Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2411/10.4TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO PRODUTOR
PRODUTO DEFEITUOSO
NORMAS DE SEGURANÇA
REGRAS DE INFORMAÇÃO
FICHA TÉCNICA
ROTULAGEM
Data do Acordão: 09/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DL Nº 383/89 DE 6/11, DL Nº 82/2003 DE 23/4, DL Nº 69/2005 DE 17/3
Sumário:
1. Para efeitos do regime da responsabilidade objetiva por produtos defeituosos, o defeito do produto pode ser intrínseco, por resultar do seu conteúdo, caraterísticas ou composição, mas também extrínseco, se deriva da sua apresentação, embalagem, rotulagem e de eventuais instruções de utilização.
2. Provada a falta de entrega da ficha técnica aquando da venda do produto, tal falta só se encontrará justificada em caso de alegação e prova de que já havia sido entregue um exemplar de tal ficha técnica em momento anterior.
3. Um produto que desrespeite alguma norma de segurança, nomeadamente por violação das regras de informação constantes da rotulagem – nomeadamente a obrigatoriedade de as mesmas se encontrarem em língua portuguesa –, terá de presumir-se “defeituoso” para efeitos da responsabilidade objetiva do produtor.
4. Demonstrado o defeito – omissão das instruções em língua portuguesa – é de considerar como provável que a deficiência dos avisos e instruções de manuseamento no rótulo aposto no produto (aliadas ao facto de o produto ter sido vendido sem a ficha técnica, esta sim em português, e sem qualquer alerta para os respetivos perigos) tenha sido a causa da omissão por parte da autora dos procedimentos adequados a evitar a projeção de líquido sobre o seu corpo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):
I – RELATÓRIO
M (…) intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra V (…), Lda. e P (…), Lda.,
alegando, em síntese:
ter sido atingida por um produto que continha ácido sulfúrico, produzido/comercializado pela ré “V (…)” e adquirido à ré “P (…)”;
tal produto, que se destinava a desentupir canos, foi vendido sem qualquer ficha técnica;
no momento em que a autora procedia à abertura da embalagem, a tampa soltou-se e o seu conteúdo atingiu-a, causando-lhe graves lesões corporais.
o sinistro deveu-se ao não cumprimento das normas de segurança no fabrico da embalagem do produto, designadamente da sua tampa.
Conclui, pedindo a condenação solidária das rés a pagar-lhe a quantia de € 95.000,00, na qual computou os danos morais por si sofridos, acrescida de juros legais, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Cada uma das Rés apresenta a sua contestação:
excecionando a prescrição do direito indemnizatório de que se arroga a autora, por terem decorrido mais de três anos desde a data do sinistro até ao momento de interposição da ação, nos termos do disposto no artigo 498º, nº 1 do Código Civil;
arguindo a respetiva ilegitimidade processual, por serem meras importadoras, distribuidoras e redistribuidoras do produto em questão, não tendo qualquer responsabilidade na sua produção, fabrico, classificação, rotulagem e embalagem, respeitando a relação material controvertida em debate ao produtor;
arguindo a ineptidão da petição inicial, por a autora não ter esclarecido em que condições lhe foi processada a indemnização laboral, em que valor esta foi fixada e qual a entidade que a liquidou, e ainda por não ter esclarecido a factualidade relativa à participação criminal que alegou ter efetuado;
argumentando não lhes caber qualquer responsabilidade no sinistro em causa, tanto mais que foi a autora que solicitou a terceiro a abertura do frasco e que, de forma imprudente, o manuseou, derramando sobre si própria o líquido que continha;
a autora foi elucidada pela co-Ré P (…) risco de utilização do produto, desconhecendo as rés se foi o produto por ambas distribuído que causou os danos invocados, cujas caraterísticas, de todo o modo, eram do conhecimento da autora, por o vir manuseando ao longo dos anos na sua atividade profissional, sendo que, do rótulo do produto constavam indicações precisas, designadamente quanto à sua perigosidade e quanto ao facto de se destinar a uso profissional.
Concluem pela procedência das exceções invocadas, com as legais consequências, ou, caso assim não se entenda, pela improcedência da ação.
A autora apresentou réplica, alegando, em síntese:
o facto ilícito por si invocado constitui crime, pelo que é aplicável o prazo de prescrição de cinco anos previsto no artigo 498º, nº 3, do Código Civil;
as rés são partes legítimas por terem colocado no mercado um produto com defeito na embalagem e sem a necessária ficha técnica,
concluindo ainda que a petição inicial não padece de ineptidão.
Foi proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as exceções de prescrição, de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade.
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Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação improcedente, absolvendo as rés do pedido.
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Inconformada com tal decisão, a Autora dela interpõe recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
(…)
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Não foram apresentadas contra-alegações por qualquer uma das Rés.
Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto.
