Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
915/15.1T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: INCIDENTE PLENO DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
ADIAMENTO DA AUDIÊNCIA
Data do Acordão: 09/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – GUARDA – INST. LOCAL – SEC. CÍVEL – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 151º E 603º DO NCPC.
Sumário: I – A marcação da audiência de julgamento no âmbito do incidente pleno de qualificação da insolvência não está sujeita ao regime do art. 151º do NCPC.

II – Essa mesma audiência de julgamento está sujeita à disciplina legal de adiamentos do art. 603º NCPC.

Decisão Texto Integral:



Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

Declarada no processo principal, no dia 24/7/2015, a insolvência da ré, o autor propôs contra a ré, no dia 26/10/2015, o presente incidente pleno de qualificação da insolvência, requerendo que seja declarada a insolvência como culposa.

Alegou, em resumo, que a insolvente constituiu hipoteca sobre o prédio urbano descrito na CRP com o n.º … e inscrito na matriz sob o artigo …, para garantia de responsabilidades a favor do autor, sendo que por escritura outorgada em 5/4/2013 vendeu à sua única filha o direito de uso e habitação desse imóvel; tal venda foi simulada e realizada com o único intuito de prejudicar os credores, designadamente o autor, não tendo sido liquidado o preço declarado na escritura; o negócio em causa foi celebrado num contexto de agonia financeira da ré, já em incumprimento de parte das suas obrigações pessoais e com a já iminente insolvência da sociedade B…, S.A., da qual era administradora, tendo por via dele limitado o seu direito de propriedade sobre o referenciado imóvel, prejudicando, desse modo, os credores.

O administrador da insolvência emitiu parecer concluindo pela natureza culposa da insolvência.

O MP pugnou igualmente pela qualificação da insolvência como culposa.

Declarado aberto o incidente requerido pelo autor, a ré deduziu-lhe oposição, alegando, em resumo, ter abandonado todo e qualquer cargo nas sociedades de que se constituiu avalista, tendo sido subscritas livranças e prestadas garantias bancárias no ano de 2008, não lhe podendo ser imputada responsabilidade no incumprimento destas; como assim, não tendo sido por responsabilidade originária da devedora que os incumprimentos ocorreram, não pode considerar-se culposa a insolvência; não criou ou agravou com dolo ou culpa grave a sua situação de insolvência; não foi gratuita a transmissão negocial operada pelo negócio referenciado pelo autor, o qual se deu em momento anterior ao surgimento de qualquer dificuldade financeira; a venda efectuada à sua filha foi real e foi efectuada não pelo montante de € 504.713,90, mas sim por € 350.000, que recebeu de ...

Assim, a insolvência deveria ser qualificada como fortuita.

O autor e o administrador de insolvência responderam à oposição deduzida, após o que foi proferido despacho saneador com fixação do objecto do litígio e selecção dos temas da prova.

No dia 15/6/2016, sem prévia consulta a qualquer dos mandatários das partes e sem prévio acordo com os mesmos, foi proferido despacho do qual consta, designadamente, o seguinte:

“(…)

… impõe-se determinar o ulterior prosseguimento dos autos, o que se fará designando o dia 23.06.2016, pelas 10:00 horas, neste Tribunal, para a realização da audiência de discussão e julgamento.

Notifique e dê conhecimento ao Sr. Administrador de Insolvência.”.

Aberta a audiência no dia 23/6/2016, o senhor Juiz que à mesma presidiu foi informado que o ilustre mandatário da ré, Dr. …, comunicou ao tribunal nessa manhã, por via telefónica, que não iria estar presente em virtude de se encontrar doente.

Logo após, foi proferido o despacho seguidamente transcrito:

Tendo-nos sido transmitida a ausência do mandatário da insolvente, aqui opoente, e a sua comunicação telefónica, importa proferir despacho que sobre ela verse e sobre as suas consequências na tramitação dos presentes autos.

Facto é que não obstante nos solidarizarmos com a situação reportada, facto é também que o caráter urgente deste processo não se compadece, sem mais, com aquela situação.

