Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2136/18.2TBACB-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 321.º, N.º 1, DO CPC
Sumário: I - Em execução por dívida provida de garantia real, decorrente de crédito à habitação, e em que haja sido celebrado contrato de seguro de vida, não é admissível a intervenção principal da seguradora nos embargos de executado.

II - Mas tendo direito de regresso sobre a seguradora pelo prejuízo que lhe possa causar a satisfação coactiva da obrigação exequenda, pode o executado chamá-la a intervir acessoriamente nos embargos.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

            I - Na Execução que o B..., S.A., movia a AA e  a BB, para deles haver a quantia de € 37 850,96, tendo sido habilitada na posição daquele executado, entretanto falecido,  CC, veio esta  embargar de executado deduzindo, à cabeça, incidente de intervenção principal provocada, requerendo a intervenção na causa,  ao lado do Banco embargado, da C... SA, devendo a mesma ser citada para os termos do incidente, seguindo-se os demais termos até final, com a extinção da execução.

           Alegou, em síntese, ter sucedido na herança do pai, mutuário junto da exequente de financiamento para a aquisição de habitação própria e permanente, e que a  execução visa a cobrança do valor remanescente e acréscimos legais do capital, juros e despesas respeitantes aquele mútuo,  sendo que, para segurança dos capitais mutuados e demais quantias referenciadas nas escrituras publicas e nos documentos complementares que, respectivamente, as integram,  foram constituídas hipotecas voluntárias sobre o imóvel e, por exigência do Banco mutuante, foi subscrita pelos mutuários e a seu favor uma apólice de seguro de vida, onde se previa, designadamente, a cobertura do evento morte de qualquer dos mutuários. Entende que havendo um terceiro garante do cumprimento das prestações devidas pelos mutuários na sequência do mútuo era a esse terceiro que, em primeira linha, o Banco se devia ter dirigido, a fim de obter dele a quantia em falta, por se ter verificado o sinistro coberto pela apólice contratada, o que era do seu conhecimento.             A esta oposição cumulou embargos à execução, invocando os factos já referidos, concluindo que, sendo o Banco embargado conhecedor de que em primeira linha podia obter da seguradora a restituição do capital mutuado, agiu com  ofensa do principio da boa fé dos contratos previsto no art 762º /2 do CC, incorrendo em abuso de direito, ao executar os mutuários e agora também a embargante.

            O Banco embargado apresentou oposição mas a mesma não foi admitida.

           Foi proferida decisão em que se indeferiu a pretendida intervenção principal provocada da  “C...”, essencialmente, por se entender «não ser possível enxertar na oposição à execução uma espécie de acção declarativa contra o terceiro, por tal não se adequar ao objecto da oposição (ou da execução)», tendo-se entendido também  não estar «configurada e/ou peticionada uma intervenção (que seria acessória e para auxiliar a requerente) para hipótese de eventual acção de regresso contra o terceiro (tal acção seria o fundamento do chamamento e, portanto, entende-se que deveria ser invocada, enquanto causa de pedir)».

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           II – É do assim decidido que a embargante apela, tendo concluído as respectivas alegações, do seguinte modo:

           1ª – Apesar de os incidentes declarativos estarem mais vocacionados para o processo declarativo, não se pode afastar a aplicação dos mesmos ao processo executivo, como decorre do previsto no art. 551º, nº 1, do CPC;

           2ª – Pelo que, tendo os mutuários feito transferir a sua responsabilidade pelo bom pagamento do mútuo ao mutuante, para seguradora por ele expressamente considerada como idónea;

            3ª – Tendo esta assumido a posição de garante da obrigação, o que, aliás, decorre do próprio título executivo, era esta que deveria ter sido demandada pelo mutuante e não a apelante;

           4ª – Daí que, bem andou esta em fazer intervir, através do incidente que deduziu, a seguradora, para ali assumir a posição de garante da obrigação que aceitou cobrir em vez dos mutuários seus segurados;

           5ª – Pelo que, esta é uma das formas de fazer intervir na ação executiva terceiro garante que, em vez dos devedores, é chamado a cumprir;

