Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
337/08.0TBALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÃO INEXACTA
ANULABILIDADE
OBJECTO DO RECURSO
Data do Acordão: 09/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 429º DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: I – Não constituem objecto legítimo de um recurso, questões que, não sendo de conhecimento oficioso, foram introduzidas, por quem recorre, apenas na motivação desse recurso, quando tais questões poderiam ter sido abordadas na instância precedente por suscitação das partes, só não o tendo sido, pela circunstância da parte interessada nessa questão, ter omitido, na estruturação dada à lide e na condução desta, essa suscitação.

II – Um contrato de seguro cuja concreta incidência (o particular risco assumido pela seguradora) se traduz na garantia de satisfação ao Banco (tomador do seguro e beneficiário) do valor subsistente de um crédito à habitação por este Banco concedido, corresponde, fundamentalmente, a um “seguro de vida” do mutuário visando a satisfação da respectiva dívida (é usualmente designado por apólice “Vida Risco – Crédito à Habitação”).

III – O mutuário do crédito à habitação concedido pelo Banco tomador corresponde a um interessado segurado, participante no contrato que subscreve e para cujo processo de formação concorre.

IV – A questão do risco assumido pela seguradora, no quadro de um contrato deste tipo, tem na sua base um processo preliminar de recolha de informação pela seguradora, através do preenchimento de questionários pelo mutuário/segurado, destinando-se estes à aferição dos elementos relevantes para a decisão de contratar e para a repercussão probabilística do risco assumido pela seguradora na contrapartida representada pelo prémio.

V – A consequência, relativamente ao contrato, da existência de desvalores não atribuíveis à seguradora no processo de recolha de informação conducente à celebração do contrato, enquanto elemento induzido pelo próprio beneficiário ou por quem faz o seguro através da prestação activa ou omissiva de informações não conformes à realidade, conduz a que o negócio assente, face à seguradora, numa base falseada.

VI – Este desvalor acarreta a anulabilidade do contrato, no regime do Código Comercial, por aplicação, terminologicamente actualizada, do artigo 429º deste Diploma.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 7 de Abril de 2008[1], G…, por si e representando a sua filha menor, J…, em conjunto com M… e A… (AA. e neste recurso Apelantes)[2] demandaram a Companhia de Seguros …, S.A. (R. e aqui Apelada), invocando serem elas as únicas e universais herdeiras (viúva e filhas) de B…, falecido em 13/04/2005, sendo que este contraiu dois empréstimos (um deles, directamente, para aquisição de habitação) junto da Interveniente C… aos quais foi associada, como reforço de garantia, uma apólice de “seguro de vida grupo” tomado pela C… (trata-se da apólice nº…), da qual foi beneficiário/segurado o referido de cuius das AA., sendo seguradora a R.[3].

            Em função da existência do seguro e da verificação do evento morte do responsável pelas prestações dos empréstimos, formularam as AA., enquanto interessadas no desencadear da cobertura do seguro[4], os seguintes pedidos, ancorados na circunstância da Seguradora persistir, após a morte do de cuius, em não satisfazer ao Banco Interveniente, o valor subsistente em dívida dos empréstimos:
“[…]
[Condenação da R. – a seguradora – a]
A) Reconhecer a validade e eficácia do contrato de seguro celebrado, no âmbito da apólice nº… e certificado de seguro nº …;
B) Pagar à C… o valor de €94.992,01, relativo ao saldo em dívida, à data do falecimento da pessoa segura;
C) Pagar às AA. a diferença entre o valor de tal saldo e o capital seguro, o que perfaz o montante de €600,52, acrescido de juros de mora à taxa legal desde 13/04/2005 até efectivo e integral pagamento;
D) Pagar às AA., pelos prejuízos por estas sofridos, o valor das prestações mensais que estas têm suportado junto da C…, e teria deixado de suportar se a R. tivesse cumprido a obrigação para si adveniente do contrato de seguro, valor esse que até à propositura da acção era de €15.840,00:
E) O que a tal título a A. se vir obrigada a pagar desde a data da propositura da acção até integral pagamento pela R. das duas obrigações.   
[…]”

            1.1. A R. contestou, sendo que, no que interessa ao âmbito temático deste recurso, excepcionou a “nulidade” (o uso das aspas expressa um uso juridicamente discutível da expressão, questão esta que será abordada adiante), excepcionou a “nulidade”, dizíamos, do contrato de seguro em causa, nos termos do artigo 429º do Código Comercial (CCom)[5], por prestação de informações incorrectas, incompletas e omissas do interessado B…, aquando da preparação da subscrição do contrato: o referido B… teria ocultado então, quando lhe foi submetido o questionário respeitante ao seguro, informações relevantes para a aferição e determinação do risco a suportar pela seguradora, como seja a pré-existência de hábitos alcoólicos por banda do beneficiário e de patologia associada a tal situação (a morte deste decorreu de esteoatohepatite severa e frequentava ele, regularmente desde Julho de 2000, consultas de alcoologia)[6].

            1.1.1. As AA. replicaram a fls. 104/106 – artigo 502º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC) – impugnando a factualidade atinente à matéria identificada pela R. como excepção, pugnando pela validade do contrato de seguro invocado no articulado inicial.

            1.2. O entendimento da R. quanto à (in)validade do contrato de seguro viria a ser acolhido na Sentença de fls. 181/193esta constitui a decisão objecto do presente recurso –, que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. do pedido, considerando, enquanto fundamento de tal asserção decisória, “[…] procedente a excepção peremptória invocada pela R., denominada embora – e como veremos correctamente – anulabilidade, assim se declarando a anulação dos contratos de seguro a que se reportam os certificados nºs … e … [emergem estes da sobredita apólice nº …], que tiveram por objecto de risco seguro, entre o mais, a vida de B…, associados aos empréstimos de €80.800,00 e €19.200,00, concedidos pela interveniente” (transcrição da Sentença a fls. 193).

            1.3. Inconformadas com o decidido, reagiram as AA. interpondo o presente recurso, adequadamente recebido pelo Tribunal a quo a fls. 223, tendo-o motivado logo a fls. 196/210, incluindo em tal peça as seguintes conclusões:
[…]
            [transcrição de fls. 206/209]

A R. respondeu ao recurso pugnando pela confirmação integral da Sentença recorrida.


