Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1350/10.3TBGRD-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
EFEITOS
GERENTE
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA – 1.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 186.º Nº 2 AL. F) E189.º Nº 2 DO CIRE
Sumário: 1. A insolvência é qualificada como culposa quando resulta comprovado o uso dos bens da sociedade insolvente contrário aos seus interesses, em proveito de terceiros.

2. A qualificação da insolvência de uma sociedade por quotas como culposa tem, necessariamente, que afectar e se reflectir sobre as pessoas que constituem o órgão que forma e manifesta a sua vontade: os gerentes.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório

Por apenso à acção especial de insolvência – em que foi declarada em tal situação A..., Lda.– veio o respectivo Administrador (nos termos do art. 188.º, n.º 2, do CIRE) propor, no parecer que apresentou, que a insolvência seja qualificada como culposa; e que seja afectado pela qualificação o sócio gerente da devedora, B..., gerente de direito e de facto da devedora insolvente nos últimos 3 anos.

Para o que, em termos de fundamentação e em síntese, referiu:

Que foram feitos acordos de pagamento de dívidas (duma outra sociedade – a C..., Lda.) e de transmissão de todos os estabelecimentos comerciais da devedora que deram causa à insolvência, representando os mesmos um actuação contrária aos interesses da insolvente e dos seus credores e pretendendo favorecendo outras empresas nas quais havia interesse directo ou indirecto dos sócios da insolvente.

Que a insolvente não se apresentou à insolvência nos 60 dias após acordo de pagamento da dívida da E..., sendo que ficou a partir daí privada de meios económicos e financeiros para assumir o pagamento das suas dívidas perante credores.

Daí que conclua que a insolvência deve ser qualificada como culposa por força do art. 186º/2, als b), e), f) e h) e 3, al a), do CIRE.

Sentido este – da qualificação culposa – em que já se havia pronunciado, em alegações (nos termos do art. 188.º/1 do CIRE), o interessado/credor H..., S.A., invocando que, em menos de dois meses, a devedora insolvente deixou de ter estabelecimentos, pessoal e património tangível (imobilizado), não reflectindo na contabilidade o capital realizado com tais transmissões; razão porque a insolvência se deve considerar culposa, uma vez que a devedora insolvente ocultou ou fez desaparecer o seu património

O Ministério Público apresentou o seu parecer, pronunciando-se no mesmo sentido.

B..., veio deduzir oposição, invocando, em resumo, o seguinte:

Que constitui e/ou adquiriu, além da sociedade insolvente, as seguintes outras empresas: a) I..., Lda.; b) J...., Lda.; c) L.... , Lda.; d) C..., Lda.; e) M... , Lda.; tendo requerido e obtido no Registo Nacional de Pessoas Colectivas a aprovação da firma N... , Lda., em que todas aquelas sociedades seriam participadas desta.

Que a devedora insolvente deu de penhor os seus estabelecimentos comerciais, como garantia do pagamento de um débito que a C..., Lda tinha para com a E..., porque era naquele estabelecimento que a devedora insolvente adquiria, em melhores condições do que noutros fornecedores, os produtos que depois distribuía pelos seus estabelecimentos comerciais para posterior revenda ao consumidor final.

Que os únicos sócios e gerentes da C..., Lda. eram os mesmos que os da devedora insolvente e que o grupo económico N... tinha interesse sério, relevante e justificado em manter o estabelecimento da C...; sendo que a dívida desta à E... resultava também da existência de saldos devedores da devedora insolvente.

Que os resultados financeiros líquidos da C..., Lda. e das demais sociedades, em resultado da crise que ainda hoje se faz sentir, não foram suficientes para cumprir as obrigações assumidas no plano de pagamento com a E...; razão pela qual esta instaurou acção executiva para pagamento do montante de € 683.500,00, da qual resultou a penhora de todos os estabelecimentos comerciais da devedora insolvente, sendo para evitar a consumação da perda dos estabelecimentos comerciais, cujo valor, no conjunto, seria superior à quantia exequenda, que a devedora insolvente se viu obrigada a celebrar, em 6 de Setembro de 2010, o acordo de pagamento de fls. 193 a 200 dos autos (acordo de pagamento de que a devedora insolvente pagou as duas primeiras prestações, reconhecendo então, considerando todas as vicissitudes que se verificavam desde Maio de 2010, designadamente, o acentuado decréscimo das vendas, que não seria capaz de cumprir o acordo de pagamento).

Que, para evitar a perda de todos os estabelecimentos pelo valor da quantia em dívida (€ 532.704.70) e na medida em que eles tinham valor superior, decidiu, em 18/10/2010, realizar o negócio referido no facto 32 deste acórdão, cujo preço global foi de € 658.326,00, que correspondeu ao preço justo dos bens transaccionados e que foi superior, em € 125.621,13, ao valor da divida à E..., SA; negócio este que não foi a causa da sua insolvência e que, pelo contrário, até permitiu libertar todos os estabelecimentos do penhor e penhoras já existentes sobre eles.

Que o motivo da celebração, em 15/10/2010, do Contrato de Trespasse, de fls. 319 a 323, assentou na circunstância das vendas do estabelecimento transmitido não terem expressão nos resultados da sociedade, sendo, por isso, mais importante, naquela data, para a viabilidade da sociedade, encaixar, de uma vez, o preço justo da transmissão, no montante de € 50.000,00; preço/encaixe que foi reflectido na conta 25 – imobilizado alienado – da contabilidade da devedora insolvente.

Que, no que respeita ao Contrato de Transmissão, Confissão de Divida e Acordo de Pagamento do mesmo dia 15/10/2010 (de fls. 321 a 341), a justificação assentou na execução movida pelo credor José Monteiro Baptista.

Que não incumpriu a obrigação de se apresentar, dentro do prazo legal, à insolvência, porque pagou as duas primeiras prestações do acordo celebrado com a E..., vencidas nos dias 10 e 17 de Setembro; tendo a sua insolvência sido requerida pela O... em Outubro de 2010.

Que não corresponde à verdade que ele, opoente, tenha recebido o montante de € 635.366,24 da devedora insolvente; que a conta 26601 – empréstimos aos sócios – reúne todos os investimentos que foram realizados pela insolvente nas demais empresas do grupo ao longo dos últimos anos; e que pelo facto dos investimentos realizados nas demais sociedades do grupo terem sido contabilizados na conta 26601 é que as respectivas contas se encontram saldadas, não tendo existido um tratamento mais favorável das sociedades I..., Lda., J..., Lda., C..., Lda., G..., Lda., E..., S.A. e T..., Lda.

Concluiu pois pugnado pela qualificação da insolvência como fortuita.

