Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4634/19.1T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: AÇÃO INDEMNIZATÓRIA
ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
DESCONTO DO PRESTADO NO ÂMBITO CAUTELAR
DETERMINAÇÃO NA SENTENÇA DA AÇÃO PRINCIPAL
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 388.º, 390.º, N.º 2, 403.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 805.º, N.º 2, ALÍNEA C), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – A liquidação da quantia em dívida, resultante da dedução dos montantes adiantados no âmbito da providência de arbitramento provisório, ao montante indemnizatório fixado a titulo definitivo, não tem, necessária e oficiosamente, que ser determinada na sentença final da ação principal que fixa o montante da indemnização.

II – Se a decisão que procede à fixação da indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco o juiz não proceder à atualização a que se reporta o nº2 do artigo 566º CC, os juros de mora hão de contar-se a partir da citação, nos termos do art. 805, n.º 2, al. c), CC.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo nº 4634/19.1T8VIS.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: José Avelino Gonçalves

2º Adjunto: Paulo Correia

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra Z..., S.A.,

pedindo a condenação da Ré:

i. a pagar-lhe a quantia global de 200.000,00€ correspondente à soma das quantias parcelares de 150.000,00 € a título de danos patrimoniais e a quantia de 50.000,00 € a título de danos não pessoais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até efetivo pagamento.

ii. ser condenada a prestar-lhe os serviços médicos e medicamentosos, incluindo intervenções cirúrgicas, que sejam necessários ou, em alternativa, a pagar o valor que o A. venha a suportar com os mesmos.

A Ré Z..., apresentou contestação, pugnando pela improcedência da ação nos termos em que foi intentada pelo A., devendo antes ser julgada de acordo com a prova produzida em julgamento.

 Realizada audiência final, foi proferida Sentença, que culmina com a seguinte decisão:

III. DECISÃO

Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência, condeno a Ré. Z... S.A a pagar ao Autor AA a quantia de QUARENTA E DOIS MIL SETECENTOS E SESSENTA EUROS, acrescida de juros de mora, desde a citação até integral pagamento.

No demais julgo improcedente a ação e, em consequência, absolvo a Ré do demais pedido.

Finalmente, condeno o Autor e a Ré no pagamento das custas do processo na proporção do respetivo decaimento.

Notifique


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Inconformada com tal decisão, a Ré Z... apresenta um requerimento pelo qual, invocando o disposto no art. 614º do CPC, vem requerer a retificação de um erro material, consistente na circunstância de ter sido condenada a pagar ao autor a quantia de 42.760,00 €, sem que a importância de 5.750 € por si paga no âmbito de anterior providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, fosse expressamente considerada e descontada naquele montante.

Em simultâneo, a Ré interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

A) Resulta dos factos provados, mais concretamente do ponto 25, que “a ré, a título de reparação provisória dos danos, pagou a quantia de 1.750,00 €, acrescida da quantia de 4.000,00 €, acordada nos autos de providência cautelar 517/19...., num total de 5.750,00 €”.

B) Na douta sentença recorrida, a ré foi condenada a pagar ao autor a quantia de 42.760,00 € sem que tal importância de 5.750,00 € fosse explicitamente considerada e descontada naquele montante, pelo que, o montante a pagar pela aqui recorrente ao recorrido, atendendo a que já lhe pagou a título de reparação provisória dos danos a quantia de 5.750,00€, ascenderá a 37.010,00 €.

C) O Tribunal Recorrido, ao fixar o valor de 13,000,00 € a título de danos não patrimoniais atualizou tal valor em função do pedido, pelo que os juros de mora, nesta parte, só serão devidos desde a prolação da sentença recorrida nos termos e por força do Acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ nº 4/2002 de 27/06/2002.

D) Foram violados o disposto no artº 615 nº 1 al c) do C.P.C. e Acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ nº 4/2002 de 27/06/2002

TERMOS EM QUE,

Revogando a douta sentença recorrida e substituindo-a por outra que fixe a indemnização em 37.010,00 € e os juros incidentes sobre os danos não patrimoniais devidos desde a prolação da sentença recorrida.