II – Fundamentação

2. Relatado que está o desenvolvimento sequencial do processo até à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo presente que as conclusões formuladas pelas Apelantes, a cuja transcrição procedemos no item anterior (no ponto 1.3.), operaram a delimitação temática do objecto do recurso, como decorre da conjugação dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC.

2.1. Ainda num quadro de considerações preliminares referidas à definição do objecto do recurso (respeitantes, portanto, aos elementos argumentativos gerais que vão possibilitar a fixação desse objecto), importa deixar nota de um outro aspecto que, neste caso concreto, apresentará relevância relativamente a essa definição.

Tenha-se presente que o nosso sistema de recursos se caracteriza por uma lógica de reponderação e de reexame de decisões proferidas por uma instância precedente, pressupondo, portanto, a existência de decisões sobre a matéria cuja apreciação é pretendida no recurso[7]. Assim, descontada a apreciação de questões que se prefigurem como de conhecimento oficioso (pois vale aqui, na fase de recurso, também, o disposto no trecho final do nº 2 do artigo 660º do CPC), não constituem objecto legítimo de um recurso questões que, tendo sido introduzidas por quem recorre apenas na respectiva motivação recursória, poderiam ter sido abordadas na instância precedente por suscitação das partes, só não o tendo sido, pela circunstância da parte interessada nessa questão, ter omitido, na conformação dada à lide e na condução desta, essa suscitação, isto não obstante ter (essa parte) disposto de oportunidade para esse efeito e de se tratar de uma questão “latente” – chamemos-lhe assim – em função do objecto temático da acção.

Nestes casos (em que a motivação recursória pretende introduzir uma questão nova, na acepção aqui indicada), o recurso reduz-se no seu objecto temático às questões efectivamente suscitadas perante o Tribunal a quo e por este resolvidas e, paralelamente, a não apreciação dessas questões (novas) na decisão impugnada, não consubstancia o desvalor previsto no artigo 668º, nº 1, alínea d) do CPC, não traduzindo – como aqui não traduz, desde já se adianta – qualquer nulidade correspondente a algo aparentado a uma omissão de pronúncia.

2.1.1. Estas considerações apresentam relevância relativamente a uma das questões pretendidas introduzir pelas Apelantes no objecto do recurso. Referimo-nos ao argumento, subsidiariamente apresentado na motivação (expressa-se ele nas conclusões XVII e XVIII dessa motivação), quanto à não consideração na Sentença da devolução dos prémios de seguro satisfeitos por B… e, subsequentemente ao decesso deste, pelas Apelantes, isto no quadro decisório da anulação desse seguro nos termos do artigo 429º do CCom. Esta incidência do julgamento efectuado no Tribunal a quo é configurada pelas Apelantes, como se observa nas conclusões indicadas e supra transcritas, enquanto nulidade da Sentença. Porém, como flui das antecedentes considerações e como veremos já de seguida, não lhes assiste qualquer razão na invocação desse suposto desvalor decisório.

Trata-se, com efeito, a situação referida pelas Apelantes, de uma “omissão” decisória da Sentença só decorrente dessa outra omissão das mesmas Apelantes em introduzir essa questão no âmbito temático da acção perante a instância precedente. Tenha-se presente que o problema da invalidade do seguro – configurasse-se ela como nulidade ou como anulabilidade – foi expressamente invocada pela R., na sua contestação, como excepção [v., pressupondo a configuração como anulabilidade, o artigo 287º, nº 2 do Código Civil (CC)], sendo que esta linha de defesa da R. abriu às AA. ora Apelantes a via de um articulado de réplica (artigo 502º, nº 1 do CPC), articulado que estas apresentaram a fls. 104/106, deixando aí intocado, na sua essência e estrutura determinantes, o pedido inicialmente formulado, sendo que poderiamrectius, deveriam – as AA. ter operado nessa peça processual (na réplica) uma modificação (subsidiária) do pedido, nos termos consentidos pelo artigo 273º, nº 2, trecho inicial, do CPC, pedindo, subsidiariamente, para a hipótese de atendimento da pretensão da R. introduzida a título de excepção (é esta a lógica dos pedidos subsidiários na dinâmica de um processo), a condenação desta na devolução dos prémios satisfeitos, por verificação dos pressupostos dessa devolução (ou, por outras palavras, por inverificação das condições que possibilitariam à Seguradora, não obstante a anulação do contrato, arrecadar o valor desses prémios).

Note-se, a este respeito, que a introdução da questão da invalidade do seguro, através da afirmação pela Seguradora de estar integrada a facti species do artigo 429º do CCom, poderia dar lugar, acolhido que fosse, como aqui o foi, o ponto de vista básico da Seguradora R. (o ponto de vista básico corresponde, tão-só, à anulação do contrato), à obrigação desta restituir os prémios prestados (nos termos do artigo 289º, nº 1 do CC – projecção retroactiva da invalidação do negócio) ou não (desta feita nos termos do artigo 429º, § único do CCom), tudo dependendo do aprofundamento significativo dos elementos atinentes à afirmação dessa anulabilidade do seguro por omissões ou inexactidões[8]. Essa questão careceria, todavia, de suscitação e de discussão na primeira instância, sendo que só assim se poderia configurar como questão submetida à apreciação do Tribunal e, como tal, abrangida pela obrigação de pronúncia decorrente do trecho inicial do nº 2 do artigo 660º do CPC. Então – mas só então, diga-se –, das duas uma: existiria uma decisão sobre essa questão, e poderíamos aqui controlá-la, na medida em que fosse desfavorável a quem recorresse; ou, tendo faltado tal decisão (na primeira instância), ocorreria a nulidade de omissão de pronúncia, que aqui seria declarada mediante suscitação da parte interessada (artigo 668º, nº 4, in fine do CPC).

Sendo certo que as Apelantes não desencadearam essa questão e que o Tribunal a quo, por isso mesmo (e por não se tratar de uma questão de conhecimento oficioso), não a resolveu, não se verifica perante esta segunda instância o condicionalismo que tornaria essa questão objecto legitimo deste recurso: torná-la-ia, como antes se disse e ora mais uma vez se repete, a circunstância de ser matéria efectivamente suscitada, mas não o foi.