Foi proferido despacho saneador – que declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa, instruído o processo e realizada a audiência, após o que a Exma. Juíza proferiu a seguinte sentença:

“ (…) Em face de todo o exposto:

I) Qualifico a insolvência da sociedade A..., Lda. como culposa;

II) Julgo afectado por esta qualificação B..., sócio-gerente da devedora, à data de declaração da insolvência;

III) Declaro B... inibido para a prática de actos de comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial durante o período de cinco (5) anos.

 (…) “

Inconformado com tal decisão, interpôs B... – afectado pela qualificação da insolvência como culposa – o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que qualifique a insolvência como fortuita.

Terminou a sua alegação com conclusões que, em face da sua extensão (11 páginas, só de conclusões), nos abstemos de aqui transcrever[1].

Não foram apresentadas, oportunamente, quaisquer respostas

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de Facto

Encontra-se provado o seguinte factualismo:

1) No dia 28-10-2010, a O..., Lda. instaurou processo de insolvência contra A..., Lda., processo de que os presentes autos são um apenso, com fundamento, entre o mais, nos seguintes factos:

 “ (…) é a ora requerida devedora à requerente do valor que totaliza o montante de € 10.713,36, acrescido de juros de mora à taxa legal no valor de € 149,69, totalizando tudo o montante de € 10.863,05. (…).

A requerente é credora da requerida; a requerida tem inúmeros débitos pendentes de valor elevado; deve ao Estado e outros entes públicos; deve aos bancos; não lhe são conhecidos bens móveis ou imóveis para responder perante os credores; pelo que se encontram reunidos, alguns dos factor-índice do art. 20.º do C.I.R.E., conjugados com o art. 3º do mesmo Diploma, deste modo o credor goza da presunção de penúria da requerida, a qual apenas pode ser ilidida pelo mesmo.” (alínea A) da matéria de facto assente).

2) No dia 23-11-2010, foi proferida sentença, já transitada em julgado, que declarou a insolvência da sociedade A..., Lda, na qual consta, entre o mais, o seguinte:

Nos termos do art. 30º/5, do CIRE, consideram-se confessados os factos vertidos na petição inicial.

Da conjugação dos factos expostos na petição inicial com o disposto no art. 20º/1, do CIRE, ex vi art. 30º/5, do mesmo diploma, é forçoso concluir que a factualidade supra elencada integra a hipótese normativa plasmada no art. 20º/1, al. b), do CIRE. Efectivamente, ressalta dos factos, que servem de horizonte à presente decisão, que o montante do crédito da requerente, relativamente elevado, o facto de remontar a 2008, sem que tenha havido pagamento, e a devolução do cheque que foi entregue para o efeito, por falta de provisão, revelam claramente que a requerida se encontra em situação de não conseguir satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.

Impõe-se, assim, declarar a insolvência da requerida, com base nos fundamentos sobreditos” (alínea B) da matéria de facto assente).

3) A..., Lda. encontra-se matriculada, na Conservatória do Registo Comercial de Manteigas, como “sociedade por quotas”, com o NIPC 507083342, desde 13-08-2004 e com sede na Rua ..., ..., Manteigas (alínea C) da matéria de facto assente).

4) Na respectiva matrícula consta registado o seguinte objecto: “Comercialização de produtos alimentares, roupa, acessórios de moda, produtos culturais, electrodomésticos, cosméticos, materiais de construção, utilidades para casa, mobiliário” (alínea D) da matéria de facto assente).

5) Quando foi constituída, o respectivo capital social era de € 5.000,00, repartida em duas quotas iguais, uma pertencente a B... e outra pertencente a D.... (alínea E) da matéria de facto assente).

6) Em 11-11-2009, foi inscrito, no registo comercial, um aumento de capital, no montante de € 235.000,00, ficando o capital social total repartido em duas quotas iguais, pertencentes aos sócios identificados em 5) (alínea F) da matéria de facto assente).

7) No registo comercial, constavam como gerentes os dois sócios, bastando a assinatura de um para obrigar a sociedade (alínea G) da matéria de facto assente).

8) Foi B... quem sempre exerceu a gerência de facto da insolvente (alínea H) da matéria de facto assente).

9) Nos anos de 2007, 2008 e 2009, a insolvente apresentou uma boa situação económica e financeira, que não indiciava que a sua insolvência pudesse estar iminente ou viesse a ser declarada insolvente (alínea I) da matéria de facto assente).

10) Em 31-12-2009, o Balanço da insolvente apresentava os seguintes elementos/resultados:

Activo Liquido – € 1.558.903,33;

Passivo – € 1.175.894,07;

Capital próprio – € 383.009,26 (alínea J) da matéria de facto assente).

11) Em 31-12-2009, a insolvente era proprietária dos seguintes estabelecimentos comerciais:

1) Estabelecimento comercial instalado e a funcionar no prédio urbano, sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de Manteigas, inscrito na respectiva matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo matricial número ...;

2) Estabelecimento comercial instalado e a funcionar no prédio urbano, sito na Rua de ..., freguesia de ..., concelho de Manteigas, inscrito na respectiva matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo matricial número ...;

3) Estabelecimento comercial instalado e a funcionar no prédio urbano, sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de Manteigas, inscrito na respectiva matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo matricial número ...;

4) Estabelecimento comercial instalado e a funcionar no prédio urbano, sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de Manteigas, inscrito na respectiva matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo matricial número ...;

5) Estabelecimento comercial instalado e a funcionar no prédio urbano, sito na Rua Dr. ..., em Castelo Branco, inscrito na respectiva matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo matricial número ... “A”, “C”;

6) Estabelecimento comercial instalado e a funcionar no prédio urbano, sito na Rua ..., em Castelo Branco, inscrito na respectiva matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo matricial número ...;

7) Estabelecimento comercial instalado e a funcionar no prédio urbano, sito na Rua ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo matricial número ... (alínea K) da matéria de facto assente).

12) A insolvente exercia a sua actividade comercial através dos estabelecimentos comerciais indicados em 11) (alínea L) da matéria de facto assente).

13) No dia 21-06-2009, foi celebrado entre a E..., S.A. e a C..., Lda. um acordo escrito, cuja cópia se mostra junta a fls. 210 a 215, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, denominado “Contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial”, por via do qual a primeira declarou ceder à segunda a exploração temporária de um estabelecimento comercial de venda por grosso de produtos alimentares, vulgo, Cash & Carry, instalado e a funcionar no ..., Apt. 281, freguesia de ...e concelho da Covilhã, mediante o pagamento pela segunda à primeira de uma remuneração correspondente a 1,75% sobre as suas vendas líquidas mensais relativas ao mês anterior a que dizem respeito, acrescida de IVA, à taxa legal aplicável e em vigor em cada momento, num mínimo de € 5.400,00 euros (alínea M) da matéria de facto assente).

14) O acordo referido em 13) foi assinado por B..., em representação da C..., Lda. (alínea N) da matéria de facto assente).