            6ª – Tal não obsta a tal incidente despoletado pela apelante, nem objeta o pedido por esta formulado, a saber o convencimento da seguradora;

             7ª – O qual foi erradamente entendido pelo Mmo. Juiz “a quo” como insuscetível de ser compreendido no âmbito da ação executiva, ao arrepio do que a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem vindo a entender como aplicável nos casos como o dos presentes autos;

           8ª – Na verdade, especialmente, no que tange aos mútuos concedidos para aquisição de habitação própria e permanente, com garantia real, dada a eminência do direito de habitação, constitucionalmente consagrado, tem sido aceite a intervenção de seguradora que assumiu a cobertura do risco vida;

          9ª – O que sucede no caso em apreço, já que está em causa o incumprimento de um mútuo dessa natureza e a suscitar uma proteção acrescida por parte do sistema jurídico;

           10ª – Outrossim, caso o entendesse, o Mmo. Juiz “a quo” sempre poderia convolar em outro incidente que julgasse mais apropriado, designadamente o de intervenção acessória, pois, no alegado sempre encontraria suporte para tal e não refugiar-se em suposta carência de petitório para tal efeito.

           Tudo ponderado, o incidente deduzido pela apelante é o aplicável ao caso em apreço, à míngua de norma legal ou princípio jurídico que o afaste, pelo que o Mmo. Juiz “a quo” fez interpretação equivocada do disposto no art. 316º e ss., do CPC, ao não julgar aplicável à ação executiva o regime jurídico dos incidentes da instância, sendo que, o art. 551º/1 do CPC, manda aplicar, subsidiariamente as normas do processo declarativo ao processo executivo.

            Não foram proferidas contra-alegações.

            III – Consta do titulo dado à execução: 

            1- Por escritura pública de 14 de Agosto de 2003, outorgada no Cartório Notarial ..., lavrada de fls. 7 a fls. 9v do livro de notas para escrituras diversas n.º 171-B e documento complementar anexo, os executados celebraram com B..., S.A., o contrato de mútuo, concedido no montante de € 60.603,94- Cfr. Documento n.º 1 que ora se junta.

           2- A quantia mutuada foi creditada na conta de depósitos à ordem n.º ...46, aberta em nome dos mutuários junto do Banco - Cfr. Cláusula 1.ª do documento complementar já junto sob o n.º 1.

           3- O empréstimo foi concedido pelo prazo de 19 anos, a ser amortizado em 228 prestações mensais e sucessivas de capital e de juros - Cfr. Cláusula 2.ª do documento complementar já junto sob o n.º 1.

           4- Para garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, bem como dos juros à taxa anual efetiva de 5,46%, acrescida da sobretaxa até 4%, devida a título de cláusula penal, em caso de mora, e das despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 2.424,16, os executados constituíram hipoteca voluntária a favor do B..., S.A., sobre a seguinte fração: - Fração autónoma designada pela letra "Z" do prédio urbano sito na Rua ..., ..., corpos A e B, freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...93 e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...33, da referida freguesia.

           5-Tal hipoteca encontra-se devidamente registada a favor do Banco, ora Exequente - Cfr. Documento n.º 2 que ora se junta.

           6- Sucede que, em 25 de Março de 2018, os executados não liquidaram a prestação que se venceu nessa data, nem as posteriormente vencidas.

            7- Pelo que, conforme disposto no artigo 781.º do Código Civil, o empréstimo venceu-se na íntegra nessa data.

           8 - À data do incumprimento, o montante de capital em dívida ascendia a € 24.463,99..

           9 - Acresce que, por escritura pública de 14 de Agosto de 2003, outorgada no Cartório Notarial ..., lavrada de fls. 10 a fls. 11v do livro de notas para escrituras diversas n.º 171-B e documento complementar anexo, os executados celebraram com B..., S.A., o contrato de mútuo, concedido no montante de € 31.673,67..

           10- A quantia mutuada foi creditada na conta de depósitos à ordem n.º ...46, aberta em nome dos mutuários junto do Banco - Cfr. Cláusula 1.ª do documento complementar já junto sob o n.º 4.

