Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1108/12.5T2AVR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: BENEFÍCIO DA MASSA FALIDA
RESOLUÇÃO
DOAÇÃO
DISTRATE
NEGÓCIO GRATUITO
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA, AVEIRO, JUÍZO DO COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.121º Nº1 AL.B) DO CIRE
Sumário: 1. A doação onerada com a cláusula ou encargo modal para donatária de prestar ao seu irmão todos os cuidados de assistência de que ele necessite constitui um negócio gratuito.

2. O distrate dessa doação traduz um acto gratuito para os efeitos do art.121º nº1 al.b) do CIRE e, por isso, susceptível de resolução incondicional em benefício da massa insolvente desde que verificados os limites temporais ali estabelecidos.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

            A... e mulher B..., ambos com domicílio na Rua (...) Albergaria a Velha, intentaram a presente Ação de Impugnação da Resolução de Ato em Benefício da Massa insolvente, contra a massa insolvente de C... , representada pela Srª. Administradora de Insolvência Dr.ª D..., com domicílio profissional na Rua (...), Santa Maria da Feira.

Para o efeito, e em síntese alegaram que o distrate de doação, objeto da resolução, se justificou por falta de cumprimento por parte da insolvente da condição estabelecida na doação, no sentido de prestar a E..., filho dos autores, tal como a insolvente, todos os cuidados e assistência de que ele necessitasse, bem assim, que desconheciam totalmente nesse momento a situação económica da insolvente.

A ré ofereceu contestação na qual, para além do mais, impugnou o invocado incumprimento da condição aposta na doação e o alegado desconhecimento da situação económica da insolvente por parte dos autores, seus pais, mais afirmando que a situação em causa justifica o enquadramento nos termos dos artº 120 e 121º nº 1 alínea b) do CIRE.

Os autores responderam, reiterando o já por si alegado na p.i., quanto à natureza do negócio em causa e dos encargos impostos na doação que outorgaram a favor da sua filha.

            Teve lugar audiência prévia, em conformidade com o disposto no artigo 591.º do nCPC, na qual foi proferido despacho saneador tabelar e se considerou disporem os autos de todos os elementos que, sem necessidade da produção de prova, permitiam conhecer do mérito da causa, fixando-se os factos provados e proferiu-se decisão em que se julgou improcedente a presente acção, com a consequente absolvição do pedido da ré e mantendo-se, em conformidade, os efeitos da resolução operada pela administradora da insolvência, aqui impugnada, ficando as custas a cargo dos autores, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que gozam.

            Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os autores A... e B..., recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 128), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1. Não podem os Recorrentes concordar com a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, a qual julgou totalmente improcedente a presente acção pelos Recorrentes intentada com vista à anulação da resolução do negócio promovida pela Exma. Sra. Administradora de Insolvência.

2. De facto, veio o tribunal a quo a enquadrar a situação em discussão nos presentes autos no âmbito da alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE.

3. Considerando que o negócio em questão constitui um negócio gratuito, enquadrável em tal alínea e assim passível de resolução incondicional, sendo desta forma despicienda a produção de prova.

4. Ora, não discutem os Recorrentes, por decorrer diretamente da lei, que os negócios enquadráveis em tal normativo legal são negócio resolúveis incondicionalmente e sem dependência de quaisquer requisitos adicionais.

5. Não pressupondo assim como acontece no artigo 120.º a existência de má fé de entre outros requisitos.

6. Contudo, não concordam os Recorrentes que se enquadre a situação em apreço na alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º e assim na definição de actos gratuitos para efeitos dessa alínea.

7. Na verdade, como resulta dos autos, em 28 de Julho de 2009 foi celebrada escritura de doação em que foram designadamente e no que ora interessa, intervenientes os ora Recorrente e a sua filha C..., tendo através de tal escritura de doação, sido doado à filha dos Recorrentes, ora insolvente, um imóvel, o qual se encontra melhor identificado nos autos, prédio esse que o Recorrente A... havia adquirido por partilha.

