Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
767/13.6TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO
INCUMPRIMENTO
MORA
CASO JULGADO
Data do Acordão: 11/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 801º, Nº 2, 802º, Nº 2 E 808º DO C. CIVIL.
Sumário: I – A resolução do contrato promessa de compra e venda e a restituição do duplo sinal pressupõe o incumprimento definitivo, e já não a simples mora.

II - A mora apenas legitima a resolução quando convertida em incumprimento definitivo (arts. 801º, nº 2 e 802º, nº 2 ex vi art.808 do CC), quer pela perda de interesse do credor, só relevante se for objectiva, ou então pelo recurso à interpelação admonitória, com a fixação de prazo razoável, apenas dispensável se houver uma recusa antecipada do devedor em cumprir.

III - Normalmente a venda a terceiros (do objecto do contrato promessa) coloca o promitente vendedor numa situação de incumprimento definitivo, por impossibilidade de cumprimento, visto perder a disponibilidade do bem e, nessa medida, inviabilizar o cumprimento da promessa.

IV - Sobre os limites objectivos do caso julgado, deve adoptar-se a tese ecléctica ou mista, no sentido de que o caso julgado incide sobre a decisão e a motivação, desde que seja um antecedente lógica dela, indispensável a reconstruir e fixar o respectivo conteúdo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1.- A Autora – G…, Ldª - instaurou na Comarca de Coimbra acção de simples apreciação, com forma de processo ordinário, contra a Ré – H…, SA.

            Alegou, em resumo:

            A Autora e Ré celebraram, em 25/6/2003, através de documento escrito, contrato promessa de compra e venda, no qual aquela prometeu vender a esta, que prometeu comprar, três lotes, sitos na ...

            Em 9/7/2007 a Autora interpelou a Ré para a escritura pública, mas a Ré recusou-se.

A aqui Ré instaurou contra a aqui Autora acção declarativa (proc. nº …) pretendendo resolver o contrato por incumprimento da  promitente vendedora, a redução do preço de um dos lotes e, subsidiariamente, a caducidade do contrato. Em, reconvenção, a ora A., pediu também a resolução do contrato, imputando o incumprimento à contraparte.

Esta acção foi julgada improcedente quanto aos pedidos de ambas as partes, além do mais por considerar que a promitente compradora apenas estava em mora, não se verificando qualquer causa de incumprimento definitivo.

            Por carta de 1/7/2013 a Ré notificou a Autora da resolução do contrato, com fundamento em ter alienado os lotes (em 21/1/2013), configurando uma situação de incumprimento definitivo.

            A Autora respondeu a tal carta, interpelando admonitoriamente a Ré e informando que a actual proprietária dos imóveis, por si contactada, está na disposição de cumprir a prestação negocial prometida, pelo que a declaração de resolução é ilícita.

            Pediu que seja declarada ilícita a rescisão contratual invocada pela Ré na carta datada de 1/7/2013, por não se poder considerar definitivamente incumprida a prestação prometida pela Autora pelo facto da mesma não ser actualmente proprietária dos lotes 2 e 3 que constituem objecto do contrato prometido.

            Contestou a Ré defendendo-se, em síntese:

            A presente acção funda-se em factos novos, não alegados na acção anterior ( nº…), que não abrangeu a venda a terceiros dos lotes.

A Autora, após a sentença da 1ª instância (em 31/10/2012), alienou os lotes (em 21/1/2013) à sociedade E…, Ld.ª, a qual, dois dias após, os vendeu a M…, Ld.ª, que constitui uma situação de incumprimento definitivo, a legitimar a declaração de resolução.

Concluiu pela improcedência da acção e em reconvenção pediu:

i)Seja declarada a validade da resolução do contrato promessa efectuada pela Reconvinte por comunicação de 1 de Julho de 2013, por força do incumprimento definitivo do contrato imputável à Autora;

ii)A condenação da Autora a restituir à Ré a quantia de € 800.000,00, correspondente ao sinal em dobro, a crescida de juros vencidos, à taxa legal, desde a data da resolução, que importam em € 7.561,64 e dos vincendos até integral pagamento.

iii)A condenação da Autora como litigante de má fé, em multa e indemnização.

Replicou a Autora e suscitou a questão da inadmissibilidade do pedido reconvencional.