2. Responsabilidade das Rés por defeito de informação.
3. Indemnização por danos morais
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Impugnação da matéria de facto
(…)
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A. Matéria de facto
São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida, com as alterações aqui introduzidas em sede impugnação à decisão proferida sobre a matéria de facto:
5.1 – No dia 14/8/2006, pelas 12 horas, em Viseu (…), a autora M (…) foi vítima de um acidente (alínea A dos factos assentes);
5.2 – O produto de limpeza com nome comercial “W (…)” tem uma chamada tampa de segurança, sendo necessário premir com bastante força a tampa e só depois rodá-la (alínea B dos factos assentes);
5.3 – Pelo dito acidente, a autora apresentou participação criminal nos serviços do Ministério Público de Viseu, a que deu lugar o inquérito nº 568/08.3TAVIS, tendo sido aí proferido, em 15/3/2011, despacho de arquivamento (alínea C dos factos assentes);
5.4 – A ré participou o acidente ao tribunal de trabalho de Viseu, dando origem ao processo de AT nº 171/07.5TTVIS, onde lhe foi fixada uma indemnização por IPP (alínea D dos factos assentes);
5.5 – A autora, no exercício das suas funções de trabalho de limpeza, atividade que exercia por conta própria, nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 5.1, foi atingida por um produto que continha ácido sulfúrico (artigo 1º da base instrutória);
5.6 – A autora, por intermédio da ação de (…), então seu companheiro, havia adquirido nesse mesmo dia do acidente, da parte da manhã, no estabelecimento da ré “P (…)”, um produto de limpeza comercializado pela ré “V (…)”, com o nome comercial “W (…) (artigo 2º da base instrutória);
5.7 – Esse produto destinava-se a desentupir canos, e assim foi solicitado à vendedora, a ré P (…)” (artigo 3º da base instrutória);
5.8 – Do seu rótulo constavam a menção de “corrosivo” e os dizeres “W (…)”, bem como instruções de manuseamento aí se mostrando expresso que o mesmo se destinava a uso profissional e alertando para o facto de conter 90% (ou mais) da sua constituição, em ácido sulfúrico, sendo que, tanto o nome do produto como as demais informações a eles respeitantes se encontravam aí apostas unicamente em espanhol (artigos 4º, 28º e 29º da base instrutória);
5.9 – No momento mencionado em 5.6 não foi entregue pela ré “P (…)” qualquer ficha técnica, nem advertiu da sua composição (artigo 5º da base instrutória);
5.10 – Da ficha técnica, obtida posteriormente, resulta que tal produto tem na sua composição cerca de 90% de ácido sulfúrico (artigo 6º da base instrutória);
5.11 – Tal ficha técnica foi alterada após o acidente quanto à composição do produto (artigo 7º da petição inicial);
5.12 – A autora muniu-se de luvas de proteção (artigo 8º da base instrutória);
5.13 – No dia referido em 5.1, em condições que em concreto não foi possível apurar, quando manuseava a embalagem do produto “W (…)”, o seu conteúdo foi subitamente projetado para fora da embalagem, atingindo a autora na zona torácica, pescoço, braço esquerdo, barriga e pernas (artigo 9º da base instrutória);
5.14 – Ato contínuo, a autora pediu socorro, tirou a roupa, tendo sido de imediato levada para o Hospital de Viseu por um terceiro, e daí foi transferida para Coimbra, onde ficou internada (artigos 10º e 11º da base instrutória);
5.15 – Durante o seu internamento hospitalar na unidade funcional de queimados, a autora foi sujeita a quatro sessões de balneoterapia com indução anestésica, e duas sessões operatórias que consistiram em:
-23/8/2016, escarectomia do membro superior esquerdo, tórax, abdómen e região cervical;
- 28/8/2006, auto enxertos cutâneos no abdómen e membro superior esquerdo (artigo 12º da base instrutória);
5.16 – A autora teve alta para o domicílio em 31/8/2006 (artigo 12º da base instrutória);
5.17 – Em 4/9/2006, a autora foi observada na consulta externa de queimados, onde foi feito penso (artigo 12º da base instrutória);
5.17.a. De então para cá foi submetida a várias intervenções cirúrgicas, e no momento está a fazer correções a cicatrizes (artigo 13º da Base instrutória);
5.18 – A autora sofreu lesões, concretizadas em queimaduras de 2º grau e 3º grau em aproximadamente 6% da superfície corporal, abrangendo a região cervical, tronco anterior, braço esquerdo e pernas, provocadas pelo referido produto (artigo 14º da base instrutória);
5.19 – A autora padece hoje com caráter definitivo e permanente de sequelas de vária ordem, designadamente:
Pescoço: cinco cicatrizes de aspeto queloide na face anterior e lateral, a maior com sete centímetros e a menor com dois centímetros;
Tórax: doze cicatrizes de aspeto queloide na face anterior, a maior com dezassete centímetros e a menor com um centímetro;
Abdómen: cicatriz operatória com 51 centímetros e sete cicatrizes supra umbilicais a maior com oito centímetros e a menor com um centímetro;
Membro Superior Esquerdo: várias cicatrizes de aspeto queloide, a maior com vinte centímetros e a menor com um centímetro;
Membro Inferior Direito: cicatrizes de aspeto queloide, a maior com dezasseis centímetros e a menor com quatro centímetros e outra na perna com sete centímetros (artigo 15º da base instrutória);
5.20 – Nos HUC de Coimbra, a autora foi submetida a plásticas reconstrutivas, tendo dado entrada em 14/8/2006, transferida do Hospital de Viseu (artigo 16º da base instrutória);
5.21 – Por força das lesões sofridas no acidente, a autora teve dores que se situam no grau 5, numa escala de sete valores (artigo 17º da base instrutória);
5.22 – As cicatrizes mencionadas no facto 5.19, de que a autora ficou portadora, provocam-lhe um dano estético permanente situado no grau cinco, numa escala de sete valores (artigo 18º da base instrutória);
5.23 – Na zona das cicatrizes, a pele da autora ficou muito sensível ao calor, pelo que nunca pode andar com o tronco à mostra, nem de biquíni na praia, tendo vergonha de o fazer (artigo 19º da base instrutória);
5.24 – A autora sente-se triste, angustiada e perdeu vontade de viver (artigo 20º da base instrutória);
5.25 – Na sequência do evento descrito, a autora deixou de trabalhar em limpezas (artigo 21º da base instrutória);
5.26 – A autora entrou e entra frequentemente em depressão (artigo 23º da base instrutória);
5.27 – Ao longo dos anos, no exercício da sua atividade, a autora vem utilizando diversos produtos químicos, de natureza perigosa (artigo 25º da base instrutória);
5.28 – Não tendo sido a primeira vez que utilizou o produto “W (…)”, desentupidor de canos (artigo 26º da base instrutória);
5.29 – Em janeiro de 2006, a ré já havia vendido à autora “W (…)-desentupidor de canos, conjuntamente com outros produtos (artigo 27º da base instrutória);
5.30 – A ré “P (…)” comercializava o produto “W (…)”, de que era importadora e distribuidora nacional a ré “V (…) (artigo 30º da base instrutória).
