Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
331/13.0JALRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
AMNISTIA
PERDÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.2º, N.º 1, DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2.8; 13º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA.
Sumário:
I – Limitando a abrangência do perdão e da amnistia previstos na Lei 38-A/2023, de 02/08, e entre o mais, às sanções penais pelos ilícitos cometidas por agente que à data da prática do facto não tivesse mais de 30 anos de idade, o art. 2.º/1 respetivo em nada briga com o art. 13.º/2 da Constituição da República.

II – A proibição de tratamento desigual dos cidadãos proscreve o arbítrio, mas não veda ao legislador democrático diferenciações razoavelmente fundadas em diversidade de condições dos beneficiários de certa norma relativamente a quem do seu âmbito seja excluído.

III – A juventude, à data da prática do facto, daqueles a quem sejam concedidos a amnistia ou perdão, presta-se justamente a ser fundamento daquela diferenciação, para mais sendo uma condição que nos próprios termos da Constituição da República legitima o Estado, e até o compele, a políticas de favorecimento em variados planos.

IV – Enfim, a definição legal de um certo limite etário para que alguém beneficie da amnistia ou do perdão, com a inerente exclusão de quem o ultrapasse, como é da natureza dos limites, também não é geradora de desigualdade constitucionalmente censurável, não havendo imposição de específico padrão ou sequer de uniformidade nos diversos domínios em que a juventude funde diferenciações pelo legislador, que nisso tem uma ampla margem de avaliação e decisão política.


Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral: *

ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. Por acórdão proferido nos autos a 30/06/2017 e transitado em julgado a 15/09/2017, procedeu-se ao cúmulo jurídico, com a imposta destes autos, de penas diversas que em outros processos tinham sido aplicadas ao condenado,

AA, solteiro, trabalhador da construção civil, natural de ..., ..., nascido a ../../1977, filho de BB e de CC, actualmente recluso no estabelecimento prisional ... e antes com residência na Av. ..., ..., ...,

sendo as quatro seguintes penas únicas as que actualmente cumpre:

a) dois anos e três meses de prisão;

b) um ano e um mês de prisão;

c) um ano de prisão; e

d) sete anos e seis meses de prisão.

2. Por despacho de 14/10/2023, e a respeito da eventualidade da aplicação do perdão ou amnistia previstos na Lei 38-A/2023, de 02/08, foi determinado que nos termos respectivos deles não beneficiasse o condenado, na medida em que à data da prática dos factos que valeram as referidas condenações tinha já mais de 30 anos de idade.

3. É desse despacho que recorre o condenado, sob argumento de que por ser violadora do princípio da igualdade, previsto no art. 13.º/1/2, da Constituição da República Portuguesa (CR), a norma do art. 2.º/1, daquela lei, que exclui das medidas de graça tomadas quem à data dos factos criminosos tivesse mais de 30 anos de idade, se faz materialmente inconstitucional, devendo ser desaplicada, com isso beneficiando ele afinal do perdão, a incidir em cada uma daquelas penas únicas. Das motivações de recurso extrai as seguintes conclusões:

« I – O arguido insurge-se contra a decisão sob recurso por referência à inconstitucionalidade parcial da Lei 38-A/2023, de 02/08, que estabelece o perdão de penas e amnistia de infracções.

II – Decidiu o tribunal a quo que o regime do perdão e da amnistia previsto na Lei 38-A/2023, de 02/08, não tem aplicação ao caso do arguido, nos termos do art. 2.º/1, pelo facto de o mesmo, à data dos factos pelos quais se encontra condenado, ter já 36 anos de idade.

III – Estaria o recorrente em condições de beneficiar dos perdões de um ano de prisão em cada uma das penas únicas determinadas nos quatro cúmulos que lhe foram determinados, não fosse o tribunal a quo ter aplicado o art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08.

IV – Sucede que, ao impor um limite de idade fixado nos 31 anos de idade menos 1 dia, o art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08 (bem como a decisão de que se recorre e que o aplicou), incorre em clara discriminação, sem fundamento razoável, relativamente a outros cidadãos com idade superior àquela, motivo pelo qual se encontra ferido de inconstitucionalidade material.