1.2.- Realizada audiência prévia, decidiu-se:

Não admitir o pedido reconvencional formulado em 1);

Admitir o pedido reconvencional de condenação na entrega do sinal em dobro.

Proferir sentença de mérito na qual julgou:

i)A acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido;

ii) Parcialmente procedente a reconvenção e condenar a Autora a restituir à Ré a quantia de € 400.000,00.

1.3.- Inconformada, a Autora recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

Contra-alegou a Ré no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – O objecto do recurso

            As questões submetidas a recurso, delimitado pelas conclusões, sãos as seguintes:

(in)admissibilidade do pedido reconvencional;

A alteração de facto;

A alienação a terceiros e incumprimento do contrato promessa de compra e venda;

            A declaração de resolução e o abuso de direito.

            2.2.- Os factos provados (descritos na sentença)

Do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação no âmbito da ação  n.º …, datado de 19.6.2013 e já transitado, resulta provada a seguinte matéria esta que se encontra assente entre as partes e que interessa ao desfecho da presente ação, tendo-se em conta os factos elencados aí a fls. 30 e ss. desse acórdão, com a alteração produzida em segunda instância e visível a fls. 108 da mesma peça:

            2.3.- A (in)admissibilidade do pedido reconvencional

            A Ré deduziu na contestação os seguintes pedidos reconvencionais:

(i)Seja declarada a validade da resolução do contrato promessa efectuada pela Reconvinte por comunicação de 1 de Julho de 2013, por força do incumprimento definitivo do contrato imputável à Autora;

(ii)A condenação da Autora a restituir à Ré a quantia de € 800.000,00, correspondente ao sinal em dobro, a crescida de juros vencidos, à taxa legal, desde a data da resolução, que importam em € 7.561,64 e dos vincendos até integral pagamento.

            A sentença rejeitou o primeiro dos pedidos, tendo admitido o segundo, nos termos do art.266 nº2 d) CPC, argumentando que o pedido de condenação (do duplo sinal) não constitui o reverso da simples apreciação proposta pela Autora, mas “um pedido próprio de uma acção de condenação”.

            A Autora/Apelante considera ser processualmente inadmissível este pedido por não assentar no fundamento da acção.

            Muito embora a contestação tenha sido apresentada em 22/9/2013, aplica-se à reconvenção o regime do anterior CPC (cf. art.5 nº3 da Lei nº 41/2013 de 26/6).

Para que a reconvenção seja admissível torna-se indispensável uma conexão objectiva entre as duas acções, ou seja, “um nexo entre os objectos da causa inicial e da causa reconvencional”.

O art.274 nº2 a) CPC/61 estabelece que a reconvenção é admissível quando “o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa” (sendo idêntica a redacção do art.266 nº2 a) do nCPC).

            Esta norma tem sido consensualmente interpretada no sentido de que deve verificar-se uma identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da acção e da reconvenção (cf., por todos, Miguel Mesquita, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, pág.146 e segs.).

            Dissertando sobre a noção de causa de pedir para efeitos de reconvenção, Mariana Gouveia esclarece ser necessária a identidade, ainda que parcial, de factos essenciais ou principais, isto é, os que constam da norma como constitutivos do direito, para concluir que “ a causa de pedir, para efeitos de admissibilidade de reconvenção, deve ser definida através do facto principal comum a ambas as contra-pretensões” (A Causa de Pedir na Acção Declarativa, pág. 270).

            Na acção, a Autora pretende a declaração de ilicitude da resolução do contrato promessa de compra e venda, efectivada pela Ré, por carta de 1/7/2013, alegando a falta de fundamento para a resolução, visto que o incumprimento definitivo é imputável à Ré.

            Na reconvenção, a Ré pede a condenação no duplo sinal, baseada no incumprimento definitivo do contrato por parte da Autora.

            Verifica-se, assim, uma clara interconexão entre ambas as causas de pedir, a legitimar a admissibilidade da reconvenção.

            2.4.- A alteração de facto

            A Apelante pretende que se julgue provado que:

“ a Apelante se ofereceu para cumprir a prestação prometida através da interpelação admonitória remetida à Apelada, datada de 4/7/2013”.

            Indica como prova o doc. de fls. 28 (carta enviada à Apelada) e o doc. de fls. 302 (carta da M…).

