Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3963/20.6T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
ACORDO DE ADJUDICAÇÃO DE ALGUNS BENS A UM DOS INTERESSADOS
NA CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS
DIREITO A TORNAS
FUNÇÃO DO MAPA DA PARTILHA
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1248.º, 1 E 2; 1250.º E 1689.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 1110.º; 1111.º; 1120.º E 1121.º, DO CPC
Sumário:
1. - Em processo de inventário – em consequência de divórcio e, por isso, vocacionado para a liquidação integral das relações patrimoniais entre os (ex-)cônjuges –, havendo diversos bens a partilhar, o acordo, em conferência de interessados, no sentido de determinados bens (móveis) serem adjudicados a um ou outro dos interessados, por determinado valor pecuniário, enquanto outro bem (imóvel) seria por aqueles vendido a terceiro, mediante venda extrajudicial, não constitui uma transação sobre o objeto – total ou parcial – do litígio, mas apenas um passo rumo à efetivação da divisão/partilha judicial.
2. - Sendo diversos os ditos valores de adjudicação, tendo sido proferido despacho sobre a forma como deve proceder-se à partilha e não prescindindo um dos interessados das tornas a que considera ter direito, teriam os autos de inventário de prosseguir os seus termos, com vista à efetivação/realização cabal da partilha do património comum dos ex-cônjuges e apuramento quanto a tornas (art.ºs 1120.º e 1121.º do NCPCiv.).
3. - O mapa da partilha materializa a divisão, sujeita a homologação na sentença dos autos de inventário, contendo enunciação do ativo (e do passivo, se o houver), da quota de cada interessado e do preenchimento do respetivo quinhão com bens (ou lotes de bens), e sendo a peça processual que concretiza os direitos de cada interessado, quanto aos bens que lhe serão atribuídos e a tornas a prestar/receber.
4. - Num tal caso é infundada a conclusão, no tribunal recorrido, pela inutilidade da forma à partilha e do mapa de partilha.
Decisão Texto Integral:

2.ª Secção – Cível

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Em autos de inventário para partilha do património comum dos ex-cônjuges (após divórcio) AA (requerente e atual cabeça de casal) e BB (requerido), ambos com os sinais dos autos, iniciados em cartório notarial, mas remetidos, no modo legalmente admitido, ao Juízo de Família e Moneres de Coimbra ([1]), tendo aquela Cabeça de Casal apresentado a respetiva relação de bens ([2]), composta por bens móveis e um imóvel,

veio depois a ter lugar a conferência de interessados, importando essencialmente a sessão de 05/01/2023 (fls. 257 e segs. do processo físico), de cuja ata consta o seguinte:

«Iniciada a presente conferência, pelos interessados foi declarado que ambos se encontram de acordo quanto à divisão dos bens móveis, pela seguinte forma:

- - - Verba nº. 1 - O saldo existente nas contas bancárias, fica adjudicado a ambos os interessados em partes iguais;

- - - Verba nº. 2 - Veículo automóvel marca Peugeot, com a matrícula ..-..-GC, é adjudicado à cabeça de casal AA, pelo valor da avaliação €: 500,00;

- - - Verba nº. 3 - Veículo automóvel marca Nissan, com a matrícula ..-..-MF, é adjudicado ao interessado BB, pelo valor da avaliação, €: 2.000,00;

- - - Verba nº. 4 - Quota social de 2.500,00 euros, na firma “P..., Lda”, NIPC ...18, com capital social de 7.500,00 euros e sede em ..., freguesia ..., concelho .... É adjudicada ao interessado BB, pelo valor da avaliação €: 8.605,13;

- - - Verba nº. 5 - alíneas:

a) - Arca de madeira Wengue (panga-panga), é adjudicada à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 100,00;

b) - 4 vasos decorativos, são adjudicados à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 50,00;

c) - Mobília de um quarto, composta por uma cama de casal, uma cómoda, um espelho e duas mesinhas de cabeceira, é adjudicado à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 500,00;

d) - Credência em madeira, com espelho, é adjudicada à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 100,00;

e) - Arca em tons azulados, móvel de televisão e móvel de telefone, é adjudicada à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 100,00;

f) - Conjunto de tapetes de quarto, são adjudicados à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 50,00;

