EDP a obrigação de fornecer energia eléctrica em baixa tensão a qualquer interessado que a requisite, devendo a tensão da corrente ser fixada em 220 V/380 V, com a tolerância de 8% para mais ou para menos (artigos 10º e 9º da portaria nº 148/84, de 15.3)[1]. Daqui decorre que sobre a ré EDP impendia a obrigação de fornecer à autora energia no respeito pelos parâmetros normais e adequados ao seu funcionamento, parâmetros esses que estão estabelecidos na lei. Em idêntico sentido se espraiam os artigos 1º e 7º da lei nº 23/96[2], de 26 de Junho ao imporem que a prestação de serviços de fornecimento de energia eléctrica deverá obedecer a elevados padrões de qualidade, neles devendo incluir-se o grau de satisfação dos utentes (...).
                No dia 31 de Maio de 2005, cerca das 21.45 ocorreu um corte de energia na sede e local de laboração da autora – facto 5 e 10 – o que levou a que contactasse para o «call center» da EDP onde foi informada que o problema estaria a ser resolvido e que o fornecimento de energia seria reposto dentro de momentos – facto 15 – corte de energia que teve origem num curto-circuito ocorrido na SE da Guarda não sendo susceptível de ser evitado e consequentemente previamente detectado – facto 41 – seguido de incêndio que tornou inoperacional o equipamento de comando e controle da SE – facto 46 – reparação que se iniciou logo que reunidas as condições mínimas de segurança – facto 50.
                A autora invoca no âmbito da causa de pedir um facto jurídico concreto e complexo (contrato de fornecimento de energia eléctrica e danos produzidos em consequência da interrupção do seu fornecimento) de onde emerge o direito que pretende fazer valer na presente acção (nº 4 do artigo 498º do CPC), factos que claramente provou como patenteia os pontos 1 a 10; 16, 18 a 24.
Nos termos do contrato de fornecimento de energia eléctrica, a ré EDP obriga-se a fornecer electricidade com determinadas características de tensão, fixando a lei os parâmetros de oscilação que a corrente eléctrica pode sofrer. Na situação dos autos ocorreu “curto-circuito” seguido de incêndio que impediu que a ré, no espaço de cerca 16 horas não tivesse fornecido energia eléctrica à autora.
                Prescreve o artigo 798º do Código Civil
                O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao devedor.
                Efectivamente, não pode o tribunal afirmar, de acordo com a matéria de facto provada, que a ré EDP “faltou culposamente ao cumprimento da obrigação”, ou dito de outro modo que foi devido a facto por si praticado que ocorreu o curto-circuito seguido de incêndio e daí que, não possa ser responsabilizada à luz desta norma, no entanto, declara o artigo 799º do Código Civil
                1. Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
                2. A culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil.
                Não há a mais pequena dúvida quanto ao facto da EDP, pelas razões, acima explanadas ter deixado de cumprir a obrigação a que estava contratualmente vinculada, ou seja, o fornecimento de energia eléctrica que respeitasse os padrões mínimos de qualidade reportados no Regulamento da Qualidade de Serviço – Despacho nº 2410-A/2003, DR II Série, nº 30, de 5.2 – competindo-lhe, porém, a prova que o não cumprimento da prestação – fornecimento de energia eléctrica – não derivou de culpa sua e que tal incumprimento encontra acolhimento na conduta do lesado, de um terceiro ou de caso fortuito ou de força maior.
                Analisando a matéria de facto, nenhum terceiro foi chamado à liça e daí que esteja afastada automaticamente a possibilidade de estar a sua conduta associada à interrupção de energia e aos prejuízos daí resultantes para a autora. Quanto à autora – na qualidade de lesada – não tem qualquer acção ou omissão que influenciasse, potenciasse ou determinasse o fenómeno associado ao curto-circuito seguido de incêndio, não podendo ser vista, em nossa modesta opinião, a inexistência de uma fonte autónoma de energia – facto 11 – como com causal dos prejuízos, pela simples razão dos seus equipamentos estarem dotados de UPS’s que alimentaram os servidores durante 4 horas após a interrupção do fornecimento – factos 19 e 20.
                Sabemos que para a ré/EDP elidir a presunção de culpa – artigos 799º, nº 1 e 342º, nº 2 do CC – competia-lhe o ónus da prova de ter agido do modo diligente, de ter tomado todas as precauções com a finalidade de realizar a prestação que lhe estava adstrita e de ter sido cautelosa e zelosa na sua acção
A matéria de facto provada desenha-nos uma conduta que podemos classificar de irrepreensível por parte da ré em matéria de implantação, estado da rede e respectiva fiscalização, como de resto ilustram os factos 25 a 37, 55 a 57 e 62, concluindo mesmo que o corte ininterrupto de energia é um acontecimento anormal e não previsível tendo em conta as acções de fiscalização e manutenção, por si realizadas – facto 17 e 5.