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Não foram apresentadas contra-alegações.
Remetidos os autos ao juiz que proferiu a decisão, pelo mesmo foi proferido despacho no sentido de não reconhecer a existência de qualquer erro material, explicitando não ter sido determinada tal dedução porque a ré não o requereu, sem que tal invalide que extrajudicialmente se proceda ao desconto do que já se pagou –, situação que também não integra qualquer nulidade.
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Dispensados os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do art. 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões que o Apelante coloca ao tribunal e a apreciar são as seguintes:
1. Se a decisão recorrida errou ao condenar a Ré no pagamento da indemnização fixada a titulo definitivo, sem que procedesse ao desconto dos valores pagos pela Ré em sede de procedimento cautelar de arbitramento provisório
2. Se os juros devidos sobre o montante da indemnização por danos não patrimoniais deveriam ser contabilizados unicamente desde a data da prolação da sentença
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III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. 1.      Se a decisão recorrida errou ao condenar a Ré no pagamento da indemnização fixada a titulo definitivo, sem descontar os valores pagos pela Ré em sede de procedimento cautelar de arbitramento provisório

Insurge-se a Ré contra a decisão recorrida pelo facto de ter sido condenada a pagar ao autor a quantia de 42.760, 00 €, sem que a importância de 5.750,00 €, por si paga no âmbito do procedimento cautelar de arbitramento provisório, tivesse sido explicitamente descontada nesse montante.

Cumpre apreciar tal questão

Do teor do despacho proferido pelo juiz ao abrigo do disposto nos artigos 614º e 617º CPC, resulta não se questionar que tal desconto é devido e que só não terá sido objeto de pronúncia por parte do tribunal por não ter sido formulado qualquer pedido a tal respeito por parte da Ré seguradora.

Encontra-se provado que a ré, a título de reparação provisória dos danos sofridos na sequência do acidente de viação ocorrido a 11 de setembro de 2018, procedeu ao pagamento da quantia de 1.750,00 €, acrescida da quantia de 4.000,00 € acordada nos autos de providência cautelar 517/19...., num total de 5.750,00 € (ponto 25 da matéria de facto).

Nos presentes autos principais, de que aquela providência era dependente, e que têm por objeto a fixação definitiva da indemnização a cargo da Ré na sequência daquele acidente de viação, a decisão recorrida veio a condenar a Ré no pagamento da quantia de 42.760,00 €, correspondendo ao valor total dos danos a indemnizar ao autor, sem que tenha determinado o desconto pelos montantes já pagos pela Ré/Apelante no âmbito da referida providência cautelar.

A questão a decidir a este respeito, reside, assim, unicamente, em saber se a sentença recorrida deveria, oficiosamente, ter tido em consideração tais pagamentos prévios, procedendo ao respetivo desconto e condenando a ré a pagar, não o valor total em que foi fixada a indemnização, mas, tão só, no valor que a Ré se encontra ainda obrigada a pagar face aos valores já por si adiantados.

Dispõe o artigo 388º, do Código de Processo Civil, quanto ao “Fundamento da reparação provisória”:

1. Como dependência da ação de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, podem os lesados, bem como os titulares do direito a que se refere o nº3 do artigo 495º do Código Civil, requerer o arbitramento da quantia certa, sob a forma de renda mensal, como reparação provisória do dano.

(…)

3. A liquidação provisória, a imputar na liquidação definitiva do dano, é fixada equitativamente pelo tribunal.

(…)”

Ao contrário do que a tal respeito se prevê para o caso de a decisão final não vir a arbitrar qualquer indemnização ou a fixar em montante inferior, o nº3 do artigo 388º não refere expressamente em que condições é de efetuar tal imputação, se na própria sentença que fixa a indemnização definitiva, se numa fase posterior de liquidação dos montantes em dívida.