V – Conforme se decidiu na douta sentença proferida no processo 29/23...., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Competência Genérica ... (J...), que amnistiou, ao abrigo da Lei 38-A/2023, de 02/08, um arguido cuja idade ultrapassa o limite definido no art. 2./1, por entender que a imposição de um limite etário à amnistia se encontra ferida de inconstitucionalidade material, “por violação do núcleo fundamental do princípio da igualdade, na modalidade de proibição do arbítrio, previsto no art. 13.º/2, da CR”, também no despacho sob recurso se deveria ter declarado a inconstitucionalidade do limite etário estabelecido.

VI – O art. 13.º/1, da CR, consagra que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, estabelecendo o n.º 2 que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

VII – No âmbito de aplicação da norma, a ideia de igualdade recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis (Ac. TC n.º 42/95, relator Messias Bento), devendo a condicionalidade ser de carácter geral quanto aos destinatários e objectiva no seu fundamento – apud a sentença proferida no 29/23...., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Competência Genérica ... (J...).

VIII – Ao ter definido como um dos critérios de distinção para aplicação da lei 38-A/2023, de 02/08, uma determinada idade, o legislador não oferece um critério penalístico para aquele limite, sendo que o estabelecimento do limite etário é compreendido como uma anomalia e soa comunitariamente como injustiça, uma vez que o Estado não oferece qualquer fundamento objectivo para a diferenciação – vide sentença proferida no processo 29/23...., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Competência Genérica ... (J...).

IX – Fere os mais elementares étimos republicanos de um Estado de direito, que além de democrático, é laico, vir o legislador, por ocasião e sob pretexto de um evento de relevo mundial organizado pela Igreja Católica dentro das suas fronteiras, e como que comemorando a visita do Papa ao nosso país, criar uma amnistia de crimes e um perdão de penas, pois tal produção legislativa transparece a existência de uma simbiose anacrónica entre a República Portuguesa e a Igreja Católica sem que, contudo, tenha tido a coragem de a verter claramente na letra da Lei, uma vez que justificou o decretamento da amnistia e perdão de penas somente com a realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – vide art. 1.º da Lei 38-A/2023, de 02/08.

X – Porém, se, e na verdade, embora sem o reconhecer, o legislador consagrou uma amnistia de crimes e perdão de penas imbuído por princípios de doutrina cristã e católica (pois de outra forma não se justificaria o decretamento da amnistia e perdão de penas no contexto em que o foi), devia não ter olvidado que a discriminação entre pessoas, ainda mais em função estritamente da idade, atenta contra a basilar matriz cristã que serviu de pretexto para a amnistia e perdão de penas legislada.

XI – A fixação da idade de 30 anos (31 anos menos um dia), como limite à aplicação da amnistia, descrita na norma do art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08, é materialmente inconstitucional, por ofensa à norma do art. 13./2, da CR, o que desde já se argúi e que deve ser declarado com todas as consequências legais.

XII – Em face da inconstitucionalidade parcial quantitativa do segmento da norma “30 anos” ínsito no art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08, deveria o despacho sob recurso ter decidido aplicar a restante norma, expurgada da inconstitucionalidade que a contamina, declarando perdoados ao arguido um ano de prisão na pena determinada em cada um dos cúmulos jurídicos elaborados e que o mesmo se encontra a cumprir ou que tem ainda para cumprir, nos termos do disposto nos n.º 1 e 4, da lei 38-A/2023, de 02/08.

XIII – Violadas foram, entre outras, as normas dos art. 13.º e 202.º, da CR. » 

4. Admitido o recurso, respondeu-lhe o MP pugnando por ser-lhe negado provimento, para tanto argumentando com a total correcção da decisão recorrida, cujo sentido é imposto pela norma do art. 2.º/1 da Lei 38-A/2023, de 02/08, a qual por seu lado não padece de inconstitucionalidade alguma, designadamente em nada brigando com o princípio da igualdade, segundo previsto no art. 13.º/1/2, da CR. Dessa resposta extrai igualmente conclusões, que são as seguintes:

« I – Nos autos foi decidido não aplicar o perdão de um ano aprovado pela Lei 38-A/2023, de 02/08, à pena única em que o recorrente foi condenado, na medida em que na data da prática dos factos, aquele contava com mais de 30 anos de idade.