8. Tal doação foi efetuada pelos Recorrentes numa tentativa de reaproximação à sua filha, destinando-se o imóvel a ser a residência de C....

9. Sendo que a doação foi realizada com a condição da donatária prestar ao seu irmão E..., “todos os cuidados e a assistência de que ele necessite, inclusive assistência médica e medicamentosa,” ficando ainda obrigada a prestar-lhe alimentos, se os rendimentos do mesmo fossem insuficientes.

10. Tal condição não foi estipulada para o futuro, mas sim, para que fosse cumprida a partir da celebração da escritura.

11. De facto, como resulta também dos autos, designadamente do alegado pelos Recorrentes na sua petição inicial e do documento pelos mesmos juntos com tal articulado como documento n.º 6 e 10, o seu filho E... necessita de apoio de terceira pessoa.

12. Sendo esse apoio garantido pelos Recorrentes, mas pretendendo os mesmos, atendendo à sua idade e problemas de saúde, começar a transferir o acompanhamento do mesmo para a irmã C....

13. A insolvente não cumpriu no entanto a condição imposta, não tendo em momento algum prestado qualquer assistência ao irmão, ou procurado sequer saber do bem estar do mesmo.

14. Continuando assim os Recorrentes onerados com tal situação, pelo que, verificando-se o incumprimento das condições impostas com a doação e de cujo cumprimento dependia a manutenção de tal doação, procederam os Recorrentes ao distrate da mesma.

15. Ora, entendem os Recorrentes que a situação em apreço não se poderá enquadrar na já indicada alínea, que confere a possibilidade de resolução incondicional do negócio por se tratar de um acto gratuito.

16. Entendendo de facto os Recorrentes que o distrate de doação não se poderá considerar como um negócio gratuito para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE, uma vez que quando criada, tal norma teria certamente subjacente uma ratio e pressupostos que não se verificam na situação em apreço, designadamente negócios gratuitos propriamente ditos, como ocorreria se a insolvente tivesse doado um bem de sua propriedade a outrem, o que no entanto não ocorreu no caso em apreço.

17. De facto, o negócio ora realizado encontra-se intrinsecamente conexionado com o primeiro negócio, mais precisamente o de doação do imóvel pelos Recorrentes à insolvente, doação essa realizada sob condição e que assim, desde que verificado o incumprimento da condição sempre daria direito à resolução da doação.

18. Pelo que, o bem em questão nunca entrou na esfera patrimonial da insolvente de forma plena, uma vez que a consolidação da propriedade de tal bem na sua esfera sempre esteve dependente do cumprimento da condição imposta.

19. Assim, não tendo tal condição sido cumprida decorridos cerca de dois anos e meio sem que a insolvente cumprisse a condição e encontrando-se a mesma beneficiada relativamente aos restantes filhos dos Recorrentes, entenderam os mesmos por bem resolver a doação.

20. Distrate esse que no entanto sempre poderia ser obtido por via judicial se não aceite pela insolvente, como decorre do artigo 966.º do Código Civil.

21. Não se podendo assim, salvo melhor entendimento, integrar a situação ora em apreço na alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º por não se tratar a mesma de um negócio gratuito propriamente dito, por meio do qual a insolvente sem qualquer contrapartida permitiria aos Recorrentes uma vantagem de carácter patrimonial.

22. Pelo contrário, no caso em apreço, o bem limitou-se a, não se verificando o cumprimento da condição imposta para a doação, regressar ao património dos doadores.

23. Pelo que, deverá a douta sentença recorrida ser alterada, reconhecendo-se que a situação em apreço não se inclui na alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE.

24. Sendo que, não se enquadrando no entendimento dos Recorrentes a presente situação na referida alínea e artigo, cairá a mesma no previsto no artigo 120.º do mesmo diploma, no que concerne à resolução de negócios em benefício da massa insolvente.

25. Tornando-se assim necessário avaliar da verificação dos pressupostos de resolução do negócio previstos no artigo 120.º.