Não só tal comunicação não foi fundamentada como não consubstancia alegação de justo impedimento, nem, tão-pouco, o ilustre Advogado requereu o que quer que fosse.

Desde logo, consideramos que a urgência que o legislador quis imprimir ao processo de insolvência (entre outras regras que resultam do CIRE, marcadas pelo mesmo desiderato, v.g. artºs27 e 28) não se coaduna com a possibilidade de adiamento da presente diligência;

Conclui também o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16.07.2009, disponível online, que “apenas uma situação de justo impedimento da parte do seu representante com poderes especiais, para transigir ou confessar ou desistir poderá ser tido em conta, se a sua não comparência poder ser justificada independentemente de determinada situação, podendo ser conotada como justo impedimento tal não inibe e aliás assim tem de ser que o beneficiário das consequências do mesmo efetivamente o alegue.”

Não sendo esse o caso e estando tudo a postos para começar a diligência, não podemos proceder ao adiamento da mesma, pois para tal não temos fundamento legal.

No entanto, e atenta a natureza dos autos e valor legalmente fixado aos mesmos, importa acautelar a representação da insolvente e, em conformidade, nomear patrono oficioso, o que se determina, efetuando diligências necessárias para o efeito e, após tal nomeação, concede-se um tempo, que se requer breve, tendo em atenção o adiantado da hora para consulta dos autos.

Notifique e demais D.N.”.

Esta decisão foi notificada ao ilustre mandatário da ré através de notificação elaborada pela plataforma Citius no dia 29/6/2016 (referência Citius …).

A audiência prosseguiu, com inquirição de duas testemunhas da ré, após o que foi determinada oficiosamente a inquirição de …, a ocorrer no dia 7/7/2016.

No dia 27/6/2016, o ilustre mandatário da ré apresentou nos autos o requerimento seguidamente transcrito:

“…, advogado, enquanto mandatário constituído de M…, insolvente melhor identificada nos autos em epígrafe, vem requerer a junção aos autos de atestado médico, comprovativo do justo impedimento do ora requerente para a comparência na ADJ do passado dia 23.06.2016, conforme, aliás, previamente à sua realização, foi telefonicamente comunicado à Secretaria Judicial deste Tribunal.

Requer assim se digne considerar justificada a sua falta.”.

Juntou atestado médico.

No dia 1/7/2016, foi proferido o seguinte despacho:

PE n.º648712.

Visto.

Justificada a falta.

Aguarde-se pela data já designada para continuação da audiência de julgamento.”.

No dia 1/7/2016, o ilustre mandatário da ré apresentou nos autos o seguinte requerimento:

“…, advogado, enquanto mandatário de M…, insolvente melhor identificada nos autos em epígrafe, vem informar V/ Exa. da sua absoluta indisponibilidade de agenda para estar presente na Audiência de Julgamento designada para o próximo dia 07.07.2016, pelas 11.00 horas, dado que, para o mesmo dia, pelas 09.30 horas, tem já agendada a continuação da Audiência de Discussão e Julgamento subjacente ao Processo Comum Colectivo que corre termos na COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA – INST. CENTRAL - SECÇÃO CRIMINAL – J2, sob o Processo n.º ...

Assim, em alternativa à data ora designada propõem-se, desde já, as seguintes para a realização da apontada diligência: 14.07.2016 ou 18.07.2016 – datas para as quais também foi manifestada disponibilidade pela Ilustre Mandatária do requerente Banco …, que foi entretanto contactada.”.

No dia 5/7/2016, foi proferido o seguinte despacho:

Vimos o requerimento que antecede.

No entanto, não podemos anuir à solicitação nele inserta e por duas ordens de razão.

A primeira é que somos do entendimento que o disposto no art.º151.º do (N)Código de Processo Civil não tem aplicação nos processos de insolvência e a ele apensos, convicção essa que advém da especificidade desse tipo de processos que, por seu turno, advém da exiguidade de prazos que o legislador neles prevê.

A segunda decorre do que vimos de dizer. É que não cremos que a natureza urgente do processo em que nos movemos o contemple, ainda para mais com a iminência do final do ano judicial e a ideia – que todos, decerto, concordarão – de que uma vez começada a audiência, a mesma deve ser concluída o mais depressa possível.