Não se verifica, assim, a nulidade invocada pelas Apelantes. Daí que, saber se estas têm, ou não, direito a reaver os prémios (caso se venha a confirmar o entendimento da primeira instância quanto à anulabilidade do seguro), permaneça como questão não objecto de qualquer pronunciamento judicial.

2.1.2. Afastado este fundamento do recurso, interessa-nos deixar aqui nota, como ponto de partida para a subsequente indagação, da circunstância de o recurso não se referir ao acto de fixação dos factos na primeira instância, não indicando as Apelantes na motivação pontos concretos do elenco fáctico aí – no Tribunal a quo – deficientemente julgados em função da consideração, alvitrada pelas Apelantes, de uma distinta valoração de aspectos específicos da prova nessa instância produzida (v. artigos 712º, nºs 1 e 2 e 685º-B nºs 1 e 2, ambos do CPC). Significa isto, estarem os factos que interessam à subsequente exposição definitivamente fixados, nos exactos termos em que a Sentença os relacionou a fls. 185/188, cumprindo aqui reproduzir o seu conteúdo:
[transcrição de fls. 185/188]

2.2. No argumentário recursório das Apelantes, a crítica à Sentença é assumida (para além da questão apreciada supra no item 2.1.1.) através da construção de uma (outra) alegada nulidade dessa mesma Sentença, por, como dizem as Apelantes na conclusão XV do recurso, “[…] os fundamentos [estarem] em oposição com a decisão, porquanto os fundamentos invocados conduzem logicamente a uma decisão diferente […]”.

Visa este argumento, indisfarçavelmente, discutir o acerto da decisão expressa na Sentença. Pretendem as Apelantes, enfim, colocar em causa a correcção do enquadramento jurídico dos factos aí realizado pelo Tribunal a quo, e não qualquer desvalor passível de subsunção a alguma das alíneas do artigo 668º, nº 1 do CPC. Com efeito, assenta este argumento das Apelantes numa incorrecta percepção da articulação entre nulidade da sentença e erro de julgamento. A este respeito, importa ter presente que o mencionado artigo 668º se refere aos desvalores da própria sentença, enquanto documento de conteúdo vinculado e parâmetros definidos (valem, quanto àquele e a estes, as regras constantes dos artigos 658º e seguintes do CPC e o artigo 668º fixa a consequência da infracção destas regras), sendo coisa bem distinta desses desvalores a crítica ao conteúdo da própria decisão, enquanto acto de fixação dos factos e de aplicação (a esses mesmos factos) do direito. Na essência desta diferença se radica a distinção, por referência aos valores jurídicos negativos da sentença, entre inexistência jurídica e nulidade desta, por um lado, e, por outro lado, revogabilidade do respectivo pronunciamento[9]. É, pois, neste último elemento, e não numa suposta nulidade da Sentença, que se encontra o espaço de intervenção desta Relação no presente recurso, cumprindo sindicar aqui o acto de julgamento em si, e não o processo de formação do elemento que serviu de suporte a esse acto.

É o que de seguida se fará, controlando a asserção decisória presente na Sentença – que corresponde à ratio decidendi da mesma – quanto à anulabilidade do seguro por prestação de declarações inexactas respeitantes a aspectos relevantes para a determinação (maxime para a quantificação probabilística) do risco suportado pela seguradora.

2.3. Na apreciação desta questão, que corresponde ao aspecto central do litígio que opõe as AA. à R. e traduz o elemento fulcral da presente acção, empreenderemos um percurso expositivo, visando alcançar uma decisão resultante de elementos de análise colhidos em sucessivas etapas interpretativas. Com efeito, através de uma apreciação geral de diversos aspectos convocados pela consideração deste contrato de seguro, face à vicissitude originária que lhe é atribuída pela R., e que adquire expressão nos dados de facto emergentes do julgamento na primeira instância, procuraremos obter elementos argumentativos relevantes cuja conjugação propicie uma resposta ao problema jurídico colocado pelo recurso.

Neste percurso importará considerar as seguintes questões: (a) a específica natureza e as características fundamentais deste tipo de contrato de seguro (o modelo corporizado na chamada apólice “Vida Risco – Crédito à Habitação”); (b) a questão do risco assumido pela seguradora no quadro propiciado pela informação recolhida através do próprio beneficiário nos preliminares do contrato; (c) a consequência relativamente ao contrato da existência de desvalores nesse processo de recolha de informação, enquanto elemento induzido pelo beneficiário no decurso desse procedimento preliminar; (d) paralelamente, o posicionamento do beneficiário, como declarante fornecedor de informação à seguradora, face às cláusulas contratuais (ao procedimento contratual expresso no questionário do seguro) visando a aferição do risco suportado pela seguradora, isto no quadro da natureza de contrato de adesão do seguro, fundamentalmente sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais[10].

Os factos relevantes nesta indagação são, como se disse, os acima indicados no item 2.1.2. (todos eles). Não obstante, isolaremos aqui, dada a sua especial relevância para a resolução do caso concreto, a circunstância, emergente da conjugação de diversos trechos dos factos provados, de o de cuius das Apelantes, enquanto beneficiário do seguro (e, por isso, destinatário subjectivo do questionário preparatório do seguro que lhe foi submetido), ter omitido a circunstância, pré-existente – e logicamente abrangida nos exactos termos do questionário que lhe foi apresentado –, de estar afectado por doença alcoólica e, concretamente, tratando-se de dado objectivo aferidor dessa patologia, a frequência regular, desde o ano de 2000, de consultas de alcoologia[11].

2.3.1. Apreciando a primeira etapa referida, enunciada no item anterior – (a) –, estando em causa um contrato de seguro[12], importa caracterizar a concreta espécie deste aqui presente. Trata-se, como se disse, de um seguro do ramo “Vida Grupo”, que na sua concreta incidência na garantia de satisfação ao Banco credor do crédito à habitação, traduz-se, fundamentalmente, num seguro de vida referido ao mutuário (v. artigo 23º, nº 2 do Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro), sendo habitualmente conhecido sob a designação genérica de “apólices «Vida Risco – Crédito à Habitação»”.