           11- O empréstimo foi concedido pelo prazo de 19 anos, a ser amortizado em 228 prestações mensais e sucessivas de capital e de juros - Cfr. Cláusula 2.ª do documento complementar já junto sob o n.º 4.

           12-Para garantia do pontual pagamento da quantia mutuada, bem como dos juros à taxa anual efetiva de 5,9%, acrescida da sobretaxa até 4%, devida a título de cláusula penal, em caso de mora, e das despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 1.266,95, os executados constituíram hipoteca voluntária a favor do B..., S.A., sobre a seguinte fração supra mencionada.

           13- Tal hipoteca encontra-se devidamente registada a favor do Banco, ora Exequente - Cfr. Documento n.º 2 já junto.

           14-  Sucede que, em 25 de Fevereiro de 2018, os executados não liquidaram a prestação que se venceu nessa data, nem as posteriormente vencidas.

           15- Pelo que, conforme disposto no artigo 781.º do Código Civil, o empréstimo venceu-se na íntegra nessa data.

           16- À data do incumprimento, o montante de capital em dívida ascendia a € 13.386,97.

           17 - Em face do título I, tem o exequente direito de haver dos executados o montante de capital remanescente em dívida de € 24.463,99, acrescido dos juros de mora contados à taxa contratual de 1,65%, acrescida da sobretaxa de 4%, devida a título de cláusula penal pela mora, e do respetivo imposto de selo, até efetivo e integral pagamento.

            18-  Os juros de mora vencidos, contados àquelas taxas, desde a data do incumprimento (25-03-2018) até à data de apresentação do presente requerimento executivo, totalizam o montante de €

           19- De modo que, o crédito do Banco ascende, na presente data, ao montante de €

           20 -Em face do título II, tem o exequente direito de haver dos executados o montante de capital remanescente em dívida de € 13.386,97, acrescido dos juros de mora contados à taxa contratual de 2,14%, acrescida da sobretaxa de 4%, devida a título de cláusula penal pela mora, e do respetivo imposto de selo, até efetivo e integral pagamento. Os juros de mora vencidos, contados àquelas taxas, desde a data do incumprimento (25-02-2018) até à data de apresentação do presente requerimento executivo, totalizam o montante de €

           21- De modo que, o crédito do Banco ascende, na presente data, ao montante de € 37 850,96.

           22- Dos “Documentos Complementares” referentes, respectivamente,  a uma e a outra das Escrituras Públicas, consta das respectivas cláusulas 10ª/2 e 3 que «os Mutuários obrigam-se a contratar um Seguro de Vida cujas condições  constantes da respectiva apólice, serão as indicadas pelo Banco, em sociedade de seguros de reconhecido crédito  e da confiança do Banco, a pagar atempadamente os respectivos prémios, a fazer inserir na respectiva apólice que o Banco é credor hipotecário e que em consequência, as indemnizações que sejam devidas em caso de sinistro reverterão para o Banco. As apólices e actas adicionais dos Seguros acima referidos ficarão em poder do Banco mutuante como interessado nos mesmos, na qualidade de credor hipotecário. Só por intermédio do Banco e com o seu acordo por escrito os seguros poderão ser alterados ou anulados».

           IV – Do confronto entre as conclusões das alegações e a decisão recorrida, resultam para apreciação as seguintes questões, que correspondem ao objecto do recurso: se a intervenção principal da seguradora deveria ter sido deferida e, a assim não se entender, se o deveria ter sido a respectiva intervenção acessória.

            È sabido que a doutrina e a jurisprudência se têm genericamente mostrada avessas às intervenções de terceiros na oposição à execução.

           Rui Pinto é muito peremptório a esse respeito, frisando: «A resposta é negativa: a intervenção de terceiro supõe uma extensão decisória da oposição, que ultrapassa a respectiva função acessória de estrita extinção da execução».[1]

           Igualmente Salvador da Costa [2] se pronuncia claramente no sentido de que «o incidente de intervenção principal provocada é inadmissível na acção executiva por virtude do objectivo de um e de outra e das regras de legitimidade desta», e  a respeito do incidente de intervenção acessória refere que o mesmo «é incompatível com a acção executiva para pagamento de quantia certa, mesmo na fase de embargos de executado, porque os fins de uma e outra são incompatíveis, além do mais porque a acção executiva não comporta decisão condenatória, pressuposto essencial do incidente em análise».

