Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
518/11.0T4AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: RETRIBUIÇÃO
PRÉMIO
MÉRITO
DISCRIMINAÇÃO
TRABALHADOR
Data do Acordão: 05/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 82º, NºS 1 E 3, E 88º, Nº 2 DA LCT
Sumário: I – A instituição de uma prestação compensatória sob o nome de prémio de mérito, paga regular e permanentemente, qualifica-se como retribuição.

II – A estrutura da retribuição pode, em regra, modificar-se unilateralmente, suprimindo-se, p. ex., alguma das suas componentes, desde que daí não decorra diminuição do valor global daquela.

III – Não são, contudo, admitidas alterações discricionárias.

IV – Só as alterações unilaterais determinantes de reformulação dos critérios de pagamento da retribuição que advenham de reestruturação empresarial são lícitas.

V – São proibidos, no âmbito da relação laboral, actos discriminatórios.

VI – Integra este conceito a conduta do empregador que, numa secção, apenas não estende os aumentos salariais anuais a uma das trabalhadoras da mesma, sem que tal conduta assente nalgum critério objectivo.

Decisão Texto Integral:    Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Coimbra:

   A..., SA., com sede e estabelecimento em ... Ílhavo, interpôs recurso da sentença.

   Pede a respectiva revogação, concretamente as alíneas A) a G) do segmento decisório, absolvendo-se a Recorrente de todos os pedidos.

   Funda-se nas seguintes conclusões:

[…]

   B... contra-alegou e concluiu:

   O prémio de mérito integra a retribuição da Autora não podendo sendo reduzido ou diminuído a cada actualização da retribuição mínima imposta pela publicação da nova tabela salarial para o sector.

   A retribuição mensal da autora de 2010 e 2011 terá de ser aumentada em 2% e 1% à semelhança do aumento concedidos aos trabalhadores cremadores por ser discriminatório que dos trabalhadores cromadores só a autora não tenha sido aumentada.

   O MINISTÉRIO PÚBLICO junto desta Relação emitiu parecer segundo o qual a sentença deve manter-se.


*

   Eis, para cabal compreensão, um breve resumo dos autos:

   B... instaurou contra A..., SA. a presente acção, com processo comum, pedindo se condene a ré a: reconhecer que o prémio de mérito atribuído à autora em separado foi unilateralmente diminuído no seu quantitativo mensal, ocasionando-lhe a baixa da retribuição; pagar-lhe o prémio de mérito pelo seu valor inicial de € 22,63, em separado e durante 14 vezes ao ano (computando as diferenças até 30.05.2011 em € 1.325,04, devendo acrescer as vincendas); reconhecer que a não actualização anual da retribuição mensal em Janeiro de 2010 e Janeiro de 2011 integra um comportamento discriminatório; pagar à autora indemnização nos termos gerais de direito, computando os danos patrimoniais em € 212,38, a que acresce o vincendo, e computando os danos não patrimoniais em € 500,00; pagar os juros de mora desde o vencimento até pagamento (computando os vencidos em € 166,62).

   Alegou para tanto, em síntese, que o prémio de mérito atribuído pela ré integra a retribuição e a mesma desde 2007 que diminuiu o seu valor; em Janeiro de 2010 e de 2011 a ré aumentou a retribuição dos trabalhadores sem que o fizesse à autora, que se sentiu discriminada, ofendida e enxovalhada.

   Realizada audiência de partes não houve conciliação das partes.

   Notificada a ré para poder contestar, a mesma contestou alegando, em resumo, que o prémio de mérito não integra a retribuição irredutível, dependendo a atribuição e valor de decisão prévia da ré tendo por base o desempenho do trabalhador, e os aumentos de retribuição em 2010 e 2011 apenas foram atribuídos a alguns trabalhadores, não beneficiando a autora deles porque não demonstrou níveis de empenho, mérito, colaboração e produtividade que os justificassem.

   Concluiu dever a acção ser julgada improcedente e ser a ré absolvida do pedido.