26. Ora, a verificação de tais requisitos imporia a produção de prova na acção pelos Recorrentes intentada, nomeadamente a produção da prova testemunhal pelos mesmos indicada, permitindo assim aos Recorrentes o contraditório em relação à má-fé necessária para a procedência da resolução do negócio.

27. Pelo que, em face do exposto, entendem os Recorrentes que deverá a douta sentença recorrida ser revogada, sendo substituída por outra que reconheça não se enquadrar a situação em apreço na alínea b) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE, sendo assim determinado que os presentes autos baixem à primeira instância para que seja produzida a prova indicada pelos Recorrentes para verificação dos requisitos exigidos no artigo 120.º do mesmo diploma legal.

28. Assim entendem os Recorrentes que violou o tribunal a quo os artigos 120.º e 121.º do CIRE, bem como os artigos 591.º e 595.º do Código de Processo Civil.

Terminam, peticionando a procedência do seu recurso, com a consequente revogação da de decisão recorrida, devendo permitir-se a produção de prova por si indicada, para verificação dos requisitos exigidos pelo artigo 120.º do CIRE.

            Não foram apresentadas contra-alegações.

           

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.  

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado no artigo 635, n.º 4 do nCPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se a situação sub judice se enquadra na previsão do artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE.

            É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1º - O processo de insolvência respeitante a C... foi iniciado a 24 de Maio de 2012 e a sentença que declarou a insolvência foi proferida a 25 de Junho de 2012.

2º. – No dia 8 de Fevereiro de 2012, os autores, a insolvente e F..., então marido desta outorgaram o que denominaram distrate de doação, nos termos que constam da certidão de fls. 44 e seguintes a respeito do prédio urbano, composto de casa de habitação com superfície descoberta, sito em (...), freguesia de (...), concelho de Albergaria a Velha, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (...), com o valor patrimonial tributário para efeitos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis de € 31.530,00 com igual valor atribuído, descrito na Conservatória do Registo Predial de Albergaria a Velha sob o numero QUATRO MIL OITOCENTOS E CINQUENTA E DOIS da freguesia de (...), tendo declarado, para além do mais, que por este modo distratam aquele contrato de doação e a 2ª. Outorgante investe os primeiros outorgantes no domínio e na posse do bem imóvel objeto desta escritura.

3º - A doação objeto do mencionado distrate fora celebrada a 28 de Julho de 2009, nos termos constantes da certidão de fls. 38 e seguintes, relativa aos imóveis alí identificados, incluindo o mencionado em 2), declarando, para além do mais, que a doação é feita com a condição de as donatárias prestarem a E..., filho dos autores, tal como a insolvente, todos os cuidados e assistência de que ele necessitasse, ficando ainda obrigada a prestar-lhe alimentos, se os rendimentos do referido E...forem insuficientes para tal.

4º - Por carta datada de 19 de Dezembro de 2012 e recebida pelos autores a 21 desse mês, a Srª. Administradora de Insolvência procedeu e comunicou a resolução do distrate da doação nos termos que constam de fls. 16 e 17, concluindo “estarem verificados todos os requisitos da resolução em benefício da massa insolvente estabelecidos nos arts. 120.º, nº1 e nº3, e 121.º, nº1, alínea b) do CIRE (…), declara-se incondicionalmente resolvido e ineficaz o referido distrate de doação”.

            Se a situação sub judice se enquadra na previsão do artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE.

            Alegam os autores, ora recorrentes, que a factualidade que subjaz aos presentes autos não se enquadra na previsão do preceito em referência, porque o negócio em causa não pode ser considerado como gratuito, uma vez que a doação que outorgaram a favor da sua filha, ora insolvente, ficou sujeita ao encargo de esta prestar cuidados e assistência ao seu irmão, o que aquela não cumpriu, razão pela qual procederam ao distrate da referida doação, em face do que, consideram, enquadrar-se a situação em apreço na previsão do artigo 120.º do CIRE, desde que verificados os respectivos pressupostos, para o que lhes será lícito produzir prova para tal, sempre tendo actuado de boa fé, desconhecendo as dívidas da sua filha.