II – Os factos pelos quais o recorrente foi condenado foram praticados em 9, 18 e 28 de Novembro de 2013. O recorrente nasceu no dia ../../1977, pelo que na data da prática dos factos contava com 36 anos de idade.

III – Insurge-se o recorrente contra o art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08, entendendo que o limite de idade é uma violação do art. 13.º, da CR, e como tal inconstitucional.

IV – No caso em apreço, motivado pela juventude dos condenados na data da prática dos factos, decidiu o legislador conceder e aprovar uma medida de clemência e estabeleceu o limite da idade.

V –a lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, portanto em número indeterminado, a delimitação do seu âmbito de aplicação está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não padece de inconstitucionalidade a limitação constante do n.º 1 do artigo 2.º”.

VI – O despacho que decidiu pela não aplicação da Lei 38-A/2023, de 02/08, deverá manter-se, uma vez que o art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08, não é inconstitucional. »

5. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que acompanha e proficientemente desenvolve os argumentos expendidos na resposta do MP em primeira instância, igualmente pugnando pela negação de provimento ao recurso e consequente manutenção do decidido, após o que, cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), nada mais se acrescentou e, enfim, na sequência de exame preliminar a que se não patentearam dúvidas relevantes, sem vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. Sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, e no caso concreto e como destas claramente se extrai, está em causa matéria exclusivamente de direito e que é tão só a de determinar se o art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08, se faz materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade, segundo disposto no art. 13.º/1/2, da CR, nesse caso cabendo a respectiva desaplicação e, com o consequente afastamento da limitação por ele prevista, determinar que o recorrente beneficie do perdão de penas nessa lei disposto.

1.2. No mais, não sendo a decisão recorrida uma tal que conhecesse a final do objecto do processo (nos termos do art. 97.º/1-a, do CPP), cabe julgamento do recurso em conferência (art. 419.º/3-b, do CPP).   

2. Os factos, os dados do processo e o despacho recorrido:

2.1. O condenado cumpre sucessivamente as penas únicas que em cúmulo jurídico de outras antes impostas foram determinadas no acórdão de 30/06/2017, transitado em julgado a 15/09/2017, e que são as seguintes:

a) Dois anos e três meses de prisão, em cúmulo (o 1.º) das aplicadas nos processos  630/10.... e 682/09...., no primeiro por um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º/1-f, do CP, cometido a 16/12/2010, e no segundo por um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A/1-a, do CP, cometido entre 19/10/2009 e Dezembro de 2010;

b) Um ano e um mês de prisão, em cúmulo (o 2.º) das aplicadas nos processos 330/12.... e 106/12...., no primeiro por um crime de furto simples na forma tentada, p. e p. pelos art. 22.º, 23.º e 203.º, do CP, cometido a 04/07/2012, e no segundo por um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º/1, do DL 2/98, de 03/01, cometido a 20/02/2012;

c) Um ano de prisão (o 3.º “cúmulo”), esta relativa somente à pena aplicada no processo 574/12...., por um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º/1/2, do DL 2/98, de 03/01, cometido a 07/12/2012; e

d) Sete anos e seis meses de prisão, em cúmulo (o 4.º) das aplicadas nos processos 40/13...., 667/13...., 278/13...., e ainda neste processo 331/13...., no primeiro por um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210.º/1, do CP, cometido a 04/12/2013, no segundo por um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º/1-b, do CP, cometido em 03/12/2014, no terceiro por dois crimes de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º/1/2, do DL 2/98, de 03/01, e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º/1-a-b, do CP, cometidos a 24/07/2013, e no quarto (este), por um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º/1-a-b, do CP, um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º/1-e/3, do CP, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º/1-b, do CP, dois crimes de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º/1/2, do Dl 2/98, de 03/01, e um crime de dano qualificado, p. e p. pelo art. 213.º/1-a, do CP, estes cometidos entre 09/11/2013 e 28/11/2013.

