Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JORGE ARCANJO | ||
Descritores: | CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA DIREITO DE RETENÇÃO JUROS DE MORA JUROS COMERCIAIS | ||
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Data do Acordão: | 03/21/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL DE PENACOVA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 424º E 755º, Nº 1, AL. F), DO C. CIVIL; 102º, §3 DO C. COMERCIAL. | ||
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Sumário: | I – A cessão da posição contratual (art.424 CC) consubstancia um negócio em que um dos contraentes (cedente), num contrato de prestações recíprocas, transmite a um terceiro (cessionário), com o consentimento do outro contraente (cedido), o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato (contrato base), implicando, por isso, uma modificação subjectiva dos sujeitos da relação contratual, que permanece objectivamente a mesma, sendo que para o terceiro (cessionário) é transmitida a posição contratual no seu todo (teoria unitária), ou seja a posição global do cedente existente no momento da eficácia do negócio. II - A forma exigida para a cessão da posição contratual de um dos promitentes no âmbito de um contrato promessa é a legalmente imposta para o contrato promessa. III - Comprovando-se que a 2ª Ré, aquando da compra do prédio, e como condição deste negócio, assumiu perante a 1ª Ré em cumprir o contrato promessa celebrado entre esta e a Autora, tal não é suficiente para caracterizar uma assunção da dívida pelo incumprimento definitivo que gerou a resolução e restituição do sinal em dobro IV - O direito de retenção (art.755 nº1 f) CC), conferido ao promitente comprador, é um direito real de garantia, pelo que dispõe da sequela, sendo oponível erga omnes, nomeadamente ao próprio dono da coisa que não seja o titular do direito à entrega. V - São comerciais (art.102 § 3º C. Comercial) os juros de mora sobre a quantia referente à restituição do sinal em dobro, pela resolução de um contrato promessa de compra e venda de um bem imóvel celebrado por duas sociedades comerciais, cujo objecto está relacionado com a respectivas actividades. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra I – RELATÓRIO 1.1.- A Autora – C… - instaurou (06/11/2008) acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra as Rés Q…, Limitada B…, Limitada. Alegou, em resumo: A 1ª ré, em 29.07.2004, celebrou com a autora, por escrito, um contrato-promessa de compra e venda de fracção de um apartamento de tipologia T3, com garagem, com cozinha mobilada, um roupeiro, situada no sótão frente, Edifício R…, constituído por apartamento (duas futuras fracções do referido prédio). Porque o prédio não estava ainda constituído em propriedade horizontal, estando a ser ultimada tal constituição, foi indicado no contrato-promessa (cf. cláusula 1ª) que a futura fracção viria a ser designada pela letra que lhe viesse a caber posteriormente após a constituição da propriedade horizontal, sendo aí identificada pela descrição da sua composição e o imóvel urbano por referência ao seu número de registo na Conservatória de Registo Predial de... Em 19.12.2007, a 1ª ré celebrou a escritura pública de constituição de propriedade horizontal quanto ao referido prédio, tendo o apartamento sido identificado como fracção G e a garagem identificada como fracção Q. Sucede que em 22.02.2008 a 1ª ré vendeu à 2ª ré o referido prédio, como se o mesmo não estivesse já em propriedade horizontal (como um artigo único, não fraccionado), sabendo ambas que o prédio já se encontrava constituído em propriedade horizontal. Nesta medida, o negócio jurídico celebrado é nulo, por o objecto ser, quer física, quer legalmente impossível, uma vez que não existia o referido prédio, na sua condição de não fraccionado, mas tão somente 17 fracções autónomas (fracções A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O, P e Q). Por outro lado, em 30.04.2008 a 2ª ré celebrou nova escritura de constituição de propriedade horizontal sobre o indicado prédio, também com 17 fracções autónomas (fracções A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O, P e Q), que se encontra