Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
55/22.7GBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: INIMPUTABILIDADE
ALCOOLISMO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Processo no Tribunal Recurso: Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo Central Criminal de Viseu - Juiz 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 20.º, N.º 2, DO CÓDIGO PENAL
Sumário:
I – Não é configurável acção livre na causa quando o agente actue com mero dolo eventual.

II – Resultando do relatório pericial que o arguido, aquando dos factos, tinha capacidade para avaliar a ilicitude da sua conduta, a forte diminuição da capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação, por força da intoxicação alcoólica que estava a sofrer, é-lhe censurável porque ele conhecia os efeitos que o consumo de álcool lhe provocava.

Decisão Texto Integral:
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1. … foi submetido a julgamento o arguido …, sendo-lhe então imputada a prática, em autoria material, de um crime de incêndio florestal, previsto e punido nos termos do art.º 274.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e de um crime de incêndio florestal na forma tentada, p. e p. pelo art. 22.º, n.º 1 e 2 al. b) e c), 73.º, n.º 1 al. a) e b) e 274.º, n.º 1 e 2 al. a) do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, …, o tribunal decidiu (transcrição parcial do dispositivo):

“(…) julgar procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência:

1. Absolver o arguido … da prática, em autoria material, do crime de incêndio florestal na forma tentada, …

2. Condenar o arguido …, pela prática, em autoria material, de um crime de incêndio na forma tentada, p. e p. pelo art. 274.º, n.ºs 1 e 2 al. a), 22.º, n.º 1 e 2 al. a) e b), 23.º, n.º 1 e 2 e 73.º do Código Penal (para o qual se convola o crime consumado que lhe vinha imputado na acusação) (praticado em 14/08/2022), na pena de 3 (três) anos de prisão.

(…)».

3. Inconformado com a decisão, dela recorre o arguido, formulando as seguintes conclusões:

«…

2. Resulta do exame pericial junto aos autos que o arguido padece de anomalia psíquica - “ da análise de todos os elementos disponíveis, verificou-se que o examinando apresentava um conjunto de sinais e sintomas compatíveis com os diagnósticos de Atraso Mental, onde se enxertava um quadro clínico de Alterações Mentais e do comportamento decorrentes do abuso do Álcool.”

3. Decorreu, na nossa perspetiva, da conjugação do mesmo exame e da matéria colhida em audiência, até pelas declarações sui generis do Arguido (vide gravações, sem mais considerações, por demais evidentes), que no momento da prática dos alegados factos aquele não estava capaz de avaliar a ilicitude dos seus actos, estando fortemente diminuída a sua capacidade em se determinar de acordo com aquela avaliação, o que levará inelutavelmente a uma situação de inimputabilidade.

4. Ora, como decorre do disposto no n.º 2, do art. 20.º do C.P., a declaração de inimputabilidade do agente pode ocorrer (não ocorrendo sempre nem de forma necessária) quando a capacidade de o mesmo se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude esteja sensivelmente diminuída, desde que tal suceda por forma de anomalia psíquica grave, cujos efeitos o agente não domina, sem que por isso possa ser censurado.

12. Resulta da sentença ora sindicada uma pena de prisão efetiva de 3 anos para o arguido. Escapam-se-nos, porém, os fundamentos da dimensão da referida pena.

20. Ficou provado, até pelo relatório social, que o arguido sofre de atraso mental.

23. O tribunal não pode ser imune a este facto! E isto não resulta de nenhum convencimento à margem da lei. O art. 71º é muito claro quanto aos circunstancialismos que se traduzem nas condições do agente bem como na conduta posterior ao crime.

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4. Em resposta ao recurso, o Ministério Público concluiu:

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5. Nesta Relação, a Exma Srª Procuradora-Geral Adjunta aderindo à argumentação contida na resposta do Ministério Público …

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II. Fundamentação

1.         Delimitação do objecto do recurso

2.         Sendo por intermédio das conclusões que se delimita o objecto do recurso, no caso em apreço importa decidir sobre:

- Da inimputabilidade do arguido/recorrente.

- Da escolha e da medida concreta da pena.

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3. A decisão recorrida

10. O arguido sabia que o mato estava seco, as temperaturas elevadas e que bastaria chegar ao mato rasteiro e seco, um foco de lume obtido com um isqueiro e vários jornais que acendeu, o que fez, com o propósito de criar um incêndio que alastrasse pelas áreas circundantes, o que só não aconteceu por mero acaso, por ter sido de imediato combatido por AA.