Recorrendo à exposição de Calvão da Silva[13], caracterizaremos este tipo de contratos nos seguintes termos:
“[…]
Trata-se de seguro de grupo contributivo (cfr. artigo 1º, alínea g) e artigo 4º do Decreto-Lei nº 176/95, de 26 de Julho[[14]]), em que:
O Banco é o tomador do seguro – entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento do prémio (artigo 1º, alínea b), do Decreto-Lei nº 176/95);
Os mutuários do crédito à habitação concedido por esse Banco são o grupo segurável (pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum – artigo 1º, alínea g), do Decreto-Lei nº 176/95) e as pessoas seguras são aquelas (pertencentes ao grupo segurável) cujo risco de vida, saúde ou integridade física tenha sido aceite pela seguradora após recepção das respectivas declarações de adesão ao seguro de grupo – documento de consentimento da pessoa segura na efectivação do seguro, contendo os seus elementos de identificação e os do beneficiário;
O Banco-tomador do seguro é beneficiário irrevogável, até ao limite do capital seguro, do montante em dívida à data do reconhecimento pela seguradora do direito ao pagamento das importâncias seguras, revertendo para ele a prestação debitória da seguradora decorrente do contrato – do eventual excesso do capital seguro sobre o montante devido ao Banco serão beneficiários, na falta de designação expressa, os herdeiros da pessoa segura em caso de morte, e a própria pessoa segura para os restantes riscos complementares;
Os segurados contribuem no todo ou em parte para o pagamento dos prémios (seguro de grupo contributivo – artigo 1º, alínea h) do Decreto-Lei nº 176/95).   
[…]” (p. 160)

            A questão do risco assumido pela seguradora no quadro deste contrato – e assim apreciamos a segunda questão acima enunciada (b) – tem na sua base um processo preliminar de recolha de informação, através do preenchimento de questionários destinados à aferição dos elementos relevantes para a decisão de contratar e para a repercussão probabilística do risco assumido pela seguradora na contrapartida representada pelo prémio (v. nota 22, infra).

            O questionário tem, pois, neste como em todos os seguros, um valor verdadeiramente estratégico no processo de formação do contrato (neste caso, no processo que conduz à referenciação subjectiva do contrato, destinado a um determinado grupo em abstracto, àquela pessoa em concreto como integrante desse grupo).

            Este elemento – a relacionação entre a informação recolhida e a determinação dos factores probabilisticamente relevantes para a aferição actuarial do risco (remete-se de novo para a nota 22, infra) – é caracterizado do seguinte modo por Margarida Lima Rego:
“[…]
[A] probabilidade será normalmente a extrapolação de um juízo de frequência relativa, que pode ser meramente lógico-matemático (probabilidade a priori) ou resultar da análise estatística de uma pluralidade de casos análogos e independentes observados (probabilidade a posteriori). No mundo dos seguros, tal como no dia-a-dia, a grande maioria das vezes estaremos a lidar com esta última modalidade de juízos de probabilidade. Ora, numa como na outra, a análise do risco funciona com base na chamada lei dos grandes números – princípio geral de matemática, e mais especificamente da probabilidade e da estatística, segundo o qual a frequência de determinados resultados tende a estabilizar com o aumento do número de casos observados, aproximando-se cada vez mais dos valores previstos.
Dada a lei dos grandes números, a exposição do segurador ao risco – o grau de indeterminabilidade do resultado agregado do risco individual de todos os indivíduos por este segurados – é inferior à soma das exposições ao risco de todos eles – o grau de indeterminabilidade de cada um dos resultados individuais.
[…]
[O] prémio a pagar em cada caso concreto será calculado, ou deverá sê-lo, tanto quanto possível, em função da probabilidade de ocorrência do sinistro e do grau de intensidade das suas possíveis consequências patrimoniais negativas – ou seja, em função do risco individual ou elementar medido na perspectiva neutra do segurador. […] Poderá dizer-se que as seguradoras procuram recorrer, sucessivamente, a duas práticas diversas, na avaliação do risco: (i) a definição rigorosa dos grupos de risco em que se baseiam; (ii) o ajustamento do coeficiente aplicado dentro de cada grupo de acordo com as circunstâncias particulares de cada caso.
[…]”[15] (sublinhado acrescentado)

            Assim se compreende o carácter fulcral, na lógica de funcionamento de um contrato de seguro, da informação obtida pela seguradora do beneficiário.

            A consequência, relativamente ao contrato, da existência de desvalores não atribuíveis à seguradora nessa recolha de informação, enquanto elemento induzido pelo próprio beneficiário ou por quem faz o seguro no decurso desse procedimento preliminar conducente à celebração final do contrato – e assim focamos a terceira questão acima enunciada (C) –, é óbvia e afecta toda a lógica interna do contrato, pondo em causa os próprios fundamentos da decisão de contratar pela seguradora ou os termos contratuais em que essa decisão assentou e se concretizou. O negócio assentará, nestes casos, relativamente à seguradora, numa base falsa, porque não correspondente à realidade. Torna-se intuitivo, com efeito, que segurar o risco de vida, mediante a contrapartida de determinado prémio, de uma pessoa que não esteja afectada pela doença do alcoolismo, é substancialmente diferente (em termos de relação prémio-risco) que segurar uma pessoa que o esteja. Só um enviesamento argumentativo falseador das probabilidades nos poderá conduzir à afirmação contrária. O cálculo da relevância probabilística do risco pela seguradora foi, enfim, falseado, exprimindo uma errada percepção da realidade. 

            É neste sentido que o artigo 429º do CCom, aqui aplicável, estabelece que “[t]oda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo” (o que aqui vale por dizer anulável, no entendimento adequado, resultante de uma leitura actual, do velho Código Comercial, coevo do Código Civil de Seabra)[16]. Com efeito – e citamos de novo Margarida Lima Rego – “[cria-se] na esfera de todo o candidato a tomador do seguro – bem como na do terceiro-segurado – o ónus de partilhar com o segurador toda a informação ao seu dispor sobre as circunstâncias relevantes para [o] juízo de risco”, sendo que “[e]sta regra visa proporcionar ao segurador os meios necessários à medição do risco […]”[17] (v. no regime actual o artigo 24º, nº 1 do DL 72/2008: “[o] tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”)[18].