2.2. O condenado nasceu a ../../1977.

2.3. É o seguinte o teor do despacho recorrido, de 14/10/2023:                 

« Da não aplicação da lei do perdão e amnistia:

Atenta a idade do arguido AA à data dos factos pelos quais se mostra condenado nos autos (36 anos de idade), não tem aplicação o regime do perdão e da amnistia previsto na Lei 38-A/2023, de 02.08.

(…) »

3. Apreciando

3.1. Desde logo, e como que precisando melhor a delimitação do objecto do recurso como acima a consignámos, cabe notar que em causa está, segundo damos por evidente, uma questão de fiscalização concreta e sucessiva (nos termos do art. 204.º, da CR) da constitucionalidade da norma do art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08, em vista da sua eventual desaplicação, na hipótese de com efeito se concluir ser inconstitucional, e não da constitucionalidade da decisão recorrida em si mesma, que, assim não entendendo, com efeito a aplicou – decisão quanto à qual e quando muito se diria que, no caso de assentar em errado juízo sobre aquela questão, enfermaria de erro de direito que nos termos do art. 412.º/2-a-b, do CPP, cumpriria a este tribunal de recurso reparar, revogando-a ou modificando-a em conformidade.

E esclarecido isto, dir-se-á ainda que a norma constitucional cuja suposta vulneração, pelo dito art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 03/08, importa equacionar, é e é só a do art. 13.º/2, da CR, sendo destituída de sentido útil a menção do recorrente, na sua conclusão XIII, a que além dela e “entre outras” aquele dispositivo violaria também o art. 202.º da CR: entendendo que com ele resultassem violadas “outras” normas (ou princípios) constitucionais, impunha-se ao recorrente indicar quais e porquê, o que todavia de maneira nenhuma faz, muito menos com precisão e encadeamento de hipotéticas razões e argumentos, decerto não cabendo que o tribunal sequer o convidasse, nos termos do art. 417.º/3, do CPP, a aperfeiçoamento de conclusões, por isso que tais indicações as omite tanto nestas quanto nas próprias motivações, assim inviabilizando hipotético aperfeiçoamento porque com este não poderia produzir-se modificação do âmbito de recurso naquelas definido, como explicitamente resulta do n.º 4 do mesmo art. 417.º

Já no que tange à expressa invocação de violação também do art. 202.º, da CR (todavia sem indicação de número), simplesmente não se lobriga o alcance respectivo. Desde logo, a disposição do art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 03/08, não tem, seja em qual segmento for do texto respectivo, o potencial de minimamente conflituar ou de algum jeito contender com qualquer das prescrições dos n.º 1 a 4 daquele art. 202.º, da CR, e mesmo admitindo que o recorrente tivesse tido em vista, isso sim, a decisão recorrida em si mesma, porventura nela à e à luz do n.º 2 descortinando demissão do tribunal a quo relativamente ao dever, ali imposto, de assegurar a defesa dos seus direitos constitucionais, tratar-se-ia tão só de imputar àquela decisão um erro de direito, cuja verificação é contingente da confirmação de padecer o dito e aplicado art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08, da suposta inconstitucionalidade apontada.

Em todo o caso, essa alegação de suposta violação também do art. 202.º, da CR, surge, naquela conclusão XIII, sem arrimo a argumentação ou sequer referência alguma nas motivações, nisso por conseguinte e logicamente em nada as resumindo, antes relativamente a elas inovando, e mostrando-se por conseguinte espúria (desconforme com o art. 412-º/1, do CPP), pelo que nem mesmo haveria aqui lugar a conhecê-la, sendo somente a crédito de melhor esclarecimento que sobre ela se deixam as linhas antecedentes.

