Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
39/09.0GDAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: PROVA
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Data do Acordão: 05/05/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA, ANADIA – JUÍZO DE INSTÂNCIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 127º DO CPP
Sumário: 1. O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
2. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio.
3. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 39/09.0GDAND que corre termos na Comarca do Baixo Vouga, Anadia – Juízo de Instância Criminal, foi imputada ao arguido M... a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal e com a pena acessória de proibição de condução de veículo com motor, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal.
Realizado o julgamento, por sentença de 2 de Dezembro de 2009, foi decidido condenar o arguido como autor do citado crime, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a quantia de € 520,00 (quinhentos e vinte euros), a que correspondem 53 (cinquenta e três) dias de prisão subsidiária, e, ainda, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses.
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Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, em 22/12/2009, defendendo que foi violado o princípio in dubio pro reo, na medida em que o tribunal a quo considerou, de modo errado, que existiu nexo de causalidade entre a taxa de álcool apurada e a responsabilidade na produção do acidente, e, ainda, que as penas (principal e acessória) são excessivas, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
I. A pena que vem aplicada ao arguido, principalmente a pena acessória de inibição de condução baseia-se e tem a sua medida atendida no facto de se ter dado simultaneamente com os factos objecto dos presentes autos, acidente de viação.

II. Assim, na ponderação da medida da pena, foi ponderado tal facto como agravante da pena e sobretudo da sanção acessória de inibição de condução pelo período de seis (6) meses.

III. Contudo, salvo melhor opinião, a sentença funda os seus pressupostos em factos que não resultaram provados – muito pelo contrário – não tendo sido comprovado qualquer nexo de causalidade entre a taxa de álcool apurada e a produção do acidente.

IV. Pelo contrário, resultou provado precisamente o contrário, mais precisamente que, por um lado, o acidente resultou de uma manobra inadvertida, realizada em condução pela condutora do outro veículo/motociclo e, por outro, que no local e hora em causa, verificavam-se condicionantes externas que toldaram parcialmente naquele preciso momento a visão do arguido, o que poderia ocorrer a qualquer pessoa naquela situação, independentemente de qualquer taxa de álcool.

V. Neste sentido, a decisão ora recorrida fez letra morta do depoimento da testemunha G…, a condutora interveniente no acidente, conjuntamente com o arguido – cfr. gravação com a duração de 09’09’’.

VI. A mesma, instada sobre a produção do acidente e a sua percepção do acidente esclareceu devidamente o Tribunal a quo que:
a. “Circulava de Sangalhos para Sá”;
b. “Tinha uma padaria no meio, do lado esquerdo, tinha de virar para ir comprar o pão”;
c. “Ia para o meio da via, para parar” (...) “não estava parada”;
d. “Foi de dia”;
e. “O sol estava de frente”;
f. “Fui para o hospital, mas não tive nada”;
g. “O Sr. M...foi no dia seguinte à minha casa” (...) “perguntar se estávamos bem, se estava tudo bem”.

VII. Como se verifica por este depoimento, não poderia o Tribunal ter extrapolado qualquer nexo de causalidade entre a taxa de álcool apurada e a responsabilidade na produção do acidente, não existindo, muito menos, qualquer presunção nesse sentido.

VIII. Pelo contrário, considerando o dia e hora em causa, verifica-se que o sol se estava a pôr, se encontrava de frente, toldando parcialmente a visibilidade;

IX. A vítima não fez qualquer sinalização da manobra com o braço;

X. Não existe qualquer dos factos provados que permitam aferir uma causalidade entre ambas as circunstâncias;

XI. Vigorando, neste caso, o princípio in dubio pro reo.
DITO ISTO;
II – da MEDIDA DA PENA

XII. Verifica-se provado que:
a. O arguido confessou os factos e demonstrou arrependimento;
b. O arguido é socialmente considerado como trabalhador, respeitador, bom pai, pacato e bom colega de trabalho;
c. O arguido é casado; tem 3 filhos, de 6 e 3 anos e um de 8 meses;
d. Do registo criminal do arguido não consta qualquer inscrição.