            Resta-nos, finalmente, esgotando os elementos de aproximação ao caso concreto acima indicados, abordar a questão – a quarta questão enunciada (d) – respeitante ao posicionamento do beneficiário (aqui do B…), como declarante fornecedor de informação à seguradora, face às cláusulas contratuais visando a aferição do risco suportado pela Seguradora.

            É neste plano que se insere a questão, focada pelas Apelantes na motivação, quanto à natureza de “cláusulas contratuais gerais” dos elementos que no suporte documental do contrato visam a recolha de informação pela seguradora quanto à determinação e avaliação do risco.

            Estamos no domínio operante da interpretação das cláusulas de um contrato de seguro, sendo que essas cláusulas são de diversa índole, colocando, em função da sua natureza própria na economia do contrato, problemas interpretativos específicos.

Com efeito, num contrato de seguro, importa distinguir a existência de condições gerais e de condições especiais, através das quais se definem os elementos fundamentais do contrato. As primeiras definem o tipo de seguro contratado e as segundas as incidências específicas que esse tipo apresenta na situação concreta, sendo elas que fundamentalmente especificam o conteúdo do contrato estabelecido entre as partes[19].

Existem no contrato de seguro, para além destas condições gerais e especiais, uma série de “menções da apólice” (para utilizarmos a terminologia do artigo 426º do CCom) traduzidas em informações a prestar pelo segurado ou tomador, que a doutrina costuma agrupar sob a qualificação de “condições particulares”. O âmbito destas últimas, naquilo que interessa à situação que aqui se configura, é caracterizado por Pedro Romano Martinez nos seguintes termos:


“[…]
Nas condições particulares incluem-se as cláusulas identificadoras do tomador do seguro especificamente ajustado. Nestas cláusulas individualizam-se os aspectos do contrato de seguro em causa.
Além dos elementos que resultam do elenco do artigo 426º do CCom, como o nome e domicílio do tomador do seguro, bem como o objecto do seguro, de normas especiais resultam certos dados que deverão ser prestados pelo segurado para se incluírem nas condições particulares, nomeadamente relacionadas com informações a prestar por este.
[…]”[20] (sublinhado acrescentado)

            Ora, no que respeita à interpretação de um contrato de seguro, é relativamente a este tipo de informações, cuja aparência relativamente marginal ao núcleo central, tendencialmente padronizado, definidor do contrato (formado pelas cláusulas gerais e especiais) é, quanto à respectiva importância, bastante ilusória[21]. Com efeito, é relativamente às informações a prestar pelo segurado ou pelo tomador à seguradora (ou, como aqui sucede por um terceiro beneficiário) que a questão da interpretação contratual assume um especial significado e se posiciona como elemento central modelador da relação estabelecida entre as partes.

            Interessa, pois, situar a questão da interpretação do contrato de seguro relativamente à diversidade típica das condições (do clausulado) em que este assenta, quanto ao sentido significativo do cruzamento das declarações dos contraentes originadoras do contrato. Seguimos aqui a caracterização feita por Pedro Romano Martinez desta relevante questão:
“[…]
[A]pesar de o contrato de seguro ser normalmente celebrado com base numa proposta subscrita pelo tomador do seguro, na interpretação das cláusulas constantes dessa proposta que, quase sempre, foram previamente elaboradas pela seguradora, deve entender-se que o real declaratário, a que alude o artigo 236º, nº 1 do CC, é o tomador do seguro. De facto, se a seguradora aceita uma proposta que lhe é feita, assume a posição de declaratário, pois a declaração é apresentada pelo tomador do seguro, mas, tendo em conta que o texto da proposta foi previamente elaborado pela empresa de seguros, devem inverter-se os papéis e entender-se que o declarante é aquele que elabora a proposta (seguradora) e não quem a subscreve (tomador do seguro). É necessário, porém, esclarecer que mesmo num contrato de seguro de adesão haverá declarações do tomador do seguro que não se circunscrevem à mera subscrição de um formulário já elaborado, e em relação a tais declarações a seguradora assume a posição de declaratário. A inversão preconizada vale tão-só no que respeita às cláusulas padronizadas, elaboradas previamente pela seguradora, que o tomador do seguro subscreve. Assim, quanto às condições particulares, valem as regras gerais, pois integram a proposta do tomador de seguro. (sublinhado e ênfase acrescentados)[22]

            É com este sentido que a incidência na validade do contrato da questão aqui colocada, respeitante ao preenchimento do questionário apresentado pela Seguradora R., se coloca, devendo acentuar-se, fazendo-a incidir directamente sobre aquele que tem o ónus de prestar à seguradora as informações constantes do questionário que lhe é submetido, o valor das declarações inexactas e as omissões – enfim, dos desvalores presentes nesse processo de declaração – que se traduzam, como aqui inegavelmente sucedeu, no ocultar de elementos relevantes para a aferição do risco, muito particularmente, como não poderia deixar de ser, elementos expressamente incluídos no questionário ou por este inequivocamente visados.

            Ora, neste plano, detectada a expressa omissão de referência a um elemento que, directa e indirectamente (inequivocamente), era abordado em mais do que um ponto do questionário, é irrelevante jogar com as palavras (como parecem pretender as Apelantes), procurando induzir confusões sobre quem preencheu ou não o questionário, sendo certo que o beneficiário ..., o de cuius das Apelantes, o subscreveu – disso não restam dúvidas –, sendo que o conteúdo desse elemento do contrato resultou de informações que este ou a sua mulher (v. item 22 dos factos) forneceram (admitindo o preenchimento por um terceiro) ou às quais “aderiram” com a aposição da assinatura, tornando-as afirmações a eles referenciadas. Aliás, o mesmo se poderia dizer, em termos de omissão de factos relevantes, do parecer do médico assistente de família que, conhecendo o falecido Arsénio há mais de 14 anos (item 28 dos factos provados), omitiu a declaração, ao caracterizar a saúde deste, de uma frequência regular de consultas visando tratar uma adição alcoólica.

            Estamos, pois, sem dúvida alguma, no plano relevante das declarações inexactas e significativamente omissivas efectuadas à seguradora na fase preliminar do contrato, plano este apto, como acertadamente se decidiu na Sentença impugnada, ao desencadear da facti species do artigo 429º do CCom – remete-se aqui, dada a semelhança das situações, para o sentido argumentativo e decisório observado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2008, indicado nas notas 17 e 19.