ferida de nulidade, por o objecto ser física e legalmente impossível, uma vez que inexistia o referido prédio, na sua condição de não fraccionado, de modo a poder, nesta segunda escritura de constituição de propriedade horizontal ser fraccionado. Peticiona, então, a declaração dessa nulidade, bem como do atinente registo. Em ambas as escrituras públicas de constituição de propriedade horizontal o apartamento e garagem que fora objecto do contrato promessa estão identificados como “unidade GQ”. Ora, por tal contrato-promessa de compra e venda, a 1ª ré, Q…, prometeu vender à autora a “unidade GQ”, pelo montante de € 70.283,01. Na data em que foi outorgado o contrato promessa a autora, a pedido da ré, aceitou que esta alterasse o modo de pagamento do preço, ficando a autora obrigada a pagar Esc. 999.999$17 (€ 4.987,97) com a celebração do contrato prometido. Admitindo que não se prove a alteração dos termos do contrato deposita à ordem dos presentes autos a quantia de € 5.108,19, apesar de já ter cumprido integralmente as suas obrigações com o pagamento à 1ª ré da quantia de € 5.0000,00. A 1ª ré não cumpriu a promessa feita à autora, nem a pode cumprir, porque alienou o prédio onde se situa a “unidade G-Q”, como se fraccionado não estivesse, o que a fez incorrer em mora por facto que lhe é imputável. Em face da nulidade de que padece a escritura pública de compra e venda e após a declaração da mesma, a 1ª ré continuará sendo a proprietária da totalidade do imóvel, agora fraccionado, continuando a autora interessada na aquisição prometida das fracções agora identificadas como “G” e “Q”, pelo que requer a execução específica da promessa. Subsidiariamente, invoca que foi condição do negócio que a 2º ré concretizasse o referido contrato-promessa, motivo pelo qual não consta na escritura que o imóvel haja sido alienado isento de quaisquer ónus ou encargos além daqueles que estão expressamente referidos na própria escritura pública. Nessa medida, assumiu a 2ª ré a obrigação de celebrar o negócio prometido, o que não fez, razão pela qual a autora requer a execução específica da promessa assumida pela 2ª ré. Ainda subsidiariamente, ambas as rés assumiram a obrigação de devolver as quantias pagas, a título de sinal e antecipação de pagamento, pelo que estão obrigadas a proceder à sua devolução em dobro, o que perfaz o montante global de €130.590,07. Após ser outorgado o contrato-promessa, a autora e a 1ª ré acordaram em alterar o teor da cláusula 4ª do contrato-promessa, em consequência do que esta lhe transmitiu a posse da referida “unidade G-Q”, entregando-lhe as chaves. A partir desse momento e com o conhecimento da 2ª ré, a fracção passou a ser habitada pelo seu, então, sócio-gerente (que ali fez melhoramentos e obras de beneficiação) e a garagem utilizada como arquivo da autora. Assim sucedeu desde finais de 2004 até à Primavera de 2008, data em que as fechaduras foram substituídas por ordem das rés, gozando a autora do direito de retenção das referidas fracções até que lhe seja paga a quantia em que se requereu que sejam as rés condenadas Pediu cumulativamente: A). Pedido principal 1 - a declaração de nulidade da escritura de compra e venda de 22.02.2008; 2 - que seja anulado o respectivo registo; 3 - a declaração de nulidade da escritura de constituição de propriedade horizontal de 30.04.2008; 4 - que seja anulado o respectivo registo; 5 - que seja decretada a execução específica da promessa; 6 - a condenação da 1ª ré a reconhecer a sua mora por facto que lhe é imputável; 7 - que seja decretada a execução específica, sendo a propriedade das fracções “G” e “Q”, do referido prédio urbano sito em … e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …, transmitida para a autora. B). Pedidos subsidiários: 1 - a condenação das rés a reconhecer que a escritura pública de 22.02.2008 foi celebrada sob condição de a 2ª ré, B… Limitada, concretizar o referido contrato-promessa; 2 - a condenação das rés a reconhecer a sua mora por facto que lhes é imputável; 3 - a execução específica, sendo a propriedade das fracções “G” e “Q”, do referido prédio urbano sito em …, transmitida para a autora; 4 - a condenação das rés a reconhecer que a escritura