g) - incorporada na verba nº. 6;

h) - Mobília de sala, composta por um sofá de três lugares e uma lareira com recuperador de calor, é adjudicado à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 500,00;

i) - Mobília de um quarto, composta por uma cama de casal, duas mesinhas de cabeceira, uma cadeira e um armário com quatro portas e espelho embutido, é adjudicado à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 500,00;

j) - incorporada na verba nº. 6;

k) - incorporada na verba nº. 6;

l) - Móvel de televisão, televisão antiga e cadeira, é adjudicada à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 100,00;

m) - Mobília de um quarto, composta por uma mesa de canto, uma boneca de porcelana, um berço, uma cama de casal, duas mesinhas de cabeceira, uma cómoda e um espelho, é adjudicado à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 500,00;

n) - incorporada na verba nº. 6;

o) - 40 Quadros e outros objectos decorativos pendurados nas paredes, são adjudicados à cabeça de casal AA, pelo valor já acordado €: 100,00.

- - - Nesta altura, pelos interessados foi declarado que não pretendem ficar com a verba nº. 6 - "prédio urbano, composto de r/c com uma cozinha, uma casa de banho, uma despensa e uma garagem; 1º andar com quatro divisões, duas casas de banho e uma despensa; sótão amplo para arrumos e logradouro, sita no loteamento ..., Lugar ... e inscrito na matriz predial urbana com o n.º ...71 na União de Freguesias ..., não descrito na Conservatória do Registo predial, e com o valor patrimonial de € 125.971,65", tendo ambos acordado que vão diligenciar pela venda extrajudicial do imóvel, pelo valor mínimo de €: 200.000,00, requerendo para tal, a suspensão da instância pelo período de 6 meses.

- - - Seguidamente, A Mmª. Juiz proferiu o seguinte:

D E S P A C H O

Face ao acordado pelas partes e a fim dos mesmos providenciarem pela venda do imóvel em causa, suspende-se a presente conferência, mas pelo período de 3 meses - nº. 4 do artº. 272º. do CPC ---.

Notifique.».

A Cabeça de Casal veio, na sequência, indicar ter encontrado terceiro interessado na aquisição do prédio urbano (verba n.º 6), pelo valor de € 175.000,00, valor esse que aquela afirmou aceitar, aceitação também declarada pelo interessado BB.

Todavia, a Cabeça de Casal, por requerimento datado de 26/05/2023 (Ref. 45685252, a fls. 267 e segs. do processo físico), veio significar que «a escritura pública só será celebrada após o douto Tribunal efectuar a forma à partilha, para se apurar quais os valores que a Cabeça de Casal é credora a título de tornas, sobre o Interessado» e, bem assim, que «só após obter esse valor é que a Cabeça de Casal aceita celebrar a escritura pública, sendo que só outorgará tal acto mediante a entrega, pelo comprador, de metade que lhe cabe na venda, bem como do montante das tornas devidas pelo Interessado, a serem-lhe subtraídas à metade que lhe caberia, caso não existissem tornas a haver.». E logo reforçou que «Estas são as condições da Cabeça de Casal para a realização da escritura».

Na sequência, foi proferido despacho (datado de 30/05/2023, a fls. 270 do processo físico) com o seguinte teor relevante:

«Ref. 8096072 e 8099255: Resolvidas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar - artigos 547º e 1110º e ss. do Código de Processo Civil - determino o seguinte:

Atendendo à manifesta simplicidade da forma à partilha, procedo à adequação processual, e determino que se proceda à partilha da seguinte forma:

Ao valor dos bens relacionados subtrai-se o valor do passivo que venha a ser aprovado ou reconhecido. O resultado obtido divide-se em duas partes iguais, adjudicando-se a cada um dos interessados, conforme acordado em ata de conferência de interessados, que se homologa.

Notifique.

**

Quanto ao demais, considerando que falta partilhar a verba nº 6, estando os interessados de acordo em relação à venda do mesmo, e existindo já comprador interessado, aguardem os autos a realização da escritura pública.

Prazo: 30 dias.» (destaques aditados).