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B. O Direito
2. Responsabilidade das rés por defeito de informação
A sentença recorrida, reconhecendo embora que a Ré V…, enquanto importador, e a Ré P…, enquanto fornecedor, ambas as rés se enquadram na noção ampla de produtor consagrada no DL 383/89, de 06.11, relativa à responsabilidade do produtor por produtos defeituosos, acaba por afastar tal responsabilidade ao concluir não se ter apurado que o produto em questão padecesse de defeito, em qualquer das aceções convocáveis:
“Efetivamente, não se apurou que a embalagem padecesse de qualquer defeito (de fabrico ou de conceção), e que a tampa tenha saltado, sem qualquer contributo da autora. De facto, não foi possível apurar em que condições o líquido que a embalagem continha foi derramado sobre a autora, não tendo consequentemente ficado demonstrado que tal se devesse a vício do próprio produto.
Afigura-se que também não pode concluir-se pela violação do dever de informação por parte das rés em moldes que se reconduzam a uma violação do dever geral de segurança a que se mostravam vinculadas. Efetivamente, não pode concluir-se que o produto estivesse indevidamente rotulado, tanto mais que se apurou que do mesmo constava a menção de “corrosivo”, acompanhada do pictograma correspondente. De tal pictograma extrai-se o perigo de queimaduras cutâneas. Aliás, o produto foi adquirido para desentupir canos, evidenciando a autora conhecer a sua perigosidade, tanto mais que o manuseou com luvas.
De resto, a autora já havia adquirido tal produto, em conjunto com outros que destinou à atividade profissional de limpezas que exercia por conta própria. E também tal menção de uso profissional constava da embalagem. Assim, a violação do dever de informação não decorre de forma automática da não entrega de ficha técnica, porquanto estava em causa um produto corrosivo, cujas caraterísticas a autora conhecia e que resultavam das menções apostas no respetivo rótulo.
Consequentemente, embora os factos apurados indiciem que a autora sofreu danos graves ao nível da sua integridade física, causados por produto adquirido à ré “P (…)” e comercializado pela ré “V (…), não resultou apurado qualquer comportamento ilícito destas, nem que tal evento danoso lhes seja objetivamente imputável. Designadamente, não se apurou que o produto em questão padecesse de defeito em qualquer das aceções enunciadas (defeito de conceção, de fabrico ou de informação), incumbindo à autora o ónus de alegação e prova de tal defeito.”
Insurge-se a Autora/Apelante contra o decidido, com fundamento em que o produto W (…) vendido à autora – com cerca de 90% de ácido sulfúrico na sua composição, não constante do rótulo da embalagem (redigido em castelhano) – desacompanhado da respetiva ficha técnica de segurança de dados, sem quaisquer advertências quanto à sua composição, ao seu modo de utilização e precauções a observar, é objetivamente um produto defeituoso, fazendo incorrer a Ré P (…) enquanto fornecedor, e a Ré V (…), enquanto distribuidor, em responsabilidade civil pelas lesões corporais causadas à autora.
Defende a Apelante a responsabilização das rés por defeito do produto consistente na falta de informação sobre as qualidades do mesmo e precauções de segurança no seu manuseamento, ao abrigo do DL nº 383/89, de 06.11, sobre Responsabilidade do Produtor por Produtos Defeituosos, e ao abrigo do DL 69/2005, de 17.03, sobre a Segurança Geral das Produtos.
É indiscutido nos autos É assim definido na sentença recorrida que, nesta parte, não foi objeto de impugnação – sendo favorável à Apelante, nenhuma das rés requereu a reapreciação de tal segmento por via da ampliação de recurso prevista no nº1 do art. 636º do CPC. que a Ré V (…), na qualidade de importadora do produto, e a Ré P (…), enquanto comercializadora do mesmo, se enquadram no conceito de “produtor”, respondendo nos termos do regime legal da responsabilidade objetiva do produtor pelos danos causados nos produtos que coloca em circulação, contido no Decreto-Lei nº 383/89, de 06 de novembro.
Vejamos, agora, se o produto importado pela Ré V (…) e comercializado pela Ré P (…) pode ser considerado “defeituoso”, para efeitos de despoletar a responsabilização das rés ao abrigo do citado diploma.
Consagrando e regulamentando a responsabilidade objetiva do produtor decorrente de produtos defeituosos, o referido diploma estabelece um conceito específico de “defeito” que assenta na falta de segurança legitimamente esperada do produto e não na falta de conformidade ou qualidade ou idoneidade do produto para a realização do fim a que se destina.
Dispõe a tal respeito o nº1 do seu artigo 4º:
“Um produto é defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação.”
E a al. c), do artigo 3º do DL 69/2005, de 17 de março Diploma que estabelece as garantias de segurança dos produtos e serviços colocados no mercado, transpondo para a ordem jurídica nacional a Diretiva nº 201/95/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 03 de Dezembro, relativa à segurança geral dos produtos. , considera produto perigoso “qualquer bem não abrangido pela definição de produto seguro a que se refere a alínea b)”, apresentando-nos a seguinte definição de “produto seguro”:
Qualquer bem que, em condições de utilização normais ou razoavelmente previsíveis, incluindo a duração, se aplicável a instalação ou entrada em serviço e a necessidade de conservação, não apresente quaisquer riscos ou apresente apenas riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados conciliáveis com um elevado grau de proteção da saúde e segurança dos consumidores, tendo em conta, nomeadamente:
i) As características do produto, designadamente a sua composição;
ii) A apresentação, embalagem, a rotulagem e as instruções de montagem, de utilização, de conservação e de eliminação, bem como eventuais advertências ou outra indicação de informação relativa ao produto;
iii) Os efeitos sobre outros produtos quando seja previsível a sua utilização conjunta;
iv) As categorias de consumidores que se encontrarem em condições de maior risco ao utilizar o produto, especialmente crianças e idosos.