            2.4. Aqui chegados, apreciados que estão os fundamentos do recurso, importa formular a decisão – a total improcedência da apelação –, sumariando antes, como é imposto pelo artigo 713º, nº 7 do CPC, o antecedente percurso argumentativo:
I – Não constituem objecto legítimo de um recurso, questões que, não sendo de conhecimento oficioso, foram introduzidas, por quem recorre, apenas na motivação desse recurso, quando tais questões poderiam ter sido abordadas na instância precedente por suscitação das partes, só não o tendo sido, pela circunstância da parte interessada nessa questão, ter omitido, na estruturação dada à lide e na condução desta, essa suscitação;
II – Um contrato de seguro cuja concreta incidência (o particular risco assumido pela seguradora) se traduz na garantia de satisfação ao Banco (tomador do seguro e beneficiário) do valor subsistente de um crédito à habitação por este Banco concedido, corresponde, fundamentalmente, a um “segura de vida” do mutuário visando a satisfação da respectiva dívida (é usualmente designado por apólice “Vida Risco – Crédito à Habitação);
III – O mutuário do crédito à habitação concedido pelo Banco tomador corresponde a um interessado segurado, participante no contrato que subscreve e para cujo processo de formação concorre.
IV – A questão do risco assumido pela seguradora, no quadro de um contrato deste tipo, tem na sua base um processo preliminar de recolha de informação pela seguradora, através do preenchimento de questionários pelo mutuário/segurado, destinando-se estes à aferição dos elementos relevantes para a decisão de contratar e para a repercussão probabilística do risco assumido pela seguradora na contrapartida representada pelo prémio;
V – A consequência, relativamente ao contrato, da existência de desvalores não atribuíveis à seguradora no processo de recolha de informação conducente à celebração do contrato, enquanto elemento induzido pelo próprio beneficiário ou por quem faz o seguro através da prestação activa ou omissiva de informações não conformes à realidade, conduz a que o negócio assente, face à seguradora, numa base falseada;
VI – Este desvalor acarreta a anulabilidade do contrato, no regime do Código Comercial, por aplicação, terminologicamente actualizada, do artigo 429º deste Diploma.


III – Decisão


            3. Assim, na improcedência da apelação, decide-se confirmar integralmente a Sentença recorrida.

            Custas pelas Apelantes.


J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] O que vale por dizer que se trata de processo iniciado posteriormente à entrada em vigor (em 01/01/2008) do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, sendo-lhe aplicáveis, por isso, as alterações ao regime dos recursos introduzidas por este último Diploma (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma. Ainda no que tange a problemas de aplicação da lei no tempo, esgotando as questões a tal respeito suscitadas pela presente acção, tendo presente referir-se esta às vicissitudes de um contrato de seguro, acrescentaremos que o regime legal respeitante ao referido contrato (de seguro) é o que se indica infra na nota 6.
[2] A estas quatro AA. haverá que juntar, ocupando, em rigor, a mesma posição processual delas, a C…, S.A. (Interveniente), cuja intervenção provocada foi requerida por aquelas AA. logo no articulado inicial, sendo aceite pelo despacho de fls. 119 – a C… não apresentou qualquer articulado, limitando-se a sua intervenção no processo à constituição de Mandatário a fls. 125/129.
[3] Esse contrato de seguro é caracterizado pelas AA. no articulado inicial nos seguintes termos: “[…] seguro de vida grupo, por via do qual, em caso de invalidez total e permanente por doença e invalidez total e permanente por acidente e morte do referido B…, o devedor, a credora C…, enquanto beneficiária de tal seguro, teria direito ao recebimento imediato do valor correspondente ao capital mutuado, ainda não amortizado (doc. 5 e 6)” (transcrição de fls. 4).
[4] Adiantando desde já um elemento respeitante ao enquadramento jurídico da situação, poderemos configurar o titular dos empréstimos (e as aqui AA. enquanto suas sucessoras) como um beneficiário do seguro (as AA. funcionam aqui como terceiras beneficiárias, porque o segurado é aqui, rigorosamente, o próprio tomador: a C…).
Sublinha-se que o regime geral do crédito à habitação – o regime contido no Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro – prevê (nº 2 do respectivo artigo 23º) que “[e]m reforço da garantia prevista no número anterior [hipoteca da habitação adquirida], poderá ser constituído seguro de vida, do mutuário e do cônjuge […]”.
Estamos, pois, pelo menos no que diz respeito às AA., perante uma exacta ilustração da relevância da qualificação do contrato de seguro – de determinados contratos de seguro, para sermos exactos – como contratos a favor de terceiro. Esta qualificação tem um importante esteio na nossa jurisprudência e doutrina [v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/03/1989 (Meneres Pimentel), publicado no BMJ 385,563 e, enquanto exemplo mais recente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/01/2009 (José Augusto Ramos), proferido no processo nº 5127/2008-1, disponível na base de jurisprudência do ITIJ nos campos indicados ou, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f8b69bb8694303bd; na doutrina v., por todos, o recente estudo de Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Coimbra, 2010, onde a questão é abordada nos seguintes trechos: pp. 25/26, 735/777 e 869/870].
[5] Tendo em conta a data da verificação do “sinistro” (do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato: aqui a morte do de cuios das AA.), 13/04/2005, aplica-se na presente situação o regime do contrato de seguro constante do Código Comercial (e especificamente no Decreto-Lei nº 176/95, de 26 de Julho, v. nota 15, infra) e não o “Regime Jurídico do Contrato de Seguro” aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, dado estar em causa um evento ocorrido antes da entrada em vigor deste último Diploma (v. o respectivo artigo 2º, nº 2 e 6º nº 1, alínea e); cfr. Pedro Romano Martinez, Leonor Cunha Torres, Arnaldo da Costa Oliveira, Maria Eduarda Ribeiro, José Pereira Morgado, José Vasques, José Alves de Brito, Lei do Contrato de Seguro anotada, Coimbra, 2009, p. 26). 
[6] Refere a R. na contestação:
“[…]