   Procedeu-se à realização do julgamento na sequência do que se proferiu sentença que se (A) reconheceu que o «prémio de mérito» pago pela ré “ A..., SA” à autora B... tem o carácter de retribuição, não podendo ser diminuído no seu quantitativo mensal pela ré. (B) Condenou a ré a pagar à autora o «prémio de mérito» a partir de Dezembro de 2011 inclusive, e incluindo no subsídio de Natal, pelo valor mensal de € 22,63. (C) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 1.401,84 ilíquidos a título de diferença entre o recebido e o que devia receber a autora a título de «prémio de mérito» entre Maio de 2003 e Novembro de 2011. (D) Reconheceu que à ré estava vedado não actualizar a retribuição da autora em Janeiro de 2010 e de 2011 como actualizou a generalidade dos seus trabalhadores. (E) Condenou a ré a pagar à autora a partir de Dezembro de 2011 a retribuição base mensal de € 517,52 ilíquidos. (F) Condenou a ré a pagar à autora a quantia ilíquida de € 322,74, a título de diferenças entre o valor da retribuição base paga e a retribuição base que deveria pagar com os aumentos entre Janeiro de 2011 e Novembro de 2011. (G) Condenou a ré a pagar à autora juros de mora à taxa legal – 4% – desde a data em que cada diferença do valor do «prémio de mérito» e cada diferença no valor da retribuição base mensal deveria ter sido paga, até integral pagamento.


***

   Das conclusões acima exaradas extraem-se as seguintes questões a decidir:

   1ª – O prémio de mérito não integra a retribuição, podendo ser reduzido?

   2ª – Não houve discriminação, pelo que a retribuição mensal da autora não terá de ser aumentada?


***

   Da discussão da causa resultaram provados (como consta da respectiva decisão sobre a matéria de facto) os seguintes factos:

[…]


***

   A 1ª questão enunciada acima encerra duas sub-questões, a saber, se o prémio de mérito não integra o conceito de retribuição e se, integrando-o, pode ser reduzido.

   Conforme decorre do acervo fáctico supra exposto, em 1994 foi instituído, no seio da R., um «prémio de mérito», sendo, desde então, processado mensalmente, em separado, 14 vezes ao ano.

   A ré aprecia o desempenho de cada trabalhador, feita pelo superior hierárquico levando em consideração designadamente a “quantidade de trabalho”, a “qualidade de trabalho”, a “cooperação” (iniciativa, c/ superiores, e interajuda), a “polivalência” e o “comportamento” (disciplina, assiduidade e pontualidade) do trabalhador.

   A sentença recorrida, partindo do pressuposto que não se provou que o prémio esteja relacionado com o desempenho profissional do trabalhador e que se trata de uma prestação paga com regularidade, qualificou-o de retribuição por o mesmo se traduzir “numa vantagem económica da autora (trabalhadora) como contrapartida do seu trabalho, e como tal tem natureza retributiva (pelo menos presumida)”.

   Vejamos!

   Tendo o prémio sido instituído em 1994, aplica-se á respectiva caracterização para os efeitos que nos ocupam, o disposto na LCT, visto o que se veio a dispor no Artº 8º/1, última parte, do diploma que aprovou o novo código de trabalho (Lei 99/2003 de 27/08), que, diga-se desde já, não difere substancialmente do regime subsequente.

   Assim, é considerado retribuição tudo aquilo a que o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho, sendo que se presume, até prova em contrário, constituir retribuição toda e qualquer prestação da entidade patronal ao trabalhador (Artº 82º/1 e 3).

   Os prémios pagos pelos bons serviços do trabalhador não se consideram retribuição (Artº 88º/1), excepto se, pela sua importância e carácter regular e permanente, os mesmos se deverem considerar como remuneração do trabalho (nº 2).

   E é por força deste dispositivo que o prémio que nos ocupa se qualifica como retribuição.

   O conceito legal de retribuição parte, como se antevê, das noções de regularidade e periodicidade, sendo que tem que haver correspectividade entre a prestação do empregador e a actividade do trabalhador.

   Na verdade, tendo sido instituído em 1994, o dito prémio vem a ser pago mensalmente, 14 vezes no ano, pelo que, sob a aparência de um prémio de mérito, dependente de avaliação de desempenho, o que temos é a instituição de uma prestação compensatória paga regular e permanentemente.

   Donde, efectivamente, não há como não o qualificar como retribuição.

   Podemos, assim, avançar para a sub-questão subsequente, ou seja, se o valor que lhe corresponde pode ser reduzido.

   A qualificação de uma prestação como retribuição tem como consequência a protecção derivada da irredutibilidade, consagrada no Artº 21º/c) da LCT e mantida nas sucessivas versões do CT (Artº 122º/d) e 129º/1-d), respectivamente CT de 2003 e 2009).

   Pretende a Recrte. que o princípio da irredutibilidade da retribuição se reporta apenas ao valor global da mesma, não sendo aplicável a cada uma das parcelas que a integram.