           Convém, no entanto, precisar que uma coisa é a intervenção de terceiros na execução e outra, a dessa intervenção no apenso dos embargos à execução - que é a que está em causa nos autos, tal como resulta do pedido formulado pela executada/apelante,  que, recorde-se, requereu «a intervenção na causa, ao lado do Banco embargado, da C... SA, devendo a mesma ser citada para os termos do incidente, seguindo-se os demais termos até final com a extinção da execução».

           Não está, pois, em causa a intervenção de terceiros na execução, que, aliás, só parece ser passível de ser requerida pelo exequente, dando origem, mais frequentemente,  a litisconsórcios passivos sucessivos, com o chamamento à execução de novos executados, e cuja admissibilidade decorre, desde logo, do disposto no art 709º, referente à cumulação de execuções fundadas em títulos diferentes e do art 711º, referente à cumulação sucessiva.

            Acresce, como o faz notar Lebre de Freitas, ainda no âmbito do aCPC, que desde sempre se teve como admissível incidente de terceiro na execução para assegurar a legitimidade duma parte, nos termos do art 261º CPC, pelo que, rejeitada oficiosamente a execução, ou julgados procedentes os embargos de executado, por ilegitimidade do exequente ou do executado, o exequente pode requerer o chamamento da pessoa em falta, tal como esta o poderá requerer espontaneamente. [3]

           Também, como chama ainda a atenção Lebre de Freitas, no âmbito do litisconsórcio voluntário  verificam-se na execução casos de admissibilidade de incidentes de intervenção de terceiros, «sendo três os casos em que a lei é expressa em admiti-los: quando o exequente demande apenas o proprietário dos bens onerados, tem a possibilidade de, mais tarde, demandar o devedor, se os bens que garantem o cumprimento da obrigação se vierem a revelar insuficientes (art 54º/2); instaurada execução apenas contra o devedor principal, cujos bens se revelem insuficientes, pode o exequente demandar o devedor subsidiário (art 745º/3); instaurada a execução apenas contra o devedor subsidiário, que invoque o benefício da excussão prévia, o exequente pode demandar o devedor principal (art 828º/2)». [4]

           O que leva esse autor a concluir que «os dois primeiros casos têm de comum a responsabilidade subsidiária dos chamados subsequentemente à intervenção principal. Mas o terceiro, em que a relação de subsidiariedade é inversa, permite defender que o incidente de intervenção principal é hoje, em geral, admissível na modalidade de intervenção passiva provocada pelo exequente, em nome da economia processual».

           De igual modo se pronunciava, no que respeita ao litisconsórcio superveniente, Anselmo de Castro [5], referindo que o art 56º/2 ( hoje 54º/2) ao admitir a intervenção superveniente do devedor, após a demanda inicial do terceiro titular de bem vinculado em garantia real, «se deve ter como afloração de um princípio geral a aplicar nos demais casos de pluralidade de responsáveis: a execução pode (deve) ser dirigida no mesmo processo contra o devedor se os bens onerados não chegarem para pagamento do exequente». Referindo ainda: «E só deste modo o processo executivo servirá a sua função primordial, adaptando-se ao seu fim de satisfação integral da divida e, designadamente nas obrigações solidárias, com o exercício do direito creditório nos termos em que a lei substantiva o atribui – in totum e contra cada um dos obrigados singularmente». Não duvidando, assim que nas situações de co-obrigados a acção executiva possa sempre ser sucessivamente dirigida contra os diversos obrigados, quando os bens do demandado ou demandados inicialmente forem insuficientes para pagamento do exequente. Refere o mesmo que, «poderá dizer-se que, previsto sem distinção o litisconsórcio facultativo sucessivo (intervenção de terceiros na causa) para a fase declaratória, e em nada colidindo ele com os fins da acção executiva, antes assegurando a sua realização, nenhuma razão haveria para o não admitir». Não deixando de referir que «com a chamada sucessiva dos co-obrigados à execução, haverá lugar à abertura duma nova fase de oposição à execução a favor dos demandados. Mas essa mesma consequência tem o caso directamente previsto na lei no art 56º/2, como aliás, o da cumulação sucessiva de execuções previsto no art 54º».[6]