Assim, não sendo possível ao Tribunal anuir ao requerido, vai o mesmo indeferido, mantendo-se a data já designada.

Notifique o subscritor do requerimento que antecede e a Distinta patrona nomeada na sessão passada.”.

Esta decisão foi notificada ao ilustre mandatário da ré através de notificação elaborada pela plataforma Citius no dia 6/7/2016 (referência Citius …).

O processo seguiu os seus termos, com sessões de audiência nos dias 7/7/2016 e 14/7/2016, acabando por ser proferida sentença no dia 5/8/2016, qualificando a insolvência como dolosa.

Entretanto, por não se conformar com os despachos de 23/6/2016 e de 5/7/2016 supra transcritos, deles apelou a ré, tendo rematado as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

...

Contra-alegaram o autor e o MP, pugnando pela improcedência da apelação.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 - NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:

1ª) se o tribunal recorrido deveria ter procedido ao adiamento da audiência de julgamento designada para o dia 23/6/2016 e que nessa data se iniciou;

2ª) se o tribunal recorrido deveria ter deferido o requerimento do ilustre mandatário da ré datado 1/7/2016, procedendo ao reagendamento da sessão da audiência designada para o dia 7/7/2016 e que nessa data teve lugar.

B) De direito

Primeira questão: se o tribunal recorrido deveria ter procedido ao adiamento da audiência de julgamento designada para o dia 23/6/2016 e que nessa data se iniciou.

Comece por recordar-se que o presente incidente pleno de qualificação de insolvência tem carácter urgente (art. 9º/1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março, na redacção que lhe foi conferida pelos  DL n.º 200/2004, de 18 de Agosto, DL n.º 76A/2006, de 29 de Março, DL n.º 282/2007, de 7 de Agosto, DL n.º 116/2008, de 4 de Julho, DL n.º 185/2009, de 12 de Agosto, Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, Lei n.º 66B/2012, de 31 de Dezembro, e DL n.º 26/2015, de 06 de Fevereiro – CIRE), a significar que o legislador pretende que a sua decisão final ocorra de forma célere e no mais curto espaço de tempo, com vista a criar confiança no mercado, em que o tempo é um factor determinante no investimento e no giro comercial das empresas.

Por outro lado, o presente incidente pleno de qualificação de insolvência está sujeito à disciplina dos arts 132º a 139º do CIRE, por forma do respectivo art. 188º/8, estatuindo o art. 138º do CIRE que a audiência de julgamento é marcada “… para um dos 10 dias posteriores.”, concretizando-se através desta norma, entre outras do CIRE que fixam prazos curtos para a realização de actos processuais (v.g. 27º, 28º, 35º/1/8, 140º/1), aquele carácter urgente do processo de insolvência e dos seus incidentes através do qual se procuram tutelar de uma forma muito impressiva os interesses dos credores, bem assim como os da transparência e confiança no mercado.

Assim sendo, o regime especialíssimo do referenciado art. 138º deve prevalecer sobre o regime da marcação de diligências previsto no art. 151º do NCPC, uma vez que o seu regime regra de marcação por acordo e a tramitação prevista para a sua concretização contrariam as exigências de celeridade impostas pela primeira dessas disposições legais, com o consequente afastamento da aplicação subsidiária daquele art. 151º do NCPC ao incidente pleno de qualificação de insolvência, tendo em consideração o estatuído na 2ª parte do art. 17º do CIRE – neste sentido, embora tendo por referência a norma semelhante do art. 35º/1 do CIRE e ainda no âmbito de vigência do 155º do anterior CPC, acórdãos da Relação de Lisboa de 26/9/2013, proferido no processo 4275/12.4TJLSB.L1-2, de 16/7/2009, proferido no processo 450/08.4TYLSB.L1-2, de 31/3/2009, proferido no processo 66/08.5TBPST-F.L1-1, de 25/9/2008, proferido no processo 6428/2008-6; neste mesmo sentido, mas tendo por referência a norma do art. 138º do CIRE, acórdão da Relação de Coimbra de 5/11/2013, proferido no processo 449/10.0TBTND-F.C1.