pública de 22.02.2008 foi celebrada sob condição de a 2ª ré, B… Limitada, concretizar o referido contrato-promessa; 5 - a condenação das rés a pagar à autora a quantia de €130.590,07; 6 - a condenação das rés a pagarem à autora juros vincendos à taxa de juros de mora para as operações de natureza comercial, contados desde a citação até integral liquidação, sobre a quantia de €130.590,07. C) Pedido subsidiário: 1. A condenação das rés a reconhecer o direito de retenção da autora sobre as fracções “G” e “Q”, do referido prédio urbano sito em…, cuja posse foi transmitida para a autora e o reconhecimento do direito de retenção até que seja paga à autora a quantia de € 130.590,07 e juros vincendos.
Contestou a Ré B… Lda, defendendo-se, em síntese: Por excepção, arguiu a ineptidão da petição inicial. Por impugnação, disse ter comprado o prédio livre de qualquer ónus ou encargo, para além do da hipoteca, não lhe podendo agora ser impostos encargos decorrentes do alegado contrato promessa celebrado com a autora. Não pode a autora querer o cumprimento do contrato promessa à custa de quem não o assumiu e o desconhece. A eventual ocupação do apartamento só pode ter ocorrido a título precário e sem constituição de qualquer vínculo, sendo, obviamente, do desconhecimento da ré contestante, mas podendo cessar a qualquer momento e sem dependência da vontade da autora. Nunca a 2ª ré reconheceu qualquer posse da autora, como nunca prometeu fornecer-lhe qualquer chave do apartamento, sendo falsa a alegação em sentido contrário, não lhe assistindo o direito de retenção.
A Autora replicou, contraditando a defesa, e a Ré treplicou. 1.2. - No saneador julgou-se improcedente a excepção dilatória, afirmando-se a validade e regularidade da instância. 1.3. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu: a). Condenar as rés, Q…, Limitada e B…, Limitada, a pagarem solidariamente à autora C… a quantia de €130.590,07, acrescida de juros contabilizados desde a citação e até integral pagamento, à taxa devida para os juros civis. b). Reconhecer à autora o direito de retenção sobre as fracções “G” e “Q”, do prédio urbano sito em…, até que seja paga à autora a quantia de €130.590,07 e respectivos juros; condenando-se ambas as rés a tal reconhecerem. c). Condenar a 2ª ré B…, Limitada como litigante de má fé na indemnização a favor da autora no valor de 2.000 euros e na multa de 2.000 euros. d). Custas da acção a cargo das rés. 1.4. – Inconformados recorreram de apelação a Ré B… Lda e subordinadamente a Autora. 1.4.1. - Recurso da Ré B…, Lda – Conclusões: ... Contra-alegou a Autora, no sentido da improcedência do recurso. 1.4.2. – Recurso subordinado da Autora – Conclusões: … Contra-alegou a Ré, no sentido da improcedência do recurso. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. – Delimitação do objecto dos recursos: 2.1.1.- O Recurso da Ré: O objecto do recurso interposto pela Ré B…, Lda circunscreve-se às seguintes questões de direito: (1ª) A responsabilidade solidária da Ré pela devolução do sinal em dobro (os sujeitos do contrato promessa de compra e venda e a cessão da posição contratual, o incumprimento definitivo, assunção cumulativa da dívida), (2ª) O direito de retenção, (3ª) A litigância de mé fé. 2.1.2.- O Recurso ( subordinado) da Autora: A natureza comercial dos juros de mora. 2.2. – Os factos provados: … 2.3. – O Recurso da Ré: A sentença julgou parcialmente procedentes os pedidos subsidiários (formulados em 5) e 6)), condenando Rés a pagar solidariamente à Autora a quantia de €130.590,07, acrescida de juros de mora, desde a citação, à taxa devida para os juros civis, bem como no pedido principal de reconhecimento do direito de retenção. Para tanto, argumentou-se, em síntese, que o contrato promessa de compra e venda outorgado entre a 1ª Ré (promitente vendedora) e a Autora (promitente compradora) foi incumprido definitivamente por aquela, na medida em que alienou o prédio à 2ª Ré, que assumiu cumulativamente a dívida, inviabilizando, assim, a execução específica do contrato. Em contrapartida, objecta a Ré/Apelante dizendo que lhe foi transmitida a posição contratual da 1ª Ré (promitente vendedora), sendo, aliás, condição da venda do