           Teixeira de Sousa no âmbito do CPC anterior [7], admite a intervenção principal provocada para sanar a preterição de litisconsórcio necessário (cf. art. 269º/1) e para fazer intervir um litisconsorte voluntário, maxime, o executado provocar a intervenção de um seu condevedor solidário, no prazo da oposição à execução, («por não ser exigível que este devedor tenha de suportar sozinho o cumprimento da totalidade da prestação»); admite ainda a intervenção principal espontânea, tanto em composição de litisconsórcio necessário, como por parte de litisconsorte voluntário; e, quanto a este, ao litisconsorte voluntário,  refere que «nada parece obstar à intervenção de um terceiro para vir ocupar a posição de co-exequente ou de co-executado, a ter lugar a todo o tempo (cf. art. 322º nº 1)», sem que, no entanto deixe de acautelar que «a intervenção principal, como exequente ou como executado, está restringida, em regra, a sujeitos que constam do título executivo».

           De todo o modo, em todas as situações acima referidas, e noutras que o não foram, em que é admitida a intervenção de terceiros na execução, constata-se estar em causa situações tipificadas no processo executivo relativamente às quais o legislador não recorre, sequer por remissão, para as normas próprias dos incidentes de intervenção de terceiro previstos no art 311º e ss  do CPC [8] .

           A questão já se pode apresentar como diferente nos embargos de executado, atenta a respectiva natureza declarativa. 

           Com efeito, os embargos de executado constituem verdadeiras acções declarativas, estruturalmente autónomas, embora ligadas instrumental e funcionalmente à acção executiva [9], referindo Lopes Cardoso[10] que «o executado assume a autoria dum processo declarativo autónomo da execução, destinado a contestar o direito do exequente, quer impugnando a própria exequibilidade do titulo, quer alegando factos que em processo declarativo constituiriam  matéria de excepção».

            No Ac STJ 1/3/2001 [11] foi admitida a intervenção principal de terceiro em embargos de executado, tendo-se  entendido que a mesma se revelava indispensável  para conferir eficácia à oposição neles deduzida contra a execução, na medida em que, tendo-se o executado defendido com a excepção liberatória da divida exequenda resultante da simulação do contrato e pedido a sua anulação, para que a decisão a proferir sobre a questão da nulidade ou validade do contrato de mútuo pudesse produzir efeito útil normal não bastava demandar o embargado.

           E nesse acórdão admitiu-se, genericamente, que não se deveria rejeitar in limine  a possibilidade de em embargos de executado ser pedida a intervenção principal de terceiros, acentuando-se que «ponto é que  estejam reunidos os requisitos de que a lei faz depender a sua admissibilidade e que na situação concreta se mostrem compatíveis com a especial função e natureza da acção executiva».

            Vejamos se se será esse o caso na situação dos autos.

           A intervenção principal, como decorre desde logo da sua designação (“principal”) e  do art 311º CPC, referente à intervenção principal espontânea («estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal…», e ainda em função da delimitação negativa contida na parte final do nº 1 do art 321º, referente à intervenção acessória provocada, tem como pressuposto que o terceiro tenha legitimidade para intervir na causa como parte principal.

           E isso sucede, entre outros casos, quando tenha ocorrido preterição de litisconsórcio necessário, em que «qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária nos termos do nº 1 do art 316º CPC».

           Será, afinal, o caso, da situação do acima referido Ac do STJ 1/3/2001 em que estaria em causa a integração nos embargos de executado de um litisconsórcio necessário natural.