23º
Com efeito, por indicações do ressegurador desta apólice, que a R. estava obrigada a seguir em virtude dos montantes em causa, caso a R. tivesse antecipadamente tido conhecimento da doença de que o inditoso B… sofria, à data do pedido de adesão (14/05/2002), tinha de actuar da seguinte forma:
– se o inditoso B… sofresse de hepatite alcoólica a R. tinha de recusar a adesão deste aos seguros de vida em causa nestes autos;
– se o inditoso B… não sofresse de hepatite alcoólica, mas tivesse dependência do álcool, a R. tinha então de agravar substancialmente os prémios dos seguros e excluiria as coberturas de invalidez!
24º
Ora, as referidas omissões e as declarações de B… alteravam, assim, a apreciação do risco, o que torna nulas as garantias conferidas pelos contratos de seguro, excepções que ora se argúem com todas as consequências legais.
25º
Houve assim falsas declarações e reticências de factos e circunstâncias conhecidas por B… e que decisivamente influíram sobre a existência ou condições dos contratos.
[…]”
                [transcrição de fls. 55 e vº]
[7] “No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas […]” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, p. 395, sublinhado acrescentado).
Tributário deste entendimento funcional da questão da suscitação de um determinado fundamento perante uma instância de recurso, se prefigura – e estamos a ilustrar a questão com um exemplo que é significativo – a posição da nossa jurisprudência constitucional quanto à inaptidão de uma suscitação de inconstitucionalidade no decurso de um processo, quando a essa mesma suscitação inicial nesse processo, se segue, em sede de recurso ordinário posteriormente interposto (anterior ao recurso de constitucionalidade), o abandono dessa questão: “[…] o requisito processual em causa [a suscitação da questão de inconstitucionalidade no decurso do processo para legitimar um recurso de constitucionalidade] deixa de estar preenchido quando, suscitada embora a questão de inconstitucionalidade perante uma determinada instância, ela é abandonada em recurso ordinário entretanto interposto da decisão proferida por aquela” (José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3ª ed., Coimbra, 2007, p. 77, nota 98). Com efeito, em casos como estes, a decisão recorrida perante o Tribunal Constitucional, não se pronunciou sobre a questão de inconstitucionalidade por ela já não estar suscitada perante essa instância: o Tribunal Constitucional não conhece, assim, uma questão nova relativamente à instância que o precedeu.
[8] Assim sucede, igualmente, no âmbito do (actual) “Regime Jurídico do Contrato de Seguro”, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (v. nota 6, supra), como resulta do respectivo artigo 25º. Note-se, todavia, que o regime deste Diploma apresenta importantes especificidades relativamente ao § único do artigo 429º do CCom aqui aplicável (v., caracterizando os dois regimes, Arnaldo Costa Oliveira, anotando o artigo 25º do DL 72/2008, in Lei do Contrato de Seguro…, cit. na nota 6. pp. 126/127).
[9] V. a caracterização desta distinção em João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III vol., ed. policopiada, Lisboa, 1978/79, pp. 307/312.
[10] As Apelantes suscitam expressamente esta questão no recurso a fls. 201, remetendo aí para o regime legal das “cláusulas contratuais gerais” (para o artigo 6º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro), dizendo que “[c]abia […] à R., no âmbito desse dever legal de informação, fazer prova de que informara o falecido subscritor  da apólice e seguro, do dever de prestar declarações verdadeiras e completas sobre o seu estado de saúde, bem como a consequência que incorreria no caso de incumprimento desses deveres”.
[11] As consultas de alcoologia respeitam à doença do alcoolismo.
A retenção aqui do dado do alcoolismo em exclusivo, sem valoração directa da causa da morte – “esteoatohepatite severa” – reduz a questão fulcral do recurso à omissão da declaração da patologia referente às consultas de alcoologia e subtrai este Tribunal à falsa alternativa de discutir, sem base cientifica para tanto, questões do exclusivo foro médico. Embora a esteoatohepatite possa ser, na sua origem, alcoólica ou não alcoólica (esta informação colhe-se facilmente introduzindo a expressão esteoatohepatite no motor de busca do Google), esse elemento – a origem alcoólica da patologia –, não obstante os factos parecerem sugeri-lo, não consta expressamente do elenco fáctico.
[12] “[C]ontrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas ou reais ou potenciais da verificação de determinado facto” (Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro…, cit., p. 66).
[13] “Apólice «Vida Risco – Crédito Habitação»: as pessoas com deficiência ou risco agravado de saúde e o princípio da igualdade na Lei nº 46/2006”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 136º, nº 3492, Janeiro/Fevereiro, 2007, pp. 158/170. Na jurisprudência desta Relação, pode ver-se, caracterizando esta espécie contratual de seguro o Acórdão de 13/01/2009 (Gregório de Jesus), proferido no processo nº 2621/04.3TBVIS.C1, pesquisável na base do ITIJ nestes campos, ou, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb53003ea1c61802568d9005cd5bb/a64fc2d3f831ac318.
[14] Este Diploma (que “estabelece regras de transparência para a actividade seguradora e disposições relativas ao regime jurídico do contrato de seguro”), nas condições de aplicação da lei no tempo indicadas supra na nota 6, foi revogado nos seus artigos 1º a 5º e 8º a 25º pela alínea e) do nº 1, do artigo 6º do DL 72/2008.
[15] Contrato de Seguro…, cit., pp. 136/139.
[16] Como correctamente o entendeu a Sentença, qualificando tal desvalor como anulabilidade, seguindo, aliás, um entendimento perfeitamente estabelecido na nossa jurisprudência, cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2008 (Moreira Camilo) e 02/12/2008 (Sebastião Povoas), respectivamente nos processos nºs 08A1373 e 08A3737, disponíveis no sítio do ITIJ nestes campos, ou, directamente, nos seguintes endereços: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9a6cb1cb8d09ee8 e http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/29cf04af1756119c8. Cfr. Arnaldo Costa Oliveira, caracterizando o regime do artigo 429º do CCom, anotando o artigo 25º do DL 72/2008, in Lei do Contrato de Seguro…, cit. na nota 6. pp. 123/124.
[17] Contrato de Seguro…, cit., p. 103.
[18] Esta asserção tem estado invariavelmente presente na jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça, citando-se aqui (dado o sugestivo paralelismo com muitos dos traços marcantes do presente caso) o sumário do Acórdão do STJ de 27/05/2008, antes referido na nota 17, supra:
“[…]
I – O art. 429.º do CCom visa tutelar predominantemente interesses particulares, pelo que, de acordo com uma interpretação correctiva e teleológica, é de concluir que se pretendeu aí estabelecer um regime de anulabilidade e não uma nulidade, sendo aquele regime que melhor defende o interesse público de ressarcimento dos lesados, alheios às relações contratuais entre a seguradora e o seu segurado.
II – A sanção da anulabilidade do contrato não é aqui mais do que a previsão de um caso de erro como vício de vontade. Efectivamente, incidindo sobre a própria formação do contrato, as declarações falsas ou as omissões relevantes impedem a formação da vontade real da contraparte (a seguradora), dado que essa formação assenta em factos ou circunstâncias ignorados, por não revelados ou deficientemente revelados.
III – Daí que não seja necessário que as declarações ou omissões influam efectivamente sobre a celebração ou as condições contratuais fixadas, bastando que pudessem ter influído ou fossem susceptíveis de influir nas condições de aceitação do contrato.
IV – É elemento decisivo para a celebração do contrato o questionário apresentado ao potencial segurado, na medida em que se presume que não são feitas aí perguntas inúteis e, através dele, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato a celebrar.
V – Ao assinar o questionário já preenchido, a falecida mulher e mãe dos Autores subscreveu o conteúdo das respectivas respostas, independentemente de não ter sido ela a proceder ao seu preenchimento e não ter tido conhecimento do conteúdo das respostas, até porque, antes da data e da aposição da sua assinatura, constam declarações respeitantes à não ocultação de factos relevantes para a decisão de contratar por parte da seguradora e à exactidão e sinceridade das mesmas.
VI – Sofrendo a falecida segurada, aquando da celebração do contrato, de hipertensão arterial, tinha, pois, o dever de informar, com verdade, a seguradora da doença de que vinha padecendo.
VII – Não o tendo feito, e sabendo-se que o elemento decisivo para a celebração do contrato é o questionário apresentado ao segurado, não releva que não se tenha demonstrado que ela faleceu em consequência directa dessa doença, pois o art. 429.º do CCom não exige tal nexo de causalidade. Apenas exige que o segurado soubesse, quando prestou as declarações, que sofria de doença susceptível de influenciar a decisão da seguradora em contratar.