Para valorar as legítimas expetativas de segurança do público, o artigo 4º sugere ao juiz os seguintes critérios de valoração:
a) a apresentação do produto;
b) a utilização razoável do produto;
c) o momento da entrada em circulação do produto;
d) outros elementos.
O defeito do produto pode ser intrínseco, por resultar do seu conteúdo, caraterísticas e composição, mas também extrínseco, se deriva da sua apresentação, embalagem, rotulagem e de eventuais instruções de utilização Acórdão do STJ de 05-01-2016, relatado por Pinto de Almeida, disponível in www.dgsi.pt. .
Nas palavras de Calvão da Silva Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança”, 5ª ed., Almedina, pp.201-202., o juiz atende ao produto em si, às suas caraterísticas e composição, mas também à sua apresentação: o defeito deriva não só do produto em si, do seu conteúdo ou natureza intrínseca, mas também do seu “continente”, da forma externa como é apresentado ao público em todo o processo de comercialização.
No caso em apreço, dos factos sobre os quais a autora construiu a presente ação e sobre os quais fez assentar a responsabilidade das Rés – a) do respetivo rótulo constava unicamente a menção de “corrosivo”; b) não ter sido entregue pela vendedora à autora, qualquer ficha técnica; c) quando estava a dar inicio à abertura da embalagem do produto, a tampa soltou-se com violência – apenas se mantêm em discussão os dois primeiros (ficaram por apurar as concretas circunstâncias em que o líquido foi derramado sobre a autora).
Ou seja, encontrar-se-ão, tão-somente, em causa, defeitos do produto relacionados com a falta de informação ao nível da rotulagem e a falta de entrega da ficha técnica à autora por parte da vendedora.
Só podendo ser colocados no mercado produtos “seguros”, considera-se conforme com a obrigação legal de segurança o produto que estiver em conformidade com as normas legais ou regulamentares que fixem os requisitos em matéria de proteção de saúde e segurança a que o mesmo deve obedecer para ser comercializado – nº2 do artigo 4º do DL 69/2005, de 24 de abril.
Vejamos, assim, a regulamentação em vigor relativamente à classificação, embalagem e rotulagem das substâncias perigosas – Decreto-Lei nº 82/2003, de 23 de abril, que, visando a reunião num único diploma de todas as regras técnicas sobre a matéria, aprovou o Regulamento para a Classificação, Embalagem, Rotulagem e Fichas de Dados de Segurança de Preparações Perigosas, procedendo à transposição das Diretivas ns. 1999/45/CE, 2001/58/CE (que alterou pela 2ª vez a Diretiva 91/155/CEE), e 2001/60/CE, a produzir efeitos 180 dias após a sua publicação.
Quanto à ficha de dados de segurança, dispõe o artigo 13º do DL nº82/2003 que as informações fornecidas nas fichas de dados de segurança se destinam, sobretudo, aos utilizadores profissionais e devem permitir-lhes tomar as medidas necessárias para proteger a saúde e o ambiente e garantir a segurança nos locais de trabalho.
Relativamente à obrigação de entrega da ficha de dados de segurança, dispõe o nº3 da citada norma, que “O responsável pela colocação no mercado de uma preparação perigosa nos termos do nº2 do art. 1º, deve fornecer ao utilizador profissional uma ficha de dados de segurança elaborada de acordo com o número anterior, o mais tardar por ocasião da primeira entrega da preparação, e, posteriormente, após qualquer revisão efetuada na sequência de novas informações significativas relativas à segurança e proteção da saúde e do ambiente”. A nova versão, datada e identificada como “Revisão … (data)”, deve ser distribuída a todos os utilizadores profissionais que tenham recebido a preparação nos 12 meses precedentes”.
Na comercialização das preparações perigosas em território nacional a ficha de dados de segurança deve ser redigida em língua portuguesa – nº6 do art. 13º.
Foi dado como provado que, aquando da aquisição do produto em causa, não foi entregue pela Ré P (…) qualquer ficha técnica (5.9., da matéria de facto).
Não sendo a primeira vez que a autora adquirira à Ré o produto W (…) desentupidor de canos, poderíamos ser levados a afirmar que, aquando deste segundo fornecimento, a Ré não se encontraria obrigada à entrega da respetiva ficha técnica.
Contudo, não tendo sido entregue a ficha técnica do produto aquando da sua aquisição pela autora, não foi alegado pelas Rés que tal ficha já lhe houvesse sido entregue pela 2ª Ré em momento anterior Relativamente a tal matéria, a Ré fornecedora P (…) limita-se, no artigo 24 da sua contestação, a alegar que “É falso o alegado em 3º, 5º e 6º [Não lhe foi entregue pela vendedora, aqui Ré qualquer ficha técnica, obtida posteriormente (…)”..
Ou seja, tendo-se provado que aquando da venda do produto em apreço não foi entregue qualquer ficha técnica à autora, era à 2ª Ré que incumbia a alegação de que a entrega da ficha técnica se havia mostrado desnecessária por a mesma já lhe haver sido entregue em momento anterior, nomeadamente, quando vendeu tal produto à autora pela 1ª vez, a 20 de janeiro de 2016.
Concluindo, a falta de entrega da ficha técnica aquando da venda deste produto só não integraria uma violação do disposto no nº3 do artigo 13º, do DL 82/32003 se a 2ª Ré tivesse alegado (e provado), que tal ficha já em momento anterior lhe havia sido entregue e quando ocorreu tal entrega.