12. O arguido sabia que com a sua conduta, na ocasião descrita em 2. e 3., iria fazer arder a vegetação rasteira a que deitou fogo, que rapidamente, atento o tempo seco e quente que se fazia sentir, alastraria pelos matos e árvores existentes no local propagando-se à zona envolvente da área ardida, que sabia constituída por pinheiros e carvalhos, bens patrimoniais cujo valor total é de 40.000,00€ (quarenta mil euros);

13. E poderia colocar também em risco, a vida dos cidadãos que utilizassem naquela noite a Estrada ....

14. O arguido agiu, nos termos descritos em 1. a 3., de forma livre e consciente, bem sabendo do problema de alcoolismo de que padecia e de que o consumo de álcool propiciava a prática de crimes, designadamente o de incêndio … e ainda assim não se inibiu de ingerir bebidas alcoólicas em excesso, colocando-se de forma deliberada em situação em que sabia ser provável atear um foco de fogo, sabendo que com a sua conduta poderia queimar grandes extensões de terreno, constituídos por um grande número de árvores de grande porte existentes na área circundante de valor correspondente a € 40.000,00 (quarenta mil euros) e bem assim, colocar em perigo a integridade física e a vida dos utilizadores da Estrada ..., em ....

15. Sabia também o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

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Factos não provados:

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Motivação:

“ Da qualificação jurídica dos factos

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III - Cumpre apreciar e decidir.

1 - Da inimputabilidade do arguido/recorrente.

O recorrente não impugnou a matéria de facto nos termos do art 412º, do CPP.

Contudo, para fundamentar a invocada inimputabilidade refere, para além do exame pericial, a “matéria colhida em audiência”, e as suas ”declarações sui generis”.

É evidente que a este tribunal está vedada a audição das declarações e dos depoimentos produzidos na audiência de julgamento, pela simples razão de o recorrente não ter inserido no objecto do seu recurso a impugnação ampla da matéria de facto.

Assim sendo, a questão da inimputabilidade será apreciada com recurso ao exame pericial e ao teor do acórdão recorrido, nomeadamente aos factos provados e à respectiva motivação.

A respeito do conceito de inimputabilidade perfilhemos o entendimento expresso com muita clareza no Ac do STJ de 15-02-2023, relator Cons Mota Lopes, cujo sumário se transcreve:

- A figura da «imputabilidade diminuída» não se encontra, enquanto tal, prevista no CP, cujo art. 20.º, n.º 2, em vez disso, estabelece que pode ser declarada a inimputabilidade do arguido nas situações e condições especificadas neste preceito.

- O CP de 1982-1995 deu nova configuração normativa à tradicional «imputabilidade diminuída» (art. 20.º, n.º 2), ao adotar uma solução flexível que confere ao julgador a possibilidade de optar por uma de duas hipóteses: pela declaração de inimputabilidade com as respetivas consequências (aplicação de uma medida de segurança) ou pela não declaração de inimputabilidade (com aplicação de uma pena).

- A pena aplicável ao agente de um crime com «imputabilidade diminuída», não declarado inimputável, não tem de necessariamente ser atenuada. À «imputabilidade diminuída» não corresponde uma diminuição da culpa; pelas qualidades desvaliosas de personalidade projetadas, documentadas e reveladas no facto pode justificar um juízo de censura (culpa) agravada e a agravação da pena; uma conceção da imputabilidade diminuída fundada na diminuição da culpa não tem correspondência na lei penal vigente

- Concluir pela «imputabilidade diminuída», que, em substância, corresponde a «imputabilidade duvidosa», não significa considerar que o arguido é imputável; tal como não significa concluir pela equiparação à inimputabilidade.

- A declaração de inimputabilidade ou não imputabilidade dependerá sempre de uma decisão judicial, e não clínica, quando se mostrem verificados os respetivos pressupostos legais (art. 20.º, n.º 2, do CP):

(a) que o agente padeça de anomalia psíquica grave não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado; e

(b) que, por força da anomalia psíquica grave, a capacidade do agente para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com ela se encontre sensivelmente diminuída, no momento da prática do facto.

- Identificada a “anomalia psíquica”  … de que o arguido é portador no momento da prática do facto e que constitui o substrato “biológico” ou “biopsicológico” em que se funda o juízo de imputabilidade ou inimputabilidade, cabe ao juiz apreciar e decidir se o arguido é imputável ou inimputável (elemento normativo), daí extraindo as consequências legalmente devidas.”

Posto isto.

Desde logo impõe-se afastar a possibilidade de existir acção livre na causa, a regular pelo nº 4, do art. 20º do CP, apesar de sempre implicar a imputabilidade do arguido.

Com efeito, dos factos provados não consta a comprovação de que o arguido previamente e com propósito criminoso, se tenha embriagado. A ingestão de bebidas alcoólicas não resultou de uma decisão com manifesto e prévio propósito delitivo, para cometer o crime.