XIII. De facto, o arguido confessou, mostrou arrependimento e é primário;

XIV. O arguido trabalha dedicadamente para prover o sustento do seu agregado familiar;

XV. Encontra-se social, familiar e profissionalmente inserido, sendo respeitado pela comunidade e pelos seus colegas de profissão.

XVI. Neste contexto factual e legal, a aplicação de uma pena de multa nos termos em que o foi (80 dias a 6,50 €), bem como a respectiva inibição de condução pelo período de SEIS MESES, a medida da pena aplicada ao mesmo peca, para além de inadequada, por excessiva ;

XVII. Assim, a função da pena visa os elementos preventivos e ressocializadores, como formas de prevenção geral e especial, pelo que a pena concreta deve ser sempre limitada no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa e valorando-se, entre demais critérios, a personalidade do agente, as condições da sua vida e as circuntâncias do crime.

XVIII. Circunstância de que não pode alhear-se o Tribunal na determinação da medida da pena e que não levou em consideração. Na verdade;

XIX. Além da pena de multa que deverá ser SUBSTANCIALMENTE REDUZIDA, considerando acima de tudo o arrependimento do arguido e o facto de ser primário;

XX. Também a pena acessória de inibição de condução, que como a pena principal é manifestamente excessiva e penalizadora, atenta a profissão do arguido e o facto de ter de levar os seus 3 filhos à escola e à creche;

XXI. Tanto mais, atentas as circunstâncias e condições de vida do arguido.

XXII. A aplicação de uma pena de multa no valor global de 520,00 € e uma pena acessória de inibição de condução pelo período de 6 meses, seria apenas repressora para o arguido e destituída de qualquer sentido útil, prejudicando não só o arguido, que está socialmente integrado e trabalha, bem como os que dele dependem, nomeadamente a sua mulher e filhos menores.

XXIII. Tanto mais, quando se verifica o principio in dubio pro reo, aplicável aqui também ao juízo de prognose da conduta do arguido, dado que o mesmo, nunca foi condenado, nem nunca voltou a ser condenado por tais factos.

XXIV. Como tal, apenas pode resultar um juízo de prognose favorável ao comportamento do arguido.

XXV. Pelo que deverão ser especialmente reduzidas as penas em que foi condenado.

XXVI. Pelo que e por tudo quanto supra exposto, qualquer condenação em sentido contrário, violaria o intuito normativo que pautou a redacção das alterações recentes ao Código Penal, bem como o disposto nos art.ºs supra mencionados e os mais elementares princípios constitucionais. Assim decidindo, far-se-á
JUSTIÇA!