   A estrutura da retribuição nem sempre é linear, podendo configurar-se até de alguma complexidade, consoante comporte distintas prestações (em dinheiro ou em espécie), seja fixa ou variável, integre atribuições com diversa periodicidade ou até mesmo por força da origem respectiva.

   No caso concreto, para além do salário base, resultante de instrumento de regulamentação colectiva, a A. auferia ainda o dito prémio de produtividade (e diuturnidades), directamente decorrente do contrato individual estabelecido com a R.. Ou seja, sem qualquer nexo com a regulamentação colectiva de trabalho.

   Trata-se, como vimos, de uma prestação em dinheiro, regular, periódica, de valor fixo.

   Os componentes retributivos que sejam contrapartida do modo específico de prestação do trabalho podem, não só ser reduzidos, como suprimidos, desde que se alterem as condicionantes da respectiva atribuição.

   Por outro lado, e quanto aos demais componentes – os que sejam contrapartida do trabalho –, os autores defendem, em regra, que a estrutura da retribuição pode modificar-se unilateralmente, suprimindo-se, por exemplo, alguma das suas componentes. Ponto é que não resulte modificação do valor total da retribuição.

   Contudo, as alterações assim admitidas não são discricionárias.

   Hão-de resultar de reestruturação empresarial, determinante de reformulação dos critérios de pagamento das retribuições.

   É assim que Pedro Romano Martinez claramente defende que é propenso à admissibilidade de ajustamentos retributivos, desde que as alterações possam advir de reestruturação empresarial, decorrentes de “implementação de estruturações ou reformas na organização da empresa, quando haja intenção de reformular ou readaptar internamente o esquema de pagamento da retribuição por imperativos de gestão, ou quando tais modificações decorram de processos de fusão, cisão ou aquisição societárias”. Ou seja, subjacente ao ajustamento, há-de estar “uma lógica de gestão empresarial global e articulada” (Direito do Trabalho, Almedina, 5ª Ed., 812).

   Por sua vez, Monteiro Fernandes, pronuncia-se no sentido de admissibilidade de alteração da estrutura retributiva, mas desde que a alteração unilateral resulte de elementos fundados em “estipulações individuais ou nos usos, excluindo-se, por conseguinte, os que derivem da lei ou da regulamentação colectiva” (Direito do Trabalho, 12ª Ed., Almedina, 474).

   Impõe-se assim, que consigamos descortinar na alteração alguma razoabilidade, normalidade social, e, é claro, um ajustamento fundado em boa fé e directamente relacionado com a própria fonte de atribuição.

   Nestes casos, desde que a alteração não acarrete diminuição da real retribuição, a alteração será lícita.

   Já o não será se se pretender compensar o valor decorrente de negociação colectiva com o decréscimo de institutos negociados ou decorrentes do contrato individual.

   No caso concreto, constatamos que à medida que o salário base é alterado por força do instrumento de regulamentação colectiva aplicável, a R. vem diminuindo o valor do dito prémio, sendo que por essa via, o valor que, em 2003, se cifrava em 22,63€ por mês, ascende hoje apenas a 7,70€ mensais.

   Não se vislumbra aqui qualquer razão plausível para diminuir o respectivo valor.

   Na verdade, os autos não evidenciam que a A. não cumpra os requisitos para atribuição do prémio ou que haja algum critério, dentro daqueles que acima enunciámos, que legitime a redução.

   O que os autos evidenciam é que a A., não obstante a regulamentação colectiva, não beneficia de aumento salarial e, por outro lado, que há uma relação de proximidade entre a diminuição do prémio e o aumento do salário base. E, sendo certo que o valor globalmente pago não diminuiu, também não se vê que se cumpra o desiderato subjacente ao aumento do salário base, o que, a final, redunda numa efectiva diminuição salarial.

   Por isso, não se vê como considerar lícita esta atitude.


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   Resta a discriminação decorrente da circunstância de a A. não ser aumentada desde 2010.

   A sentença recorrida, afastando a integração da questão no regime do princípio a salário igual, trabalho igual, concluiu que “não está evidenciada razão objectivo para que a autora devesse ser discriminada em relação aos demais trabalhadores da estamparia e não ver o seu salário aumentado, não sendo a tarefa de distribuição por parte da autora (supra ponto 21) que objectivamente o justifica”, concluindo que lhe é devido o aumento salarial de 2% a partir de Janeiro de 2010 e o de 1% a partir de Janeiro de 2011.

   A Recrte. defende que, por a A. não realizar uma das tarefas da secção de estamparia – a distribuição – está legitimada a não a compensar com o aumento salarial anual.