                Mas apesar de todos estes cuidados, a verdade é que associado ao corte de energia está um curto -circuito seguido de incêndio – facto 15 – que não era susceptível de ser detectado previamente ou evitado – facto 41 – sendo que no dia em que ocorreu – 31 de Maio de 2005 – a SE encontrava-se em serviço não apresentando qualquer indício de avaria – facto 42.
O conceito de caso fortuito ou de força maior é elencado quer no Regulamento da Qualidade e Serviço – artigo 13º – definindo o nº 4 do seu artigo 2º que para efeitos deste Regulamento, consideram-se casos fortuitos ou de força maior, nomeadamente, os que resultem da ocorrência de greve geral, alteração da ordem pública, incêndio, terramoto, inundação, vento de intensidade excepcional, descarga atmosférica directa, sabotagem, malfeitoria e intervenção de terceiros devidamente comprovada.
Considerando que o curto-circuito está fora do enquadramento das situações características de caso fortuito ou de força maior seguramente devido à sua previsibilidade e até normalidade[3], a verdade é que a interrupção do fornecimento de energia está associado a um curto-circuito que serviu de ignição a um foco de incêndio – facto 15 – o que tornou inoperacional o equipamento de comando e controle – facto 46.
Se nos termos do nº 4 do artigo 2º do RQS o «incêndio» é considerado caso fortuito ou de força maior, não podemos dissociá-lo da ignição que o motivou, ou seja, o curto-circuito. Esta realidade não pode ser vista de modo isolado mas antes como um fenómeno inter-dependente que foi responsável pela inoperacionalidade da SE pelo período de 16 horas. Ocorrendo um incêndio num interior de uma cabine de distribuição de energia eléctrica é natural a destruição de equipamento – facto 16 – como é claro que o início dos trabalhos só podia ocorrer quando reunidas as condições de segurança – facto 50 – como claro nos parece que é muito mais demorada uma intervenção que obriga à substituição de equipamento que ficou danificado em consequência do incêndio – facto 46 – do que uma intervenção que se limitasse a reparar a avaria resultante do curto-circuito.
Considerando toda a actividade de prevenção, manutenção e reparação que a ré demonstrou ter levado a cabo seria em nossa modesta opinião suficiente para afastar a presunção de culpa do artigo 799º do CC, como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 31 de Março de 1993, para se apurar que o agente teve culpa, compara-se a sua conduta com a que teria um bonus pater familias, que é um homem abstracto. Como notam Pereira Coelho (in Obrigações, 1966, 150 a 152) e Antunes Varela (in obrigações, 1967, pág. 381), no funcionamento prático do critério é muito importante a distinção entre circunstâncias externas e internas; como teria procedido um bonus pater familias colocado nas mesmas circunstâncias externas, e só nestas, em que o agente procedeu (Col. Jur. (Acs. STJ, Ano I, tomo II; pág. 48). Não há dúvidas que quer no antes quer no pós acidente (curto-circuito seguido de incêndio) a ré EDP teve uma conduta diligente e zelosa, já que no «antes» alegou e demonstrou o desenvolvimento de um conjunto de medidas associadas á prevenção, manutenção e reparação dos equipamentos de modo a que a sua prestação chegasse às instalações da autora no respeito pelas normas e parâmetros e que regulam e disciplinam o fornecimento da energia eléctrica. Verificada a avaria provocada por curto-circuito seguido de incêndio a ré teve uma actuação, igualmente, diligente e rápida, não podendo por razões que nos parecem óbvias iniciar os trabalhos antes de estarem reunidas as mínimas condições de segurança. Considerando a extensão dos danos – facto 46 – o tempo de reparação foi o necessário – cerca de 16 horas - sendo certo que pela 1.30 do dia 1 de Junho já 44% dos clientes afectados viram o fornecimento de luz restabelecido, enquanto o fornecimento aos restantes 56% só foi possível por volta das 13.30 horas desse mesmo dia.
                Salvo melhor e mais balizada opinião, a matéria de facto dada como provada e caracterizadora de toda uma actividade vocacionada para o fornecimento de energia em condições de segurança e com a qualidade contratada era suficiente à elisão da presunção de culpa reportada no artigo 799º do CC, a integração do facto gerador da interrupção do fornecimento no nº 2 do artigo 4º do RQS consolida uma posição zelosa e cautelosa por parte da ré e deste modo, também, fortalece a sua posição em sede de elisão da presunção vazada no artigo 799º do CC.
                Note-se por importante no contexto do fornecimento de energia eléctrica, o facto de todas as protecções funcionaram devidamente – factos 41 a 45 – o que por si só patenteia cuidados e zelo com toda a infra-estrutura – SE – a partir da qual chega a energia a casa dos consumidores.
                Ao invés do defendido pela apelante, o incumprimento contratual da apelante, embora existente, não lhe pode ser assacado, na medida em que, repete-se, toda a sua actuação no antes e depois foi toda ela de grande responsabilidade e só não repôs a energia mais cedo em virtude dos estragos provocados pelo incêndio e discordamos do apelante quando isola o curto-circuito do incêndio para concluir que aquele não integra as situações de força maior logo a culpa na produção do evento recai sobre a ré. Renovando os respeitos devidos, não podemos deixar de perguntar em face da matéria provada que outra atitude, comportamento ou conduta era exigível à ré de modo a cumprir a sua prestação nos termos acordados?