Com efeito, no caso de haver lugar a restituição, o nº2 do artigo 390º do CPC, é claro quanto ao destino das quantias adiantadas:

A decisão final, proferida na ação de indemnização, quando não arbitrar qualquer reparação ou atribuir reparação inferior à provisoriamente estabelecida, condena sempre o lesado a restituir o que for devido”.

“A sentença de condenação na repetição do indevido não está subordinada ao princípio do dispositivo: o tribunal profere-a independentemente de o requerido ter pedido a restituição[1]”.

Vejamos, assim, o que há de entender-se por “imputação na liquidação definitiva do dano” e em que momento deve a mesma ser efetuada.

Quanto à natureza de tal reparação provisória e a sua imputação na liquidação definitiva, João Cura Mariano[2] pronuncia-se nos seguintes termos:

“Sendo o arbitramento de reparação provisório uma providência antecipatória da decisão que visa acautelar, as indemnizações pagas, sob a forma de renda, têm um cariz precário, sendo meros adiantamentos por conta da indemnização que se vier a apurar ser devida na ação declarativa da qual a providência é instrumental.

Assim, na hipótese do quantum da indemnização definitiva ser superior ao valor global das rendas provisórias entretanto pagas, estas devem ser imputadas naquele montante (art. 403º, nº3, do CPC), ficando a pessoa condenada na indemnização definitiva obrigada a pagar apenas a diferença entre os dois valores. A fixação da indemnização definitiva não deve ter em consideração os valores entretanto satisfeitos pelo obrigado ao seu pagamento, no cumprimento da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, mas o pagamento desses valores é imputado na dívida da indemnização definitiva. Esta imputação pode ser efectuada, com actualização dos valores pagos de acordo com a desvalorização monetária que, entretanto, se tenha verificado entre esses pagamentos e a data da sentença que fixou a indemnização definitiva, na medida em que esta também tenha atualizado o valor da indemnização à sua data, tomando em consideração a desvalorização monetária ocorrida”.

Por sua vez, José Lebre de Freitas[3], comenta pelo seguinte modo o disposto no citado nº3: “Uma vez fixada a reparação definitiva, as quantias que tenham sido pagas a título de reparação provisória são-lhe deduzidas. (…) Quando, arbitrada a reparação definitiva, haja lugar a apurar a diferença (para mais ou para menos) entre ela e o que foi pago na pendência da ação, poderá haver necessidade de atender ao tempo decorrido e à consequente desvalorização monetária, dado que normalmente a indemnização definitiva não revestirá a forma de renda mensal (cfr., art. 567º-1 CC) consistindo em quantia a pagar de uma só vez.”

De tais comentários não se pode deduzir, com clareza se, no entender de tais autores, esta liquidação dos montantes em dívida deve, ou não, ser efetuada, necessariamente, na ação principal.

Invocamos ainda o que a tal respeito era afirmado por Célia Sousa Pereira, ao abrigo do anterior Código, cujo regime se mantém intocado:

“Da redação do nº3 do art. 403º do CPC resulta igualmente que, no caso de a providência de reparação ser deferida, as quantias recebidas antecipadamente a título provisório serão imputadas na indemnização definitiva a ser fixada em sede de ação principal. Ou seja, o valor das rendas mensais recebidas pelo requerente até ao trânsito em julgado da sentença, que fixa a indemnização devida em consequência dos danos devidos pelo lesado, é imputado ao valor fixado a título de indemnização final, devendo o requerente receber a diferença entre o valor total da indemnização e o valor já pago a titulo de reparação provisória[4]”.

Daqui se retira que a determinação ou fixação definitiva do montante indemnizatório e a “imputação (dos montantes provisoriamente adiantados) na liquidação definitiva do dano” constituem duas operações e correspondem a fases completamente distintas, sendo que, o desconto dos montantes pagos ao abrigo da providência cautelar de arbitramento pressupõe que o montante indemnizatório se encontre fixado a título definitivo, com decisão transitada em julgado.