3.2. Indo agora à substância da questão, registar-se-á em primeiro lugar que não é exacto o que refere o recorrente quanto a ser a limitação etária prevista no art. 2.º/1 da Lei 38-A/2023, de 02/08, o único factor que o privaria do benefício do perdão, de outro modo incidente em cada uma das penas únicas que tem a cumprir e como determinadas no acórdão de 30/06/2017. Na verdade, entre os crimes pelos quais aquelas penas foram impostas, constam um de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A/1-a, do CP (1.º cúmulo) e dois de condução perigosa de veículo, p. e p. pelo art. 291.º/1-a-b, e por esses não podem os autores respectivos beneficiar do perdão e da amnistia previstos naquela lei, de acordo com o que dispõe explicitamente o respectivo art. 7.º/1-a.ii-c.ii.

É certo que pelos mais crimes, a não haver quanto a eles outras causas de exclusão, poderia o recorrente, de acordo com o n.º 3 daquele art. 7.º da lei 38-A/2023, de 02/08, em todo o caso beneficiar do perdão, nessa hipótese a incidir sobre cada uma das penas únicas (art. 3.º/5, da dita lei), com a reformulação dos cúmulos que se mostrasse necessária para não bulir com a exclusão dos referidos, mas isso foi coisa que no despacho recorrido se não equacionou e nem era necessário que equacionasse, pela simples razão de que com efeito se perfilou outra causa de exclusão que a todas as penas abrangia (nos termos do art. 2.º/1, da mesma lei, ser superior a trinta anos a idade do recorrente à data da prática de todos os crimes correspondentes), e que, no parecer do tribunal, não cabia desconsiderar.

Por outras palavras, e como damos por óbvio, a verificação dessa causa de exclusão do perdão relativamente a todas as penas dispensava a consideração da hipótese de outras quanto a qualquer destas, e dito isto tenhamos em conta que com efeito não sofre dúvida, e nem o recorrente minimamente o contesta, que logo ao tempo da prática do primeiro dos crimes de que se cura (o de maus tratos, cuja pena se incluiu no primeiro cúmulo, e que foi praticado entre 19/10/2009 e Dezembro de 2010, quanto ao de furto qualificado com pena no mesmo cúmulo incluída tendo sido praticado a 16/12/2010), já o recorrente tinha mais de 30 anos de idade: nascido a ../../1977, completara 31 anos de idade em ../../2008.

3.3. E assim se devendo assentar, evidentemente, em que a decisão de não aplicar o perdão às penas que o recorrente tem a cumprir se mostra em integral conformidade com o disposto pelo aplicado art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08, onde com efeito se dispõe estarem abrangidas por ele somente as sanções relativas aos ilícitos praticados até às 00.00 horas de 19/06/2023 e por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, eis-nos deste modo com o essencial do problema: uma tal limitação, excluindo daquela medida de graça quem, estando em circunstâncias em tudo o resto iguais e sendo autor de crimes igualmente abrangidos, apenas divirja dos beneficiários na idade (ter mais de trinta anos) à data dos factos, briga com o princípio da igualdade, segundo sustenta o recorrente?

Quanto a nós, e salvo o devido respeito por diverso parecer, a resposta não pode ser senão negativa, posição cujo sustento parte da consideração de que a proibição constitucional de discriminação, constante do art. 13.º/2, da CR, e penhor da efectividade da proclamação de igualdade de todos os cidadãos perante a lei, feita no n.º 1 do mesmo art. 13.º, não abrange tratamentos diferenciados na medida da diferença que o justifique, isto é, sem arbitrariedade.

Não cabe duvidar de que as medidas de clemência, como outras quaisquer com que o legislador delimite direitos ou deveres dos cidadãos perante o Estado, devem ser por ele conformadas em obediência aos ditames do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, por conseguinte sem mácula de arbítrio, mas isso não tem de supor uma irrestrita homogeneidade de soluções, implicando somente que a diversidade delas não seja materialmente infundada ou desrazoável. Como é doutrina comum e na resposta ao recurso e no parecer junto deste tribunal enfatiza o MP, citando pertinente jurisprudência do Tribunal Constitucional, “situações substancialmente diferentes exigem um regime diverso; a desigualdade de tratamento para diferentes situações é ainda uma dimensão essencial do princípio da igualdade”.