   Um dos princípios estruturantes do sistema jurídico político nacional é o da igualdade.

   Daí que a CRP consagre a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, proibindo privilégios e discriminações negativas, ao que subjaz uma ideia de dignidade da pessoa humana.

   Por isso, como é sabido são proibidos, também no âmbito da relação laboral, actos discriminatórios (Artº 25º/1 do CT).

   Diz-se discriminação todo “o comportamento ou convicção, assente em preconceitos infundados ou inconscientes, que se revela em distinções, restrições, exclusões, preferências, fundadas... em qualquer marca distintiva, que tenha por objectivo ou por efeito a destruição ou o comprometimento do reconhecimento., gozo ou exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em condições de igualdade” (Vera Lúcia Raposo, Os Limites da Igualdade – um enigma por desvendar, QL, Ano XI, 2004, nº 23, 42 e ss.).

   Sempre que uma pessoa, em razão de um factor de discriminação, seja sujeita a tratamento menos favorável do que aquele que é dispensado a outra pessoa em situação comparável, existe discriminação directa (Artº 23º/1).

   A autora trabalha na secção de estamparia há vários anos, sendo das trabalhadoras mais antigas, integrando as 50/70 trabalhadoras cromadoras ali em exercício de funções. Tal secção está dividida, desde há 7 anos para cá, em «células» de sete pessoas (todas com as mesmas competências), em que seis cromam e a sétima (rotativamente entre as sete) “distribui”. A autora não realiza a “distribuição” – trabalho de suporte às «células» que se traduz em distribuir as peças pelas demais cromadoras.

   A ré, com efeitos a 1 de Janeiro de 2010, actualizou a generalidade dos seus colaboradores em 2%, não tendo a autora visto a sua retribuição ser aumentada. Do mesmo modo, com efeitos a 1 de Janeiro de 2011, actualizou a generalidade dos seus colaboradores em 1%, não tendo a autora visto a sua retribuição ser aumentada. Na secção de estamparia só a autora não foi aumentada em 2010 e em 2011.

   Conforme dispõe o Artº 25º/5 do CT, cabe a quem alega discriminação indicar o trabalhador ou trabalhadores em relação a quem se encontra discriminado, incumbindo ao empregador provar que a diferença de tratamento não assenta em qualquer factor de discriminação.

   Provou-se que na secção integrada pela A., composta por cerca de 70 pessoas, só a A. não beneficiou dos aumentos salariais instituídos na empresa, pelo que outra conclusão não podemos retirar que não a de que a mesma tem estado a ser sujeita a tratamento menos favorável e, assim, discriminada.

   Vejamos, agora, se a R. prova que tal diferença no tratamento está justificada por algum critério atendível ou seja, se não existe arbitrariedade.

   Sabe-se que a A. não efectua uma das tarefas atribuídas à respectiva célula. Desconhece-se a razão para tanto.

   Sabe-se também que existem algumas trabalhadoras da ré que por questões médicas (…) justificadas pela medicina do trabalho, não fazem essa dita tarefa de “distribuição”.

   Não obstante, todas foram beneficiadas com os aumentos salariais.

   Não se vê do acervo fáctico, e contrariamente ao que a Recrte. parece supor, que aos aumentos instituídos a nível de empresa esteja subjacente algum critério assente no maior mérito ou produtividade do trabalhador, como pretende fazer crer a Recrte..

   Também não resulta evidente que a circunstância de a A. não desempenhar aquela concreta tarefa prejudique a secção, tanto mais que a secção da A. recebe sistematicamente o prémio de actividade, pelo que bem pode não desempenhar aquela e compensar noutra.

   Assim, não decorre dos factos que exista algum critério que possa validar o tratamento desigual a que a A. vem sendo submetida, sendo que os factos evidenciam que, na sequência dos acontecimentos anteriores a 2009 (ponto 25) a A. não beneficiou de aumentos salariais – e foi a única na sua secção a não ser contemplada – e foi sujeita a tratamento constrangedor (ponto 23)!

   É, pois, manifestamente arbitrária a conduta da Recrte. para com a apelada, e, por isso, não deve sufragar-se.

   Termos em que bem andou a sentença ao concluir da forma que acima enunciámos.


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   Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

   Custas pela Recrte..

   Notifique.


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MANUELA BENTO FIALHO (Relatora)

LUÍS AZEVEDO MENDES

JOAQUIM JOSÉ FELIZARDO PAIVA