Vejamos, agora, se as características do rótulo da embalagem vendida à Ré respeitam os Regulamentos em vigor à da sua comercialização.
O produto em apreço – comercializado sob a designação W (…)e destinado a desentupir canos – é composto de uma mistura de ácido sulfúrico e ácido fosfórico, com prevalência do primeiro Cfr., conclusões do Relatório de Exame Pericial ao produto W (…), junto a fls. 468 a 484 do processo físico. (50 a 90% de ácido sulfúrico e 10 a 50% de ácido fosfórico, segundo a ficha técnica original do produto, datada de 01.03.96 Cfr., fls. 384v a 387 do processo físico.).
Ambas as substâncias de que é composto o preparado, quer o ácido sulfúrico (H2SO4) quer o ácido fosfórico (H3PO4), são consideradas “perigosas” para efeitos do Regulamento para a Classificação, Embalagem, Rotulagem e Fichas de Dados de Segurança de Preparações Perigosas A partir daqui designado tão só de “Regulamento”., sendo aí qualificadas como “corrosivas”: “substâncias e preparações que, em contacto com tecidos vivos podem exercer uma ação destrutiva sobre estes últimos” (alínea i), do art. 2º, nº2, do Regulamento e Portaria nº 732-A/96, de 11 de 12), correspondendo-lhes o símbolo de um ácido ativo (C) Cfr. Anexo II da Portaria 732-A/96, sob a designação, “ácido sulfúrico em solução” (p.100) e “ácido fosfórico em solução” (p.59)..
Para serem postas no mercado, as embalagens que contenham preparados considerados perigosos deverão ter um rótulo que, de forma clara e indelével, as seguintes informações:
- designação química das substâncias presentes na preparação;
o nome da substância deve figurar sobre uma das denominações que constam da lista do Anexo I da Portaria nº 732º-A/96;
- os símbolos de perigo e as indicações relativas aos perigos associados à utilização da preparação (em conformidade com os Anexos II e IV da Portaria 732º- A/96);
- as indicações relativas aos riscos específicos (frases R) resultantes destes perigos, em conformidade com a redação do Anexo III da Portaria 732º-A/96.
No caso em apreço, o rótulo do produto em causa, tendo em conta a sua composição, deveria ostentar, entre outras, as seguintes indicações:
- a indicação de que o preparado era composto de ácido sulfúrico e de ácido fosfórico e em que proporção;
- o símbolo respeitante a produto “Corrosivo” (Letra C) Um preparado é classificado de “corrosivo”, com obrigatoriedade do símbolo C e pela frase indicadora de riscos R35, sempre que contenha ácido sulfúrico em concentração superior a 15% e ácido fosfórico em concentração superior a 25% (pp. 50 e 100, do Anexo II da Portaria 732-A/96 e Anexo II 4.1.1., do DL 82/2003).;
- como risco específico, a indicação de que provoca queimaduras graves (R35);
- os conselhos de prudência S26 – em caso de contacto com os olhos, lavar imediatamente com água e consultar um especialista –, S30 – nunca adicionar água a este produto – e S45 – em caso de acidente ou indisposição, consultar imediatamente um médico (se possível mostrar-lhe o rótulo).
Os símbolos de perigo devem ser impressos a negro em fundo amarelo alaranjado (art. 9º, nº7, DL 82/2003).
As informações a incluir no rótulo devem destacar-se do fundo e ter uma dimensão e um espaçamento que permitam lê-las com facilidade.
O rótulo deve estar solidamente fixado numa ou mais faces da embalagem, de tal forma que as informações em questão possam ser lidas na horizontal quando a embalagem estiver colocada na sua posição normal (nº1 do art. 10, DL 82/2003)
As indicações obrigatoriamente constantes dos rótulos das embalagens das preparações abrangidas pelo presente Regulamento, comercializadas em território nacional, devem ser redigidas em língua portuguesa – nº6 do artigo 10º DL 82/2003.
Atentar-se-á em que, em consonância com a ideia de que os avisos de perigosidade e as instruções de uso devem ser de molde a chamar a atenção do utilizador e de fácil leitura, a obrigatoriedade de se encontrarem apostos em língua portuguesa constava já da Portaria nº 732-A/96, de 11 de dezembro.
Com efeito, o nº1 do seu artigo 18º prescrevia que qualquer embalagem deve conter, entre outras, as seguintes indicações, “redigidas em língua portuguesa”:
a) Nome da substância, sob uma das denominações constantes do Anexo I;
b) Nome e morada completa, incluindo número de telefone, do responsável pela colocação no mercado, seja ele fabricante, importador ou distribuidor;
c) Símbolos de perigo e indicação dos perigos que apresenta a utilização da substancia em conformidade com as indicações do anexo I;
d) Os símbolos e as indicações de perigo devem ser conformes com os do Anexo II, devendo ser impressos a negro sobre fundo amarelo-alaranjado (frases “R”)
e) Frases tipo indicando os conselhos de prudência no uso da substancia (frases “S”).
Regressando ao caso em apreço, e relativamente ao teor do rótulo da embalagem que continha o “W (…)” derramado sobre a autora, apurou-se apenas que do mesmo constava a menção de “corrosivo”, e os dizeres W (…), bem como instruções de manuseamento, aí se mostrando expresso que se destinava a uso profissional, alertando para o facto de conter 90% (ou mais) da sua constituição em ácido sulfúrico, sendo que, tanto o nome do produto como as demais inscrições se encontram aí apostas unicamente em espanhol (5.8. da matéria de facto).