           Não estando em causa a preterição de litisconsórcio necessário na execução do lado activo ou passivo, não se vê como possa o executado/embargante provocar a intervenção de um terceiro como parte principal, isto é, como exequente ou executado.[12]

           Como se refere no Ac R C 22/10/2019, não é razoável «o chamamento aos embargos, pelo executado, de um terceiro para demonstração de que é este o verdadeiro responsável pela divida exequenda e não ele próprio», acrescentando-se, «possibilidade que, de qualquer modo, também não lhe seria facultada no processo declarativo».

           De todo o modo, a admitir-se a intervenção de terceiros provocada pelo executado/embargante a mesma só seria pensável  ao abrigo da al a) do nº 3 do art 316º, isto é, em situação em que estivesse em causa litisconsórcio voluntário e as pessoas a chamar se pudessem ter como «sujeitos passivos da relação jurídica controvertida».

           Sucede que na situação dos autos não pode entender-se que a C... se pudesse configurar como sujeito passivo da relação jurídica controvertida (na execução), como decorre da sua posição jurídica perante o banco.

            O que o titulo executivo dado à execução permite entrever – cfr factos 22 - é que o banco mutuante impõe ao mutuário a celebração de um contrato de seguro vida em seguradora da sua confiança e com as condições por ele indicadas, e que as indemnizações devidas em caso de sinistro revertem para ele.

           E daí resulta que o segurado só indirectamente beneficia do seguro, já que, perante a verificação do sinistro, a seguradora paga directamente ao banco o capital mutuado em divida e apenas o banco tem legitimidade para accionar o seguro.

O que sucede porque o banco mutuante se quis proteger relativamente ao incumprimento dos mutuários, não apenas em função da hipoteca do imóvel, mas também com a «garantia pessoal atípica»[13] que representa o seguro e a sua associação ao contrato de mútuo.

           O que significa, como é evidenciado no Ac R C  de 21/1/2014 [14], que  a obrigação do segurador está  colocada ao lado da dos mutuários e não em substituição da destes em relação ao banco - o  facto do segurador se mostrar vinculado à obrigação de garantir a realização da prestação não desvincula o mutuário da obrigação garantida, ou por outras palavras, «a existência da garantia representada pelo seguro não desvincula o mutuário da obrigação de restituição das quantias mutuadas e da retribuição convencionada».

           E embora não possa deixar de se entender, como se afirma nesse acórdão, que dada a função do seguro, se pretenderá que, em regra, (por ser a «vontade usual das partes»), verificado o sinistro, o mutuante se pague primeiro por esse meio, nem por isso, dê ou não o mutuante prioridade ao seguro, o mutuário se pode considerar desvinculado da obrigação de restituição das quantias mutuadas. 

            O que ele tem é direito à acção de regresso, isto é, na existência do sinistro se, apesar da existência do seguro tiver que satisfazer ao mutuante a obrigação de reembolso garantida pode depois exigir do segurador a indemnização que lhe causou a satisfação coactiva da prestação.

           Do que se veio de dizer, resulta que o banco mutuante pese embora a verificação do sinistro pode demandar o segurado - e fazê-lo em execução, por ter contra ele titulo executivo - só podendo o mutuário agir contra a seguradora em sede de direito de regresso.

           O que implica, como atrás se referiu, que a seguradora na situação em causa  nos autos não se configura como sujeito passivo da relação jurídica controvertida (na execução), havendo que afastar a intervenção principal da seguradora no âmbito dos embargos de executado deduzidos pelo mutuário segurado.

 

           A configuração referida das relações do banco mutuante com a seguradora, por um lado, e com o mutuário/segurado, por outro, permitem, no entanto, que se coloque a seguradora como titular de uma relação jurídica conexa com a relação jurídica material controvertida objecto da causa principal, o que permite– como já o permitia no âmbito do anterior  chamamento à autoria – que o executado possa utilizar nos embargos de executado a intervenção acessória [15]

           Efectivamente, a seguradora, na arquitectura atrás constatada resultante das ligações ao banco mutuante e ao mutuário, não se mostra titular ou contitular da relação material controvertida mas configura-se como sujeito passivo de uma relação jurídica material controvertida conexa com a que é objecto da execução – a que resulta do eventual  direito de regresso do executado- sendo, por isso titular de situação jurídica afectável, ainda que só economicamente, pelo resultado da causa.