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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido, em 23/2/2010, apresentou resposta, defendendo a improcedência total do recurso, apresentando como conclusões: O arguido foi condenado, por sentença de 02.12.2009, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de €6,50 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por 6 meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. no art. 292º-1, do CP. O arguido foi submetido a teste de pesquisa de álcool no sangue, que deu o resultado de 1,90 g/l, na sequência de um acidente originado pela colisão do seu veículo BM no ciclomotor FN, quando ambos circulavam na E.N. nº 235, na localidade de Sá e no sentido Sangalhos/Anadia. A sentença do Tribunal a quo, ao invés do que considera erradamente o recorrente, não atendeu, na respectiva fundamentação, a que este tenha sido o efectivo responsável pela produção do acidente de viação ocorrido, até porque não foi feita qualquer prova nesse sentido, nem essa definição de responsabilidade fazia parte do objecto do processo. O M.º Juiz a quo apenas fez constar, na respectiva factualidade dada como provada, que o arguido, sendo portador de uma TAS de 1,90 g/l, foi interveniente em acidente de viação, sendo este um facto objectivo, o qual releva para a aferição do grau de ilicitude presente nos factos, traduzido nas concretas consequências que advieram da conduta do arguido, e que, consequentemente, influirá na determinação das penas concretas a aplicar-lhe. A pena de multa e a pena acessória de proibição de conduzir concretamente aplicadas ao arguido são ajustadas e ponderadas, tendo em conta as finalidades preventivas, gerais e especiais, que se faziam sentir e que resultam do elenco dos factos provados pelo Tribunal a quo: a elevada ilicitude (pela TAS apresentada, pelo local e hora a que o arguido conduzia, pela sua intervenção em acidente de viação, o qual produziu ferimentos em ambos os ocupantes do ciclomotor e danos materiais em ambos os veículos) e o juízo de censura acrescido por o arguido ser operador de máquinas. Em suma, ressalta evidente a inconsistência do que vem alegado pelo recorrente, parecendo, em nosso entender, que este se limita à mera fabulação, dado que concentra todo o seu esforço argumentativo no ficcionar de parte da fundamentação da sentença a quo, para, depois e tomando por base unicamente esse excerto imaginado, procurar obter a procedência do seu inusitado recurso. A sentença recorrida encontra-se exaustivamente fundamentada e não merece qualquer censura, pelo que deve ser integralmente mantida.
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O recurso foi, em 26/2/2010, admitido.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 8/3/2010, douto parecer, no qual defende a improcedência total do recurso.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida:
“(…)
FUNDAMENTAÇÃO:
Da instrução e discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 27/3/2009, cerca das 18h15, o arguido conduzia o veículo automóvel coma matrícula XX-XX-XX., pela EN n.º 235, ao km 24,700, em Sá, Sangalhos, Anadia, sendo portador de uma T.A.S. de 1,90g/l, em resultado da ingestão de bebidas alcoólicas, quando foi interveniente em acidente de viação.
2. O arguido conhecia a natureza e as características do veículo e do local onde conduzia, bem sabendo que tinha uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l e, não obstante, decidiu conduzir o veículo nas referidas circunstâncias.
3. Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
4. O arguido confessou os factos e demonstrou arrependimento.
5. Circulou cerca de 5 km até ao momento em que foi interveniente num acidente de viação.
6. O arguido utiliza automóvel particular para se deslocar para o emprego.
7. O arguido é socialmente considerado como trabalhador, respeitador, bom pai, pacato e bom colega de trabalho.
8. O arguido é casado, tem 3 filhos, de 6 e 3 anos e um de 8 meses, é operador de máquinas, aufere cerca de € 600,00 mensais, a mulher trabalha como empregada de escritório, auferindo cerca de € 525,00 mensais, amortizam um crédito para habitação em prestações mensais de € 395,00, pagam cerca de € 130,00 mensais do infantário dos seus dois filhos mais novos.
9. Do registo criminal do arguido não consta qualquer inscrição.
Estes os factos provados. Nenhum outro se provou.
O Tribunal baseou a sua convicção nas declarações do arguido, o qual, de forma livre e fora de qualquer coacção, confessou sem reservas e integralmente os factos de que é acusado. Referiu, ainda, a sua condição económica, profissional e familiar.
Valorou, ainda, o tribunal o depoimento das testemunhas arroladas pelo Ministério Público que apenas confirmaram as circunstâncias dos factos; as testemunhas de defesa quanto à personalidade do arguido; e o CRC quanto aos antecedentes criminais.