15) No mesmo dia, foi celebrado entre a E..., S.A. e a C..., Lda. um acordo escrito, cuja cópia se mostra junta a fls. 216 a 219, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, denominado “Contrato de Franquia”, por via do qual a primeira declarou ceder à segunda o direito de usar o nome/insígnia “ LL...”, o acesso a certo know-how relativo à exploração de estabelecimentos de venda de produtos alimentares e outros, vulgo Cash & Carry, nomeadamente mediante o fornecimento de documentos contendo políticas, objectivos, directrizes e outras informações relativas à gestão de negócio e a possibilidade de comprar em condições preferenciais e o direito de comercializar produtos de marca própria do Grupo E..., bem como todos os outros produtos que venham a ser autorizados pela E..., tudo exclusivamente para o estabelecimento comercial referido em 13), e a segunda obrigou-se a contribuir para a criação de um fundo comum de publicidade e comunicação, através de um valor fixo, a definir anualmente até ao valor de 0,25% do total das suas vendas líquidas, que será usado na promoção e divulgação do estabelecimento (alínea O) da matéria de facto assente).

16) O acordo referido em 15) foi assinado por B..., em representação da C..., Lda. (alínea P) da matéria de facto assente).

17) No dia 11-02-2010, a C..., Lda., a R..., S.A. e a E..., S.A., celebraram um acordo escrito, cuja cópia se mostra junta a fls. 220 a 224, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, denominado “Acordo de pagamento de dívida”, no qual declararam, entre o mais, o seguinte:

“Cláusula 1ª 1. - A R...é credora, à presente data, da quantia de € 30.590,93, …, valor este resultante de facturas vencidas e não pagas, conforme extracto que constitui o Anexo I ao presente acordo, e que do mesmo faz parte integrante. 2. Ao referido montante acresce o valor de 1.079,75 €, …, a título de juros, perfazendo a dívida o montante total de € 31.679,68.

Cláusula 2ª 1. A E... é credora, à presente data, da quantia de € 542.907,02, …, montante esse respeitante a facturas de mercadoria adquirida, vencida e não paga, melhor discriminada no Anexo II ao presente acordo. 1. Ao referido montante acresce o valor de 17.738,54 €,…, referentes a juros, perfazendo a dívida o montante total de € 560.645,56.

Cláusula 3ª Reconhece a C... a presente dívida pelos exactos valores indicados nas cláusulas anteriores e que a mesma é certa, líquida e exigível.

Cláusula 4ª 1. A C... obriga-se pelo presente a liquidar a dívida às 2 (duas) sociedades supra mencionadas, de acordo com os planos a seguir indicados.” (alínea Q) da matéria de facto assente).

18) O acordo referido em 17) foi assinado por B..., em representação da C..., Lda. (alínea R) da matéria de facto assente).

19) No mesmo dia, a R..., S.A., a E..., S.A., a C..., Lda e a insolvente celebraram um acordo escrito, cuja cópia se mostra junta a fls. 226 verso a 229, no qual a insolvente declarou constituir a favor das duas primeiras sociedades, “penhor de primeiro grau” até ao total cumprimento do acordo de pagamento referido em 17), sobre todos os estabelecimentos comerciais descritos em 11), para “especial garantia do bom e pontual pagamento de todo o montante previsto” no aludido acordo (alínea S) da matéria de facto assente).

20) O acordo referido em 19) foi assinado por B..., em representação da C..., Lda. e da insolvente (alínea T) da matéria de facto assente).

21) No dia 26-04-2010, B... assinou um documento escrito, cuja cópia se mostra junta a fls. 230, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, no qual declarou, entre o mais, o seguinte:

 “ (…) vem pela presente confessar ser devedor à E..., S.A., dos valores a seguir discriminados:

I - 181.681,19€ … correspondente ao remanescente da aquisição das mercadorias que compunham as existências do estabelecimento comercial de venda por grosso de produtos alimentares, vulgo, cash & carry, [referido em 13)] …

II. 286.834,25 … referente ao montante constante no acordo de pagamento [referido em 15)] …

III. 262.570,14 … respeitante a facturas de mercadoria, vencida e não paga não contemplado no acordo de pagamento de dívida, por ter sido adquirida em data posterior à celebração do referido contrato” (alínea U) da matéria de facto assente).

22) A R..., S.A. e a E..., S.A. instauraram contra C..., Lda., contra a insolvente e contra B..., uma acção executiva, que correu termos na Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Setúbal, com o nº 3760/19.7TBSTB, para pagamento da quantia de € 650.602,73, apresentando como títulos executivos os documentos referidos em 17), 19) e 21) (alínea V) da matéria de facto assente).

23) No dia 12-05-2010, a E... , S.A., a C..., Lda. celebraram um acordo escrito, cuja cópia se mostra junta a fls. 281 a 301, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, denominado “Acordo de revogação de contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial”, no qual as partes declararam revogar o acordo de cessão de exploração descrito em 13) (alínea W) da matéria de facto assente).

24) O acordo referido em 23) foi assinado por B..., em representação da C..., Lda (alínea X) da matéria de facto assente).

25) No dia 06-09-2010 e no decurso da acção executiva referida em 22), a E..., S.A., a C..., Lda., a insolvente e B... celebraram um acordo escrito, cuja cópia se mostra junta a fls. 193 a 200, denominado “Acordo de pagamento”, no qual declararam, entre o mais, o seguinte:

“I. Em 07-06-2010, a Primeira Contratante intentou contra os Segundos Contratantes uma acção executiva, à qual foi atribuído o nº 3760/10.7TBSTB, que corre termos na vara mista do Tribunal Judicial de Setúbal, sendo a quantia exequenda de 532.798,44 (…)

Cláusula Primeira - Acordam as partes em fixar o valor actual em dívida pelos Segundos Contratantes no montante total de € 552.704,70 (…)

Cláusula Segunda os Segundos Contratantes confessam-se devedores da quantia mencionada na cláusula anterior e comprometem-se a pagá-la em quarenta (40) prestações semanais e sucessivas, nas datas e montantes indicados no plano de pagamento junto ao presente acordo como Anexo I e do qual faz parte integrante (…)

Cláusula Quinta 1 – Como condição para a celebração do presente acordo e previamente à suspensão da execução, acordam as partes contratantes que serão efectuadas penhoras, sem remoção, dos seus estabelecimentos comerciais identificados no requerimento executivo (…), todos propriedade de A..., Lda. (…) 2 – As penhoras a efectuar nos termos do art. 862º-A do Código de Processo Civil, serão feitas por auto elaborado pelo Agente de Execução do processo, U..., consignando-se, desde já, que os referidos estabelecimentos permanecerão na posse e com gestão própria da Segunda Contratante A..., Lda” (alínea Y) da matéria de facto assente).