prédio, e que nunca houve da sua parte qualquer incumprimento definitivo ou sequer mora (nunca foi interpelada para a celebração do contrato prometido), pelo que inexiste fundamento legal para a condenação no duplo sinal. Em 29/7/2004 foi celebrado, por documento escrito, um contrato promessa bilateral de compra e venda entre a 1ª Ré (promitente vendedora) e a Autora (promitente comprador) de um andar (fracção G-Q) pelo preço de € 70.403,22. Convencionaram as partes que a escritura seria realizada no prazo máximo de 10 dias após o levantamento da licença de habitabilidade, sendo a data e local comunicado ao 1º outorgante (promitente vendedora) com a antecedência de cinco dias. 2.3.1. - Os sujeitos do contrato e a cessão da posição contratual: A primeira questão que se coloca é a de saber se o contrato promessa se manteve entre as partes iniciais (Autora e 1ª Ré), sendo neste plano que deve ser aferido o incumprimento, ou se foi transmitido para a 2º Ré, ou seja, se houve cessão da posição contratual (art. 424 CC) ou apenas e tão só uma assunção cumulativa de dívida (art.595 CC). Em termos factuais, comprovou-se que em 22/2/2008 a 1ª Ré vendeu à 2ª Ré o prédio, tendo esta conhecimento do contrato promessa, assumindo cumpri-lo e foi condição da venda que a 2ª Ré concretizasse o contrato promessa. O contrato promessa (art.410 CC) tem por objecto uma obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido, reconduzindo-se a uma obrigação de prestação de facto positivo. Por força do princípio da equiparação, ao contrato promessa são aplicáveis as normas relativas ao contrato prometido, com excepção das relativas à forma e as que, por razão de ser, não se devam considerar extensíveis. O contrato promessa tem eficácia meramente obrigacional, criando para os sujeitos do negócio jurídico a obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos termos especialmente previstos na lei (art.406 nº2 do CC). Mas do art.410º, nº1 do CC não resulta que o contrato a celebrar a final (contrato prometido) tenha de ser feito entre os sujeitos que no contrato promessa são partes, sendo admissível que a obrigação de contratar dele emergente se reporte a um terceiro ou acabe por ser assumida por este. A intervenção de um terceiro na obrigação de contratar pode derivar de várias fontes, com regimes específicos, seja através da “promessa de contrato por terceiro”, de um “contrato para pessoa a nomear”, de uma cláusula de “reserva de nomeação” ou de uma “cessão da posição contratual”. A cessão da posição contratual (art.424 CC) consubstancia um negócio em que um dos contraentes (cedente), num contrato de prestações recíprocas, transmite a um terceiro (cessionário), com o consentimento do outro contraente (cedido), o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato (contrato base). Ela implica uma modificação subjectiva dos sujeitos da relação contratual, que permanece objectivamente a mesma, sendo que para o terceiro (cessionário) é transmitida a posição contratual no seu todo (teoria unitária), ou seja a posição global do cedente existente no momento da eficácia do negócio. Deste modo, a transmissão da posição contratual produz a liberação do cedente em face do cedido, no momento em que foi notificada ao cedido ou a aceitou, pois a partir daí o cessionário passa a ocupar o lugar do cedente no contrato inicial, com o complexo de direitos e obrigações. Existe um contrato base ou contrato inicial (realizado originariamente entre cedente e cedido) e o contrato instrumento da cessão (entre cedente e cessionário), através do qual se dá a transmissão. Por força do art.425 CC, a forma de transmissão, a capacidade, a falta e vícios de vontade definem-se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão (por ex., compra e venda, doação, dação em pagamento, etc.), significando que as relações entre o cedente o cessionário estão sujeitas ao regime legal e convencional que regula o contrato que fundamentou a cessão, sendo, por isso, a cessão qualificada como “contrato de causa variável”. Na situação dos autos não se comprova a cessão da posição contratual da 1ª Ré para a 2ª Ré, por duas razões fundamentais. A primeira, porque não está demonstrado o