Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1999/19.9T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: RECONVENÇÃO
OBRIGAÇÃO DE RECONVIR
PRECLUSÃO DOS FACTOS CONSTITUTIVOS DA SITUAÇÃO ALTERNATIVA À DO AUTOR
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 266º, AL. D) DO NCPC.
Sumário: I – Nas situações reconvencionais a que se reporta a al d) do art. 266º CPC – quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter - o réu está obrigado a reconvir, sob pena de resultarem precludidos os factos constitutivos da situação alternativa à do autor.

II – Nessas situações, a reconvenção não é uma mera faculdade, mas um verdadeiro ónus, dado que esse pedido não poderá ser formulado fora desse processo.

III – Se o for, improcederá a pretensão do autor, por efeito da autoridade do caso julgado, na medida em que a aceitação do efeito jurídico que o autor na primeira ação se propunha implica, necessariamente, a exclusão da alternativa a esse efeito jurídico na ação subsequente.

Decisão Texto Integral:




Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I- “T..., SA”, intentou a presente ação, de processo comum, contra M..., pedindo que seja declarado e reconhecido que:

1 – a) As obras e plantios que a A. executou, de boa fé, até Junho de 2001, no prédio rústico identificado no artº. 1º da petição e que se descrevem nos seus artºs. 3º a 59º, trouxeram à totalidade desse prédio um valor maior do que este tinha antes dessas incorporações, pelo que

b) a A. tem o direito de adquirir em conformidade com o estatuído no artº. 1340º do Cód. Civil, por acessão industrial imobiliária, o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha nº... e inscrito na matriz rústica sob o artigo... da mesma freguesia.

c) O exercício deste direito constituir-se-á com a aquisição pelos AA. da propriedade do prédio descrito na al. a), mediante o pagamento à R. da quantia de 533.713,75€ (o correspondente a 107 milhões de escudos) ou daquela que vier a ser julgada correspondente ao valor do prédio, à data das aludidas obras e plantações, e no prazo que for designado para o efeito.

d) E, consequentemente, ordenar-se:

d1) O cancelamento da inscrição registral, Ap. ... presentemente a favor da A., com todas as consequências legais.

d2) E o registo em nome da A. da titularidade do direito de propriedade desse prédio. E,

2 – No caso da procedência da presente ação, o direito às benfeitorias que assistiria à A., com a correspondente obrigação, da ora Ré, satisfazer tal indemnização à A., conforme sentença proferida naqueles autos – procº. ... - ser declarado extinto por confusão nos termos do artº. 868º do Cód. Civil.

3 - E a Ré condenada

a) A reconhecer tudo o que venha a ser declarado nas al. a), b), c) e d) e d1 e d2, do ponto 1, e no ponto 2 supra.

b) A abster-se de praticar quaisquer actos que ofendam o posse e exercício do direito de propriedade dos AA. sobre esse prédio.

c) A R. ser condenada a entregar à A. todos os frutos naturais e/ou civis, pendentes e futuros, que vier a perceber daquele imóvel – Quinta ... - a partir da data da citação para esta acção e até ao dia da efectiva entrega daquele prédio à A., para a hipótese de não ser declarada a suspensão da acção executiva que se alude no artº. 170º, supra d).

Alegou, em síntese, que por escritura pública de compra e venda celebrada em 26 de Maio de 1999 adquiriu o prédio rústico denominado “Quinta ...”, sita em ..., e que, imediatamente, após a compra, entrou na sua posse, aí tendo executado vultuosas obras, plantações e melhoramentos que se prolongaram até 2004.

Sucede que a ora R. instaurou contra ela, A. (e contra outros RR.) a ação nº ..., na qual arguiu a nulidade ou anulabilidade da compra e venda supra referida.

A aqui A. deduziu nessa ação contestação, pugnando pela improcedência da ação e, subsidiariamente, para a hipótese de procedência, deduziu reconvenção pela qual solicitou a condenação da aí A. (R. nestes autos) a ressarci-la de todas as benfeitorias executadas na Quinta ...

Tal ação foi julgada procedente, tendo sido declarada a nulidade da escritura pela qual a aqui A. adquirira a Quinta ..., com a consequente condenação na sua entrega imediata.

A reconvenção foi julgada parcialmente procedente e a aí A./reconvinda condenada a pagar à R/reconvinte o valor de determinadas benfeitorias.