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Os factos provados integram, objectiva e subjectivamente, a prática pelo arguido do crime p. e p. Pelo artigo 292.º, n.º 1, do C. Penal: “Quem, pelo menos a título de negligência, conduzir veículo, com ou sem motor em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2g/l é punido com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”
O crime prevê, em alternativa, pena de prisão ou de multa.
No caso concreto, em nosso entender, a pena de multa assegura de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigos 40.º e 70.º, do C. Penal).
Na graduação da pena, serão considerados os factos provados à luz dos critérios estabelecidos no artigo 71.º, do C. Penal.
Ponderando as circunstâncias em que ocorreram os factos; a ilicitude do facto, que é de grau elevado, atenta a T.A.S. verificada, o veículo conduzido, a via percorrida e a intervenção em acidente de viação; o dolo, que é directo e suscita um forte juízo de censura; as exigências de prevenção geral, que assumem particular relevância face aos elevados índices de sinistralidade rodoviária existentes em Portugal e para os quais muito contribui a condução de veículos em estado de embriaguez; e as exigências de prevenção especial, que são reduzidas face aos antecedentes criminais existentes; entende o Tribunal como adequada a pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (artigo 47.º, n.º 2, do C. Penal).
Impõe-se, também, no caso concreto, aplicar ao arguido uma pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, que estipula que: “É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) por um crime p. e p. nos artigos 291.º ou 292.º do Código Penal”; a qual se fixa, considerando os critérios já enunciados, em 6 (seis) meses.
DECISÃO:
(…)”
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III. Apreciação do Recurso:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P. Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995). São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões». As questões a conhecer são as seguintes:
1) Saber se há violação do princípio IN DUBIO PRO REO, em virtude de o Tribunal a quo ter extrapolado um nexo de causalidade entre a taxa de álcool apurada e a responsabilidade na produção do acidente.
2) Saber se as penas (principal e acessória) são inadequadas, por excessivas.
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1) O recorrente considera, na primeira parte da motivação do seu recurso, fazendo apelo ao princípio in dubio pro reo, que “a sentença funda os seus pressupostos em factos que não resultaram provados – muito pelo contrário – não tendo sido comprovado qualquer nexo de causalidade entre a taxa de álcool apurada e a produção do acidente”.
Pois bem, o recorrente labora em manifesto equívoco.
Dos factos dados como assentes, resulta apenas que o arguido foi interveniente num acidente de viação – factos n.º 1 e n.º 5.
Não existe qualquer facto que aponte a conduta do arguido como a causa directa ou exclusiva do acidente.
Não pode é ser omitido que o arguido nele interveio, numa altura em que acusava determinada taxa de álcool no sangue. E isso é um dado objectivo, necessariamente a ser levado em consideração, ao nível das consequências do acto.
E é só isso que foi levado em consideração na graduação da pena (fls. 114 – “a intervenção em acidente de viação”).
Não se esqueça que estamos perante um crime de perigo abstracto, ou seja, a respectiva consumação não exige a verificação da existência de um perigo concreto para os bens jurídicos em causa
De qualquer dos modos, o artigo 292.º, do Código Penal, tem, justamente, a sua razão de ser nos efeitos potenciadores de acidentes de viação que derivam da ingestão de álcool, na medida em que as capacidades cognitivas e motoras de um condutor ficam debilitadas quando aquela acontece.
Por via disso, necessariamente que, existindo um acidente de viação em que participa um cidadão que acusa uma taxa de álcool de 1,90g/l, tal tem que ser valorado, enquanto facto real, não para lhe imputar a culpa na produção do acidente, mas para aferir o grau de ilicitude presente nos factos, no âmbito do apuramento das concretas circunstâncias em que o mesmo teve lugar e das consequências, para pessoas e bens, que daí resultem.
Aliás, o objecto do processo está delimitado pela acusação e em nenhuma parte desta é feita referência à causalidade do acidente, até porque isso não interessa ao tipo de crime em causa.
Acresce que não assiste qualquer razão ao recorrente em invocar o aludido princípio, a menos que o mesmo seja interpretado de uma forma incorrecta.