consentimento da Autora (cedida), expresso ou tácito, antes ou depois da cessão, o que implica, para uns, a incompletude do contrato de cessão, por ausência de elemento essencial (cf. por ex., MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, pág.474) ou a mera condição de ineficácia, para outros (cf., por ex., CARVALHO FERNANDES, A Conversão dos Negócios Jurídicos, pág.868 e segs.). Seja como for, a verdade é que a sua omissão inviabiliza a produção dos efeitos em relação ao cedido, ou seja, à Autora. A segunda razão prende-se com o requisito formal, pois, ainda que estivessem reunidos os pressupostos de validade substancial, seria exigível a forma escrita da cessão, enquanto formalidade ad substantiam, logo o contrato de cessão da posição contratual seria nulo, por vício de forma (art.220 CC) Tem-se entendido que quanto à forma da cessão da posição contratual do promitente vendedor se aplicam as exigências de forma do contrato promessa a que se reporta a cessão. Neste sentido, ensina VAZ SERRA que “no caso da cessão da posição contratual do promitente comprador, as razões por que a lei (art.410 nº2 C Civil) exige documento assinado pelo promitente para a validade da promessa de compra são igualmente aplicáveis à cessão da posição contratual desse promitente, já que o cessionário irá ocupar a posição do cedente, não havendo mais razão para com o fim de proteger o promitente contra a precipitação e ligeireza, se exigir forma especial (documento assinado) para a declaração negocial do primitivo promitente comprador do que para o novo promitente comprador (cessionário)“ - RLJ ano 108, pág. 346. A jurisprudência adere a esta posição, sustentando que se para a celebração de contrato promessa de compra e venda de imóvel a lei exige a forma escrita, por identidade de razão deve também ser exigida idêntica forma para a cessão da posição contratual (cf., por ex., Ac STJ de 21/6/2007, proc. nº 07B1974; Ac RL de 10/9/2009, proc. nº 4595/07, disponíveis em www dgsi.pt; Ac. RC de 25/3/93, C.J. ano XVII, tomo III, 43). Por conseguinte, conclui-se pela não comprovação da cessão da posição contratual da 1ª Ré (promitente vendedora) para a 2ª Ré, e a existir seria formalmente nula. Sendo assim, porque não houve cessão da posição contratual, sujeitos do contrato promessa de compra e venda são a Autora (promitente compradora) e a 1ª Ré (promitente vendedora). 2.3.2.- O incumprimento do contrato promessa: A venda do prédio à 2ª Ré tem aqui inequívoca repercussão por consubstanciar incumprimento definitivo, legitimando o duplo sinal. Daí recair sobre a 1ª Ré (promitente vendedora), enquanto parte inadimplente, a restituição do sinal em dobro. 2.3.3. - Assunção cumulativa da dívida A sentença condenou a 2ª Ré solidariamente no pagamento desta quantia, com base na assunção cumulativa da dívida, argumentando que a factualidade provada traduz uma assunção de dívida, na modalidade prevista no art.595 nº1 a) CC. Como se sabe, a assunção de dívida consiste num negócio jurídico em que um terceiro se constitui devedor da dívida de outrém e pode ocorrer através de duas modalidades: (a) por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor (sendo necessária a intervenção dos três sujeitos) ou (b) por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor. Comprovando-se que a 2ª Ré, aquando da compra do prédio, e como condição deste negócio, assumiu perante a 1ª Ré em cumprir o contrato promessa celebrado entre esta e a Autora, questiona-se se é suficiente para caracterizar uma assunção da dívida (restituição do sinal em dobro) ou se configura apenas uma assunção de cumprimento ou promessa de liberação, o que postula, desde logo, um problema de interpretação da vontade das partes. Há que notar a escassez dos elementos de facto, designadamente sobre a “ordem envolvente da interacção negocial” para ajudar a interpretação normativa do contrato, mas numa primeira observação não se pode afirmar com clareza que a factualidade apurada revele que a 2ª Ré tenha assumido a dívida pelo incumprimento. O assumir o cumprimento do contrato promessa não é a mesma coisa que assumir a dívida pelo incumprimento definitivo por parte da 1ª Ré (promitente vendedora), até