Sucede que a A. tem agora interesse em adquirir esse prédio por acessão industrial imobiliária, considerando estarem reunidos os pressupostos para o efeito.

Pelo que entende que no caso de procedência da presente ação deve ser julgado extinto por confusão o direito indemnizatório que lhe foi fixado por força das benfeitorias que executou na referida Quinta ...

Na contestação foi suscitada pela R. a exceção perentória de extinção/paralisação do direito de que se arroga a A., considerando, para o efeito, que a pretensão de adquirir por acessão industrial a propriedade da Quinta ..., com base em obras, sementeiras ou plantações aí realizadas, se extinguiu quando na ação nº ..., que correu termos no Tribunal Judicial de ..., requereu a condenação da R. (ali A.) no pagamento do respetivo custo.

Por essa via a A. abdicou quer do direito de propriedade das coisas por si incorporadas na referida quinta, quer do direito da sua aquisição por acessão industrial.             Pelo que não pode a A., na presente ação, invocando essas mesmas benfeitorias, pretender agora adquirir o prédio por acessão industrial imobiliária, devendo entender-se que ao mesmo renunciou tacitamente, sob pena de abuso no exercício de tal direito.

Sem prescindir, alegou, ainda a R., a exceção dilatória de autoridade de caso julgado, ou de caso julgado, dado que na referida ação ..., a A. foi condenada a entregar-lhe, de imediato, a Quinta ..., assim como a entregar-lhe todos os frutos naturais ou civis que tivesse percebido a partir da sua citação até à entrega efetiva. Já a R. foi condenada a pagar à A. o valor das benfeitorias aí apuradas. Ora, como a A., na reconvenção que ali deduziu contra a R., não deduziu um pedido de aquisição da Quinta ... por acessão industrial imobiliária, podendo fazê-lo, não pode agora questionar o direito de propriedade e as obrigações de restituição que ali foram reconhecidas, com base numa realidade que já se verificava no decurso daquela ação e que poderia ter sido invocada. Ou seja, se naquela ação foram discutidas as obras, plantações e sementeiras realizadas pela A. na Quinta ... pelo menos até ao dia 10 de julho de 2013 (data em que aí foi apresentada ampliação de pedido relativo às benfeitorias), o pedido relativo à acessão industrial imobiliária aí deveria ter sido formulado, por cumulação ativa bilateral disjuntiva, a título eventual. Assim, por extensão do caso julgado, mostra-se precludida a faculdade de aquisição pela A. da Quinta ..., por acessão industrial imobiliária.

Pronunciou-se a A. sobre essas exceções, considerando que efetuara um avultado investimento na aquisição da Quinta ..., quando, dois anos após, em 2001, foi citada no âmbito da ação ..., instaurada pela aqui R., que pretendia obter a declaração de nulidade ou anulação de tal venda. 

Assim, quando ali apresentou contestação estava a aqui A. convicta da titularidade do seu direito de propriedade, não se encontrando obrigada a deduzir reconvenção, tendo reclamado a existência de benfeitorias – necessárias - por si executadas para a hipótese de procedência da ação. Porém, a sentença ali proferida qualificou como úteis tais benfeitorias, o que diminuiu, de forma significativa, o seu acervo indemnizatório. Certo é que, sob pena de preclusão, nos termos do disposto nos artigos 266º/2 e 860º/3 CPC, a A. estava obrigada a deduzir tal pedido relativo a benfeitorias. Ora, o conceito – amplo - de benfeitorias integra as incorporações executadas num imóvel que podem gerar um direito de crédito ou o direito à aquisição por acessão, pelo que o direito de adquirir o prédio por acessão não ficou precludido e revela-se legítimo, sendo apenas necessário compatibilizar os efeitos decorrentes da procedência da presente ação com o crédito ao valor das benfeitorias, reconhecidas à aqui autora na ação ... Tal compatibilização poderá ser feita por via de confusão que determinará a extinção do direito de crédito por benfeitorias que foi reconhecido à A.

Considerou, assim, a A. não se verificar qualquer extensão do caso julgado à figura da acessão cuja invocação corresponde ao exercício de um direito potestativo e que, consequentemente, não configura uma exceção.

Consequentemente, a invocação da acessão não se mostra precludida, nem o exercício de tal direito é abusivo.

Sustentando a sua pretensão, a A. juntou Parecer subscrito pela Doutora ..., Professora da Faculdade de Direito de Coimbra, relativamente ao qual a R. exerceu contraditório.