De acordo com Cavaleiro Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, este princípio respeita ao direito probatório, implicando a presunção de inocência do arguido que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal como resultante do ónus legal de prova para decidir da condenação do arguido que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos. O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto. Como todos sabem, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213 – já Ulpiano dizia “é melhor um crime impune do que um inocente castigado”. O princípio in dubio pro reo situa-se no âmago da livre apreciação da prova. Livre convicção e dúvida razoável limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova e da sua apreciação em conformidade com o critério do art. 127º do CPP. Sujeito, ainda, à mesma exigência de legalidade da prova e da sua apreciação motivada e crítica, da objectividade, racionalidade e razoabilidade dessa apreciação. O princípio in dubio pro reo é considerado pela doutrina largamente maioritária um princípio estritamente atinente ao direito probatório, como tal relevante em termos da apreciação da questão de facto e não na superação de qualquer questão suscitada em matéria de direito – cfr., entre outros, Cavaleiro Ferreira, Direito Penal Português, 1982, vol. 1, 111, Figueiredo Dias Direito Processual Penal, p. 215, Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, p. 58 (ver, em sentido contrário e minoritário, como sendo um princípio geral de direito (processual penal) cuja violação conforma uma autêntica questão-de-direito – Cfr. Medina Seiça, Liber Discipulorum, p. 1420; Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, p. 217 e segs.).
Lendo a fundamentação da decisão ora em crise, facilmente é constatado que o tribunal a quo não ficou com qualquer dúvida sobre a matéria de facto.
E como podia ficar, se o arguido confessou os factos?
A fundamentação de facto acima transcrita é consistente e racional.
O princípio geral do processo penal ora em análise é aplicável apenas nos casos em que, apesar de toda a prova recolhida, continuam os factos relevantes para a decisão a não poderem considerar-se como provados por continuar a subsistir dúvida razoável do Tribunal. Ora, nenhuma dúvida está presente.
O princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
No caso vertente, o Tribunal “a quo” não se quedou por um non liquet de facto, ou seja, não permaneceu na dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão, pelo que não há lugar a qualquer aplicação do princípio in dubio pro reo
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2) Da medida da pena principal e da pena acessória:
Façamos uma breve análise sobre as finalidades legais das penas com reflexos no seu doseamento e nos critérios legais concretos a observar neste doseamento, de forma a decidir se a sanção acessória deve ser diminuída, como pretende a recorrente.
Como dispõe o artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim na filosofia da lei penal vigente a protecção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afectados.
Na protecção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.
No caso concreto a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados.
Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização será encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, nos termos do artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena (cfr. nomeadamente Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1ª edição, pags. 238 a 255).
Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, preceitua, na senda do citado artigo 40.º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o n.º 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido (a necessidade da pena revela-se desse modo em função da menor ou maior exigência do exercício da prevenção e da reintegração).
No que tange à pena principal, sublinhe-se que, no crime de condução em estado de embriaguez, a confissão é de fraco valor atenuativo porque o arguido é surpreendido em flagrante delito, em face da taxa de alcoolemia verificada no teste (cfr. sumário do Ac. do STJ de 19.03.98, Proc. 97P1256, disponível in www.dgsi.pt). O facto de o arguido/recorrente ter mostrado arrependimento e ser delinquente primário nenhum relevo especial merece, pois é o exigível ao comum cidadão. Quanto ao arguido estar bem integrado social, familiar e profissionalmente, tal não serviu, afinal, para dissuadir o mesmo de conduzir no estado de embriaguez em que se encontrava, sendo certo que tem 3 filhos menores, o que justifica um maior cuidado seu no sentido de evitar comportamentos perigosos ao volante de um automóvel, a fim de os poder acompanhar no seu crescimento. Ora, dúvidas não há de que conduzir um veículo ligeiro de passageiros, após ter ingerido bebidas alcoólicas, de modo a apresentar a TAS de 1,90g/l, representa uma conduta pouco responsável.
A sinistralidade rodoviária, em Portugal, atinge números assustadores. Todos os dias morrem pessoas nas estradas portuguesas (uma grande parte das famílias portuguesas já perdeu entes queridos nas estradas, na sequência de acidentes de viação) e o consumo excessivo de álcool por parte dos condutores tem um peso considerável nessa realidade, como é público e notório. Não é desejável que o cidadão continue a entender, de ânimo leve, que “só morrem ou ficam feridos os outros” ou, então, que o acidente acontece “por causa alheia a quem apresenta níveis elevados de álcool no sangue”…