porque a dívida (restituição do duplo sinal) não estava ainda constituída, já que ela decorre da resolução do contrato. Ora, a assunção pressupõe uma dívida pré-existente. É certo que se pode assumir uma dívida futura, cuja transmissão só se dá na data em que surgir, mas só releva se no momento da assunção ela for determinável, o que também aqui não sucede. Mesmo para quem defenda a possibilidade da conversão da cessão ineficaz ou nula da posição contratual não deixa de convocar a “vontade conjectural”, muito embora, neste caso, a melhor forma que se ajusta ao fim prático normalmente visado pelas partes é a que corresponde a uma mera “eficácia interna do acto”, passando “ a caber a cada uma das partes no negócio (cedente e cessionário) o dever de assegurar à outra o resultado prático que a cessão operaria se fosse eficaz” - CARVALHO FERNANDES, A Conversão dos Negócios Jurídicos, pág. 871 e 872. Acresce, não ser de excluir tratar-se apenas de uma promessa de liberação ou assunção de cumprimento, na medida em que a 2ª Ré se obrigou para com a 1ª Ré a cumprir em lugar dela (art.444 nº3 CC). E a ser assim a 2ª Ré obrigou-se tão somente com a 1ª Ré, e só esta lhe poderia exigir o cumprimento e já não a Autora. Conclui-se, portanto, que a 2ª Ré não é responsável solidária pelo pagamento da quantia de € 130.590,07, contrariamente ao decidido, o que implica a absolvição do pedido, nessa parte. 2.3.4. - O direito de retenção: Mas esta absolvição não arrasta a improcedência da condenação no reconhecimento do direito de retenção por parte da Autora. Conforme se fundamentou na sentença, para a qual se remete, é apodíctico assistir à Autora o direito de retenção (art.755 nº1 f) CC). E porque se trata de um direito real de garantia, dispõe da sequela, sendo oponível erga omnes, nomeadamente ao próprio dono da coisa (à 2ª Ré) que não seja o titular do direito à entrega (cf., por ex., VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, BMJ 65, pág.103 e segs.; Ac STJ de 13/1/2000, proc. nº 99A1078; Ac STJ de 27/11/2008, proc. nº 08B2608; Ac RC de 30/1/2001, proc. nº 3268/2000, disponíveis em www dgsi.pt). 2.3.5.- A litigância de má fé A sentença condenou a Ré B…, como litigante de má fé, em multa e indemnização à Autora. Para tanto, justificou-se que: “De modo distinto a 2ª ré alegou desconhecer a celebração do contrato promessa entre autora e a 1ª ré, bem como eventual ocupação do apartamento, tendo-se provado exactamente o contrário, sendo tais factos do seu conhecimento. Nessa medida, por se tratarem e factos pessoais, que lhe diziam respeito, entende-se a 2ª ré não podia ignorar a falta de fundamento da contestação que apresentou, razão pela qual e nos termos do disposto no art.456 nº1 e 2 a) do CPC se condena a mesma como litigante de má fé na indemnização à autora de 2.000 euros e na multa de igual valor”. Objecta a Ré, dizendo inexistir fundamento para a condenação, mas sem que ponha em causa as razões aduzidas na sentença, já que se limitou a alegar não ter negado a existência da primeira escritura de constituição da propriedade horizontal, o que nada tem a ver com a condenação. Nos termos do art.456 nº2 do CPC diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, (a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; (b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; (c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; (d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Enquanto as alíneas a) e b) se reportam à chamada má fé substancial (directa e indirecta), as restantes alíneas contendem com a má fé instrumental. O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo“, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil. O âmbito da má fé abrange hoje a “negligência grave“, não bastando uma lide temerária ou meramente culposa. No entanto, a jurisprudência tem vindo a decidir que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com “interpretações apertadas” do art.456 do CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a) e b) do nº2 (cf., por Ac STJ de 9/1/2003, proc. nº 02B3882; Ac RC de 15/2/2005, proc. nº 4018/04 (do aqui relator), disponíveis em www dgsi.pt). Como se afirma no Ac do STJ de 11/12/2003, proc. nº 03B3893, em www dgsi.pt - “Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico - sociológico.” E nem a defesa convicta de uma dada perspectiva jurídica dos factos implica necessariamente a litigância de má fé (cf., por ex., Ac STJ de 11/9/2012, proc. nº 2326/11, em www dgsi.pt). Neste contexto, não é pelo facto de se comprovar uma versão diversa da alegada pela parte que, por si só, implica a sanção por litigância de má fé, sendo que, na dúvida, tendo em conta o direito de acção e à tutela judicial efectiva, deve afastar-se a condenação, pelo que se revoga a sentença, nesta parte. 