           Refere o art 321º que «o réu que tenha direito de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chama-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal», acrescentando o nº 2 que «a intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento».

           A intervenção do terceiro na demanda do réu a requerimento deste para o auxiliar na defesa encontra a sua razão de ser no interesse comum dos dois em que a acção  improceda:  esse é, naturalmente, o resultado mais benéfico para o réu, e esse resultado é igualmente o mais conveniente para o terceiro que, em função dele, não se verá futuramente  importunado com uma acção de regresso referente ao  reembolso do que aquele haja pago. Mas o interesse de ambos na referida intervenção não deixa de existir na procedência da acção: o réu, porque evita ver-se confrontado na acção de regresso com a  acusação por parte do terceiro de que não se soube defender e que, por isso, «se não conseguir provar que foi diligente e que usou adequadamente todos os meios processuais que, nos limites de uma actuação processual de boa fé lhe eram acessíveis, sibi imputet [16]; e o terceiro sabe que ajudando o réu na defesa se está em principio a ajudar a si próprio.

            O que se vem de dizer é válido nas acções declarativas -campo natural de aplicação do incidente de terceiro em referência - e não deixa de o ser nos embargos  de executado, em situações como a dos autos, em que se verifica interdependência  funcional entre a relação jurídica material controvertida que se estabelece entre o exequente e o executado e a relação jurídica material controvertida que para garantia dessa outra abrange o terceiro, não obstando a esse entendimento a circunstância de a sentença nos embargos à  execução não se analisar numa condenação.

           A verdade é que «a sentença de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda», como hoje o diz claramente o nº  5 do art 732º CPC, e tanta basta para que, tendo tido lugar nesse processo a intervenção acessória do terceiro, aquela  sentença  constitua (também) caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no art 332º CPC, «sendo o terceiro obrigado a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e a decisão que a decisão judicial tenha estabelecido», embora apenas  «relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização», como se refere no nº 4 do art  323º CPC.

            Para Lebre de Freitas o alcance deste caso julgado justificava o chamamento à autoria em embargos de executado, como hoje, por maioria de razão, justifica a intervenção principal acessória [17].

           Como o explica o autor em causa, «quando se produza caso julgado perante o chamado à intervenção acessória, o seu alcance torna indiscutíveis, no confronto do chamado, os pressupostos do direito à indemnização, a fazer valer em acção posterior, que respeitem à existência e ao conteúdo do direito do autor», mas fica em aberto para a acção de indemnização a discussão sobre «todos os outros pontos de que dependa o direito de regresso». «Assentes ficam só os pressupostos desse direito que, por respeitarem à relação jurídica existente entre autor e réu, condicionam a relação (dependente) entre este e o chamado». A relação jurídica de regresso depende da que é discutida na acção na medida em que o estabelecimento desta implica a verificação de um pressuposto do direito de regresso ou a existência do dito do autor contra o reu. «O terceiro é chamado para que, quanto a essa verificação, se possa constituir perante ele o caso julgado».

           Aqui chegados, e concluindo-se pela inadmissibilidade da intervenção principal provocada mas pela admissibilidade da intervenção acessória provocada, não se vê por que se não haja de proceder à convolação daquela nesta [18].

            A objeccção a essa convolação que parece conter-se na decisão recorrida - falta da alegação da acção de regresso enquanto fundamento do chamamento - não poderá proceder, desde o momento em que constitui também fundamento da intervenção principal provocada a efectivação do direito de regresso – cfr art 317º -  que, por isso, não terá deixado de residir nas alegações da embargante.

           Conclui-se, pois, e ainda – na medida em que a apelante o requereu na apelação, embora subsidiariamente – pela procedência da apelação, devendo, em consequência, ser citada a C... para contestar, no mesmo prazo de que a embargante dispôs para deduzir os embargos, passando a beneficiar do estatuto de assistente, nos termos do art 323º/1 CPC.