                Parece-nos que nada mais lhe era exigível em face do que consta da matéria de facto provada. Se tudo se faz para cumprir a obrigação consubstanciada no fornecimento de energia eléctrica em termos de qualidade e segurança que outra conduta lhe era exigível como capaz de evitar um curto-circuito e um incêndio. A propósito do um curto-circuito, o Exmo. Juiz Conselheiro Bettencourt Faria defende que não integra uma situação de caso fortuito, recaindo sobre a fornecedora o ónus de elidir a presunção de culpa no evento, demonstrando que assumiu todos os procedimentos técnicos para evitar o facto danoso[4]. Se bem interpretamos estes ensinamentos, o Exmo. Juiz Conselheiro está, na realidade, a afirmar que se «no antes do facto danoso» a fornecedora foi zelosa, cautelosa e cuidadosa com os seus equipamentos, procedendo a acções de vistoria, manutenção e reparação que outra conduta se lhe pode exigir para afastar a legal presunção de culpa? Parece-nos que nenhuma outra.
                Sobre o facto da reparação ter demorado mais do que as 4 horas, a matéria de facto é bem demonstrativa de uma conduta que visava a reposição de energia no mais curto espaço de tempo possível. Com efeito, entrar numa cabine – SE – eléctrica onde ocorreu um incêndio é necessário debelar e extinguir o incêndio de modo a que os profissionais possam em segurança começar a trabalhar; depois é necessário avaliar-se que equipamentos foram danificados e proceder à sua substituição, sendo certo que por volta da 1.30 horas do dia 1 de Junho já 44% dos clientes viram a energia reposta o que só foi conseguido para os restantes cerca das 13.30 horas desse mesmo dia. Como se vê a ré fez o que estava ao seu alcance para repor a energia o mais rapidamente possível, gastando para tanto 16 horas, tempo este que, sublinhamos, encontra justificação nos danos que o incêndio provocou nos equipamentos da SE.
                Concluindo:
1. A sentença recorrida não padece das nulidades suscitadas pela apelante – alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 668º do CPC.
2. Está processualmente vedada a impugnação de matéria de facto – quesitos 61º a 64º da BI – considerando a aceitação expressa em acta por parte da autora quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua falta de interesse para dirimir o litígio[5] – folhas 473.
3. Os factos provados sob os nºs 11 e 19 não são contraditórios por retratarem realidades completamente distintas: o primeiro facto evidencia um equipamento capaz de produzir energia, vulgo gerador; o segundo reporta-se às chamadas UPS’s que mais não são do que baterias que mantêm o sistema a funcionar durante o tempo da autonomia.
4. A existência de curto-circuito seguido de incêndio, em que aquele funciona como ignição, cabe na previsão do nº 4 do artigo 2º do RQS (Regulamento da Qualidade de Serviço).
5. O facto da interrupção no fornecimento de energia ter excedido 4 horas não significa, considerando os factos provados, falta de empenho e zelo na reposição de energia eléctrica, considerandos os diversos equipamentos e materiais consumidos pelo fogo.
6. Para afastar a presunção de culpa vazada no artigo 799º do CC, o fornecedor tem de alegar e provar que agiu com zelo e diligência de um «bom pai de família» e que o incumprimento no fornecimento de energia não derivou de culpa sua e/ou que se ficou a dever a caso fortuito ou de força maior.

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                Decisão
                Nos termos e com os fundamentos expostos acorda-se em negar provimento ao recurso e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
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                Custas da acção e apelação a cargo da apelante – artigo 446º do CPC.
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                Notifique.
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Jacinto Meca (Relator)
Falcão de Magalhães
Regina Rosa


[1] A Portaria nº 90-A/92 de 10.2 procedeu apenas à alteração dos artigos 21º, 30º, 31º e 35º.
[2] Alterada pelas Leis 12/2008, de 26.2; 24/2008. de 2.6 e 6/2011 de 10.3
[3] Esta afirmação não contraria o facto 41, onde se refere: ocorreu um curto-circuito, não susceptível de detectado previamente ou evitado. Naturalmente se existisse mecanismos de detecção e aviso de curto-circuitos os mesmos dificilmente ocorreriam. Toda e qualquer sistema eléctrico muito ou pouco complexo está sujeito à eclosão de um curto-circuito sem que muitas vezes se consiga detectar a sua origem.   
[4] Ac. datado de 28 de Abril de 2009, processo nº 2897/05.9TBGRD.C1.S1, disponível no endereço electrónico www.dgsi.pt
[5] Sublinha-se que nenhum daqueles factos teve a mais leve influência ao nível da decisão da causa, daí que se compreenda que a autora os tenha aceite, consignando, porém, que nada acrescentariam ao objecto do litígio.