Por requerimento datado de 23/06/2023 (Ref. 45938124, a fls. 271 e segs. do processo físico), veio a Cabeça de Casal juntar “cópia da escritura de compra e venda da casa de habitação constante da verba 6” (fls. 273 e segs. do processo físico), da qual resulta a venda do imóvel, pelo preço de € 130.000,00, e de todo o recheio do mesmo (cfr. verba n.º 5), incluindo “mobiliário, eletrodomésticos e aquecimento central”, por € 45.000,00 [num total, pois, de € 175.000,00].

Montantes esses então “integralmente pagos”, “que já receberam” os outorgantes vendedores (os aqui interessados), mediante um total de quatro cheques (dois referentes ao preço do imóvel, de € 65.000,00, cada um, e dois referentes aos bens móveis/recheio, de € 22.500,00, cada um), de que, por isso, “prestam a respectiva quitação”.

Seguidamente, datada de 27/06/2023, foi proferida decisão ([3]) com o seguinte conteúdo:

«Ref. 8166505: A transação realizada em conferência de interessados – ref. 90186128 – é válida quanto ao seu objeto e pela qualidade dos respetivos intervenientes.

O cabeça de casal dos presentes autos de inventário facultativo vem informar que procederam à partilha do único bem comum do casal que faltava partilhar, juntando escritura de compra e venda realizada no dia 21 de junho de 2023.

Assim, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 293º, nº 2, 294º, 299º, e 300ºdo C.P.C., homologo-a por sentença, condenando o requerente destes autos de inventário para separação de meações e cabeça de casal, AA e o requerido BB, a observá-la nos seus precisos termos.

Custas em partes iguais, atendendo-se ao apoio judiciário de que goza a requerida.

O valor corresponde à soma do valor dos bens a partilhar (artigo 302.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Registe e notifique.».

A Cabeça de Casal, perante esta decisão, veio “reclamar e arguir a respectiva Nulidade”, aduzindo os seguintes motivos ([4]):

«1

Resulta dos Autos que não foi elaborado mapa da partilha, apesar de a Cabeça de Casal ter tornas a haver, que calcula no valor de 3.727,56 Euros.

2

A Cabeça de Casal ainda tentou que aquando da escritura de compra e venda da casa de habitação fosse resolvida essa questão com o interessado, porém este recusou-se a pagar-lhe as tornas que tem a haver da partilha dos bens móveis, e por isso o valor da alienação do imóvel foi dividido em partes iguais, ficando assim pendente a questão das tornas.

4

Pelo que, Salvo Melhor Opinião, não podia ter sido proferido o Douto despacho que antecede, e daqui vir reclamar e arguir a respectiva nulidade, sem prejuízo do recurso de apelação que poderá vir a ter de intentar dentro do prazo legal, nos termos do disposto no artigo 1123, nº 2, al. c) do CPC.

5

Pois considera a Cabeça de Casal que há manifesto lapso, ao não ser elaborado o mapa da partilha para apuramento das tornas, nos termos do disposto no artigo 1120º do C.P.C., tal como ao não ser notificada para os termos do disposto no artigo 1121º do C.P.C..

6

Pelo que vem requerer que seja dado sem efeito o Douto despacho/sentença que antecede, por haver lapso manifesto, e que seja ordenada a elaboração do mapa da partilha, dando cumprimento ao disposto no artigo 1120º e 1121º, ambos do Código do Processo Civil, dando-se assim provimento à presente reclamação e arguição de nulidade do Douto despacho proferido em 27-06-2023.».

E, inconformada, veio interpor o presente recurso, pedindo que lhe fosse fixado efeito suspensivo, com motivação e conclusões, tudo para concluir pela revogação da decisão recorrida.

É do seguinte teor o seu acervo conclusivo:

«I

A Recorrente tem tornas a haver no montante de 3.727,56 Euros, oriundas da partilha dos bens móveis.

II

Dos Autos, não consta a elaboração do mapa da partilha.

III

Tal omissão viola o disposto no artigo 1120.º e 1121.º do CPC.

IV

Deve a Douta Sentença ser revogada e ser substituída por Douto Acórdão que ordene a elaboração do mapa de partilha, na qual conste que a Recorrente tem a haver a quantia de 3.272,56 Euros, a título de tornas, oriundas da partilha dos bens móveis.

V

Existe erro manifesto na interpretação e aplicação do direito.

