Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
58 /08.4TATBU-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
EXTINÇÃO
Data do Acordão: 10/22/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 146.º, N.º 2, E 160.º, N.º 2, DO CSC; ARTIGOS 127.º E 128.º, DO CP
Sumário: I - A declaração de insolvência não extingue de per si a sociedade; tão só, priva-a do poder de administrar e de dispor de bens que, a partir daquele momento, passam a integrar a massa falida que é administrada pelo liquidatário judicial.

II - Assim, após declaração de insolvência, as sociedades comerciais mantêm personalidade judiciária; esta só se extingue com o registo do encerramento da liquidação.

Decisão Texto Integral:         Acordam, em conferência, na 5ª secção, criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Nos autos de Proc. Comum singular nº 58/08.4 TATBU, foi a arguida A..., Lda, condenada pela na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p.p. pelo disposto nos arts 7º nºs 1 e 3, 107º nº1 e 2 e 105º nº4 do RGIT, por referência ao disposto no artº 6º do Dec.Lei nº 103/80 de 9 de Maio, na pena de 360 dias de multa à taxa diária de 5,00.

Após transito em julgado desta condenação e quando decorriam diligencias tendentes à obtenção do pagamento da multa, foi junta aos autos certidão da sentença que declarou a arguida em situação de falência (fls.94 ).

O Ministério Público, logo que teve conhecimento da declaração de falência, pediu certidão da sentença condenatória para reclamar o crédito relativo à multa e custas, fls. 68, e promoveu que os autos aguardassem o registo de declaração da liquidação da sociedade arguida.

Conclusos os autos à Ex. ma Juiz, proferiu o despacho de fls. 97 a 100 vs, que aqui se tem por inteiramente reproduzido, e onde depois de dar nota das divisões jurisprudenciais acerca da aplicação do artº 127º nº1 do CP, às pessoas colectivas declaradas falidas ou insolventes, e de tecer longas considerações doutrinais acerca da responsabilidade criminal das pessoas colectivas depois de entrarem em processo insolvencial ou falimentar, decidiu pela extinção da responsabilidade criminal da arguida A..., Lda.

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Inconformado com este despacho, veio o Ministério Público apresentar recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes

Conclusões
A. Nos presentes autos a sociedade arguida “ A..., Lda.”, foi condenada por sentença datada de 01.06.2009, transitada em julgado em 18.01.2010, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p.p. pelos artigos 105º do RGIT (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05 de Junho);
B. No âmbito do processo nº 207/04.1TBTBU-C que correu termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Tábua foi esta sociedade declarada falida por sentença datada de 23.04.2009;
C. Por despacho datado de 31.10.2013, o Tribunal a quo declarou extinta a responsabilidade criminal desta sociedade, arguida nos presentes autos, sem que constasse dos autos informação sobre o registo do encerramento da liquidação desta, antes pelo contrário; Aliás, consta dos autos despacho judicial a determinar que se aguarde o encerramento da liquidação de activo (fls. 397), bem como que os autos de insolvência aguardem que o liquidatário judicial junte comprovativos de pagamento aos credores (fls. 412);
D. O Código Penal consagra no artº 11º a responsabilidade das pessoas colectivas sendo que o artº 7º do RGIT também consagra a responsabilização destes entes; e que o artº 127º nº1 do Código Penal consagra como causa de extinção da pessoa singular, a morte;
E. Ao apelar à similitude de situações (aplicando a mesma linha de pensamento e raciocínio) não poderemos olvidar que a extinção da pessoa coletiva (o “sistema organizativo” de que fala o Tribunal a quo) – uma criação instrumental do mundo normativo – não determina automaticamente a extinção da sua responsabilidade criminal;
F.  No caso das sociedades comerciais, o substrato patrimonial we pessoal das mesmas desaparece com o termo da sua personalidade jurídica que ocorrerá apenas aquando do registo do encerramento da liquidação, conforme consta do artigo 160º nº2, do Código das Sociedades Comerciais;
G. Pelo que a responsabilidade criminal das sociedades comerciais não se extingue com a declaração de insolvência, nem com a entrada desta em liquidação, não obstante a existência de uma eventual impossibilidade factual de agir contra a entidade criminalmente responsabilizada na execução da pena que lhe foi aplicada;
H. Na verdade, in casu, não se pode considerar que a sociedade arguida se encontra juridicamente extinta e muito menos que a mesma já não é criminalmente responsável;
I. Pelo que foram violadas aquando da emanação do Despacho Judicial de fls. 421  e seguintes dos autos os artigos 141º nº1, alínea e), 146º nº2 e 160º nº 2 do CSC, artigos 11º, 127º, nº2 e 128º do Código Penal r e artigos 7º e 105º do RGIT e artigo 475º do Código de Processo Penal
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O recurso foi recebido a subir imediatamente, em separado com efeito devolutivo.