26) O acordo referido em 25) foi assinado por B..., em representação da C..., Lda. e da insolvente (alínea Z) da matéria de facto assente).

27) No plano de pagamento referido em 25), constava que a primeira prestação tinha o valor de € 10.817,44 e com data de vencimento em 10-09-2010 e a segunda tinha o valor de € 10.802,10 e com data de vencimento em 17-09-2010 (alínea AA) da matéria de facto assente).

28) Na acção executiva e em cumprimento do acordo reproduzido em 25) foram penhorados os estabelecimentos comerciais referidos em 11) (alínea BB) da matéria de facto assente).

29) No dia 18-10-2010, a E..., S.A., a C..., Lda, a insolvente, B..., G..., Lda e F..., Lda, celebraram um acordo escrito, denominado “Contrato de transmissão e confissão de dívida e acordo de pagamento”, cuja cópia consta a fls. 310 a 317, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, no qual declararam, entre o mais, o seguinte:

A C..., Lda, a insolvente e A... reconhecem que são devedoras à E... do montante de € 526.335,50, ao abrigo do disposto no art. 595º/1, al a), do Código Civil, acordam na transmissão da dívida … para a G..., Lda.; a E... ratifica a transmissão da dívida e deixa expressamente ressalvado o direito que lhe assiste nos termos do disposto na parte final do art. 600º do Código Civil; a G..., Lda. reconhece-se devedora à E... da quantia de € 526.335,50; como garantia do cumprimento integral desta obrigação, a F..., Lda. assume, como avalista e garante da obrigação contratual, e obriga-se, na presente data, a entregar à E... uma garantia bancária no montante de 264.821,52 €; a garantia bancária referida não pode, de modo algum, ser dissociada de tal acordo, podendo ser accionada pela E... nos termos previstos na mesma em caso de incumprimento da G..., Lda. no pagamento das quantias indicadas, a E... obriga-se a enviar, para a acção executiva referida em 22), um requerimento de extinção da instância por desistência do pedido e declarou que, sem prejuízo do direito que lhe assiste nos termos do art. 600º do Código Civil, desonera a C..., a insolvente a B... de todas as obrigações por estes assumidas nos acordos descritos em 13), 17), 19), 19) e em 25) (alínea CC) da matéria de facto assente).

30) O acordo referido em 29) foi assinado por B..., em representação da C..., Lda e da insolvente (alínea DD) da matéria de facto assente).

31) Na garantia bancária referida em 29), cuja cópia consta a fls. 316 e 317, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, consta, entre o mais, o seguinte:

“O P... Bank Plc (…) presta pelo presente documento, em nome e a pedido da sociedade comercial F..., Lda, (…) e a favor da E..., S.A. (…) uma garantia bancária autónoma no montante máximo de € 264.821,52 (…) destinada a garantia o bom e integral cumprimento do” acordo referido em 29) (alínea EE) da matéria de facto assente).

32) No dia 18-10-2010, a insolvente e a G..., Lda celebraram um acordo escrito, cuja cópia se mostra junta a fls. 306 a 309, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, denominado “Contrato Inominado”, no qual declararam, entre o mais o seguinte: por via da celebração do acordo referido em 29), a segunda aceitou a transmissão integral da dívida que originariamente foi também da insolvente, no montante de € 526.335,50; como contrapartida pelas responsabilidades e obrigações assumidas pela segunda, a insolvente entrega todos os bens e equipamentos existentes nos imóveis identificados em 11), 1), 5), 6) e 7); a insolvente vendeu à segunda, no mesmo acordo, a mercadoria que se encontra depositada nos imóveis referidos pelo preço de € 131.991,27 (alínea FF) da matéria de facto assente).

33) O acordo descrito em 32) foi assinado por B... em representação da insolvente (alínea GG) da matéria de facto assente).

34) No dia 15-10-2010, a insolvente e S... celebraram um documento escrito, cuja cópia se mostra junta a fls. 319 a 323, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, no qual acordaram, entre o mais, no trespasse da primeira à segunda do estabelecimento comercial referido em 11), 3), mediante o pagamento da quantia de € 50.000,00 (alínea HH) da matéria de facto assente).

35) O acordo descrito em 34) foi assinado por B... em representação da insolvente (alínea II) da matéria de facto assente).

36) No mesmo dia, a insolvente e a T..., Lda. celebraram um documento escrito, cuja cópia se mostra junta a fls. 324 a 341, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, no qual declararam, entre o mais, o seguinte: a segunda “aceitou a transmissão integral da dívida, no montante de € 57.982,50, que corresponde ao valor em dívida à sociedade W...Como contrapartida pelas responsabilidades e obrigações assumidas pela Segunda …, a Primeira entrega todos os bens e equipamentos existentes …” nos imóveis referidos em 11), 2) e 4) (alínea JJ) da matéria de facto assente).

37) O acordo descrito em 36) foi assinado por B... em representação da insolvente (alínea KK) da matéria de facto assente).

38) Por carta registada, datada de 29-11-2010, o agente de execução da referida acção executiva notificou a extinção da acção executiva a B... (alínea LL) da matéria de facto assente).

39) Em 31-11-2010, o Balanço da insolvente apresentava os seguintes elementos/resultados:

Activo Líquido – € 762.353,00

Passivo –€ 1.519.559,31

Capital próprio – (-) 757.207,31 (alínea MM) da matéria de facto assente).

40) O valor do activo líquido indicado em 39) corresponde ao montante inscrito, na contabilidade da insolvente, numa conta que representa empréstimos concedidos pela insolvente a B... (alínea NN) da matéria de facto assente).

41) Os créditos reclamados e verificados, no apenso de verificação e graduação de créditos, atingem o montante total de € 1.247.004,40 e não vão ser satisfeitos através do produto dos bens apreendidos (alínea OO) da matéria de facto assente).

42) As empresas I..., J..., Lda., C..., Lda., G..., Lda., E... e T..., Lda. apresentam as suas contas saldadas, na contabilidade da insolvente (alínea PP) da matéria de facto assente).

43) O oponente requereu, em 18-12-2009, ao Registo Nacional de Pessoas Colectivas, que veio a emitir, em 04-01-2010, o certificado de admissibilidade de firma com o número ..., aprovando a firma N..., S.A. (alínea QQ) da matéria de facto assente).

44) Os acordos descritos em 29) e 32) foram celebrados também em proveito da G..., Lda. (resposta ao ponto 3) da base instrutória).

45) As vendas dos estabelecimentos comerciais referidos em 11), nos termos descritos em 32), 34) e 36) diminuíram o activo da insolvente para montante não concretamente apurado e que consta no ponto 46) (resposta ao ponto 9) dos factos provados).

46) As vendas dos estabelecimentos comerciais referidos em 11), nos termos descritos em 32), 34) e 36) retiraram à insolvente meios para pagar os créditos referidos em 41) (resposta ao ponto 10) da base instrutória).