Ou seja, embora desconheçamos os exatos dizeres apostos no rótulo da embalagem adquirida pela autora – a embalagem nunca foi apresentada no inquérito levado a cabo pela ASAE, sabendo-se, tão só, o que sobre a mesma é afirmado no relatório de peritagem efetuado pela P (…), a pedido da Z (…)no âmbito do processo por acidente de trabalho (fls. 356 a 361); a embalagem foi apresentada na peritagem efetuada no âmbito dos presentes autos, mas o respetivo rótulo encontrava-se deteriorado (fls. 470) –, sabemos que o mesmo se encontrava redigido em língua espanhola, em infração do disposto no nº1 do art. 18º da Portaria nº 732-A/96 e nº6 do art. 10º do DL 82/2003.
Vejamos a relevância da violação do dever de fazer constar na língua portuguesa todas as informações que obrigatoriamente hão de constar do rótulo.
Quanto ao grau de segurança a ter em conta, Calvão da Silva afirma “a lei não exige que o produto ofereça uma segurança absoluta, de risco zero: apenas a segurança com que legitimamente se pode contar (art.4º, nº1, do DL nº 383/89), pois há riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados conciliáveis com um elevado nível de protecção da saúde e segurança dos consumidores (art. 2º, al. b) do Dec. Lei nº 69/2005; art.2º, al. b), da Directiva 2001/95/CE). João Calvão da Silva, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança”, 5ª ed., Almedina, 2008, p. 198.
O sujeito das expectativas não é o consumidor ou o lesado em concreto, mas as expectativas do público a que se destina o produto: é esta a segurança esperada e tida por normal nas conceções do tráfico do respetivo setor de consumo que o juiz deve ter em conta na valoração do carater defeituoso do produto.
O produto em causa destinava-se a uso profissional e encontrava-se a ser utilizado para os fins a que se destina – desentupimento de sanitas.
Não foi entregue a ficha técnica do produto aquando da sua aquisição pela autora (nem sequer foi alegado que tal ficha já lhe houvesse sido entregue pela 1ª Ré em momento anterior), nem lhe foi prestada qualquer informação ou advertência quanto às características do produto.
As instruções da embalagem encontravam-se em espanhol. É certo que do respetivo rótulo constava o símbolo correspondente a “corrosivo”, símbolo este que é igual para qualquer país da União Europeia.
Contudo, haverá que ter em atenção de que nos encontramos perante um produto especialmente perigoso:
- a Portaria 732º-A/96, atribui a classificação de “corrosivo” a qualquer preparado que possua uma concentração de ácido sulfúrico igual ou superior a 15% (p. 100 da Portaria) e o weslim apresentava uma concentração de ácido sulfúrico entre 50 a 90%;
- tal Portaria atribui igualmente a classificação de “corrosivo” ao preparado que contenha uma concentração de ácido fosfórico igual ou superior a 25%, e o Weslim apresentava uma concentração de ácido sulfúrico entre 10 a 50%.
Ou seja, ambos os componentes do weslim são classificados como “corrosivos”, provocando queimaduras na pele e lesões oculares graves, podendo ser corrosivo para os metais (cfr., Relatório de Exame efetuado no âmbito dos presentes autos, fls. 488 e ss).
Havendo regulamentação, o produto que se apresente conforme à lei goza da presunção de segurança, nos termos do nº2 do artigo 4º do DL 69/2005, de 17 de março Tal diploma transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de dezembro, que estabelece uma clara definição das obrigações dos produtores e dos distribuidores em matéria de segurança geral dos produtos, aprofundando a sua responsabilização, nomeadamente pela inclusão da obrigação da retirada do mercado e de recolha de produtos defeituosos junto dos consumidores – cfr., Preâmbulo do citado Decreto-Lei.:
“Considera-se conforme com a obrigação geral de segurança o produto que estiver em conformidade com as normas legais ou regulamentares que fixem os requisitos em matéria de proteção de saúde e segurança a que o mesmo deve obedecer para poder ser comercializado”.
Mas se, como salienta Calvão da Silva “Compra e Venda (…), p. 199., não obstante a conformidade com as normas e regras legais, o produto, ainda sim, se revelar perigoso para a saúde e segurança das pessoas, as autoridades competentes não ficam inibidas de adotar as medidas necessárias para restringir a sua comercialização ou ordenar mesmo a sua recolha ou retirada do mercado (art. 4º, nº4 do DL 62/2005).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, poderemos afirmar que um produto que desrespeite alguma norma de segurança, nomeadamente por violação das regras de informação constantes da rotulagem, terá de presumir-se “defeituoso” para efeitos da responsabilidade objetiva do produtor.
“Um produto pode ser ilegitimamente inseguro por falta, insuficiência ou inadequação de informações, advertências ou instruções sobre o seu uso e perigos conexos. Em si mesmo não defeituoso, porque bem concebido e fabricado, o produto pode, todavia, não oferecer a segurança legitimamente esperada porque o seu fabricante o pôs em circulação sem as adequadas instruções sobre o modo do seu emprego, sem as advertências para os perigos que o seu uso incorreto comporta, sem a menção das contra-indicações da sua utilização, sem as informações sobre as suas propriedades perigosas – v.g., toxicidade, inflamabilidade – e efeitos secundários, etc. João Calvão da Silva, “Responsabilidade Civil do Produtor”, Coleção Teses, Almedina, Reimpressão 1999, p.659.
E, no âmbito do dever de informação que recai sobre o produtor, o modo como este é prestado não é indiferente:
“No quadro do uso razoavelmente previsível, o produtor deve ter o cuidado de apresentar de forma explícita, clara e sucinta, as advertências e instruções exigíveis segundo a possibilidade tecnológica, em ordem a obter o resultado pretendido – o esclarecimento adequado do consumidor. Mas dizer que as informações devem ser claras, precisas e sucintas, corresponde a afirmar que elas devem ser dadas obrigatoriamente no idioma das pessoas a que se destinam os produtos (cfr., art. 7º, nº3, da Lei nº24/26), em linguagem simples para o grande público – e não em formulações técnicas que só os especialistas entendem – e que devem esclarecer cabalmente o que fazer e o que não fazer quanto ao seu emprego, chamando a atenção para o eventual perigo resultante de um mau uso João Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, p.660.”.