            Os documentos juntos assumem a natureza de documentos particulares (arts.363 nº3, 373 CC ), com a força probatória reconhecida no art.376 nº1 e 2 CC.

Os documentos particulares, se não for impugnada a letra e a assinatura, fazem prova plena em relação às declarações atribuídas, ou seja, apenas fazem prova da materialidade das declarações (art.376 nº1 CC ).

Dispõe o art.376 nº2 CC que os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que sejam contrários aos interesses do declarante, sendo indivisível a declaração, nos termos estatuídos para a prova por confissão.

A razão de ser da atribuição de força probatória plena às declarações desfavoráveis ao declarante que constem de documento particular assenta no facto de poder ser concebida como confissão extrajudicial (cf. arts.358 nº2 e 376 nº2 CC).

A confissão, enquanto “ reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária “ (art.352 CC), se for efectuada em documento autêntico ou particular “ considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos, e se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena “ (art.358 nº2 CC).

Por isso, tratando-se de documento particular, os factos compreendidos na declaração consideram-se plenamente provados na medida em que sejam desfavoráveis ao declarante, estando pressuposto que a declaração é recipienda, produzindo os seus efeitos jurídicos somente quanto ao real destinatário. E o art.358 CC distingue consoante o destinatário é a parte contrária ou um terceiro, tendo força probatória plena apenas no primeiro caso, dadas as maiores garantias de seriedade e de ponderação que a confissão oferece. É que os factos objecto da declaração que forem contrários aos interesses do declarante apresentam-se como factos objecto de confissão, considerando-se provados nos termos gerais da confissão, pois “ a regra do nº2 do art.376 constitui uma presunção fundada na regra de experiência de quem afirma factos contrários aos seus interesses o faz por saber que são verdadeiros (…)” ( Vaz Serra, RLJ ano 110, pág.85 ).

Quanto à confissão extrajudicial, diz o art.358 nº2 do CC que a “confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”, sendo que a “confissão judicial ou extrajudicial pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios de vontade, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão, se ainda não tiver caducado o direito de pedir a sua anulação”.

Como ensina Vaz Serra, “ Os factos compreendidos na declaração e contrários aos interesses do declarante valem a favor da outra parte, nos termos da confissão, sendo indivisível a declaração nesses termos. Portanto, nessa medida, o documento pode ser invocado como prova plena, pelo declaratário contra o declarante; em relação a terceiros, tal declaração não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal” (R.L.J., ano 114, pág. 287).

Por conseguinte, o documento, ainda que reconhecida a sua autoria, só pode ser invocado como prova plena pelo declaratário contra o declarante. Nas relações com terceiros a declaração constante do documento apenas vale como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal.

Daqui resulta, que não estando admitido tal facto, tanto que a Ré impugnou a veracidade do mesmo (do teor da declaração do documento de fls. 302) (cf. arts. 50, 51, 77 contestação), não assumindo os documentos força probatória plena, é manifesto que apenas se pode dar como provado o que consta da declaração de fls. 28, conforme está descrito no ponto 3 (do elenco dos factos provados).

2.5.- A alienação a terceiros e o incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda – a resolução (in)fundada do contrato e o abuso de direito

            A sentença recorrida considerou que a alineação dos lotes (nº2 e 3 ) a terceiro consubstanciou incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda a legitimar substantivamente a resolução do contrato, por parte da Ré (promitente compradora), mas sancionou a promitente vendedora apenas com a restituição do sinal em singelo, afastando o duplo sinal, com base no abuso de direito e da concorrência de culpa por parte da promitente compradora, em face da situação de mora.

            Nesta medida, julgou improcedente a acção (quanto ao pedido de declaração da ilicitude da resolução) e parcialmente procedente o pedido reconvencional, com a condenação da Autora (promitente vendedora) na restituição do sinal em singelo.

            Em contrapartida, objecta a Autora/Apelante dizendo inexistir fundamento para a resolução do contrato, sendo, por isso, uma resolução ilícita.
A impostação do problema, face à pretensão das partes, situa-se aqui em sede de responsabilidade civil contratual, concretamente quanto ao incumprimento do contrato promessa de compra e venda e as implicações decorrentes.