            Ao invés, na sentença recorrida, considerou-se que o distrate da doação é passível de resolução incondicional por, em súmula, do mesmo não resultar para a insolvente qualquer vantagem ou contrapartida de avaliação pecuniária como correspectivo de o prédio em causa ter reingressado na propriedade plena de seus pais, pelo que se reveste de carácter gratuito, celebrado cerca de 3 meses antes do início do processo de insolvência, apenas visando manter o imóvel na propriedade dos pais da insolvente, pelo que se integra na previsão do artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE e, por isso, susceptível da resolução incondicional ali consagrada.

            Dispõe o artigo 120.º, n.º 1, do CIRE, nas redacção que lhe foi dada pela lei 16/2012, de 20 de Abril, que:

“Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados ou omitidos dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.”.

            Acrescentando-se no seu n.º 2, que se consideram prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.

            Nos dizeres de Fernando de Gravato Morais, in Resolução Em Benefício Da Massa Insolvente, Almedina, 2008, a pág. 47, com a figura em causa tem-se em vista dar prevalência aos interesses supremos da generalidade dos credores da insolvência, com sacrifício dos interesses de quem negoceia ou contrata com o insolvente, visando reintegrar no património da massa insolvente bens ou direitos que assim não fora seriam atribuídos a alguns credores do insolvente, em detrimento de outros, o que conduziria a um empobrecimento do património da massa, os quais (bens ou direitos), assim, passam a satisfazer os direitos de todos os credores, em obediência ao carácter de “execução geral” dos bens do insolvente.

            Decorre do n.º 1 do preceito acima citado que se exige, para que se possa lançar mão da figura da resolução em benefício da massa insolvente que se esteja perante a prática de actos prejudiciais à massa, cuja definição nos é dada pelo seu n.º 2, desde logo aparecendo em 1.º lugar os actos que diminuam ou frustrem a satisfação dos credores da insolvência.

            Nos dizeres de Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado (Reimpressão) Vol. I, Quid Juris, 2006, a pág. 434, por actos prejudiciais devem entender-se os que, por algum dos modos aí referidos, afectam o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos, ali se incluindo todos os que implicam a diminuição do valor da massa insolvente, bem como todos os demais que tornem a satisfação do interesse dos credores mais difícil ou mais demorada, isto sem prejuízo da presunção a que se alude no n.º 3 do mesmo preceito.

            O mesmo entendimento é o perfilhado por Gravato Morais, ob. cit., a pág. 50, quando ali refere que ali se enquadra “qualquer acto que enfraqueça (qualitativa ou quantitativamente) a garantia patrimonial” e que, por isso, pode e deve ser atacado.

            Mas para que o acto/negócio em causa possa ser objecto de resolução em beneficio da massa insolvente, exige-se, ainda, a má fé do terceiro, a qual, nos termos do n.º 5 do citado artigo 120.º do CIRE, radica na verificação de qualquer uma das circunstâncias ali referidas, a saber:

            a) conhecimento, à data do acto, de que o devedor se encontra em situação de insolvência;

            b) do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente;

            c) do início do processo de insolvência.

            Este conhecimento por parte do terceiro de uma das circunstâncias ali mencionadas, basta-se com um entendimento amplo, por ser o que melhor se coaduna com a intenção de protecção dos credores da insolvência, pois que e seguindo mais uma vez F. Gravato Morais, ob. cit., a pág.s 65 e 66, “o terceiro que se relaciona com um determinado sujeito, sobretudo na área comercial, deve ter uma particular prudência, uma justificada cautela na contratação, sem ser, portanto, demasiado ingénuo. Deve procurar apreciar, em termos gerais, o estado patrimonial daquele com quem estabelece negociações, sob pena de suportar na sua esfera jurídica o risco da resolução do acto em benefício da massa insolvente.”.

            E a fl.s 67, refere-se que a circunstância da alínea a), se basta com a cognoscibilidade pelo devedor de alguma das hipóteses consagradas no artigo 20.º, n.º 1, do CIRE.