2.4. Recurso da Autora A sentença condenou as Rés a pagar à Autora a quantia de € 130.590,07, acrescida de juros de mora, contabilizados desde a citação, “à taxa devida para os juros civis”. A Autora considera serem devidos os juros comerciais (tal como havia peticionado) por estar comprovado documentalmente (cf. certidões do registo comercial) que as Rés são sociedades comerciais, violando a sentença o art.102 §2 do Código Comercial. Está provado documentalmente (arts.659, 713 nº2 CPC): A Autora C…, Lda é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a gestão e contabilidade; A Ré “Q…, Lda” é uma sociedade comercial por quotas, cujo objecto é a construção de edifícios; A Ré B…, Lda é uma sociedade comercial por quotas, cujo objecto é a compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; construção civil e arrendamento de bens imóveis como actividade secundária. O contrato promessa foi celebrado entre duas sociedades (Autora e 1ª Ré), que são comerciantes (art.13 nº2 C Comercial), assumindo natureza comercial (art.2º, 2ª parte do C Comercial), tanto mais que não se demonstrou a ausência de conexão com a actividade delas, bem pelo contrário, revela-se a ligação quer com a Ré (promitente vendedora), cujo objecto é a construção civil, quer até com a Autora (promitente compradora) que, apesar do seu objecto ser a contabilidade, logo afectou o prédio (“unidade G-Q”) à residência do seu sócio gerente e a garagem ao arquivo da sociedade. Dispõe o art.102 § 3º C Comercial que “Os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo, relativamente a créditos que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, são fixados por portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça”. A Portaria nº 597/2005 de 19/7 preceitua que “a taxa supletiva de juros relativamente a créditos que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, nos termos do nº3 do art. 102 do Código Comercial, é a taxa de juros aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efectuada antes do 1º dia de Janeiro ou de Julho, consoante se esteja, respectivamente, no 1º ou 2º semestre do ano civil, acrescida de 7% (art.1º), sendo o valor da taxa fixado através de aviso da Direcção Geral do Tesouro (art.2º)”. Daqui resulta a aplicação dos juros moratórios aos créditos emergentes de contratos celebrados entre empresários individuais ou colectivos, desde que conexionados com o exercício da respectiva actividade comercial. Ora, na situação dos autos, os juros peticionados pela Autora decorrem da mora no pagamento da restituição do duplo sinal (limitado ao valor pedido), como efeito da resolução do contrato promessa, de natureza comercial. Já se decidiu que, em caso de resolução, os juros moratórios são os juros civis (art.559 nº1 CC) porque não derivam de qualquer “incumprimento intrínseco ao contrato, mas da mora no cumprimento de uma obrigação resultante daquele” ( cf. Ac STJ de 2/6/2011, proc. nº 3046/06, em www dgsi.pt). Com o devido respeito, não se acolhe esta doutrina, desde logo em face da própria natureza do sinal, já que sendo uma obrigação pecuniária os juros consubstanciam a indemnização pela mora (art.806 nº1 CC), e por conseguinte, um dano que consiste na perda da disponibilidade do dinheiro. De resto, o corpo do art.102 C. Comercial começa por estabelecer a obrigação de juros comerciais sempre que “for (…) de direito vencerem-se”, reportando-se às hipóteses em que a lei comum estatui uma obrigação de juros, pelo que “haverá, assim, lugar à contagem de juros sempre que uma relação jurídico-mercantil se insira ou subsuma numa