Ora, independentemente das críticas de política criminal que o recorrente entenda mover ao legislador, e do que no seu parecer fossem as reais motivações deste, putativamente diversas do normativamente declarado, plano dos juízos sobre o acerto e oportunidade políticos em que naturalmente nos não cabe tomar posição, indiscutível é que ao decidir estabelecer um perdão de penas e uma amnistia, aquele de forma expressa manifestou, logo no art. 1.º da lei, que o fazia por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, o que dá inequívoco sentido à opção pela limitação etária na concessão do benefício: reservá-lo à juventude.

Evidentemente, isso resulta em tratamento de favor aos que caibam na pertinente delimitação de “juventude”, ou, reversamente mas com o mesmo valor, de desfavor aos que ali se não incluam, como é o caso do recorrente. Breve, com essa limitação estabelece-se uma discriminação em função da idade, que se diria caber nos termos literais da proibição constante do art. 13.º/2, da CR.

3.4. E todavia, o que releva é que se não pode afirmar essa diferenciação como desrazoável e menos infundada: a juventude, entendida como fase da vida das pessoas em que a formação respectiva está ainda em desenvolvimento ou não consolidada, é de resto e por isso condição que reclama do Estado especiais cuidados, logo por força da constituição (art. 70.º, da CR), sendo inteiramente compreensível que uma medida de graça que na definição da política criminal que lhe compete (art. 161.º/f, da CR), a Assembleia da República decidiu conceder por ocasião da realização de um evento de relevo internacional que precisamente celebra a juventude (sendo irrelevante o contexto religioso), seja por ela reservada… à juventude.

É dizer, a distinção tem fundamento na diferença entre quem é e quem já não é jovem (rectius: entre quem à data da prática dos factos ainda era ou já não era jovem), e não se lobriga onde esteja a desrazoabilidade disso, muito pelo contrário – recordando-se que a juventude, sem aliás notícia de com isso se equacionarem inconstitucionalidades de qualquer sorte, é já de resto a razão de um regime penal especial para jovens (art. 9.º, do CP, e DL 401/82, de 23/09), só para focar o mais saliente de um dos muitos aspectos em que se encontram na legislação penal diferenciações várias, dispensando-lhes tratamento favorável de que está excluído quem o não seja.

Por outro lado, afigura-se-nos que a esse juízo sobre o fundamento da diferenciação aqui em causa, e respectiva razoabilidade (que formulamos em linha com o ainda recentemente decidido nos Ac. deste TRC de 22/11/2023, proferido no processo 39/07.5TELSB-H.C1, relator João Abrunhosa – igualmente citado pelo MP na resposta ao recurso –, e, mesmo muito recentemente, de 24/01/2024, proferido no processo 14/13.2GTCBR.C1, relatora Isabel Valongo), nada altera a questão da concreta idade com que, no caso e em delimitação operante do conceito de juventude, se definiu o tecto máximo de idade para alguém beneficiar da amnistia e do perdão. A de 30 anos, aliás muito acima da fixada no dito regime penal especial para jovens (de 21 anos, nos termos dos art. 9.º, do CP, e 1.º/2, daquele DL 401/82, de 23/09), é ainda compatível com o que nas representações comuns e mesmo dominantes na nossa sociedade se entende como “juventude”, e, em todo o caso, decerto não pretendendo o recorrente que devesse sob pena de inconstitucionalidade ter sido posto o limite abaixo disso (!), do que para si nenhuma vantagem viria, não se vê é que tivesse de ser necessariamente acima, de modo a que aí sim e por abrangê-lo já o beneficiasse.

É que, sendo o tema refractário a uma abordagem nomotética de que resultassem critérios quantitativos precisos, tem de lidar-se com uma certa margem de incerteza, dentro da qual o legislador democraticamente legitimado tem decerto liberdade de avaliação e decisão – nem de resto lhe sendo exigível, segundo cremos, que em todos os diversos domínios jurídicos em que a maior ou menor juventude dos cidadãos seja um dos dados da realidade a disciplinar legislativamente, os limites etários que defina sejam sempre os mesmos, ou que tivesse de haver uma normativa definição geral do conceito.