VI

No seguimento do nosso raciocínio, consideramos que foram violadas pelo Douto Tribunal a quo as seguintes normas jurídicas: artigo 1120.º e 1121.º, todos do CPC, entre outras.

VII

Termos em que, nos Doutamente Supridos, deve ser proferida Douta Decisão que dê provimento ao presente recurso, revogando-se o Douto Despacho, na parte recorrida, proferindo Vossa Excelência Douto Acórdão que ordene a elaboração do mapa de partilha, na qual conste que a Recorrente tem a haver a quantia de 3.272,56 Euros, a título de tornas, oriundas da partilha dos bens móveis.

Assim fazendo Vossa Excelência a Costumada e Necessária Justiça!».

Não foi oferecida contra-alegação de recurso.

Tal recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e nos próprios autos, ordenando-se a remessa a este Tribunal da Relação (doravante, TRC), sem fixação do efeito recursivo e sem decisão em matéria de prévia reclamação/arguição de nulidade.

Por isso, já neste TRC, o relator proferiu despacho no sentido de determinar «que os autos baixem à 1.ª instância para conhecimento da matéria do anterior requerimento/reclamação, com arguição de nulidade, só depois se devendo admitir, sendo o caso, o recurso, com fixação também do respetivo efeito».

Na 1.ª instância foi então fixado efeito meramente devolutivo ao recurso e, em matéria de arguida nulidade, expendeu-se assim:

«Considerando o estado do processo, e a posição assumida pelas partes, entendo que não foi cometida qualquer nulidade. Ora, as verbas partilhadas foram adjudicadas à cabeça de casal e ao interessado nos exatos termos em que acordaram, sujeito a homologação por sentença, e configurando o mapa de partilha, salvo melhor opinião, um ato inútil no processo.

Aliás, o poder jurisdicional esgotou-se nesta matéria com a prolação da sentença homologatória.

Notifique.» (cfr. despacho datado de 24/01/2024).

Deste despacho de indeferimento da arguição de nulidade não ocorreu qualquer impugnação, não tendo dele sido interposto recurso, pelo que os autos foram de novo remetidos ao TRC, tendo o relator mantido o regime assim fixado, inclusive quanto ao efeito da apelação.

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([5]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber se, por a Recorrente ter direito a tornas, devia ter sido elaborado o mapa da partilha, cuja omissão implica violação do disposto nos art.ºs 1120.º e 1121.º do NCPCiv., obrigando à revogação da decisão em crise, por erro manifesto na interpretação e aplicação do direito.

III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

O substrato factual e a dinâmica processual a considerar para decisão do recurso são os que constam do antecedente relatório, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

B) Impugnação de direito

A Apelante impugna, como visto, a intitulada decisão homologatória de “transação realizada em conferência de interessados”, não aceitando a consideração/conclusão do Tribunal recorrido no sentido de que a Cabeça de Casal “vem informar que procederam à partilha do único bem comum do casal que faltava partilhar, juntando escritura de compra e venda”.

Considerou, pois, a 1.ª instância que os autos findaram por transação, a qual entendeu dever homologar, condenando os dois interessados, em inventário para partilha de bens comuns dos ex-cônjuges – na sequência de divórcio –, a observar a transação assim homologada.

Esgrime, assim, a Apelante que ocorreu, com violação do disposto nos art.ºs 1120.º e 1121.º do NCPCiv., erro manifesto na interpretação e aplicação do direito, a obrigar à revogação da decisão impugnada, pois que deveria ter sido elaborado mapa da partilha, com vista ao apuramento e liquidação das tornas que considera serem-lhe devidas, no horizonte da partilha dos bens móveis comuns.

Terá razão?

Vejamos, começando por um breve enquadramento jurídico do caso.

O inventário subsequente a divórcio destina-se à partilha dos bens comuns do ex-casal, visando, assim, amplamente, a liquidação integral das relações patrimoniais entre os (ex-)cônjuges (incluindo passivo). Nessa perspetiva se posicionou o Ac. TRL de 24/10/2017 ([6]), constando do respetivo sumário que: «I - O inventário requerido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1326º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil destina-se, não apenas a partilhar bens, mas a pôr termo à comunhão conjugal, a qual é muito mais abrangente do que mera comunhão de bens.».