Não esqueçamos o essenciala recorrente estava a conduzir um veículo motorizado com uma TAS de 1,90gr/l, o que não pode ser banalizado e relativizado.
Logo, a pena principal mostra-se adequada, proporcional e justa.
No que tange à moldura da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, a mesma situa-se entre 3 meses e 3 anos.
No que respeita à pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, tal como a pena principal, também deve ser doseada com observância do disposto nos artigos 40.º e 71.º, do Código Penal, que se referem genericamente às penas, não distinguindo entre penas principais e acessórias (cfr. entre outros o Acórdão da Relação de Évora de 22.9.2004 em www.dgsi.pt/jtre).
Como todos sabem, tal pena acessória encontra-se intimamente conexionada com o facto cometido, visando objectivos de prevenção geral e especial, tanto mais que a proibição de conduzir procura contribuir, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano. Simplesmente, a aplicação da pena acessória não tem de ser proporcional à pena principal, uma vez que os objectivos de política criminal são, também eles, distintos. O fim da pena acessória dirige-se especificamente à recuperação do comportamento estradal do condutor transviado, pelo que não tem de existir uma correspondência matemática e proporcional entre as penas, consideradas as respectivas molduras abstractas (vide Acórdão da Relação do Porto, de 20.05.1995, CJ, T4, pág. 229). Aliás, a fixação da pena acessória, no caso em apreço, em 6 meses, encontra-se em sintonia com as decisões dos Tribunais Superiores nesta matéria, veja-se, a título de exemplo, o Ac. da RE, de 20.01.2004, proc. 1880/03-1, disponível in www.dgsi.pt, que confirmou a decisão que aplicou ao arguido, que apresentava uma TAS de 1,79 g/l, uma inibição de conduzir pelo período de 6 (seis) meses; o Ac. da RG, de 28.05.2007, proc. 598/07-2, disponível in www.dgsi.pt, que confirmou a decisão que aplicou ao arguido, que apresentava uma TAS de 1,56 g/l, uma inibição de conduzir pelo período de 6 (seis) meses; o Ac. da RL, de 08.06.2005, proc. 0446667, disponível in www.dgsi.pt, que confirmou a decisão que aplicou ao arguido uma inibição de conduzir pelo período de 4 (quatro) meses, não obstante ele apresentar uma TAS de 1,27 g/l; o Ac. da RL, de 12.09.2007, proc. 4743/2007-3, disponível in www.dgsi.pt, que aplicou ao arguido uma inibição de conduzir pelo período de 10 (dez) meses, não obstante ele ser primário, e apresentar uma TAS de 1,95 g/l; o Ac. da RL, de 17.06.2004, proc. 4316/2004-9, disponível in www.dgsi.pt, que aplicou ao arguido, que apresentava uma TAS de 2,07 g/1, uma inibição de conduzir pelo período de 18 (dezoito) meses, o Ac. da RL, de 15.02.2003, proc. 5627/2003-5, disponível in www.dgsi.pt, que confirmou a decisão que aplicou ao arguido, que apresentava uma TAS de 1,56 g/l, uma inibição de conduzir pelo período de 6 (seis) meses; e, por fim, o Ac. da RL, de 30.10.2003, proc. 6500/2003-9, disponível in www.dgsi.pt, que confirmou a decisão que aplicou ao arguido, que apresentava uma TAS de 1,26 g/l, uma inibição de conduzir pelo período de 6 (seis) meses, conforme recente Acórdão da Relação de Lisboa, de 21/4/2009, Processo 10888/2008-5, em que é Relator o Exmo. Desembargador Ricardo Cardoso, in www.dgsi.jtrl.pt. Importa considerar, aliás, as elevadas exigências de prevenção deste tipo de infracção, sobretudo de prevenção geral, face aos elevados índices de sinistralidade verificados nas nossas estradas, provocada, em grande parte, pela condução sob a influência do álcool, impondo que "as sanções aplicáveis se decretem com certa severidade, pois só assim poderão apresentar-se como dissuasoras do comportamento (...) dos condutores que bebem em excesso e que em tal estado de embriaguez, se atrevem ou se sentem impelidos para conduzir (cf. Ac. da R.C. de 3.7.1997, in C. J., Ano XII, t. 3, pág. 57).” Tudo ponderado, afigura-se-nos ajustado que o arguido deva ficar proibido de conduzir veículos motorizados pelo período fixado de 6 meses, acima do mínimo legal de três meses, porque sendo certo que se trata da primeira condenação, a prática do crime revela a total indiferença deste relativamente à proibição legal assim como quanto às consequências do crime, o que eleva obviamente as exigências cautelares acima do mínimo legal.
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IV. Decisão:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5 ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em declarar improcedente o recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC.
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(elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)
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Coimbra, 5 de Maio de 2010
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(José Eduardo Martins)


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(Isabel Valongo)