No despacho saneador foi entendido estarem reunidos todos os pressupostos de facto e de direito para apreciação das exceções suscitadas e, tendo-se julgado procedente a exceção de caso julgado na sua vertente positiva – autoridade de caso julgado -, por referência a sentença proferida na ação nº ..., que correu termos no Tribunal Judicial de ..., julgou-se improcedente a ação e absolveu-se a R. do pedido.

II – Do assim decidido apelou a A., que concluiu as respectivas alegações, do seguinte modo:

...

A R. apresentou contra-alegações defendendo o decidido.

III – O tribunal da 1ª instância julgou provada a seguinte matéria de facto:

            ...

IV – As questões que resultam para apreciação no presente recurso, como resulta do confronto da decisão recorrida com as conclusões das alegações,  coincidem com as  duas exceções com que a R. se defendeu na contestação – por um lado, se o facto da aqui A. ter restringido o pedido reconvencional na ação ... ao pagamento das  benfeitoras pela aqui R., implicou a renúncia tácita da mesma ao direito de se vir a tornar proprietária da Quinta de ... por via da acessão industrial imobiliária; e se, de todo o modo, o caso julgado, ou a autoridade do mesmo, decorrente daquela anterior acção,  obsta ao conhecimento de mérito da presente ou implica a sua improcedência.

Lembre-se a atitude processual e substantiva da aqui A., ré que foi na acima referida acção ..., em que, na sequência da pedida declaração de nulidade pela aqui R., M..., da compra e venda pela A. da Quinta ... em 26/5/1999, foi condenada  a reconhecer o direito de propriedade daquela sobre a dita Quinta e a entregar-lha imediatamente, e em que essa Mª..., na procedência parcial do pedido reconvencional formulado pela aqui A. nessa ação, foi condenada a pagar-lhe o valor das benfeitorias realizadas na referida Quinta -  pretende  que  nesta ação seja declarado e reconhecido o seu direito de adquirir, nos termos do art 1340º CC, a referida Quinta, por acessão industrial imobiliária e que, visto que o exercício desse direito se constituirá com o pagamento à aqui R. da quantia que na ação se venha a ter como correspondente ao valor do prédio à data das obras e plantações nele introduzidas, se conclua que o direito às benfeitorias que lhe assistia, e a correspondente obrigação da ora R. lhe satisfazer essa indemnização, se extinguem por confusão, nos termos do art. 868º CC .

Nas alegações do presente recurso explicita melhor este seu ponto de vista, referindo que porque ainda não houve o cumprimento por parte da aqui R. do crédito de benfeitorias, e porque a acessão é retroativa e o momento da aquisição por acessão se projecta ao momento da incorporação, se verifica nesse momento a coincidência da pessoa do proprietário e a do benfeitorizante, «decaindo esta qualificação pela intervenção em bem próprio». «Teria o direito a benfeitorias enquanto nele se reconhecesse a posição de um terceiro, não quando por via da incorporação delas resultante passasse a ser já proprietário do bem» (conclusão XXVIII).

Neste quadro de pretensões, objectou a R/apelante que «qualquer direito que a A. pudesse (eventualmente) ter por acessão industrial se extinguiu quando na ação ... optou por apenas pedir reconvencionalmente a condenação da aí A. ao pagamento das benfeitorias, não tendo cumulado nesse pedido -  em cumulação objetiva subsidiária - o pedido de acessão imobiliária industrial.

Com esse seu procedimento, entende a apelada, aquela renunciou tacitamente ao exercício do direito à aquisição da coisa beneficiada por essas benfeitorias, pelo que (ainda que se entendesse que podia processualmente exercer o direito à acessão em acção autónoma, como o pretende, com a presente ação) não seria possível julgar procedente esse seu pedido. A renúncia a que se reporta decorreria da “incompatibilidade ontológica” do direito de cumular a pretensão de pagamento da indemnização pelas benfeitorias com a aquisição por acessão industrial da propriedade da própria coisa incorporada ou beneficiada por essas mesmas benfeitorias, sendo que essa incompatibilidade ontológica não resultaria ultrapassada em função da cumulação objectiva sucessiva daqueles dois pedidos se mostrar decorrente da sua dedução em ações diferentes.