Antes e a propósito o que se concluiu da prova produzida foi, além do mais que “ O arguido agiu, nos termos descritos em 1. a 3., de forma livre e consciente, bem sabendo do problema de alcoolismo de que padecia e de que o consumo de álcool propiciava a prática de crimes, designadamente o de incêndio (tal como já antes sucedera, conforme infra descrito em 16.b)), e ainda assim não se inibiu de ingerir bebidas alcoólicas em excesso, colocando-se de forma deliberada em situação em que sabia ser provável atear um foco de fogo, sabendo que com a sua conduta poderia queimar grandes extensões de terreno, constituídos por um grande número de árvores de grande porte existentes na área circundante de valor correspondente a € 40.000,00 (quarenta mil euros) e bem assim, colocar em perigo a integridade física e a vida dos utilizadores da Estrada ..., em ... - facto provado nº 14) - sublinhado nosso.

Ora a acção livre na causa não é configurável quando o agente actue com mero dolo eventual. Antes o agente tem de se embriagar deliberadamente para praticar o crime (com dolo directo ou necessário).

Vejamos então se o arguido reúne na sua pessoa os pressupostos de uma plena imputabilidade penal ou se antes deve o arguido ser considerado inimputável ou, pelo menos, portador de imputabilidade diminuída.

Do exame pericial junto aos autos resulta que no momento da prática dos factos o arguido estava capaz de avaliar a ilicitude dos seus actos, mas por força da intoxicação alcoólica, estava fortemente diminuída a sua capacidade de se determinar de acordo com aquela avaliação, o que sugere uma situação de imputabilidade diminuída.

Ora, o tribunal a quo na fundamentação de direito, quando trata da conduta do agente, aceita que o arguido possa ter uma imputabilidade diminuída.

Aceita este tribunal de recurso que estamos perante um caso de imputabilidade diminuída.

Contudo, ponderou e bem o referido tribunal, que também resulta do mesmo relatório, que o arguido já teria sido sujeito a tratamento de desintoxicação, pelo que conhecia sobejamente os efeitos da intoxicação, aguda e crónica, induzida pelo álcool, no seu comportamento - (FP 27).

Como decorre do disposto no n.º 2, do art. 20.º, a declaração de inimputabilidade do agente pode ocorrer (não ocorrendo sempre nem de forma necessária) quando a capacidade de o mesmo se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude esteja sensivelmente diminuída, desde que tal suceda por forma de anomalia psíquica grave, cujos efeitos o agente não domina, sem que por isso possa ser censurado.

Revertendo aos autos, resulta do relatório pericial que o arguido aquando dos factos tinha capacidade para avaliar a ilicitude da conduta e forte diminuição da capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação, por força da intoxicação alcoólica de que sofria. A circunstância de conhecer os efeitos que sobre si exerce o consumo de álcool, não pode deixar de lhe ser censurada - (FP 28).

Todavia, sendo certo que resultou apurado que à data dos factos o arguido era capaz de avaliar a ilicitude das suas condutas, mas a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação encontrava-se sensivelmente diminuída, certo é também que não de tal forma diminuída que o impossibilitasse de agir livre e conscientemente – como agiu – bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.

Assim sendo, decidiu bem o Colectivo recorrido ao concluir “E a análise dos factos dados como provados reforça essa mesma conclusão, na medida em que o arguido registava já antecedentes criminais, pela prática do mesmo tipo de crime, também em estado de embriaguez, sendo certo que ficou sujeito a apertadas condições de tratamento e despiste de consumos, que sabia terem sido considerados essenciais a evitar a repetição do ilícito. Daí que não possa afirmar-se que a situação de imputabilidade diminuída em que se colocou lhe não possa ser censurável. Ou seja, não só não existe fundamento para, no caso concreto, declarar a inimputabilidade do arguido, como nem sequer pode considerar-se que ocorrerem fundamentos para diminuição da culpa.”

A decisão recorrida não merece censura.

Improcede, pelas razões expostas, a pretendida declaração de inimputabilidade do arguido.

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Estão preenchidos os elementos típicos objectivo e subjectivo (FP 10, 12 e 13) do crime de incêndio florestal na forma tentada, p. e p. pelos art. 22.º, n.º 1 e 2 als. a) e b), 23.º, n.º 1 e 2 e 73.º do Código Penal.

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2. Da escolha e da medida da pena

O crime de incêndio florestal na forma tentada prevista no art. 274.º, n.º 1 e 2 al. a) do Código Penal é punível com pena de prisão de 7 meses e 6 dias a 8 anos - art 22º, 23º, nº 2 e 73º, todos do CP

Secundamos inteiramente os argumentos constantes do acórdão recorrido - supra transcritos - a propósito da escolha e da medida concreta da pena, por observarem os critérios legais respectivos e constituírem suficiente fundamentação daqueles parâmetros.

Não enferma, pois, o acórdão recorrido de qualquer nulidade, nomeadamente a ausência de fundamentação da medida da pena a que o arguido alude na conclusão 12 do recurso in fine “Escapam-se-nos, porém, os fundamentos da dimensão da referida pena.”

IV. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC (arts. 513º, n.º 1, do CPP, e tabela III anexa ao RCP).

Coimbra, 13 de Dezembro de 2023

Isabel Valongo

Ana Carolina Cardoso

Alcina da Costa Ribeiro