Em termos de regulação substantiva, quanto à partilha e ao pagamento de dívidas, dispõe o n.º 1 do art.º 1689.º do CCiv.: «Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.».

A este respeito, referem Pires de Lima e Antunes Varela, para o caso de divórcio, que primeiro devem ser entregues a cada um dos cônjuges os seus bens próprios. Depois, cada um deles haverá de conferir ao património comum o que lhe dever, em virtude dos pagamentos, que por esse património tenham sido efetuados, de dívidas de exclusiva responsabilidade do cônjuge devedor. Feita a conferência dos bens devidos à massa comum, é o momento de proceder à divisão desta, entregando a cada um dos seus titulares a respetiva meação ([7]).

Também esta Relação de Coimbra, por sua vez, já salientou, no Ac. TRC de 06/05/2008 ([8]), que:

«I- As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento, designadamente através do divórcio.

II- Cessadas essas relações patrimoniais, procede-se à partilha dos bens do casal (artº 1689º C.Civ.) e sendo esta via judicial, será através do processo especial de inventário (…).

III- O processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos.

IV- É na partilha que os cônjuges recebem os bens próprios e a sua meação no património comum, é na partilha que cada um deles confere o que deve ao património comum (artº 1689º, nº 1), e é no momento da partilha que o crédito de um deles sobre o outro, ou do património comum sobre um deles, e ainda o dos credores do património comum, se tornam exigíveis (artºs 1697º e 1695º, nº 1).

(…)».

A transação, por seu lado, em termos substantivos – enquanto contrato oneroso e sinalagmático ([9]) –, podendo ser judicial ou extrajudicial/preventiva (cfr. art.º 1250.º do CCiv.), é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões, podendo estas corresponder à redução do direito controvertido ou envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos daquele direito controvertido (art.º 1248.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Cód.).

Quanto, especificamente, à disciplina do processo de inventário, na parte agora relevante, dispõe o art.º 1110.º do NCPCiv. que, realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz, findo também o prazo para os interessados proporem a forma da partilha, profere despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados, e designa o dia para a realização da conferência de interessados (n.ºs 1 e 2), visando o acordo sobre a composição dos quinhões entre todos os interessados (n.º 7).

Ou seja, prevê-se a prolação da forma à partilha antes da realização da conferência de interessados, cabendo ao juiz proferir despacho sobre o modo como tal partilha deve ser organizada.

Na conferência de interessados (art.º 1111.º do NCPCiv.), o juiz deve, em tentativa de conciliação, incentivar os interessados a procurar uma solução amigável para a partilha, ainda que parcial, dos bens, sensibilizando-os para as vantagens de uma autocomposição dos seus interesses (n.º 1), âmbito em que podem os interessados acordar, por unanimidade, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes: (i) designação das verbas que vão compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um dos interessados e os valores por que são adjudicados; (ii) acordo na venda total ou parcial dos bens objeto da partilha e na distribuição do produto da alienação pelos interessados [n.º 2, al.ªs a) e c)].

Já quanto aos invocados art.ºs 1120.º e 1121.º do NCPCiv., preceitua o primeiro destes dispositivos legais, quanto ao “Mapa da partilha”, que:

«1 - Concluídas as diligências reguladas nas secções anteriores, procede-se à notificação dos interessados (…) para, em 20 dias, apresentarem proposta de mapa da partilha, da qual constem os direitos de cada interessado e o preenchimento dos seus quinhões, de acordo com o despacho determinativo da partilha e os elementos resultantes da conferência de interessados.

2 - Decorridos os prazos para a apresentação das propostas de mapa de partilha, o juiz profere despacho a solucionar as divergências que existam entre as várias propostas de mapa de partilha e determina a elaboração do mapa de partilha pela secretaria, em conformidade com o decidido.

3 - Para a formação do mapa determina-se, em primeiro lugar, a importância total do ativo, somando-se os valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efetuadas e deduzindo-se as dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos, após o que se determina o montante da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens, e por fim, faz-se o preenchimento de cada quota com referência às verbas ou lotes dos bens relacionados.

(…).» (destaques aditados).

E o art.º 1121.º estabelece, quanto a “Tornas”, o seguinte:

«1 - Os interessados a quem hajam de caber tornas são notificados para requerer a composição dos seus quinhões por bens que não se mostrem adjudicados ou reclamar o pagamento das tornas.