Porém, se isso é assim em relação ao regime de marcação das diligências, entendimento diferenciado deve prevalecer no que toca ao regime de adiamentos da audiência de julgamento.

Com efeito, ao contrário do que sucede em relação à marcação da audiência em que o art. 138º do CIRE impõe um regime especial e diferente do consagrado no art. 151º do NCPC, aquele mesmo dispositivo ou outro constante do CIRE não estabelecem qualquer regime no que toca aos adiamentos da audiência de julgamento, designadamente proibindo-os ou restringindo-os em relação aos termos em que são admitidos no art. 603.º do NCPC, como por exemplo faz o legislador no art. 49º do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, ou no art. 118º/4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ou ainda no art. 70º/4 do Código de Processo de Trabalho.

Por outro lado, a natureza urgente de um dado procedimento não é por si só incompatível com a possibilidade de adiamento de algumas das suas diligências.

Por exemplo, os procedimentos cautelares têm natureza urgente (art. 363º/1 do NCPC) e, apesar disso, está prevista, por exemplo, a possibilidade de adiamento de inquirição de testemunhas (art. 367º/2 do NCPC).

Além disso, no caso concreto de que nos ocupamos, o presente incidente foi despoletado (23/10/2015) já depois de declarada a insolvência da ré (24/7/2015), razão pela qual a urgência deste tipo concreto de incidente se deve ter por mitigada no confronto daquela que igualmente está presente na tramitação destinada à verificação ou não dos pressupostos de declaração de uma insolvência.

Tudo visto, não vislumbramos fundamente bastante para não aplicar o regime do art. 603º do NCPC às audiências a ocorrerem no âmbito do processo de insolvência e dos seus apensos – neste sentido, também, os acórdãos da Relação de Coimbra de 11/10/2011, proferido no processo 1882/11.6TJCBR-B.C1, de 5/11/2013, proferido no processo 449/10.0TBTND-F.C1, da Relação de Évora, de 22/11/2012, proferido no processo 991/12.9TBFAR.E1, de 30/10/2008, proferido no processo 2182/08-3 da Relação do Porto de 26/1/2009, proferido no processo 0858056,  e da Relação de Guimarães de 14/1/2008, proferido no processo 2378/07-2.

No caso em apreço, a audiência de julgamento foi designada para o dia 23/6/2016, sem o acordo dos ilustres mandatários constituídos pelas partes (fls. 118).

No próprio dia 23/6/2016, o ilustre mandatário da apelante comunicou ao tribunal que não podia comparecer à audiência por se encontrar doente (fls. 126).

A falta de advogado a diligência que tenha sido designada sem que o juiz tenha providenciado pela sua marcação mediante acordo prévio constitui fundamento de adiamento da audiência – art. 603º do NCPC.

Por isso mesmo, independentemente do que o ilustre mandatário do apelante tenha ou não requerido a propósito e com fundamente na sua falta à audiência do dia 23/6/2016, constada tal ausência deveria o tribunal recorrido ter providenciado pelo adiamento dessa audiência.

Ao decidir pelo não adiamento, incorreu o tribunal recorrido em irregularidade susceptível de influir na decisão da causa e na inerente nulidade secundária (art. 195º/1 do NCPC), a qual se mostra coberta por decisão judicial e, por isso, arguida pelo meio processual próprio que consiste no recurso em apreço.

Como assim, deve ser revogada a decisão de não adiamento proferida na sessão da audiência de julgamento de 23/6/2016, com a consequente anulação de todos os termos subsequentes do processo.

Face a quanto acaba de referir-se a respeito da primeira questão, fica prejudicado o conhecimento da segunda.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de revogar o despacho recorrido datado de 23/6/2016 e que está documentado a fls. 127, com a consequente anulação de todos os termos do procedimento praticados subsequentemente ao mesmo.

Custas pelo apelado.

Coimbra, 27/9/2016.


(Jorge Manuel Loureiro)

(Maria Domingas Simões)

(Jaime Carlos Ferreira)