A Ex.ma Juiz sustentou o despacho recorrido, referindo que o facto fundamento onde radicou a equiparação ao facto morte decisão recorrida não residiu na declaração de insolvência, mas a situação insolvencial com posterior ingresso em processo de liquidação.

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Não foi apresentada resposta.

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Instruídos os autos, foram remetidos a esta Relação onde foram continuados, ao Ex.mo Procurador Geral Adjunto que neles lavrou Parecer concordando com o recurso da 1ª instância, e acrescentando vasta jurisprudência do STJ e da Relações no mesmo sentido, defendeu a procedência do recurso.

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Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

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Quid Juris?

A questão de saber se a declaração de insolvência do ente colectivo, para uns, ou o início do processo de liquidação que lhe é subsequente, para outros, se pode equiparar à morte das pessoas singulares, tem dividido a doutrina e a jurisprudência.

Ponderados os argumentos de ambos os lados da contenda jurisprudencial, aderimos aqueles que entendem que a “morte” do ente colectivo só ocorre com o registo do encerramento da liquidação, conforme dispõe o nº 2 do artº 160º do CSC.

As razões desta opção assentam nos argumentos tecidos no Ac. STJ de 12-10-2006, proferido no processo 0B92930, relatado pelo Sr. Cons. Pereira Madeira, de onde extraímos o trecho seguinte:

"A pessoa colectiva ou a pessoa jurídica aparece no mundo da normatividade como "unidade organizatória" que é centro autónomo de imputação funcionalmente construído.
”A realidade material de interesses que [a] unidade organizatória” consubstancia, ao revestir a forma jurídica de pessoa colectiva, densifica-se ainda mais e surge-nos com sentido e vocação para uma função apelativa, conquanto instrumental. E instrumental porque insusceptível [...] de uma recondução a uma dimensão onto-antropológica, que acompanha, [...], um qualquer agir comunicacional de uma pessoa concreta. A possibilidade de se imputarem factos, juridicamente relevantes, à pessoa colectiva reduz a complexidade [...] e aumenta [...] o grau de eficiência e fluidez sistemática de todo o ordenamento jurídico." [Cf. José de Faria Costa, "A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2.º (1999), pp. 537-559.]

Por isso, o que releva essencialmente é a existência de um centro de imputação funcionalmente construído, que pode não desaparecer como realidade material de interesses ao lado da respectiva função instrumental e é, por isso, independente desta no caso de continuidade organizatória e de prossecução das respectivas finalidades.

Na ponderação metodológica e intervenção dos critérios da analogia, a similitude de relações e a comparação numa mesma racionalidade entre a morte da pessoa singular e as formas de extinção das pessoas colectivas só podem ser encontradas se e quando a existência, como construção jurídica instrumental, de uma pessoa colectiva cessar, não em perspectiva funcionalista estritamente jurídica mas cessação e desaparecimento de todos os elementos integrantes da pessoa colectiva, não apenas o suporte jurídico mas também o corpus e o respectivo substrato.

Dependerá da natureza das pessoas colectivas que estejam em causa, da respectiva finalidade e dos modos da sua realização.

Com efeito, só na medida em que possa ser encontrada na diferença entre pessoas singulares e colectivas uma mesma racionalidade, poderá ser equiparada a categoria do artigo 128.º, n.º 1, do Código Penal à extinção de uma pessoa colectiva.»

Pois bem.