47) Os factos descritos em 29), 32), 34) e 36) foram praticados por A... com consciência de que impediam que os credores da insolvente se fizessem pagar à custa do produto da venda dos estabelecimentos comerciais referidos em 11) e das mercadorias nos mesmos existentes (resposta ao ponto 11) da base instrutória).

48) A E..., SA, nem sempre teve a capacidade de fornecimento necessária e exigida pela C..., Lda, no âmbito do acordo descrito em 13) (ponto 17) da base instrutória).

49) A insolvente era cliente da C..., Lda (resposta ao ponto 19) da base instrutória).

50) A... assinou o acordo reproduzido em 19), porque a E..., SA exigiu que fosse prestada garantia do bom e integral cumprimento do acordo reproduzido em 17), porque o património oferecido pela C..., Lda., não foi aceite pela E..., SA e porque eram os mesmos os únicos sócios e gerentes da C..., Lda. e os da insolvente (pontos 22), 23) e 24) da base instrutória).

51) Mostra-se inscrita, na Conservatória do Registo Comercial da Covilhã, a sociedade C..., Lda, com o NIPC ..., desde 03-02-2009, tendo, inicialmente, como sócios Z..., B... e Y... e, como gerentes, os três sócios.

52) Pela apresentação 9/20091016, foi inscrita, no registo comercial, a renúncia à gerência, de Z... e B....

53) Pela apresentação 10/20091016, foi inscrita, no registo comercial, a alteração do contrato de sociedade, ficando a constar, como gerentes, da C..., Lda, B... e D....

54) Pela menção de depósito 1341/16-10-2009, foi inscrita, no registo comercial, a transmissão das quotas de Y... para B....

55) Pela menção de depósito 1342/16-10-2009, foi inscrita, no registo predial, a transmissão das quotas de Z... para D....

56) B... é filho de V... e de X... .

57) Mostra-se inscrita, na Conservatória do Registo Comercial de Manteigas, a sociedade T..., Lda, com o NIPC ..., desde 18-10-2010, tendo como sócios os pais de A... e como gerente apenas o pai.

58) O processo de insolvência já foi encerrado por insuficiência da massa insolvente.

59) O montante constante na contabilidade da devedora, indicado no ponto 40), não corresponde a empréstimos reais efectuados a favor de A....


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III – Fundamentação de Direito

Versam os presentes autos/incidente sobre a qualificação da insolvência da A..., Lda. como culposa (cfr. art. 185.º e ss. do CIRE).

A sentença recorrida, analisando os fundamentos expostos pelo Sr. Administrador, considerou o seguinte:

Quanto à alínea b) do art. 186º/2 do CIRE:

A aplicação deste preceito exige a verificação dos seguintes requisitos: em primeiro lugar, é necessário que o administrador de direito ou de facto tenha criado ou agravado artificialmente o passivo ou prejuízos ou reduzido lucros; em segundo lugar, a lei exige também que essa conduta do administrador de direito ou de facto tenha causado, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas.

A agravação artificial do passivo ou dos prejuízos pressupõe a criação de débitos e prejuízos para a insolvente que não correspondem a negócios ou interesses reais e efectivos.

No caso vertente, não há factos passíveis de se subsumirem aos requisitos enunciados.

Efectivamente, os únicos factos com algum potencial de subsunção à hipótese em análise reconduzir-se-iam à constituição de um penhor sobre os estabelecimentos comerciais da insolvente, como garantia do pagamento de um débito que a sociedade C..., Lda tinha para com a R..., S.A. e E..., S.A. (cfr. pontos 19) e 20) dos factos provados). Foi este acto que permitiu a penhora posterior dos estabelecimentos comerciais, no âmbito de uma acção executiva.

Contudo, a verdade é que o referido penhor não constitui a criação de passivo, pois não onera, de imediato, o património da insolvente.

Destarte, considera-se não se verificar a hipótese prevista no art. 186º/2, al b), do CIRE.

Quanto à alínea e) do art. 186º/2 do CIRE:

De acordo com este preceito, a insolvência deve ser qualificada como culposa quando o administrador de direito ou de facto tenha exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa.

Incluem-se neste normativo legal os casos que justificam a desconsideração da pessoa colectiva.

As sociedades comerciais têm personalidade jurídica. “Desta personalidade jurídica emerge a titularidade de direitos e obrigações autónomos e, inerentemente, além do mais, a distinção entre pessoas singulares que são, ao mesmo tempo, membros da pessoa colectiva e esta. Os direitos e obrigações duns não se confundem com os direitos e obrigações dos outros.”

Contudo, têm surgido, na prática, situações de confusão entre a esfera jurídica da pessoa colectiva e a esfera jurídica das pessoas singulares, membros daquela.

Devido a esta confusão, surgiu a figura da “desconsideração da personalidade colectiva”, que consiste no levantamento da personalidade colectiva.

No caso concreto, não há factos passíveis de se subsumirem a esta alínea, pois nada foi alegado, nem nada ficou demonstrado, no sentido de que a personalidade colectiva da devedora foi apenas um artifício para outra actividade desenvolvida em proveito pessoal de A... ou de terceiros e em prejuízo da insolvente.

Quanto à alínea a) do art. 186º/3 do CIRE:

Nos termos deste preceito, presume-se a existência de culpa grave quando o administrador, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenha incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.

De acordo com o art. 18º/1, do CIRE, em conjugação com o art. 3º/1, do mesmo diploma, o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, ou à data em que devesse conhecê-la.

A aplicação deste normativo legal exige a demonstração do início da situação de insolvência. Só com a determinação deste facto é que se poderá delimitar o prazo de que o devedor dispunha para cumprir o dever referido.

No caso concreto, não está demonstrado o momento em que teve início a situação de insolvência.

Efectivamente, no final do ano de 2009, a situação económica da insolvente era positiva e nada fazia prever a insolvência – cfr. pontos 9) e 10) dos factos provados.

A constituição do penhor dos estabelecimentos comerciais também não gerou a insolvência, pois, conforme já se referiu, trata-se de uma garantia e não de criação de passivo.

Por último, a venda de todos os estabelecimentos comerciais da devedora teve lugar em Outubro de 2010 e a insolvência foi instaurada no mesmo mês.

Em consequência, caso se considere que, pelo menos, no dia 18-10-2010 – data dos trespasse dos estabelecimentos comerciais à E... – a devedora já se encontrava insolvente, ainda estava em curso o prazo para se apresentar à insolvência.

Em face do exposto, considera-se não verificada a hipótese em análise.

Restou pois, para abranger/afectar o apelante – enquanto sócio-gerente da insolvente – na qualificação culposa, o ter este feito dos bens da devedora insolvente uso contrário aos interesses desta, para favorecer empresa na qual tinha interesse directo, e o não ser a contabilidade da devedora insolvente, do ano de 2010, transparente; com o que ficaram preenchidas, segundo a sentença recorrida, as alíneas f) e h) do art. 186.º/2 do CIRE.