Como salienta Calvão da Silva “Compra e Venda (…), p.209., não basta dizer que determinada injeção não pode ser ministrada por via intravenosa – impõe-se esclarecer que, se o for, pode ser letal; num produto escreve-se em letras garrafais “inflamável” e em letra pequena venenoso: o produtor pode ser responsável pela morte da criança que o ingira, com base na falta de adequado/evidente aviso de alerta para o risco mais grave; num produto químico não basta dizer “conservar em lugar fresco” – importa esclarecer que explode ou pode explodir se conservado acima de determinada temperatura.
O produto aqui em apreço apresenta um perigo de tal modo grave (ambas as substâncias de que é composto são consideradas “corrosivas”), que a sua comercialização e utilização (ainda que destinada a uso profissional) só poderá ser minimamente segura se acompanhada de rotulagem que cumpra todas as exigências legalmente previstas para o efeito.
Com efeito, se a ficha técnica se destina essencialmente à entidade patronal, visando uma avaliação dos riscos por parte desta, de modo a assegurar o respetivo uso em segurança por parte dos seus trabalhadores, o rótulo e as inscrições nele contidas destinam-se ao utilizador imediato, que, muitas vezes, sendo embora um profissional possui um grau de escolaridade básico (da leitura do auto de declarações da aqui autora e de cada uma das suas colegas de trabalho constata-se que, em particular a escrita da autora, se encontram repletas de erros ortográficos).
E, salientar-se-á que no caso em apreço, o tribunal não teve acesso ao teor do rótulo em vigor à data dos factos. O rótulo da embalagem vendida à autora encontrava-se, à data em que se veio a efetuar a peritagem no âmbito dos presentes autos, praticamente ilegível e só as rés (em especial a Ré importadora) tinham acesso privilegiado ao rótulo em vigor e que não apresentaram nos autos. Ao invés, veio a Ré P… juntar um rótulo que notoriamente não corresponde ao aposto na embalagem adquirida pela autora – o rótulo apresentado pela Ré encontra-se já redigido em várias línguas, nomeadamente em português. Quanto à Ré importadora, não só não apresentou qualquer rótulo, como não alegou quais os concretos dizeres apostos no mesmo, limitando-se a alegar de um modo genérico e perfeitamente conclusivo que o produto estava “devidamente classificado, embalado e rotulado de acordo com a legislação em vigor, atualmente regulada pelo DL nº98/2010, cumprindo as normas europeias, como aliás resulta do relatório da ASAE, proferido nos autos de inquérito nº 568/08.3TAVIS”. Ora, da leitura dos identificados autos de inquérito resulta que aí nenhuma consideração é feita acerca do rótulo da embalagem em questão, porquanto a mesma nunca foi apresentada nos autos de inquérito. Daí o arquivamento, e não porque, como dá a entender a Ré, a ASAE possa aí ter chegado à conclusão que a embalagem, e em especial o respetivo rótulo, se encontrassem de acordo com as normas em vigor.
A constatação de que os avisos apostos na embalagem não foram suficientes para evitar o derrame do mesmo sobre o corpo do utilizador, o disposto no artigo 5º do DL do DL 383/89, relativamente às causas de exclusão da responsabilidade, autoriza-nos a concluir que era sobre o “produtor” que incumbia a prova do teor da rotulagem, a fim de o tribunal aferir da sua concordância com os regulamentos em vigor.
Alegando a autora que o único aviso constante do rótulo relativamente aos perigos do mesmo consistia na menção de “corrosivo” e não se encontrando legível o rótulo da embalagem por si adquirida, era às Rés, em especial à Ré importadora, que incumbia, em 1º lugar, a exibição do rótulo em vigor à data dos factos e, em 2ª lugar, a demonstração de que o mesmo se encontrava de acordo com a legislação em vigor, nos termos do artigo 5º, al. d) do DL nº 383/89.
O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação – artigo 1º do DL 383/89.
Consagrando tal artigo o princípio fundamental da responsabilidade objetiva do produtor, a tutela eficaz do lesado justifica:
a) A noção ampla de produtor;
b) A solidariedade de vários responsáveis;
c) A não diminuição da responsabilidade do produtor pela intervenção de terceiro que tenha contribuído para causar o dano;
d) A inderrogabilidade do regime da responsabilidade;
e) A preservação da responsabilidade decorrente de outras disposições legais.
Em conformidade com o disposto no artigo 4º da Diretiva 85/374/CEE, e apesar de não transposto para a legislação nacional, a doutrina Vera Lúcia Raposo, “A Responsabilidade do Produtor Por Danos Causados Por Dispositivos Médicos”, RIDB, Ano 2 (2013), nº5, p.4312, disponível in http://www.idb-fdul.com/. e a jurisprudência Cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 25-10-2010, relatado por Urbano Dias, sustentam incumbir ao lesado a prova dos três elementos da responsabilidade civil do produtor: os danos, os defeitos e o nexo causal entre o defeito e o dano. O produtor pode eximir-se da sua responsabilidade mediante a prova de algumas circunstâncias, entre as quais avultam a conformidade do produto com as normas imperativas aplicáveis e a observância dos conhecimentos científicos e técnicos conhecidos no momento em que o produto foi colocado em circulação Carlos Ferreira de Almeida, “Direito do Consumo”, Almedina 2005, p.171..