            A Autora, G…, Lda (na qualidade de promitente vendedora) e Imobiliária Quinta das Conselheiras SA (na qualidade de promitente compradora), celebraram, em 25/6/2003, contrato promessa de compra e venda bilateral de três lotes de terreno (lotes 1, 2 e 3), pelo preço de € 1.430.000,00, posteriormente alterado para o valor de € 1.800.000,00.

            Foi alegado (art. 2º pi) que a Ré H…, SA se substituiu na posição de promitente compradora e a Ré admitiu tal facto (art.6º cont.), e embora sem qualquer concretização, a verdade é que está assente que a Ré assume a posição contratual de promitente compradora. De resto, a anterior acção (nº …) foi intentada pela H…, SA contra a G…, Lda.

O contrato promessa tem por objecto uma obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido (contrato de compra e venda), reconduzindo-se a uma obrigação de prestação de facto positivo. E por força do princípio da equiparação (art.410 nº1 do CC), ao contrato promessa são aplicáveis as normas relativas ao contrato prometido, com excepção das relativas à forma e as que, por razão de ser, não se devam considerar extensíveis.
            Quando postergado o cumprimento voluntário do contrato promessa, desiderato natural do dever bilateral das partes, o incumprimento (lato sensu) legitima o contraente lesado a uma concorrência alternativa entre o direito de resolução e a execução específica (cumprimento forçado).
            Problematiza-se o incumprimento do contrato promessa de compra e venda e a consequente validade (licitude) da resolução do contrato feita pela Ré (por carta de 1/7/2013), bem como da restituição do sinal em dobro, nos termos do art.442 nº2 do CC (pretensão reconvencional).
            Importa, antes de mais, saber se a sanção da perda de sinal ou da restituição do sinal em dobro pressupõe incumprimento definitivo ou também a simples mora.

Para tanto, adere-se à orientação (prevalecente) de que que a resolução e a restituição do duplo sinal pressupõe o incumprimento definitivo, e já não apenas a simples mora. (cf., por ex., Galvão Telles, Direito das Obrigações, pág.112, Januário Gomes, Tema de Contrato Promessa, pág.64 e segs., Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág.279, Sousa Ribeiro, “ O Campo de Aplicação do Regime Indemnizatório do artigo 442 do Código Civil: Incumprimento Definitivo ou Mora?”, BFDUC, volume comemorativo, 2003, pág.209 e segs.; Ac STJ de 2/12/92, BMJ 422, pág.335, de 25/2/93, BMJ 424, pág.654, de 18/1/95, C.J. ano III, tomo I (1995), pág.35 ), de 13/1/2009 e 21/5/2009, em www dgsi.pt).
            A validade da resolução pressupõe a comprovação do incumprimento definitivo imputável à Autora (promitente vendedora), que tanto pode reportar-se à prestação principal, como incidir sobre os deveres acessórios de conduta, desde que assumam gravidade tal que afecte a base de confiança subjacente.
Pressuposto material condicionante do exercício do direito de resolução é o incumprimento (lato sensu), cujo conceito globalizante se postula da conjugação do quadro normativo básico (arts.793, nº2, 799 nº1, 801 nº2, 802 e 808 Código Civil), de forma a abarcar a falta, recusa ou impossibilidade definitiva (parcial ou total) de cumprimento (incluindo o não cumprimento por força do art.808, e o cumprimento defeituoso) tanto dos deveres de prestação principal e secundários, como outros deveres de comportamento com reflexos no fim contratual (cf. Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, pág.114 e segs.).
            A mora apenas legitima a resolução quando convertida em incumprimento definitivo (arts.801 nº2 e 802 nº2 ex vi art.808 do CC), quer pela perda objectiva de interesse do credor, ou então pelo recurso à interpelação admonitória, com a fixação de prazo razoável, apenas dispensável se houver uma recusa antecipada do devedor em cumprir.
O carácter definitivo do incumprimento do contrato promessa ocorre nas seguintes situações: se em consequência da mora do devedor, o credor perder o interesse na prestação; se, estando o devedor em mora, o credor fixar um prazo razoável para cumprir (prazo admonitório) e aquele não realizar a prestação, se o devedor declarar inequivocamente ao credor que não cumpre o contrato (recusa de cumprimento).
            Em 30/4/2008 foi instaurada a acção nº … que culminou com o acórdão da Relação de Coimbra de 19/6/2013 que, revogando a sentença, absolveu ambas as partes dos pedidos (da acção e reconvenção). O acórdão considerou que o contrato promessa mantém-se plenamente válido e eficaz, os prazos de caducidade não podem ser invocadas por nenhuma das partes, o valor do sinal é de € 400.000,00 e que não se verificou incumprimento definitivo a justificar o pedido de resolução, porque a promitente compradora estava apenas em mora.
Verifica-se que na pendência desta acção, mais precisamente na pendência do recurso, a Autora (promitente vendedora), em 21/1/2013, vendeu os lotes a terceiros.
            Sobre as implicações da anterior acção, importa, desde já, fazer duas observações:
            A primeira, no sentido de que inexiste a excepção de caso julgado, conforme já decidido na sentença (e não impugnado), pois a venda dos lotes configura uma situação nova, não apreciada pela Relação (acórdão de fls. 36 e segs.), e como tal um novo fundamento de resolução.
            A segunda, para realçar a extensão do caso julgado porque tendo o acórdão revogado a sentença, considerou nos seus fundamentos que a aqui Ré H… (promitente compradora) não incumpriu definitivamente no contrato, estando apenas em mora, afirmando, contra a posição de ambas as partes, a manutenção do contrato promessa.