Contrapôs a A./apelante, no articulado de resposta às exceções, a inexistência de qualquer ónus de reconvir a acessão na ação em que se discutia a validade/invalidade da aquisição, entendendo que apenas tinha o ónus de reconvir nessa ação com o pedido de benfeitorias,  atento o disposto nos arts 266º/2, al b) e o art 860º/3 CPC. E conclui que ao peticionar subsidiariamente o direito a benfeitorias naquela outra ação (fazendo-o para o caso dessa ação proceder), não renunciou ao exercício do direito à acessão industrial imobiliária, por «manifesta compatibilização substantiva do crédito a benfeitorias com o exercício da pretensão aquisitiva por estarmos perante um concurso de pretensões formuladas sucessivamente, cuja compatibilização  (entre o crédito  ao pagamento de benfeitorias e o direito de adquirir o bem por acessão) merece uma resposta do direito substantivo ( e não processual)», invocando a esse respeito a situação de confusão que entende que se verifica em função do exercício sucessivo dos dois direitos.

Vejamos.

Há de facto, a nosso ver, uma incompatibilidade ontológica na cumulação real do pedido de benfeitorias com o pedido de acessão industrial imobiliária, quer essa cumulação de pedidos se mostrasse originária ou sucessiva ou, por outras palavras mais adequadas à situação dos autos, quer se mostrasse decorrente de uma única ação ou de uma outra subsequente.

O que sucede porque aqueles dois pedidos se configuram como incompatíveis, o que, nos termos do art 555º CPC, impede a sua cumulação (real). 

Na verdade, não é possível que a A. utilize as mesmas benfeitorias, por um lado para, em função delas, pretender ser indemnizada do seu valor e, por outro, para fazer valer a propriedade das mesmas em terreno alheio, para assim lograr a acessão. Efetivamente, e como a apelada o refere, a propriedade das benfeitoras (úteis) que não sejam levantáveis da coisa em que foram introduzidas transmite-se (automaticamente)  para o dono da coisa beneficiada e, ao mesmo tempo, surge no património do benfeitorizante um direito de crédito sobre o dono da coisa beneficiada, correspondente ao valor da benfeitorias, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa  - art 216º/3 e 1273º CC. Se  a acessão industrial imobiliária pressupõe «duas coisas; que não sejam propriedade da mesma pessoa, e que essas coisas se unam de um certo modo»[1], nenhum sentido pode fazer que se pretenda cumulativamente, por um lado, abdicar da propriedade das benfeitorias para receber o seu valor e, por outro, fazer-se valer da propriedade dessas benfeitorias para, em função da sua incorporação num terreno alheio, se exercer o direito à acessão.

Desta incompatibilidade ontológica, como a R. a apelida, decorre, no seu entender, que ao pedir o valor das benfeitorias na ação antecedente a A. não podia deixar de estar a abdicar do direito de propriedade sobre essas coisas e, por assim ser, do exercício do direito a fazer valer nessa ação - ou noutra - o direito à acessão industrial imobiliária com base nessas mesmas benfeitorias.

É verdade, no nosso entendimento, que as referidas pretensões, porque  substantivamente incompatíveis, só seriam passíveis de serem exercidas de modo subsidiário, sabido como é que  a incompatibilidade substantiva entre pedido principal e subsidiário não obsta à sua dedução em termos subsidiários, precisamente porque apenas um dos pedidos virá a ser atendido pelo tribunal  (o pedido subsidiário é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior – cfr art  554º CPC). Seria indiferente que o pedido principal fosse um ou outro desses dois, já que, como o refere Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, havendo no caso da subsidiariedade uma graduação das pretensões do autor, «essa graduação não tem que obedecer a uma prevalência substantiva: o autor, por estar incerto relativamente ao seu direito ou por admitir que o tribunal possa ter dúvidas quanto a ele, ordena o pedido principal e o pedido subsidiário como muito bem lhe aprouver» [2]. Sendo que a circunstância do concurso dessas pretensões ser formulado sucessivamente e em diferentes ações não afastaria o resultado das mesmas  se anularem uma à outra, nunca podendo ser atendidas simultaneamente sem se introduzir na ordem jurídica uma contradição, não se vendo em que medida é que o recurso ao caráter retroativo da acessão ao momento da incorporação e ao mecanismo da confusão pudessem resolver aquela contradição interna.

Sendo assim, como é, crê-se assistir razão à R. quando pretende que do facto de a A. não ter formulado reconvencionalmente na antecedente ação os dois pedidos em referência, em termos subsidiários, e só ter formulado o referente às benfeitorias, teria implicado que tivesse tacitamente renunciado àquele outro, mostrando-se por esta via, da renuncia tácita, extinto o direito da A. se fazer valer da acessão. 