            E a da alínea b), com o conhecimento por parte do terceiro do carácter prejudicial do acto e do conhecimento por esse sujeito da situação de insolvência iminente do devedor.

            No caso desta alínea, como o referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, 2009, a pág. 205, trata-se de uma situação de facto, em que se verificam os requisitos para a declaração de insolvência, mas ainda não verificada judicialmente, mediante a correspondente sentença declarativa.

            A resolução a que ora nos vimos referindo e que os recorrentes pretendem ser a aplicável nos autos, é a designada “resolução condicional” e que depende da verificação dos requisitos ora enumerados.

            A par desta “resolução condicional”, trata o artigo 121.º do CIRE, da denominada “resolução incondicional”, que determina serem resolúveis em benefício da massa insolvente os actos/negócios indicados em cada uma das suas alíneas, sem dependência de quaisquer outros requisitos, resultando deste preceito que o regime de resolução incondicional nele estabelecido tem um carácter taxativo, no sentido de que se aplica apenas aos actos previstos no seu n.º 1, desde que verificados/praticados nos limites temporais nelas fixado e dispensando o requisito da má fé do terceiro – neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., a pág. 437.

            A alínea ora em causa é a b), do n.º 1, do artigo 121.º do CIRE, de acordo com a qual:

            “São resolúveis em benefício da massa insolvente os (…):

            Actos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio da herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais;”.

            In casu, mostram-se respeitados os limites temporais ali estabelecidos, tudo residindo na questão de saber se o distrate da doação que lhe havia sido feita pelos seus pais, por parte da insolvente, se pode ou não qualificar como um acto gratuito para os efeitos do preceito ora em análise.

            Em face da factualidade provada é indubitável que os pais da insolvente outorgaram a favor desta uma doação, tendo como objecto o imóvel identificado na respectiva escritura pública, sendo que a doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente – cf. artigo 940.º, n.º 1, do Código Civil.

            Doação que, cf. artigo 954.º, deste Código, tem como principal efeito a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito objecto daquela e que pode ser onerada com encargos, as designadas cláusulas modais, como resulta do artigo 963, do Código Civil, que se traduzem na imposição ao beneficiário da doação, do dever de adoptar uma certa conduta, a favor do doador ou de terceiro, mas que o donatário só é obrigado a cumprir senão dentro dos limites do valor da coisa ou do direito doado (cf. n.º 2 deste preceito), que, por isso, não correspondem a prestação correspectiva da atribuição do doador e nada mais determinando o incumprimento dos deveres impostos ao donatário que a possibilidade de o doador resolver a doação, desde que tal direito fique previsto na própria doação, em conformidade com o disposto no artigo 966.º do Código Civil (hipótese de que não temos de nos ocupar porque não é esse o pedido efectuado nos presentes autos, apenas nos incumbindo de determinar se se trata ou não de acto gratuito para os efeitos e termos do artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE, com vista à possibilidade de resolução a favor da massa insolvente, nos termos requeridos).

            No caso em apreço, a doação foi onerada com o encargo para a donatária de prestar ao seu irmão, João Manuel, todos os cuidados de assistência de que ele necessitasse, o que, manifestamente, se traduz numa cláusula ou encargo modal.

            Será que como pretendem os autores, ora recorrentes, a fixação de um encargo ou cláusula modal, transforma uma doação (típico negócio gratuito) em oneroso?

            Pensamos que não!

            Efectivamente, como comummente reconhecido pela doutrina e jurisprudência, os encargos modais constituem simples limitações ou restrições à prestação, com carácter de liberalidade, do doador e não como seu correspectivo, não constituindo o encargo imposto ao donatário o correspectivo da prestação recebida, mas apenas uma limitação ou restrição dela – neste sentido, P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1981, a pág.s 258 e 261.