Encontrando-se a reparação provisória do dano sofrido, prevista “sob a forma de renda mensal” (nº1. art. 388º), esta continuará a vencer-se e a ser devida “até que a decisão definitiva, a proferir na ação de indemnização, transite em julgado[5]”, o que envolverá que, por regra, à data da prolação da sentença não seja possível o apuramento de quais os montantes exatos a descontar.

Assim sendo, quando muito, em regra geral, a decisão final apenas poderá fixar definitivamente o montante indemnizatório, condenando o réu no respetivo pagamento e ordenando, de um modo genérico, que, a tal quantia, deverão ser deduzidos os montantes adiantadamente pagos em cumprimento do provisoriamente arbitrado.

Ou seja, não se nos afigura que a liquidação do montante devido, resultante do montante indemnizatório fixado a titulo definitivo deduzido dos montantes adiantados provisoriamente, tenha, necessária e oficiosamente, que ser determinada na sentença final da ação principal que fixa o montante da indemnização.

A decisão recorrida não nos merece, assim, nesta parte, qualquer censura.


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2. Se os juros respeitantes à indemnização por danos não patrimoniais são devidos unicamente desde a prolação da sentença

A decisão recorrida condenou a Ré no pagamento de juros de mora desde a data da citação com os seguintes fundamentos:

Tendo estes elementos em conta, o modo de atuação do lesante, a capacidade da Ré obrigada à indemnização e as situações análogas na nossa jurisprudência, julga-se ajustado o valor de 13.000,00€.

Quanto a estes danos pessoais, inexistem circunstâncias provadas que imponham a atualização deste valor a esta data – v.g. a necessidade de correção monetária – o que tonaria aplicável a jurisprudência fixada no acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 04/2002 (Diário da República, I.ª Série -A, de 27 de Junho de 2002) e estabeleceria o momento da contabilização dos juros a partir da sentença (a decisão atualizadora).

(…)

O não pagamento, à data do vencimento da quantia pecuniária agora encontrada constitui incumprimento, na forma de mora, o que gera a obrigação de indemnizar, esta correspondente aos juros legais, tudo nos termos dos art.º 762.º, n.º 1, 774.º, 798.º, 804.º, n.º 1 e 2, 805.º, n.º 2, al. b) e 806.º, n.º 1 e 2, todos do Código Civil.

Todavia, o quantitativo agora fixado a título de danos pessoais não foi objeto de atualização e a obrigação de pagamento agora reconhecida era originariamente ilíquida, porque dependente da fixação pelo tribunal, segundo o aludido juízo de equidade.

Por assim ser, tendo em conta a fonte da responsabilidade (civil extracontratual) a indemnização é devida desde a citação, nos termos do n.º 3., 2.ª parte, do art.º 805.º do Código Civil.”

Insurge-se a Apelante contra a condenação no pagamento de juros de mora desde a citação, “atendendo a que a quantificação ao nível dos danos não patrimoniais foi fixada e atualizada em 13.000, €”, pelo que os juros de mora que sobre ela recaem só são devidos desde a prolação da sentença recorrida nos termos e por força do Acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ nº4/2002 de 27/06/2002.

Não podemos dar razão à Apelante. Tal crítica só pode dever-se à falta de leitura atenta acerca do que a tal respeito se escreveu na sentença recorrida: o juiz a quo afirmou expressamente que não procedia à atualização de tal montante, explicitando as razões para a sua não atualização, afirmando que, assim sendo, a situação cai fora do âmbito de aplicação do referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência.

A apelação é de improceder, sem outras considerações.


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IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas da Apelação a suportar pela Apelante.

Notifique.

                                                           Coimbra, 07 de novembro de 2023                                              

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

(…).





[1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed. Almedina, p.141, nota 3 ao artigo 390º.
[2] “A Providência Cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória”, 2ª ed., Almedina, pp.119-120.
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed. Almedina, p. 137, nota 8 ao artigo 388º.
[4] “Arbitramento de Reparação Provisória”, Almedina, p. 113.
[5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 134.