Não intervém, para assim se concluir, a questão da reconvenção na ação ... para fazer  valer o pedido de acessão se (dever) configurar como facultativa ou necessária – questão que se prende com a segunda acima evidenciada como integrando o objeto do recurso – mas apenas com a já acima referida contradição substantiva interna entre os dois pedidos: ou se faz valer o direito a benfeitorias, ou se faz valer, em função delas, a acessão, tudo isto pressupondo – como é o caso – que estão em causa  as mesmas benfeitorias e que as mesmas se qualificam como utéis.

Não nos repugna, nesta lógica, que se deva dar ao pedido reconvencional que se restringiu às benfeitorias o conteúdo de uma renúncia tácita à acessão, dada a referida incompatibilidade ontológica, e porque, numa consideração de coerência entre comportamentos, aquele primeiro comportamento permite que se infira, implicitamente, que não se pretende, em função das mesmas benfeitorias, vir a requerer a acessão.

 De todo o modo, a questão em apreço, na situação dos autos perde autonomia, por se entender que o pedido de acessão imobiliária tinha que ser deduzido reconvencionalmente na primitiva ação, sob pena de preclusão da alegação dos factos  que o implicassem, conduzindo essa preclusão à  improcedência desse pedido, como melhor se verá de seguida.

Apesar da própria R./apelada, nos presentes autos, sobretudo nas contra-alegações deste recurso e em função de um artigo de Lebre de Freitas, apelidado de “Um polvo Chamado Autoridade do Caso Julgado[3], defender estar em causa na presente situação a própria exceção do caso julgado e não a autoridade do mesmo, tem-se preferência por este último entendimento, claramente defendido no artigo de Teixeira de Sousa  «Preclusão e “Contrário Contraditório”»[4], que a R. juntou aos autos e que constitui anotação favorável ao Ac do STJ 10/10/2012 [5].

Para melhor compreensão do que subsequentemente se refletirá, importa fazer menção à situação de facto em causa nesse aresto.

 Os aí AA. pedem que se declare que adquiriram por acessão industrial  imobiliária uma parcela de terreno na qual haviam procedido à construção de um anexo. Porém, os RR. nessa ação haviam interposto anteriormente, contra os ditos AA., uma outra, em que tinham pedido o reconhecimento de que a faixa de terreno em causa integrava o seu prédio e a condenação dos aí RR. a demolirem a construção, tendo sido proferida sentença que reconheceu que aquela faixa de terreno integrava o prédio deles e a condenar os aí RR. a demolirem o anexo, sentença essa que transitou em julgado.

No artigo referido faz Teixeira de Sousa referência a situações várias implicantes do chamado “contrário contraditório” (efeito jurídico coberto pelo caso julgado), referindo, especialmente, uma das suas variantes a que chama de “alternativa incompatível”.

Referindo, nuclearmente, que enquanto as demais situações de “contrário contraditório” se podem reconduzir à fórmula “x; logo, não não-x”, a situação de “alternativa incompatível” pode ser resumida na fórmula, “x ou y; y; logo não-x”, «dado que a aceitação de uma das alternativas (y) implica necessariamente a exclusão da outra (não-x)». 

E entende que o acórdão do STJ de 10/10/2012, que anota, «constitui exemplo desta situação: o reconhecimento da propriedade dos agora réus na acção por eles proposta exclui a propriedade dos autores da presente acção». Salientando: «Entre estas hipóteses de alternativa incompatível e as demais situações de “contrário contraditório” há, no entanto, uma diferença importante: enquanto nas (outras) hipóteses de “contrário contraditório” é o próprio caso julgado que obsta, sem mais, à possibilidade de constituir posteriormente uma situação contraditória, nas hipóteses de alternativa incompatível a constituição de uma situação contraditória só está excluída se, numa acção pendente, recair sobre o demandado o ónus de alegar os factos constitutivos dessa alternativa e se, portanto, vier a funcionar a preclusão da sua alegação posterior», reconduzindo assim, as situações de “alternativa incompatível” em que se mostre operante a autoridade do caso julgado, àquelas em que se conclua pela preclusão de factos que devendo ter sido alegados  na primeira ação o não foram. Conclusão a que chega em função do disposto no art. 481º, al c), CPC – hoje art.  564º, al c): porque «a partir da citação, o demandado tem o ónus de apresentar na ação pendente todos os fundamentos para uma decisão incompatível  com aquela outra que é pedida pelo autor», «valendo este ónus de concentração para todos os fundamentos de defesa, nomeadamente para todas as excepções peremptórias que o demandado queira opor à pretensão do demandante»,  também em certas situações se deverá entender que há «um ónus de deduzir o pedido reconvencional na ação pendente, sob pena de preclusão da dedução do mesmo pedido em processo posterior: sempre  que o reu reconvinte queira conseguir, em seu beneficio, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter (art 274º/2 al c) do aCPC – hoje art 266º/2 al d)) a reconvenção não é uma mera faculdade, mas antes um verdadeiro ónus, dado que esse pedido não poderá ser formulado fora do processo que se encontra pendente».