 

           V - Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando a decisão de não admissibilidade do incidente e convolando o mesmo em incidente de intervenção espontânea, devendo ser citada a C... para contestar, no mesmo prazo de que a embargante dispôs para deduzir os embargos, passando a beneficiar do estatuto de assistente, nos termos do art 323º/1 CPC.

           Custas do incidente e da apelação a suportar pela embargante/Apelante em cujo interesse foi deduzido o incidente.

                           Coimbra, 5 de Abril de 2022
(Maria Teresa Albuquerque)
(Falcão de Magalhães)
(Pires Robalo)




[1] -  Para assim concluir convoca o Ac RL 18/1/2001(Martins Lopes) referente ainda à dedução do incidente de chamamento à autoria em processo executivo, o Ac R L 8/4/2003 (Abrantes Geraldes) que negou a intervenção acessória para a efectivação de um direito de regresso, o Ac RL 26/7/2003 (Graça Amaral), bem como o Ac RL 21/4/2009 (Anabela Calafate).
[2] - «Os Incidentes da Instância», 3ª ed, p 108 e 131
[3]- Lebre de Freitas, «A acção Executiva à Luz do Código Revisto», 3ª ed,  p 117 e ss
[4] - Obra e lugares citados tendo-se procedido à actualização das disposições legais originariamente referidas.
[5]- «A Acção Executiva Singular, Comum e Especial», 85/86
[6] - No mesmo sentido se pronunciava Alberto dos Reis, p 179, mesmo relativamente à hipótese de devedores subsidiários; contra, Lopes Cardoso, «Manual da Acção Executiva», p 94
[7]- «Acçao Executiva Singular», 1998, 152/154
[8] -Assim sucede, por exemplo, na situação do devedor na execução movida contra o terceiro com garantia real (cf. art. 54º nº 3); de terceiro com direito ou posse incompatível com a penhora (cfr art. 342º); do devedor principal ou do fiador, na execução movida, respectivamente, contra o fiador ou contra o devedor principal (cf. art. 745º nº 2 e 5); do exequente de execução de bens com garantia real (cf. art.. 832º nº 4).
[9] - Cfr, por ex., Amâncio Ferreira,,«Curso de Processo de Execução», 2ª ed p 116 .
[10] - «Manual da Acção Executiva» 3ª ed., p 275
[11] - CJ STJ, I, p 136, Barata Figueira    
[12] - Cfr  Ac R C 22/10/2019 (Mª João Areias), nota 11, quando refere, a respeito da intervenção principal provocada em embargos de executado (e na critica que faz a acórdãos onde se admitiu a intervenção principal em embargos de executado em situações de divida provida de garantia real hipotecária decorrente de crédito à habitação com obrigatoriedade de seguro de vida por parte do mutuário,  como na situação dos autos, vg  Ac R C 10/12/2019 e de 2/6/2020  (Fonte Ramos) e Ac R E 15/11/2016 /José Tomé de Carvalho), critica essa  que se acompanha) «não atingimos como pode ser deferida a intervenção principal provocada de um terceiro quando não é pedida nem ordenada a sua intervenção como parte principal, ou seja, como exequente ou executado».
[13] - Cfr Ac R 21/1/2014 (Henrique Antunes) e Ac R E 6/4/2017 ( Manuel Bargado)
[14] - Relator, Henrique Antunes
[15] - Veja-se neste sentido o Ac R C 27!0/2019  acima referido (Mª João Areias)
[16] - «Se o chamamento for omitido, não bastará ao réu na futura acção de indemnização, invocar a sentença que o condenou; terá também de provar que foi diligente e, portanto, usou adequadamente todos os meios processuais que, nos limites de uma actuação processual de boa fé (cfr art 542º) lhe era licito usar para evitar a condenação». Lebre de Freitas Freitas/Isabel Alexandre  CPC 3ª ed , 2013  I , 636
[17] - Código de Processo Civil Anotado com Isabel Alexandre,  Vol I , 3ª ed, 2013, p 631, anotação ao art 321º.
[18] Cfr Ac R L 2/12/2008 (Rui Vouga)