Podendo a prova do nexo de causalidade afigurar-se não raramente muito difícil, Calvão da Silva “Responsabilidade Civil do Produtor”, pp. 712-713. propõe que se deve facilitar ao lesado a espinhosa tarefa de demonstrar o nexo causal, no mínimo através da prova da primeira aparência. Uma vez fixada a existência do defeito do produto e do dano, as regras da experiencia da vida, o id quod plerumque accidit e a teoria da causalidade adequada, poderão permitir a preponderância da evidencia que, no fundo, é uma espécie de presunção da causalidade.
Constatando-se a existência de deficiências na rotulagem – desde logo, por não se encontrar redigida em língua portuguesa –, tal omissão há de ter-se como causa adequada da omissão por parte da autora de comportamentos conformes à real perigosidade do produto, concluindo-se pela existência de nexo causal entre a informação deficitária constante do seu rótulo Em sentido semelhante se pronunciou o Acórdão do STJ de 05-01-2016, relatado por Pinto de Almeida, a propósito de uma explosão ocorrida na utilização de acendalha líquida, considerando-se que a ausência de indicação clara e precisa sobre os componentes do produto, quer sobre o modo de utilização, na ótica do utilização médio, pode ser considerada causa adequada da omissão de comportamentos conformes à real perigosidade do produto, sendo lícito deduzir que houve nexo causal entre a omissão daqueles elementos, exigidos por lei e as consequências nefastas para a autora – acórdão disponível in www.dgsi.pt. (aliada à falta de informação verbal aquando da venda por parte da Ré P (…)) e a projeção do produto sobre o corpo da autora aquando do manuseamento da embalagem por parte desta.
Demonstrado o defeito – omissão das instruções em língua portuguesa – é de considerar como provável que a deficiência dos avisos e instruções de manuseamento no rótulo aposto no produto (aliadas ao facto de o produto ter sido vendido sem a ficha técnica, esta sim em português, e sem qualquer alerta para os respetivos perigos) foi a causa de uma eventual omissão por parte da autora dos cuidados conformes à real perigosidade do produto e que terão levado à projeção do líquido sobre o seu corpo.
Não existindo informação suficiente sobre a perigosidade do produto (a omissão das instruções em língua portuguesa tornam-na insuficiente, por dificultar a sua compreensão para o cidadão comum) e tendo o sinistro ocorrido “enquanto manuseava a embalagem do produto”, é apropriado estabelecer um nexo de causalidade entre a falta de informação e os danos.
Caso a informação constante do rótulo se encontrasse redigida em português, e alertando para a real perigosidade do produto, levaria o utilizador a precaver-se, colocando proteção adequada no corpo ou rodeando-se de cuidados para impedir que o líquido saísse para fora do recipiente de modo descontrolado.
Atentar-se-á em que a autora se encontrava de luvas aquando manuseamento do produto, sendo de presumir que outros cuidados teria tido se tivesse sido devidamente alertada para o facto de se encontrar perante um produto altamente corrosivo e composto maioritariamente por ácido sulfúrico.
Incorreram, assim, as rés na obrigação de indemnizar a autora pelas lesões corporais sofridas na sequência da projeção do produto sobre o seu corpo.
3. Indemnização por danos morais
Peticiona a autora uma indemnização “por danos morais”, consistentes nas dores que sofreu, pelas cicatrizes que ostenta e que a impedem de andar com o tronco à mostra, pelo facto de ter sido obrigada a deixar de trabalhar nas limpezas, encontrando frequentemente em depressão, num valor de 95.000,00 €.
Dentro de um juízo de equidade (artigo 496º do CC), considerando as lesões sofridas – queimaduras de 2º e 3º grau em aproximadamente 6% da superfície corporal, e que lhe deixaram um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 21,8 pontos (Exame do IML de fls. 296 a 298), os tempos de internamento, as várias intervenções cirúrgicas a que vem sendo sujeita para minimizar as cicatrizes que ostenta, as dores sofridas pela autora, de grau 5, numa escala de 1 a 7, o dano estético, também de nível 5, numa escala de 1 a 7, e os estados depressivos que lhe tem acarretado, considera-se adequada a fixação de uma indemnização no valor de 60.000,00 €.
Por tal indemnização responderão solidariamente as duas rés, de harmonia com o disposto no nº1 do artigo 6º do DL nº 383/89.
A apelação será de proceder, na sua quase totalidade.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida e condenando solidariamente as rés a pagar à autora a quantia de 60.000,00 € por danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde a citação e até integral pagamento.
As custas da ação e da instância recursória serão suportadas pela Autora/ Apelante e pelas Rés/Apeladas, na proporção do respetivo decaimento.
Coimbra, 18 de setembro de 2018


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. Para efeitos do regime da responsabilidade objetiva por produtos defeituosos, o defeito do produto pode ser intrínseco, por resultar do seu conteúdo, caraterísticas ou composição, mas também extrínseco, se deriva da sua apresentação, embalagem, rotulagem e de eventuais instruções de utilização.
2. Provada a falta de entrega da ficha técnica aquando da venda do produto, tal falta só se encontrará justificada em caso de alegação e prova de que já havia sido entregue um exemplar de tal ficha técnica em momento anterior.
3. Um produto que desrespeite alguma norma de segurança, nomeadamente por violação das regras de informação constantes da rotulagem – nomeadamente a obrigatoriedade de as mesmas se encontrarem em língua portuguesa –, terá de presumir-se “defeituoso” para efeitos da responsabilidade objetiva do produtor.
4. Demonstrado o defeito – omissão das instruções em língua portuguesa – é de considerar como provável que a deficiência dos avisos e instruções de manuseamento no rótulo aposto no produto (aliadas ao facto de o produto ter sido vendido sem a ficha técnica, esta sim em português, e sem qualquer alerta para os respetivos perigos) tenha sido a causa da omissão por parte da autora dos procedimentos adequados a evitar a projeção de líquido sobre o seu corpo.


Maria João Areias ( Relatora )
Alberto Ruço
Vítor Amaral