Explicitando ser essa a hipótese que se verifica no acórdão em anotação: «os autores da primeira ação reivindicaram uma faixa de terreno; os réus demandados nessa ação se se consideravam proprietários dessa mesma faixa por acessão imobiliária, tinham o ónus de deduzir a  respetiva reconvenção e de formular na ação pendente o pedido de reconhecimento  da sua propriedade sobre essa faixa». [6]

À mesma conclusão – de existência de autoridade de caso julgado em situações como a daquele aresto e como a dos presentes autos, isto é, situações reconvencionais  em que o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter - chega Miguel Mesquita, em «Reconvenção e Excepção no Processo Civil», obra em que dedica a sua Parte III e última, ao “Problema da falta de exercício do direito de reconvir, p 416 e ss.

 Esse autor, depois de evidenciar que há situações de reconvenção necessária explicita ou implicitamente decorrentes da lei processual ou substantiva, e que «sempre que a reconvenção se torne necessária por força da lei, a sua omissão faz precludir a pretensão material do demandado» [7], torna claro que por efeito do caso julgado a faculdade de reconvir se pode transformar em ónus de reconvir e que o uso desse critério (do caso julgado) na determinação das hipóteses de reconvenção necessária obriga  a que o réu, titular de qualquer pretensão contra o autor, formule, «para si mesmo», a seguinte pergunta: «o caso julgado que eventualmente venha a incidir sobre uma decisão favorável ao demandante será susceptível de se transformar num obstáculo ao futuro exercício do meu direito através de uma acção independente ?», e «sendo a resposta afirmativa, necessita de reconvir para afastar o risco da futura preclusão do direito, por força do caso julgado que venha a constituir-se sobre a decisão favorável ao autor», tudo isto pressupondo factos anteriores ao encerramento da discussão no primeiro processo. Assinalando esse autor como um caso de reconvenção necessária o que resulta da al d) do atual art. 266º/2 CPC.

Deverá, pois, concluir-se que, ao contrário do que o pretende a A., aqui apelante, na ação ... tinha  o ónus de incluir na reconvenção que nesses autos formulou o pedido de acessão que deduziu na presente ação, visto que tal pedido se baseia exclusivamente em factos que se verificaram antes do encerramento da discussão em 1ª instância nessa ação, que só ocorreu em 2013, já que se esta ação fosse julgada procedente estar-se-ia a anular a anterior sentença.

Na verdade, e como o evidencia Teixeira de Sousa no artigo citado, o direito de propriedade só pode pertencer ao autor ou ao réu, de tal modo que, «se o réu quer obter não só a improcedência da ação, mas também o reconhecimento para si do direito de que o autor alega ser titular, então tem o ónus de deduzir o respectivo pedido reconvencional», implicando a não dedução da reconvenção nestas circunstâncias a preclusão do correspondente pedido em qualquer ação posterior.

Esforça-se a A./apelante, na sequência, aliás, do Parecer Jurídico junto, e da sua Adenda, para excluir este entendimento fazendo-o com base na circunstância de naquele Ac 10/10/2012 estar em causa uma ação real e na ação nº ... o não estar, referindo que uma ação em que se visa a destruição de actos de aquisição de um imóvel constituindo a devolução deste mera consequência daquela destruição, se configura como uma ação de índole obrigacional.

De facto, e como o define Menezes Cordeiro [8], «a ação real é aquela que, originada por um direito real, tenha como causa de pedir o facto jurídico de que este direito real derive», o que obviamente não sucede com a referida ação ...