Não é preciso dizer mais, e com dificuldade se poderia dizer melhor na exposição desta doutrina que, naturalmente, se continua a seguir por se manter válida e actual.
Importa reter, em suma, que «a
assimilação, a extensão ou a equiparação da noção de "morte", exclusiva, na natureza e na configuração directamente normativo-jurídica, das pessoas singulares, às formas de extinção das pessoas colectivas, para os efeitos de determinar a aplicabilidade (ou as dimensões relevantes de aplicabilidade) dos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal e 90.º do RGDMOS, só poderá, pois, ter lugar se e enquanto puder compreender-se e ser pensada nos critérios e instrumentos metodológicos do pensamento analógico

Há, por isso, que apelar à "similitude de relações" e à comparação, invocando a correspondência ou semelhança, e à assimilação de qualidades diferentes numa mesma racionalidade, que possa justificar, no plano normativo, a razão de associação na diferenciação – critérios metodológicos do same level reasoning próprios do pensamento analógico, que, como se salientou, constitui a fundamentação dogmática essencial da responsabilidade criminal das pessoas colectivas e da responsabilidade por contra-ordenações no que seja comparada ou regulada pelos princípios e disposições próprios do direito penal

No caso, essa «similitude de relações», não existe.

Com efeito, pese embora a declaração de falência, resta um espesso «substrato» da sociedade em causa, circunstância que, à saciedade, impede que se defenda que da pessoa jurídica, nada mais resta, tal como de pode afirmar da pessoa do ser humano após a morte.
De resto, como bem salienta o recorrente, por força do disposto no art. 141°, nº 1,
e), art. 146°, nº 2 e art. 160°, nº 2, todos do CSC, se é certo que as sociedades comerciais se dissolvem pela declaração de falência, o certo é que, ao invés das pessoas singulares cuja personalidade cessa com a morte – art.º 68.º, n.º 1, do Código Civil – aquelas mantêm a personalidade jurídica na fase da sua liquidação, considerando-se apenas extintas pelo encerramento dessa liquidação. E, como aponta o mesmo recorrente podem, nesse interim, ser objecto de vicissitudes várias, entre elas o reatamento da actividade nas condições previstas na lei. Nem se diga, como o faz a recorrida, que decisão contrária à impugnada não tem qualquer efeito. As penas previstas para as sociedades comerciais são, naturalmente, de natureza não pessoal, em geral, sanções pecuniárias. Como tal, quando existam, podem e devem ser levadas em conta, no momento da liquidação, assim atingindo o objectivo para que foram previstas, o que reforça a demonstração de que a falência da sociedade não pode para o efeito em causa, ser equiparada à morte da pessoa singular, já que, em relação a esta, pena alguma pode surtir efeito após esse evento fatal do ser humano”.

Ora, se como melhor dá nota do texto do aresto acabado de citar, a declaração de falência não extingue de per si a sociedade, mas tão só priva-a do poder de administrar e de dispor de bens que, a partir daquele momento, passam a integrar a massa falida que é administrada pelo liquidatário judicial, artigo 147.º/1 do CPEREF, não se vê como se possa equiparar esta declaração à morte das pessoas singulares.

Com efeito, com a declaração de insolvência, há como que uma inibição dos poderes de administração e disposição mas não a extinção da pessoa colectiva, nomeadamente para efeitos de responsabilidade criminal.

De harmonia com o que dispõe o artigo 146.º/2 do CSC " A sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas."

Assim, conclui-se que as sociedades comerciais após a declaração de falência, mantêm a personalidade judiciária, que só se extingue com o registo do encerramento da liquidação, artigo 160.º/2 do CSC.

Em face do que se disse, não se vê como defender, como se fez no despacho recorrido, que o início da liquidação extingue a responsabilidade criminal da pessoa colectiva, digamos que a partir daí a pessoa colectiva está moribunda, ou mantém uma vida assistida, mas ainda não morreu, o seu “decesso” só ocorrerá com o acto formal de registo de liquidação do património que corresponde ao registo de óbito das pessoas singulares.

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Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em conceder provimento ao recurso, e nessa procedência revoga-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro, que em vez de declarar extinto o procedimento criminal da arguida, aguarde o registo de encerramento da sua liquidação.

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Sem tributação.

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Coimbra, 22 de Outubro de 2014

(Cacilda Sena - relatora)

(Elisa Sales - adjunta)