Como é sabido, diverge-se, tanto ao nível jurisprudencial, como doutrinário, sobre a extensão do caso julgado, perfilando-se três orientações: tese lata (o caso julgado abrange a causa de pedir e os pressupostos da sentença), tese restrita (o caso julgado apenas abrange a decisão) e tese mista ou ecléctica ( o caso julgado incide sobre a decisão e a motivação, desde que seja um antecedente lógica dela, indispensável a reconstruir e fixar o respectivo conteúdo).

 O art.660 do CPC de 1939 continha um parágrafo único que dizia - “Consideram-se resolvidas tanto as questões sobre que recair decisão expressa, como as que, dados termos da causa, constituírem pressuposto ou consequência necessária do julgamento expressamente proferido”.

Sobre ele ensinava Alberto dos Reis que “o parágrafo único contém uma regra da maior importância e ao mesmo tempo da maior delicadeza. Aceita o julgamento implícito, aplicando-o às questões que, dados os termos da causa, constituírem pressuposto ou consequência necessária do julgamento expresso. É a doutrina dos autores de maior categoria científica. Mas não pode deixar de reconhecer-se que o princípio é perigoso, pelo que a jurisprudência deve fazer dele uso prudente e moderado” ( CPC Anotado, vol.V, pág.59 ).

A Reforma de 1961 suprimiu esse parágrafo único, com a seguinte justificação: ”o problema da extensão (objectiva) do caso julgado aos motivos da decisão não está ainda suficientemente amadurecido na doutrina nem na jurisprudência, em termos de permitir ao legislador o enunciado claro duma posição. Por isso, à semelhança do que se fez no artigo 96, julga-se que a atitude mais prudente é a de não tocar no problema e deixar à doutrina o seu estudo mais aprofundado e à Jurisprudência a sua solução, caso por caso, mediante os conhecidos de integração da lei “(BMJ 123, pág.120 ).

Entende Rodrigues Bastos “ser de concluir que embora as premissas da decisão não adquiram, em regra, força de caso julgado, deve reconhecer-se-lhes essa natureza, quer quando a parte decisória a elas se referir de modo expresso, quer quando constituírem antecedente lógico, necessário e imprescindível, da decisão final (Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 230).

Para Teixeira de Sousa, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão (Estudos Sobre o Novo Processo, pág.578).
Deve, por isso, acolher-se a teoria ecléctica ou mista sobre os limites objectivos do caso julgado (cf., por ex., Ac STJ de 12/7/2011 (proc. nº 129/07), Ac STJ de 26/3/2015 (proc. nº1847/08), disponíveis em www dgsi.pt).
            Sendo assim, afirmado como antecedente lógico da decisão da Relação que a Ré H… não incumpriu definitivamente o contrato, não pode agora, sob pena de violação do caso julgado, trazer-se à colação actuação da Ré (promitente compradora) coberta pelo acórdão da Relação para daí extrair e projectar aqui uma situação de incumprimento (definitivo) que já fora rejeitado. Ao fim e ao cabo é isso que a Autora, de certa forma, acaba por fazer. Sirva de ilustração, por exemplo, a alegação da Apelante no sentido de que a recusa da Ré em outorgar a escritura (cf. alínea T)) significa uma inequívoca manifestação de vontade de não cumprir (cf.24ª conclusão), o que foi refutado pelo acórdão

No âmbito das hipóteses de incumprimento do contrato promessa de compra e venda surge a venda do bem (objecto do contrato) a terceiro.