2 - Se for reclamado o pagamento das tornas, é notificado o interessado que tenha de as pagar, para as depositar.

3 - Havendo pluralidade de requerentes, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 3 do artigo 1116.º.» (destaques aditados).

Perante este quadro legal e enquadramento jurídico, voltemos à especificidade do caso dos autos.

Começando pela “reclamação e arguição de nulidade” processual, é notório que a respetiva matéria já se mostra, entretanto, decidida por quem devia dela conhecer, a 1.ª instância (despacho datado de 24/01/2024), tendo julgado improcedente tal reclamação/arguição, sem impugnação específica desta decisão – o que não prejudica, obviamente, a matéria do recurso anteriormente interposto –, razão pela qual nada haverá agora a dizer ou ponderar sobre tal matéria ([10]).

Passando à matéria recursiva, verifica-se que, na escritura de venda do imóvel, consta também a venda de outros bens (móveis), sem concreta identificação dos mesmos, mas sabendo-se que se trata do recheio desse imóvel, incluindo mobiliário, eletrodomésticos e aquecimento central, ou seja, os bens móveis subsistentes ([11]) integrantes da verba n.º 5 da relação de bens e que haviam sido adjudicados à Cabeça de Casal, pelos valores que constam da respetiva ata de conferência de interessados (datada de 05/01/2023).

Embora tal pudesse – e devesse – ter sido/ficado melhor esclarecido nos autos, segura parece ser, ante os elementos disponíveis, a conclusão no sentido da não subsistência dessa adjudicação à Cabeça de Casal, por os respetivos bens terem sido vendidos depois a terceiro, por acordo de ambos os interessados (outorgantes ambos na venda formal respetiva).

Acresce que outros bens há que foram adjudicados, como os veículos automóveis (verbas n.ºs 2 e 3) e a quota social (verba n.º 4), todos eles com determinação de valor concreto.

Depois foi dado despacho quanto à forma à partilha, de que logo ficou excluído o imóvel vendido, resultando da escritura de transmissão que o valor da venda foi pago aos dois interessados (que o terão dividido entre si, o que explica a subdivisão em diversos cheques).

Ora, excluído tal imóvel e não relevando agora a verba n.º 1 (saldo das contas bancárias, que foi dividido na proporção de metade, com adjudicação a ambos os interessados em partes iguais), restam os (demais) bens adjudicados em conferência de interessados, não existindo qualquer tomada de posição da Cabeça de Casal no sentido de ter ocorrido transação, em termos de afetar a partilha nos autos dessa parte do património comum, sendo, ao invés, pertinente invocar a questão da definição – ainda não operada – das tornas ([12]).

Toda esta matéria referente àqueles remanescentes bens adjudicados em conferência de interessados está por definir, não podendo, pois, invocar-se a existência de uma transação quanto a todo o património objeto da partilha (bens comuns do ex-casal), mormente quanto a (eventuais) tornas.

Por isso, o acordo quanto à adjudicação desses remanescentes bens, com atribuição de valor de adjudicação, não configura uma (verdadeira) transação, em termos de definição final de direitos litigados no processo de inventário, tanto mais que, como se verá, os valores de adjudicação (verbas 2 a 4) encontram-se claramente desequilibrados em favor do interessado BB.

Ou seja, tal acordo traduz um passo no caminho da obtenção da partilha, através da concretização sobre quais os bens que caberão a cada interessado, vista aquela como divisão final do património comum, de molde a caber metade do respetivo valor patrimonial a cada um dos dois interessados, se necessário com compensação/tornas, estas a definir em momento posterior.

E é certo que, por requerimento de 26/05/2023 (a fls. 268 do processo físico), a Cabeça de Casal veio mencionar que a escritura pública de venda do imóvel só seria celebrada depois de efetuada a forma à partilha, para apuramento dos valores pelos quais aquela fosse credora a título de tornas, pretendendo, não apenas a metade que lhe cabe na venda, mas ainda as tornas devidas pelo outro interessado.

Perante isso é que, por despacho de 30/05/2023 (fls. 270 do processo físico), foi determinado o modo como se procede à partilha dos móveis, já que, quanto ao imóvel (verba n.º 6), havia acordo no sentido da venda a terceiro.