daquelas situações prevista na lei civil relativamente às quais haja lugar à contagem de juros, tais, como, por exemplo, nas obrigações pecuniárias (art.806 do CC)” - ENGRÁCIA ANTUNES, Direito dos Contratos Comerciais, pág. 234. Depois, porque tendo o contrato natureza comercial, o seu incumprimento dá origem a responsabilidade com idêntica natureza, que no caso de ser temporário (mora) implica indemnização consubstanciada nos juros, tendo plena aplicação o art.102 § 3º do C. Comercial, cuja ratio é a protecção do comércio e das empresas comerciais, pressuposta que está a conexão à actividade empresarial de ambas as partes (cf. CASSIANO DOS SANTOS, Direito Comercial Português, vol.I, pág.179). Os juros de mora são, pois, de natureza comercial, a partir da citação da 1ª Ré, em 24/11/2008, e a Direcção Geral do Tesouro fixou (até ao momento) as seguintes taxas supletivas: 2º Semestre 2008 - 11,07% (Aviso (extracto) nº 19 995/2008, de 14/7 ); 1º Semestre 2009 - 9,50% (Aviso (extracto) nº 1261/2009, de 14/1); 2º Semestre 2009 - 8,00% (Aviso (extracto) nº 12184/2009, de 10/7 ); 1º Semestre 2010 - 8,00% (Despacho nº 597/2010, de 11/1); 2º Semestre 2010 - 8,00% (Despacho nº 13746/2010, de 12/7); 1º Semestre 2011 - 8,00% (Aviso nº 2284/2011, de 21/1); 2º Semestre 2011 - 8,25% (Aviso nº 2284/2011, de 14/7; 1º Semestre 2012 - 8,00% (Aviso nº 692/2012, de 17/1); 2º Semestre 2012 - 8,00% (Aviso nº 9944/2012, de 24/7); 1º Semestre 2013 - 7, 75% (Aviso n.º 594/2013, de 3/1 ) Procede a apelação da Autora. 2.5.- Síntese Conclusiva: 1.- A cessão da posição contratual (art.424 CC) consubstancia um negócio em que um dos contraentes (cedente), num contrato de prestações recíprocas, transmite a um terceiro (cessionário), com o consentimento do outro contraente (cedido), o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato (contrato base), implicando, por isso, uma modificação subjectiva dos sujeitos da relação contratual, que permanece objectivamente a mesma, sendo que para o terceiro (cessionário) é transmitida a posição contratual no seu todo (teoria unitária), ou seja a posição global do cedente existente no momento da eficácia do negócio. 2.- A forma exigida para a cessão da posição contratual de um dos promitentes no âmbito de um contrato promessa é a legalmente imposta para o contrato promessa. 3.- Comprovando-se que a 2ª Ré, aquando da compra do prédio, e como condição deste negócio, assumiu perante a 1ª Ré em cumprir o contrato promessa celebrado entre esta e a Autora, tal não é suficiente para caracterizar uma assunção da dívida pelo incumprimento definitivo que gerou a resolução e restituição do sinal em dobro 4.- O direito de retenção (art.755 nº1 f) CC), conferido ao promitente comprador, é um direito real de garantia, pelo que dispõe da sequela, sendo oponível erga omnes, nomeadamente ao próprio dono da coisa que não seja o titular do direito à entrega. 5.- São comerciais (art.102 § 3º C. Comercial) os juros de mora sobre a quantia referente à restituição do sinal em dobro, pela resolução de um contrato promessa de compra e venda de um bem imóvel celebrado por duas sociedades comerciais, cujo objecto está relacionado com a respectivas actividades. III - DECISÃO Pelo exposto, decidem: 1) Julgar parcialmente procede a Apelação da Ré B…, Lda e totalmente procedente a Apelação da Autora e revogar, em parte, a sentença. 2) Absolver a Ré B…, Lda do pedido de condenação no pagamento da quantia de €130.590,07, acrescida de juros contabilizados desde a citação e até integral pagamento, à taxa devida para os juros civis. 3) Absolver a Ré B…, Lda do pedido de condenação como litigante de má fé. 4) Condenar a Ré, Q…, Lda. a pagar à Autora a quantia de €130.590,07, acrescida de juros de mora comerciais (art.102 § 3º C.Comercial), desde a citação e até efectivo pagamento. 5) Confirmar o demais decidido. 6) Condenar as partes nas custas da 1ª instância, na proporção de 30% para a Autora, 50% para a Ré Q…, Lda e 20% para a Ré B…, Lda. Condenar a Ré B…, Lda nas custas da apelação da Autora Condenar a Autora e a Ré B…, Lda nas custas da apelação desta, na proporção de 70% e 30%, respectivamente. * Jorge Arcanjo (Relator) Teles Pereira Manuel Capelo |