[…]”
[19] “As condições gerais da apólice correspondem às cláusulas que definem basicamente o tipo de seguro acordado.
Por seu turno, as condições especiais concretizam as cláusulas gerais, delimitando o tipo de seguro, nomeadamente excluindo certos aspectos do risco assumido pela seguradora. Depois de se definir o tipo de seguro, nas cláusulas gerais, especifica-se o conteúdo do contrato nas cláusulas especiais.” (Pedro Romano Martinez, “Cláusulas contratuais gerais e cláusulas de limitação ou de exclusão da responsabilidade no contrato de seguro”, in Scientia Iuridica, Abril-Junho de 2006, tomo LV, nº 306, p. 245).
[20] “Cláusulas contratuais…”, cit. na nota anterior, p. 245.
[21] Correspondendo à essência do contrato de seguro o assumir (remunerado) de um risco (de um risco que apresenta, fundamentalmente, uma expressão pecuniária), por referência à ocorrência de um evento futuro e incerto, percebe-se a natureza estratégica, no processo de construção do contrato, dos elementos dos quais depende, em larga medida, a antecipação probabilística desse risco, enquanto referencial de quantificação da remuneração devida à seguradora (do prémio).
O seguro, tanto numa acepção jurídica como económica, traduz uma forma de “gestão do risco” (risk management), através da sua minimização. Opera por transferência equitativa desse risco (mais propriamente das consequências patrimoniais desse risco) de uma entidade para outra, sendo que a assunção do risco por esta última (a seguradora) tem como contrapartida o recebimento de um “prémio”, enquanto prestação fixa a cargo do transferente do risco (segurado ou tomador).
O seguro expressa, para o segurado ou tomador, uma racionalidade económica básica: o assumir de uma pequena e previsível perda patrimonial (o pagamento do prémio) como forma de fazer face a uma hipotética grande perda (“guaranteed and known small loss to prevent a large, possibly devastating loss”, v. as entradas Insurance e Risk management na versão inglesa da “Wikipedia”, respectivamente, nos seguintes endereços: http://en.wikipedia.org/wiki/Insurance e http://en.wikipedia.org/wiki/Risk_management).
Para a seguradora, a racionalidade económica do seguro expressa-se, por um lado, na avaliação do risco, seleccionando o assumir deste em função da probabilidade de ocorrência do evento e fixando o montante do prémio com a mesma base (é o processo que, na terminologia anglo-saxónica, se designa por underwriting, v., de novo na “Wikipedia”, http://en.wikipedia.org/wiki/Underwriting) e, por outro lado, numa política de investimento dos recursos obtidos através do percebimento dos prémios, como forma de gerar recursos acrescidos, relativamente às satisfações decorrentes da materialização da utilidade do seguro para o segurado (a concretização das chamadas claims).
A forma de avaliação do risco pela seguradora baseia-se fundamentalmente, como antes se disse, na incidência da “lei dos grandes números” na “Ciência Actuarial” (“[a]ctuarial science is the discipline that applies mathematical and statistical methods to assess risk in the insurance and finance industries”, v. http://en.wikipedia.org/wiki/Actuarial_science), sendo que a avaliação probabilística a que esta fornece uma base de trabalho assenta, fundamentalmente, no núcleo de informações relevantes para essa operação prestados pelo segurado ou tomador à seguradora.
É neste sentido – rectius, em função destas condicionantes – que as “cláusulas particulares” e os dados fornecidos pelo segurado ou tomador (o questionário do seguro) assumem um papel estratégico no contrato de seguro. É através deles que se reduz ou elimina, no que tange à seguradora, a “assimetria informativa” no quadro da assunção contratual de um risco e, neste sentido, se evita a chamada “selecção adversa”, enquanto custo adicional induzido pela falta de informação na contratação [v. a definição de “adverse selection” no Léxico, organizado por João Ramos de Sousa, da Sub Judice, nº 33, Outubro-Dezembro de 2005, p. 175).

[22] “Cláusulas contratuais…”, cit., p. 251.