Normalmente a venda a terceiros (no contrato promessa com eficácia meramente obrigacional) coloca o promitente vendedor numa situação de incumprimento definitivo, por impossibilidade de cumprimento, visto perder a disponibilidade do bem e, nessa medida, inviabilizar o cumprimento da promessa. Ela integra-se, de certa forma, na modalidade de recusa de cumprimento, também chamado de “incumprimento definitivo ipso facto”, e cuja eficácia da declaração é imediata (cf., Brandão Proença, A resolução do Contrato no Direito Civil, pág.89 a 92, Antunes Varela, RLJ ano 121, pág.223 e segs.).

Com efeito, a venda a terceiro implica a transmissão da propriedade (art.879 a) CC) pelo que o promitente deixa de ter a disponibilidade do bem. Se o fizesse estaria a operar a venda de bem alheio, proibida por lei (art.892 CC).

Neste contexto, é prevalecente o entendimento de que a alienação a terceiro do bem objecto do contrato promessa, com eficácia meramente obrigacional, importa incumprimento definitivo ( cf. Vaz Serra, RLJ ano 100, pág. 254 e segs., Ana Prata, O Contrato Promessa, pág. 693 e segs., Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reiais, pág. 234, Galvão Telles, Direito das Obrigações, pág. 90, Mota Pinto, “ Contrato Promessa”, CJ ano X, III, pág. 41 e segs.); Ac RC de 14/9/2010 (proc. nº 2658/06) em www dgsi.pt).

Pode acontecer que, apesar da alienação, o promitente vendedor conserve a disponibilidade do bem, argumentando-se com a “infungibilidade relativa”, como no situação descrita no Ac STJ de 30/6/2009 (proc. nº 3595/06.1TBBCL), em www dgsi.pt (a venda tinha sido feita a uma sociedade em que os únicos sócios eram os promitentes vendedores), mas não é este o caso.

O contrato promessa tem eficácia meramente obrigacional, criando para os sujeitos do negócio jurídico a obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos termos especialmente previstos na lei (art.406 nº2 do CC).

            Mas do art.410 nº1 do CC não resulta que o contrato a celebrar a final (contrato prometido) tenha de ser feito entre os sujeitos que no contrato promessa são partes, sendo admissível que a obrigação de contratar dele emergente se reporte a um terceiro ou acabe por ser assumida por este. A intervenção de um terceiro na obrigação de contratar pode derivar de várias fontes, com regimes específicos, seja através da “promessa de contrato por terceiro”, de um “contrato para pessoa a nomear”, de uma cláusula de “reserva de nomeação” ou de uma “cessão da posição contratual”.

            Não tendo ocorrido qualquer modificação subjectiva, o terceiro adquirente dos lotes (objectos do contrato promessa) não assumiu qualquer obrigação perante a promitente compradora, que assim permanece estranho à obrigação emergente do contrato promessa.

            Há, no entanto, quem entenda que a prestação de um promitente pode ser feita por um terceiro, mesmo que estranho, nos termos do art.767 CC (cf., por ex., Ac STJ de 3/7/2008 (proc. nº 08B1735), em www dgsi.pt), mas tratando-se de uma situação de “infungibilidade relativa”, ou a “infungibilidade tendencial da obrigação de contratar” significa estar limitado elenco dos terceiros intervenientes (cf. Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, pág. 65).

            Assume relevância a circunstância de as partes haverem convencionado (cf. cl. 8ª) que “ a escritura de compra e venda será efectuada em nome da segunda outorgante ou em nome de quem esta vier a indicar”, e a interpretação que se colhe, segundo o critério dos arts. 236 e 238 CC, é de que pretenderam a cláusula de nomeação apenas relativamente ao comprador, e já não do lado do vendedor. Acresce que não foi sequer convencionada uma promessa de facto de terceiro (vendedor).