Em face disto – tendo a sentença recorrida considerado que não se verificava alguma das restantes três alíneas analisadas – o apelante circunscreveu o seu labor recursivo a tais alínea f) e h) do art. 186.º/2.

Compreende-se, mas – é a observação preliminar que cumpre efectuar – o objecto do recurso não são apenas as alíneas f) e h) do art. 186.º/2 do CIRE; o objecto do recurso (e da divergência recursiva) é a qualificação da insolvência como culposa e a consequente afectação (nos termos do art. 189.º do CIRE) do apelante.

É isto que está aqui em causa e é disto que nos cumpre conhecer, confirmando ou revogando tal qualificação culposa da insolvência.

E para tal, para confirmar ou revogar tal qualificação culposa, podemos/devemos, em termos de direito, ir buscar regras diferentes das invocadas, atribuir às regras invocadas sentido diferente do que lhes foi dado ou fazer derivar das regras efeitos e consequências diversas das que foram tiradas (é o que resulta e está implícito no art. 664.º/1 do C. P. C.).

Não será, porém, o caso; concordamos – por razões semelhantes e que por isso nos dispensamos de aqui repetir – com a não verificação das alíneas b)[2] e e) do n.º 2 e a)[3] do n.º 3 do art. 186.º do CIRE.

Assim como – antecipando o desfecho do recurso – concordamos com a verificação da alínea f) do art. 186.º/2 do CIRE; mas já não concordamos com a verificação da alínea h) do art. 186.º/2 do CIRE, uma vez que entendemos que o que está factualmente reunido é a propósito desta alínea h) insuficiente.

Debrucemo-nos pois sobre estas duas alíneas:

Começando pela alínea h) do art. 186.º/2 do CIRE:

Os comerciantes (e uma sociedade por quotas é comerciante – cfr. art. 13.º-2.º do C. Comercial) estão, desde “sempre”, atenta a especificidade da sua actividade e do seu regime legal, sujeitos a um conjunto de obrigações; designadamente, estão obrigados a ter escrituração comercial, a dar balanço e a prestar contas (cfr. art. 18.º do C. Comercial).

Efectivamente, faz parte da gestão saudável duma actividade económica (como é o caso duma sociedade), que se quer e pretende organizada, o registo constante e integral do exercício respectivo e de periódicos acertamentos da sua situação financeira; por outro lado, destinando-se a sociedade a realizar lucros para se repartirem entre os sócios (art. 980.º C. Civil), há toda a conveniência em proporcionar a possibilidade da distribuição periódica de lucros; e como também há interesses de terceiros – dos credores da sociedade e o interesse tributário do Estado – tudo conflui para uma exigência de acertamento periódico da situação financeira da sociedade.

Daí a exigência de escrituração mercantil, que é o registo dos factos que podem influir nas operações e na situação patrimonial dos comerciantes; cuja obrigatoriedade também decorre dos art. 29.º e 40.º, n.º 1, do C. Comercial e que constitui um meio de verificação da regularidade da conduta do comerciante (v. g. no caso de insolvência e em todos os casos em que isso estiver em causa) e que serve de base à liquidação de impostos e à fiscalização do cumprimento das normas tributárias. Escrituração que não se confunde – não é a mesma coisa – com a sua contabilidade, que é a compilação, registo, análise e apresentação, em termos de valores pecuniários, das operações comerciais.

Daí também o disposto no art. 62.º do C. Comercial, segundo o qual “todo o comerciante é obrigado a dar balanço anual ao seu activo e passivo nos 3 primeiros meses do ano imediato e lançá-lo no livro de inventário e balanços, assinando-o devidamente”. Balanço que constitui a síntese da situação patrimonial do comerciante em determinado momento, através da indicação abreviada dos elementos do activo, do passivo e da situação líquida e respectivos valores. Para o que, em face da crescente complexidade dos exercícios sociais (e a necessidade de ajustamento às directivas comunitárias), foram sendo desenvolvidas normas tendentes ao apuramento técnico e à obtenção de um maior grau de rigor na demonstração dos resultados, normas essas que, no passado recente, integravam o chamado POC[4]; que desdobrava a demonstração financeira em 3 peças que acompanham o relatório de gestão[5], a saber: o balanço, a demonstração dos resultados e o anexo ao balanço e à demonstração dos resultados.

É pois essencial que a sociedade – além da exigência da escrituração organizada – faça o “ponto de situação” anual, cumpra a sua obrigação de dar balanço e prestar contas – cfr. arts. 18.º, n.º 4, e 62.º do C. Comercial[6].

É neste ambiente legal – de escrituração, contabilidade e contas devidamente organizadas – que se insere o dever legal de apresentação à insolvência, corolário lógico duma actividade que se quer organizada e que se destina a gerar lucros; com o que também se visa – tanto mais que o CIRE se dirige abertamente à protecção dos credores – evitar o agravamento de situações que podem prejudicar gravemente os credores.

E é ainda neste ambiente legal que se insere o art. 186º/2, al. h), do CIRE, segundo o qual constitui fundamento de qualificação da insolvência o incumprimento, “em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, a manutenção de uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

Alínea que estabelece como presunção inilidível (iuris et de iure) duma insolvência culposa não todo e qualquer incumprimento, não toda e qualquer irregularidade contabilística, mas sim o incumprimento “em termos substanciais” da obrigação de manter uma contabilidade organizada e fiel da situação patrimonial e financeira da empresa.

Ou seja, para tal alínea estar preenchida, tem que se estar perante uma irregularidade com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas, e tem, simultaneamente, que ser uma irregularidade com influência na percepção que uma contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado.

Configurará por certo tal presunção inilidível uma contabilidade cuja organização fuja às regras do SNC em vigor, que não contenha os documentos de prestação de contas exigíveis, que esteja engenhosamente feita por forma a esconder/mascarar/disfarçar a realidade financeira e patrimonial da empresa contabilizada.

Ora, não é isto, salvo o devido respeito, que a fundamentação factual retrata; ainda que num limiar mínimo.

Sustentou-se, na sentença recorrida, que “não se demonstrou que não foram registados (na contabilidade da devedora) os fluxos financeiros dos negócios celebrados com a G..., Lda, com S... e com a T..., Lda.”; porém, deu-se como preenchida a alínea h) em análise por ter ficado “provado que o valor do activo líquido existente, na contabilidade da devedora, corresponde ao montante inscrito numa conta que representa empréstimos concedidos pela insolvente a B...”, sendo que tal montante não correspondeu a empréstimos reais, o que significa que a contabilidade da devedora apresenta um crédito que não existe, “irregularidade que compromete os objectivos pretendidos através da contabilidade organizada, pois trata-se de um valor do activo bastante elevado (€ 762.353,00), que compromete, entre o mais, o interesse geral do público, na medida em que este movimento contabilístico impede, em absoluto, que a contabilidade da devedora seja bastante, só por si, para reconstituir a sua vida mercantil.”