3.5. Consideração esta última que nos traz, enfim, ao argumento que o recorrente parece ainda querer tirar da ideia de que não haveria substancial diferença, para o efeito de beneficiar ou não das medidas de clemência em causa, entre quem à data da prática dos factos criminosos estivesse por hipótese na véspera de concluir os 31 anos de idade, ainda aquelas lhe aproveitando, e quem como ele tinha àquelas datas já 32 anos de idade (isso à data dos primeiros, note-se, porque aquando dos últimos andava já pelos 36), delas não tirando vantagem; ambos sendo ainda “jovens”, a diferenciação, segue o argumento, torna-se comunitariamente incompreensível, sendo por isso percebida como injusta – e esse seria um sinal patognomónico da desrazoabilidade do fundamento dela, a militar no sentido da inconstitucionalidade respectiva, por ofensa ao art. 13.º/2, da CR.

Ora, ainda a conceder-se em semelhante elasticidade dos limites do conceito para os mais variados fins, o dito argumento nada afinal impressionaria. É que, como tantas vezes sucede, ao que se refere é ao problema dos limites, que todavia em matéria como a que está em causa e, se mais não fosse, ao menos por elementares razões de segurança jurídica, não poderiam ficar por definir. E como sempre quando assim é, estes são atingidos ou não, sem terceira alternativa.

Pensemos em dois coautores do mesmo crime e a quem nada mais diferencie do que a circunstância de na data da comissão dele estar um na véspera de completar 16 anos de idade e tê-los o outro completado nesse mesmo dia (podendo até imaginar-se uma separação por minutos): nos termos do art. 19.º, do CP, o primeiro é inimputável em razão da idade e por isso não responde criminalmente, mas o segundo é já imputável e responde, sem que a quem quer que seja ocorra ver nisso e com aquela norma vulneração do princípio da igualdade e da inerente proibição de arbítrio (!), não obstante ser evidente que a ambos assenta a classificação genérica de jovens (o mesmo se diria se estivesse em causa o limite de 21 anos de idade no contexto do regime penal especial para jovens).  

Os exemplos poderiam multiplicar-se, como é evidente, mas quanto se disse já basta, e sobeja, para solidamente ancorar a afirmação de que com a dita argumentação o recorrente mais não faz do que, em vão, tentar densificar a irrazoabilidade que aponta à diferenciação resultante do art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08, com o que em boas contas não passa de insatisfação com os rigores próprios da verificação de limites.

3.6. Aqui chegados, a conclusão, inarredável, é que sobre ter a decisão recorrida feito correcta aplicação do art. 2.º/1, da Lei 38-A/2023, de 02/08, por força dele excluindo o recorrente do perdão das penas que tem a cumprir, uma vez que ao tempo da prática dos correspondentes crimes tinha já excedido o limite de idade para isso naquela norma previsto, também não teria cabido desaplicá-la, nos termos do art. 204.º, da CR, na medida em que não pode ser reputada de inconstitucional, designadamente não se violando com ela o art. 13.º/1/2, da CR – de tal sorte que, com assim decidir, também em nada se desviou o tribunal do prescrito pelo art. 202.º/2, igualmente da CR.

Em suma, são em toda a linha improcedentes as razões esgrimidas pelo recorrente, mostrando-se o despacho recorrido isento de qualquer censura, nenhum erro de direito nele se detectando e, por conseguinte, devendo ser mantido, com integral negação de provimento ao recurso.    

                       

III – Decisão

À luz do exposto, decide-se negar provimento ao recurso do condenado AA, nessa conformidade mantendo nos precisos termos respectivos o recorrido despacho de 14/10/2023.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em três UC’s (art. 513.º/1/3, do CPP, e 8.º, n.º 9, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais).

Notifique.


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Coimbra, 21 de Fevereiro de 2024
Pedro Lima (relator)

Alexandra Guiné (1.ª adjunta)

Isabel Valongo (2.ª adjunta)

Assinado eletronicamente