É certo ser consensual a doutrina da validade do contrato promessa de coisa alheia, mas, neste caso, impõe-se que o promitente vendedor adquira o bem ou passe a ter legitimidade para o alienar, sob pena de incumprimento definitivo e correspondente responsabilidade civil.

Por outro lado, há que distinguir a promessa de venda de bens alheios com a promessa de venda por terceiro, como sendo aquela em que o promitente se obriga para com o promissário a conseguir que o verdadeiro proprietário lhe venda determinado bem, cabendo a este terceiro (e não ao promitente) a realização da venda.

Concorda-se com a sentença, quando, a dado passo, se argumenta com os seguintes tópicos:

“ A prestação a cargo do promitente pode ser transmitida a terceiro, mas para isso torna- se necessário um ato de transmissão, via sucessória ou contratual (v.g. cessão da posição contratual), o que aqui não teve lugar.

Além disso, na situação dos autos, o promitente-comprador já efetuou a entrega de sinal. Fê-lo ao promitente vendedor e não a terceiro, não lhe sendo exigível, por outro lado, que aguarde que o terceiro se apresente a cumprir prestação a que se não acha vinculado e aceite abater no preço (e que preço?) o sinal recebido por outrem.

 “Se o terceiro não aceitar a venda, como fazê-lo intervir em ação específica intentada ao abrigo do disposto no art. 830.º CC?

Por outra parte, não obstante ser válida a promessa de compra e venda de bens alheios, aqui se fazendo intervir uma exceção ao chamado princípio da equiparação, uma vez que através do contrato de promessa os promitentes apenas se obrigam a celebrar uma prestação no futuro, a verdade é que não pode deixar se de entender que, celebrada promessa de bens que, no momento do negócio, pertencem ao promitente vendedor, caso este os aliene posteriormente, esse seu comportamento não pode deixar de ser visto como incumprimento contratual grave, nos termos assinalados pela doutrina.

Entender coisa distinta é abrir uma brecha grave nas regras que disciplina o cumprimento contratual e colocar o promissário à mercê das mais variadas arbitrariedades do promitente vendedor. De resto, ainda admitindo que se provasse, nesta ação, que o terceiro está disposto a  vender, ficaria desprotegido o  promitente-comprador, caso  aquele, posteriormente, se resolvesse a não cumprir com o que pode ser uma boa intenção atual, sobretudo quando se verifica – como aqui ocorre – que o terceiro adquirente já alienou, ele próprio, os bens em causa.

Mais: como compatibilizar essa remota e hipotética possibilidade de vir a obter o cumprimento do contrato por terceiro, quando é certo que é a própria A. – promitente vendedora -, por si e após ter vendido os imóveis que se mantêm na propriedade de terceiro, a remeter à promissária comunicação concedendo-lhe prazo de 30 dias para realização da prestação sob pena de incumprimento definitivo e de apropriação do sinal?

Isto é, a alegação de que o terceiro se dispõe a cumprir é, face aos contornos da situação e da resolução que decorre da interpelação para cumprir em determinado (interpelação admonitória entendida por necessária pelo acórdão proferido na ação que opôs as partes), uma alegação desprovida de significado substancial: caso se não entenda que o negócio está incumprido por via da alienação a terceiro e, por tal razão, resolvido pela Ré, estará resolvido pela A. mercê da interpelação remetida por carta de 4.7.2013.

Com esta comunicação, a A. resolveu o negócio, pelo que considerar que, com a venda que anteriormente efetuada, o mesmo negócio não resulta já impossível é um raciocínio falacioso. Mesmo a apurar-se que um qualquer terceiro, seja ele qual for, pretende transferir para a Ré a propriedade por efeito do contrato celebrado com a A., a verdade é que esta última já manifestou a sua intenção resolutiva e, como se sabe, a resolução opera por mero efeito da notificação (art.436.º, n.º 1 CC).

Do que vem de se expor resulta que, tendo a A. incumprido a prestação que para si decorria da promessa de venda à Ré, alienando para terceiro o objeto mediato da promessa, não afasta tal incumprimento a invocação de que o terceiro adquirente está na disposição de transmitir o bem ao promissário.”