Porém, a circunstância desta ação não se configurar como uma ação real, em nada afecta as considerações atrás feitas, que serão inteiramente válidas relativamente ao segmento da condenação da aqui A. nessa ação referente ao reconhecimento do direito de propriedade da R. sobre a Quinta ..., bem como à da sua entrega  à aqui R., na medida em que a invocação da aquisição da propriedade por via da acessão imobiliária se apresentava com natureza impeditiva do reconhecimento do direito de propriedade decorrente da anulação das vendas consecutivas e da condenação da aqui A. na restituição da referida Quinta, implicando que a mesma estivesse constituída no ónus de invocar os factos constitutivos dessa propriedade alternativa.

Se o caso julgado  só se destina  a evitar contradições práticas de decisões e não já à sua colisão teórica ou lógica, como o evidencia Manuel de Andrade[9]só pretende  obstar a decisões concretamente incompatíveis, que não possam executar-se ambas  sem detrimento de alguma delas; a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por uma anterior decisão, e portanto desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos ou tutelados»), necessariamente que a índole obrigacional da ação nº ...  não obsta a que se entenda que a R. tinha nela o ónus de reconvir  para aí fazer valer o direito de acessão a que nesta ação se propôs, cuja procedência implicaria (em função do  pagamento à aí A. da quantia que viesse a ser julgada correspondente ao valor do prédio) que não viesse a ser condenada na restituição do mesmo.

E nada obstava, como atrás se terá deixado claro, que esse pedido reconvencional tivesse sido deduzido em cumulação subsidiária com aquele outro das benfeitorias que a aqui A., e ali R., chegou a deduzir, bastando esta forma de cumulação para preencher o ónus da reconvenção necessária, muito embora a ali R. se tivesse que decidir, logo aquando da reconvenção, qual dos dois pedidos erigiria como principal.

Não se deixará de evidenciar que ao contrário do que a R. argumenta, não se verifica o onús de reconvenção relativamente ao pedido das benfeitorias, como o põe em evidência Miguel Mesquita, ao referir que «não reveste natureza necessária, mas antes facultativa, a reconvenção destinada a tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas a que o preceito citado (art 274º/al b), hoje  266º/2 al b)) se refere», e que, «o facto de o tribunal condenar o R. na entrega da coisa não terá um efeito preclusivo  sobre o direito creditório baseado em benfeitorias», podendo o réu propor uma ação para fazer valer o seu direito às benfeitorias, não correndo o risco  de ver precludido o seu direito creditório por efeito de uma sentença que venha a considerar procedente a ação destinada à entrega da coisa. Apenas fica impedido de invocar as benfeitorias no âmbito de uma oposição movida contra uma futura execução, pois, de acordo com o disposto no nº 3 do art. 929º aCPC (hoje 860º/3) «a oposição com fundamento em benfeitorias não é admitida quando, baseando-se a execução em sentença condenatória, o executado não haja oportunamente feito valer o seu direito a elas».

Importa ainda assinalar que se à aqui A. assistia na ação anterior, em que foi ré, o ónus de reconvir para exercer o direito à acessão, sob pena de preclusão dos factos necessários a fazer valer esse direito em nova ação, desde que tais factos, como é o caso, se mostrassem anteriores ao encerramento da discussão em 1ª instância no processo no qual foi proferida a primeira decisão, o que aqui interfere, para assim se concluir, não é propriamente o caso julgado, mas a autoridade do caso julgado, como o evidenciou a decisão recorrida.

Pela simples razão de que a causa de pedir numa e noutra ação é diferente, e que entre nós o caso julgado pressupõe a identidade subjetiva e a objetiva, esta em função da identidade do pedido e da causa de pedir.

Até aqui esteve-se a fazer referência ao caso julgado que advém da sentença proferida na ação anterior no tocante ao segmento da mesma que respeita à condenação da aqui A. a reconhecer a propriedade da aqui R. relativamente ao imóvel e condena aquela à sua entrega a esta.

 Mas o caso julgado forma-se sobre toda a decisão contida na sentença («o que adquire a força e a autoridade do caso julgado é a posição tomada pelo juiz  quanto aos bens ou direitos (materiais)  litigados pelas partes e à concessão ou denegação da tutela jurisdicional para esses bens ou direitos», nas palavras de Manuel de Andrade[10]) e, consequentemente, no que à sentença proferida na ação nº ... se reporta, abrange, óbvia e igualmente, o segmento da mesma em que se condena a aqui R., a pagar à aqui A., o valor das benfeitorias a liquidar em ulterior incidente de liquidação.