A Cabeça de Casal juntou, seguidamente, a escritura de transmissão, dela resultando a venda do imóvel, pelo preço de € 130.000,00, e, ademais, de todo o recheio do mesmo (verba n.º 5), incluindo mobiliário, eletrodomésticos e aquecimento central, por € 45.000,00 [total de € 175.000,00].

Montantes esses “que já receberam” (ambos os vendedores/interessados), mediante quatro cheques (dois referentes ao imóvel, de € 65.000,00 cada um, e dois relativos aos ditos móveis, de € 22.500,00 cada um). Daí se infere, pois, que os interessados dividiram todo o preço entre si (“a meias”).

O que legitima a conclusão no sentido de, quanto às verbas n.ºs 5 e 6, estar a divisão/partilha efetuada, nada mais havendo a reclamar, razão pela qual deve reputar-se de correto, nessa parte, o despacho/decisão homologatório proferido a 27/06/2023 (cfr. fls. 276 do processo físico).

Restam, então, como visto, as adjudicadas verbas n.ºs 2 a 4, tendo em conta que: a verba n.º 2 (veículo automóvel) foi adjudicada à Cabeça de Casal pelo valor de avaliação, de € 500,00; a verba 3 (veículo automóvel) foi adjudicada ao outro interessado pelo valor de avaliação, de € 2.000,00; e a verba 4 (quota social) foi adjudicada ao outro interessado pelo valor de avaliação, de € 8.605,13.

Perfazendo ([13]):

- para a Cabeça de Casal, o valor de € 500,00;

- para o interessado BB, o valor conjunto de € 10.605,13.

Ora, pressupondo, então, que tudo o mais tenha sido dividido, por acordo, na proporção de metade, resulta do exposto ter a Cabeça de Casal tornas a receber, como a mesma refere no recurso, ao aludir a um montante de tornas a seu favor de € 3.272,56, para o que pretende se ordene a elaboração do mapa da partilha, rumo para que apontava a decisão de 30/05/2023 (a de fls. 270 do processo físico), mas que a posterior decisão agora recorrida veio a alterar, com pretendida derradeira dimensão homologatória, sem qualquer referência a “tornas”, que aquela Cabeça de Casal antes significara pretender receber (ao ponto de o respetivo apuramento aparecer como condição para a celebração da escritura de venda), não se vendo, diga-se também, onde possa a mesma ter prescindido de tornas.

E também não se vê que a “cabeça de casal dos presentes autos de inventário facultativo” tenha informado “que procederam à partilha do único bem comum do casal que faltava partilhar”, tanto mais que a mesma sempre aludiu a tornas a seu favor (que sempre pretendeu lhe fossem prestadas) e que há diferença sensível, como notado, quanto ao valor de adjudicação dos bens das verbas n.ºs 2 a 4, não se sabendo de que modo tais tornas poderiam ter sido compensadas, o que não foi esclarecido nos autos, nem pode ter-se por minimamente demonstrado.

Aliás, se assim não fosse, não faria sentido o dito despacho/decisão de 30/05/2023, a aludir à “forma à partilha” (revestida de “manifesta simplicidade”), apontando para o modo como era determinado se procedesse à partilha do património comum (impondo, logicamente, divisão na proporção de metade, em termos de valor, por correspondente às quotas/direitos dos ex-cônjuges), sempre com exclusão, por outro lado, da verba n.º 6 (com regime diverso, por ser objeto de venda pelos interessados a terceiro, em vez de adjudicação a algum deles), como também sinalizado na parte final desse despacho/decisão.

A dita adjudicação, quanto às verbas n.ºs 2 a 4, com valores pecuniários fixados, não pode ter, pois, o sentido de uma (verdadeira) transação, que pusesse fim ao litígio/partilha respetiva, mas o de saber a quem tais bens cabiam (eram concretamente adjudicados), sem prejuízo de tornas, perante a diferença de valores a favor de cada um dos interessados (em vez de uma partilha consumada, cuja definitividade não se mostra anunciada, nem se vê que tenha sido assumida pelos interessados, mormente a Cabeça de Casal, que sempre mostrou perfilhar entendimento contrário).