Considera a Apelante que a resolução do contrato revela-se sem fundamento porque procedeu à venda dos lotes na pendência da acção onde ambas as partes peticionavam a resolução, confirmada por decisão da primeira instância, embora não transitada, pelo que não havia expectativa de manutenção do contrato promessa. Por outro lado, assevera que o direito potestativo de resolução é abusivo, porque a Ré manifestara anteriormente uma vontade inequívoca de não cumprir o contrato.

A pendência da acção e a posição nela assumida pelas partes não legitimava a desvinculação ao contrato promessa, pelas simples razão de que o mesmo se mantinha em vigor, tanto que o pedido de resolução acabou por não ser validado, e a venda dos lotes foi efectivada já na fase do recurso. Ora, uma declaração de resolução infundada é uma declaração ineficaz, em virtude da ausência do correspondente e indispensável direito potestativo e uma sentença que reconheça a inexistência de fundamento de resolução tem como efeito declarar que o contrato se não extinguiu, subsistindo a relação contratual (cf. Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, Vol I, pág. 166,  Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual, II, pág. 1676 ).

É certo que uma resolução sem fundamento, ainda que ineficaz, pode assumir “valor sintomático” na execução do contrato, e porventura equiparar-se até à recusa de cumprimento, por implicar uma ruptura com a vinculação contratual e afectar a base de confiança, o que postula um problema de interpretação (cf., por ex., Joana Farrajota, A Resolução do Contrato Sem Fundamento, pág. 178, 216 e segs.). No entanto, como já se observou, de acordo com os fundamentos lógicos do acórdão da Relação as posições das partes, máxime quanto aos pedidos de resolução, não assumiram tal valor de incumprimento definitivo, o que motivou a absolvição, estando, por isso, também a coberto pelo caso julgado.

Concluiu-se, portanto, pelo incumprimento definitivo por parte da Autora (promitente vendedora) e a Ré (promitente compradora) estava legitimada a exercer o direito potestativo de resolução do contrato promessa, o que equivale a dizer que a declaração de resolução, emitida (em 1/7/2013) extrajudicialmente (cf. doc. de fls. 26 ) não é ilícita ou infundada.

O art.334 do CC diz que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Aceitando o legislador a concepção objectiva, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social e económico do direito exercido.

O instituto do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico e a jurisprudência tem exigido que o exercício do direito se apresente em termos clamorosamente ofensivos da justiça.

Ora, o fundamento para a resolução do contrato promessa é a alienação dos lotes a terceiros, facto novo surgido após a sentença proferida na anterior acção, e que consubstancia incumprimento definitivo, pelo que não se evidencia que haja abuso de direito no seu exercício, ou seja, na desvinculação motivada da promessa com essa causa.

Já quanto às respectivas consequências, ou seja, ao pedido reconvencional da restituição do duplo sinal, a sentença é exemplar ao valorar o incumprimento temporário da Ré – a mora – na realização da escritura (desde 27/9/2007), ao fazer intervir o abuso na modalidade do “tuquoque” e do princípio da justiça baseado no art. 570 nº1 do CC, para desse modo reduzir a indemnização ao sinal em singelo.

2.6.- Síntese Conclusiva

i)A resolução do contrato promessa de compra e venda e a restituição do duplo sinal pressupõe o incumprimento definitivo, e já não a simples mora.
ii)A mora apenas legitima a resolução quando convertida em incumprimento definitivo (arts.801 nº2 e 802 nº2 ex vi art.808 do CC), quer pela perda de interesse do credor, só relevante se for objectiva, ou então pelo recurso à interpelação admonitória, com a fixação de prazo razoável, apenas dispensável se houver uma recusa antecipada do devedor em cumprir.

iii)Normalmente a venda a terceiros (do objecto do contrato promessa) coloca o promitente vendedor numa situação de incumprimento definitivo, por impossibilidade de cumprimento, visto perder a disponibilidade do bem e, nessa medida, inviabilizar o cumprimento da promessa.

iv)Sobre os limites objectivos do caso julgado, deve adoptar-se a tese ecléctica ou mista, no sentido de que o caso julgado incide sobre a decisão e a motivação, desde que seja um antecedente lógica dela, indispensável a reconstruir e fixar o respectivo conteúdo.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar apelação improcedente e confirmar a sentença.

2)

            Condenar a Apelante nas custas.

            Coimbra, 10 de Novembro de 2015.


( Jorge Arcanjo )

( Manuel Capelo)

( Falcão de Magalhães )