Ora, no que se reporta a esse segmento decisório, a aqui A., na presente ação,  procede  como se aquele caso julgado não existisse, pretendendo servir-se das (mesmas) benfeitorias em função das quais já se afirmou na sua esfera jurídica um crédito indemnizatório, para aqui fazer valer o direito de acessão, como se as mesmas ainda lhe pertencessem.

O que se verifica neste segmento decisório corresponde, na exposição de Teixeira de Sousa na referida anotação ao Ac STJ de 10/10/2012, não a uma “alternativa incompatível”, mas a uma variante diferente do “contrário contraditório” – aquela em que o objeto  da segunda ação se mostra incompatível com o da primeira acção.

Tal como ali, porque as causas de pedir invocadas numa e noutra ação são diferentes, não pode operar a exceção de caso julgado, mas opera, também e igualmente, a autoridade do caso julgado da primeira decisão.

Por aqui se vê que à acima evidenciada “incompatibilidade ontológica” se soma o caso julgado para tornar inviável o recurso à confusão, tal como o pretendia –fulcralmente - a A..

A autoridade do caso julgado, como o entende esclarecer Teixeira de Sousa na referida anotação, não é uma exceção dilatória. Desde o momento em que o ónus da reconvenção se justifica em função da preclusão dos factos não alegados na ação anterior - o R. tinha o ónus de alegar todos os factos defensivos incluindo os constitutivos de uma situação alternativa e não o fez e já o não pode fazer em nova ação» -  a consequência dessa preclusão deve entender-se ser a da absolvição do R. do pedido e não da instância, assim se confirmando em toda a sua extensão a decisão recorrida.

Refere em abono desta conclusão que na hipótese de oposição à execução  baseada em factos extintivos ou modificativos anteriores ao encerramento da discussão no processo no qual foi proferida a decisão condenatória, ou seja, de oposição baseada em facto precludido (cfr art 814º/al g) CPC, hoje art 729º, al g)) «a consequência não é a inadmissibilidade dessa oposição, mas antes a sua improcedência».

Pelo que se veio de dizer dever-se-á concluir pela improcedência da apelação e pela manutenção da decisão recorrida.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença recorrida.  

Custas pela apelante.

                                                           Coimbra, 10 de Novembro de 2020

                                                                         (Maria Teresa Albuquerque)

                                                                         (Manuel Capelo)

                                                                           (Falcão de Magalhães)

I – Nas situações reconvencionais a que se reporta a al. d) do art. 266º CPC – quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter - o réu está obrigado a reconvir, sob pena de resultarem precludidos os factos constitutivos da situação alternativa à do autor.

II – Nessas situações, a reconvenção não é uma mera faculdade, mas um verdadeiro ónus, dado que esse pedido não poderá ser formulado fora desse processo.

III – Se o for, improcederá a pretensão do autor, por efeito da autoridade do caso julgado, na medida em que a aceitação do efeito jurídico que o autor na primeira ação se propunha, implica necessariamente a exclusão da alternativa a esse efeito jurídico na ação subsequente. 


[1] - José Alberto Gonsalez, «Direitos Reais (parte geral) e Direito Registal Imobiliário», p 120
[2] -  «Código de Processo Civil Anotado» , 2001 anotação  ao art 469º, p 233
[3] - Revista da Ordem dos Advogados, Ano 79,Jul/Dez 2019: Ao que refere a Exma Srª Profª  Mº José Capelo, na Adenda ao seu Parecer Jurídico, também este artigo constitui anotação favorável ao Ac STJ de 10/10/2012
[4] -Cadernos de Direito Privado, nº 41, ano de 2013
[5] -Relatado por Abrantes Geraldes.
[6] - Teixeira de Sousa, em «As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa»,  pp 168 e ss, já assinalava que «a formulação de um perdido reconvencional é sempre uma faculdade, que só preclude no caso de a procedência da acção ser incompatível com a eventual procedência do pedido reconvencional». E em «O Objecto do Processo Civil», Ano Lectivo de 2003/2004, p 43, refere, porventura mais explicitamente, que «a formulação de um pedido reconvencional é sempre uma faculdade, que só fica precludida  no caso de a procedência da acção ser incompatível com a procedência do objecto que poderia ter sido alegado através da reconvenção».
[7] - Pag 424
[8] - «Direitos Reais», 1979, p 589
[9] - -«Noções Elementares de Processo Civil», 1979, p 317
[10] - Obra referida, p 318