O que se refere é no essencial extraído do Balancete de Novembro de 2010 da devedora insolvente (em que consta um crédito da insolvente sobre os accionistas de € 635.366,24); isto é, não é nada que esteja oculto/escondido/disfarçado/camuflado.

A circunstância de nada estar oculto/dissimulado não quer dizer que espelhe com rigor e fidelidade – bem o sabemos – a situação patrimonial e financeira da empresa; mas as inexactidões, existindo, têm que exprimir uma infidelidade para o resultado patrimonial e financeiro da empresa.

O que, com o devido respeito, não será o caso.

Em Novembro de 2010, já a devedora insolvente havia “pago” a dívida da C... à E... (a que se refere a execução identificada no facto 22), pelo que passou a ter no seu activo o crédito em que ficou “sub-rogada”; que, porém – é o que se conclui – terá sido, em termos contabilísticos, mal qualificado, a ponto de não aparecer (tal crédito sobre a C...) no Balancete de Novembro de 2010, aparecendo, em vez dele, um crédito da devedora insolvente sobre os accionistas de € 635.366,24; todavia, sendo bem qualificado, conduziria, em termos substantivos, ao mesmo resultado/situação patrimonial e financeira da empresa.

Ou seja, tal crédito podia/devia integrar a activo líquido; embora quem devia figurar como devedor fosse outra entidade (não os accionistas, mas a C...).

Enfim, os elementos extraídos do Balancete não constituem, no detalhe, um espelho exacto; todavia – conhecendo-se a irregularidade – não podemos afirmar que a mesma é relevante, substantiva e susceptível de impedir a apreensão e compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora insolvente[7].

Mais uma vez se concorda pois com Catarina Serra[8], quando a mesma refere que as alíneas a) a g) do 188.º/2 correspondem a presunções (absolutas) de insolvência culposa, enquanto as alíneas h) e i) mais parecem ser ficções legais – dado que a factualidade descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, que é, a par da culpa (dolo ou culpa grave), o requisito fundamental da insolvência culposa segundo a cláusula geral do n.º 1.

“Melhor seria, por isso, que o legislador tivesse integrado as duas últimas alíneas do n.º 2 na norma do n.º 3: continuar-se-ia a penalizar (a onerar com uma presunção), como parece ter sido intenção, o sujeito que viola deveres jurídicos, mas ser-lhe-ia concedida, como é de elementar justiça, a possibilidade de ele se defender mostrando que a sua conduta, apesar de ilícita – e porventura culposa – não causou a insolvência, não sendo, portanto, adequado que se produzam os efeitos concebidos para as situações de insolvência culposa (ou de culpa na insolvência)[9].

Enfim, em rigor, não está estabelecido – e nem parece que seja esse o caso – que foram feitos constar no activo do balanço mais créditos que aqueles que a devedora insolvente detinha (terá havido erro, isso sim, na identificação do devedor); não está estabelecido qualquer nexo entre a irregularidade contabilística e a incompreensão da situação patrimonial e financeira da devedora insolvente.

Não é o que vimos de dizer, todavia, relevante e decisivo; uma vez que, como também já referimos, entendemos ser de manter a qualificação da insolvência, como culposa, com fundamento no art. 186.º/2 f) do CIRE.

Passemos pois à alínea f) do art. 186º/2 do CIRE:

De acordo com tal alínea, a insolvência deverá ser qualificada de culposa quando o administrador de direito ou de facto tenha “feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenha interesse directo ou indirecto

Apreciando o preenchimento de tal alínea sob o “foco” do art. 6º do CSC, a sentença recorrida considerou, em síntese, que a circunstância da devedora insolvente ter prestado uma garantia real (penhor) a outra sociedade é suficiente para se concluir que a mesma fez dos seus bens um uso contrário ao seu interesse; uma vez que as ressalvas consagradas na segunda parte do art. 6º/3 do CSC são do ónus probatório do oponente (e aqui apelante) – visto que se trata de um facto impeditivo da 1.ª parte do art. 6.º/3 do CSC (cfr. art. 342º/2, do CC).

Tendo observado, em jeito conclusivo, que “as razões expostas são suficientes para se concluir que a constituição do penhor foi contrária aos interesses da devedora e favoreceu uma empresa na qual A... tinha interesse directo, por ser sócio e gerente da mesma” (…) “todo o exposto, significa que a constituição do penhor a favor da C..., Lda, efectuada por A... em representação da devedora, preenche a hipótese prevista no art. 186º/2, al f), do CIRE” “para além deste fundamento de qualificação, considera-se também que os negócios jurídicos descritos nos pontos 32), 34) e 36) dos factos provados integram também a hipótese prevista no art. 186º/2, al f), do CIRE.”

Concorda-se totalmente e vai-se mesmo um pouco mais longe.

Tendo os factos a exacta configuração jurídica referida na sentença recorrida, não se alcança um motivo razoável para que o processo de insolvência haja sido encerrado por insuficiência da massa (cfr. facto 58).

É o próprio administrador da insolvência – no seu parecer do art. 188.º/2 do CIRE – que diz e invoca que foram feitos acordos de pagamento de dívidas (duma outra sociedade – a C..., Lda.) e de transmissão de todos os estabelecimentos comerciais da devedora que deram causa à insolvência, representando os mesmos um actuação contrária aos interesses da insolvente e dos seus credores e favorecendo outras empresas nas quais havia interesse directo ou indirecto dos sócios da insolvente; ou seja, é o próprio administrador da insolvência que “denuncia” a ocorrência dum conjunto de actos nulos e/ou resolúveis (cfr. art. 120.º e ss. do CIRE) em benefício da massa, que tornam pouco explicável, a nosso ver e com o devido respeito, o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa.

Em face do que o próprio administrador da insolvência invoca – dirigindo-se o CIRE, como já se referiu, à protecção dos credores – não se percebe como o administrador da insolvência e os credores se tenham conformado com actos que frustram de todo a satisfação dos débitos da insolvente; não se percebe que não tenham suscitado a sua invalidade e/ou ineficácia stricto sensu, fazendo voltar à massa bens de valor significativo[10].

Expliquemo-nos:

A devedora/insolvente é uma sociedade comercial por quotas.

As sociedades comerciais, é sabido, gozam de personalidade jurídica, tanto em relação a terceiros como em relação aos próprios sócios; é o que resulta do art. 5.º do CSC, segundo o qual “as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem”. E, constituídas, têm uma “automática” capacidade de gozo, que “compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim” (cfr. art. 6.º/1 do CSC).