            Também Manuel Batista Lopes, in Das Doações, Almedina, 1970, a pág.s 111 e 112, refere, fazendo a distinção entre negócios onerosos e gratuitos, que “«O negócio é oneroso quando à atribuição a favor de um sujeito corresponde uma atribuição a cargo do mesmo, ou à eventualidade da atribuição a seu favor a eventualidade duma atribuição a seu cargo; doutro modo é gratuito». Está neste último caso a doação”.

            Ali acrescentando que:

            “De um contrato bilateral não pode tratar-se, porque o encargo, quando o carácter de uma doação deve ser mantido, não pode ter o significado de «correspectivo». A maior parte das vezes tratar-se-á de uma prestação, que, segundo a representação das partes, deve ter lugar com os meios da atribuição, sem exceder, porém o seu valor, que, portanto, não constitui um equivalente da atribuição, mas sim uma diminuição do seu valor, uma restrição».” E ali finalizando que:

“«O modus nunca se torna correspectivo da disposição negocial e por isso a causa do negócio atributivo continua a ser liberal, sem mistura de um elemento de onerosidade.

            Por isso deve entender-se que o modo, ao contrário da condição e do termo, representa verdadeiramente uma vontade acessória relativamente à vontade da liberalidade».”.

            Também na RLJ, ano 102.º, a pág.s 38 e 39, se refere que a obrigação ou o dever contraído pelo donatário não representa uma contraprestação, e muito menos o correspectivo ou equivalente, da atribuição patrimonial que lhe é feita, mas um simples ónus, restrição ou limitação dela.

            Idêntica é a opinião expressa por F. Gravato Morais, ob. cit., a pág.s 86 e 87 e 90, que ali identifica como negócios gratuitos todos aqueles em que o devedor insolvente procedeu à alienação de bens sem que exista a respectiva contrapartida, importando atribuições patrimoniais apenas para uma das partes, de que é exemplo a doação, ainda que sujeita a cláusulas modais, dada a já notada inexistência de qualquer correspondência destas com a atribuição patrimonial do doador, configurando um acto à margem da doação, insusceptível de afastar a natureza gratuita do acto e devendo qualificar-se, em consequência, tais actos como realizados a título gratuito, para efeitos do art.º 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE.

            A nível jurisprudencial, por último e neste sentido, veja-se, v.g. o Acórdão do STJ, de 28/02/2013, Processo n.º 684/10.1TBPTG.E1.S1, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj, em que se refere que “pelo facto de a doação ter sido onerada com o citado encargo, aceite pela ré, não deixa de constituir uma liberalidade.”.

            Igualmente, para efeitos fiscais, o artigo 1.º, n.º 3, al. g), do Código do Imposto do Selo, também considera como transmissão gratuita o distrate de doação.

            Constituindo, assim, como constitui, a doação em causa um acto de natureza gratuita, com carácter de liberalidade, embora onerada com o supra citado encargo, também o distrate da mesma, ao anular os efeitos da doação, designadamente a transferência da propriedade do bem doado para a titularidade jurídica da donatária, reingressando na esfera jurídico-patrimonial dos seus pais e, por consequência, a fazer com que o respectivo bem deixe de responder pelas dívidas da insolvente, se traduz num acto de natureza gratuita, não envolvendo, para a insolvente, qualquer contrapartida económica, e prejudicial para os credores, em face do que, como já referido na sentença recorrida, se tem de considerar o acto em causa como enquadrável no disposto no artigo 121.º, n.º 1, al. b), do CIRE e, por isso, por verificados os limites temporais ali estabelecidos, susceptível de resolução incondicional em benefício da massa insolvente, tal como decidido na sentença recorrida.

            Assim sendo, soçobram as razões invocadas pelos recorrentes com vista à revogação da decisão recorrida, a qual fez a correcta aplicação da lei à situação sub judice, sendo a pretendida resolução oponível aos autores, pelo que, nos termos expostos, é de manter a sentença recorrida, improcedendo o presente recurso.

Nestes termos se decide:       

Julgar improcedente o presente recurso de apelação e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhes foi concedido.

            Coimbra, 10 de Julho de 2014.

Arlindo Oliveira (Relator)

Emídio Francisco Santos

Catarina Gonçalves