Doutro modo, ficaria tal Cabeça de Casal claramente prejudicada nesta parte, por o outro interessado receber bens em valor (manifestamente) superior, como visto, tanto mais que não se vê onde pudesse essa diferença patrimonial ter sido compensada relativamente à divisão dos demais bens, posto o imóvel e o seu recheio terem, tanto quanto pode percecionar-se, sido vendidos com divisão “a meias” do respetivo preço/produto.

Assim, não se vê, salvo sempre o devido respeito, como possa concluir-se pela inutilidade da forma à partilha e do mapa de partilha ([14]), considerado como «um ato inútil no processo» (cfr. despacho datado de 24/01/2024) pelo Tribunal a quo.

Em suma, mostrando-se inobservados os preceitos legais invocados pela Apelante, o recurso tem de proceder, com revogação da decisão recorrida, para prosseguimento dos autos, no sentido da adequada definição/decisão quanto às pretendidas tornas a favor da Cabeça de Casal.

Ou, se a tal não tiver direito, com justificação – mediante fundamentação de facto e de direito respetiva – da improcedência dessa pretensão (crédito quanto a tornas).

Finalmente, em matéria de custas do recurso, vale a regra do proveito (por nenhum dos interessados ter ficado vencido), a que alude o art.º 527.º, n.º 1, do NCPCiv.: as custas da apelação serão suportadas pelos interessados, na proporção de metade, posto ambos retirarem idêntico benefício dos autos de inventário, sem prejuízo de assistência/apoio judiciário.


***

(…)
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V – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, com revogação da decisão recorrida, determinando-se, em consequência, o prosseguimento da legal tramitação dos autos, nos moldes anteriormente referidos, com vista à determinação cabal quanto ao pretendido direito da Cabeça de Casal a tornas.
Custas da apelação pelos interessados, na proporção de metade, já que nenhum ficou vencido no recurso e ambos colhem idêntico proveito dos autos de inventário (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.), sem prejuízo do invocado benefício do apoio judiciário.


Coimbra, 09/04/2024     

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

Carlos Moreira

Rui Moura



([1]) Do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.
([2]) Na versão acordada/definitiva que consta da ata de audiência prévia ocorrida em 26/05/2021 (como exarado a fls. 219 e segs. do processo físico), com alteração em conferência de interessados de 25/11/2021 (fls. 225 e segs. do processo físico), aquela que importa.
([3]) Ref. 91673945 (a fls. 276 do processo físico).
([4]) Cfr. requerimento datado de 10/07/2023, com Ref. 46095794 (a fls. 277 e segs. do processo físico).
([5]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([6]) Proc. 1589/09.4TMMLSB-A.L1-1 (Rel. Rui Vouga), também em www.dgsi.pt.
([7]) Cfr. Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 322.
([8]) Proc. 202-E/1999.C1 (Rel. Gregório Jesus), em www.dgsi.pt, cujo sumário se cita.
([9]) Assim, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1986, ps. 885 e segs..
([10]) A decisão sobre esta matéria de nulidade processual tornou-se definitiva, pelo que se trata de matéria já arrumada, não cabendo dela aqui conhecer.
([11]) Após incorporação de alguns deles na verba n.º 6 (imóvel).
([12]) A alusão a passivo, vertida no despacho de forma à partilha, queda-se também irrelevante, por inexistir qualquer passivo relacionado (na relação de bens definitiva).
([13]) Desconsiderando agora – para efeitos de raciocínio, no plano recursivo – tudo o mais, em que terá sido já alcançada divisão na proporção de metade.
([14]) Como referem Abrantes Geraldes e outros, o «mapa da partilha constitui a peça que materializa a divisão que será sujeita a sentença de homologação», configurando um “documento-síntese” que se decompõe «em três elementos: enunciação do ativo e do passivo (…); indicação da quota de cada interessado, tendo por base a forma à partilha anteriormente fixada (…); preenchimento dos quinhões de cada interessado com bens ou lotes de bens. Concretiza o que tiver sido decidido ou acordado relativamente aos direitos de cada interessado (…); corporiza, através de verbas ou de lotes, os bens que a cada um serão atribuídos (…)», sendo «uma operação de natureza essencialmente aritmética» – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, ps. 642 e seg..