O que significa – como resulta da transcrição acabada de fazer do art. 6.º/1 do CSC – que a capacidade de gozo das sociedades comerciais permite contrair/assumir direitos e obrigações directa e imediatamente associados à prossecução do respectivo fim; bem como permite contrair/assumir os direitos e obrigações que para isso se possam revelem convenientes.

Alargamento este – sob o signo da “conveniência2 – da capacidade de gozo que não é ilimitado, tendo sempre como limite o fim/escopo que, segundo a lei, deve orientar a actuação duma qualquer estrutura societária; fim/escopo esse que é o lucro (cfr. art. 980.º do C. Civil).

Efectivamente, a atribuição de personalidade jurídica às sociedades comerciais e o regime que daí decorre trazem consequências para a posição dos terceiros, em particular dos credores, cujos interesses serão em certa medida protegidos com a limitação da capacidade de gozo da sociedade através do fim lucrativo.

Daí o que no art. 6.º/2 do CSC se estabeleça que as liberalidades – sem as encarar como algo sempre incompatível com o fim/lucro (e admitindo que, por vezes, possam ter interesse para a sociedade) – podem ser concedidas com duas condições: serem consideradas usuais quer segundo as circunstâncias da época quer segundo as condições da própria sociedade.

Daí o que no art. 6.º/3 do CSC se disponha, como regra, sobre a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, que tais actos devem ser considerados como contrários ao fim da sociedade.

Entendendo-se que a sanção para tais actos – como para quaisquer actos (praticados em nome da sociedade) que não sejam nem necessários nem convenientes ao fim lucrativo da sociedade – é a sua nulidade[11] por violação de norma imperativa (cfr. 294.º do CC).

Nulidade esta, do acto contrário ao fim da sociedade, que não está sequer dependente da boa ou má fé de terceiro; uma vez que – também se entende – não se justifica proteger os credores desse terceiro/devedor ao mesmo tempo que, com a validade do acto, se menosprezariam os credores da sociedade garante.

Regra esta, da 1.ª parte do art. 6.º/3 do CSC, que admite explícitas ressalvas na sua 2.ª parte, ao admitir que a prestação de garantias a dívidas de outras entidades não será contrária ao fim da sociedade[12] se existir justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação dessa garantia ou se existir uma relação de domínio ou de grupo entre a sociedade garante e a sociedade cuja dívida é garantida.

Primeira ressalva/excepção que nos conduz para a existência duma relação entre a prestação da garantia e o interesse social; não bastando, evidentemente, para a mesma ser dada como verificada, a sua alegação, antes tendo que ser concretizadas/justificadas as vantagens que se retiram da prestação da garantia; ou seja, quem tem o ónus de alegar e provar aquela relação/interesse é quem afirma/defende a validade da garantia.

O que implicitamente também significa, para a garantia ser considerada nula, que basta que não se prove que existe esse justificado interesse próprio da sociedade garante; não sendo necessário que o terceiro soubesse ou não pudesse ignorar que esse justificado interesse próprio não existia[13].

Segunda excepção/ressalva que tem a ver com as sociedades em relação de domínio ou de grupo – com o sentido e nos termos configurados nos art. 483.º a 485.º do CSC.

O que significa que não estamos perante sociedades coligadas se a sociedade devedora e a sociedade garante apenas têm entre si uma relação de simples participação ou uma relação de participações recíprocas, nos termos configurados nos art. 483.º e 485.º; que a relação de domínio existe, como se conclui do art. 486.º, quando uma das sociedades pode exercer sobre a outra a influência dominante, influência que pode ser exercida directa ou indirectamente – por força da sociedade ou pessoas que preencham os requisitos indicados no art. 483.º, n.º 2; e que existe um grupo de sociedades quando se constitui uma situação de domínio total inicial ou superveniente (cfr. arts. 488.º e 489.º), quando é celebrado um contrato de grupo paritário (cfr. art. 492.º) ou um contrato de subordinação (cfr. art. 493.º)

Enfim – é o que importa salientar e reter – não se provando que existe justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação dessa garantia ou não se provando que existe uma relação de domínio ou de grupo entre a sociedade garante e a sociedade cuja dívida é garantida, a garantia gratuitamente prestada será nula ainda que o terceiro esteja de boa fé na altura em que aquela foi prestada.

“Justificado interesse” e/ou “relação de domínio ou grupo” cujo ónus de alegação e prova é de quem afirma/defende a validade da garantia; o que significa, para a garantia ser considerada nula, que basta que não se prove que existe esse “justificado interesse” e/ou “relação de domínio ou grupo”[14].

Isto explicitado, revertendo ao caso dos autos, além de não se provar tal “justificado interesse” e/ou “relação de domínio ou grupo”, temos que de imediato se extrai que o penhor, o acordo de pagamento (referido em 25) e as vendas/trespasses (referidas em 32) que se lhe seguiram configuram actuações contrárias ao interesse da devedora insolvente, em proveito de terceiros, favorecendo outra empresa na qual os sócios da devedora insolvente têm interesse directo; o que preenche por inteiro a alínea f) do art. 186º/2 do CIRE:

Retratam os factos, entre outras coisas, o seguinte:

Em 31/12/2009, a insolvente era dona de 7 estabelecimentos comerciais (identificados no facto 11);

Em 11/02/2010, a insolvente deu em penhor à R...e à E... tais 7 estabelecimentos (facto 19) até ao total cumprimento do acordo de pagamento, referido no facto 17, assumido pela C... – sociedade com os mesmos sócios da devedora insolvente – e no montante global de cerca de 590 mil euros;

A R...e a E... executaram, na Vara Mista de Setúbal, tal acordo de pagamento e penhor (cfr. facto 22);

Em 06/09/2010, fizeram em tal execução um acordo de pagamento, em que a aqui insolvente se confessou devedora do montante de € 552.704,70 e se comprometeu a pagá-lo em quarenta prestações semanais e sucessivas, acordando que seriam efectuadas penhoras sem remoção – o que aconteceu – dos seus 7 estabelecimentos comerciais (cfr. facto 25);

Em 18/10/2010, em termos práticos e úteis, a devedora insolvente transmitiu/trespassou 4 dos seus 7 estabelecimentos para a G..., Lda. e esta assumiu/pagou a dívida executada às ali exequentes e entregou, ainda, à devedora insolvente € 131.991,27 (cfr. factos 29 a 32);

Para justificar este acto, alegou o aqui apelante:

-que constitui ou adquiriu, além da sociedade insolvente, as seguintes outras empresas: I..., Lda; J..., Lda; L..., Lda; C..., Lda; M.., Lda;

-que requereu, ao Registo Nacional de Pessoas Colectivas, a aprovação da firma N..., Lda, o que veio a suceder, em que todas aquelas sociedades seriam participadas desta;

-que era no Cash and Carry explorado pela C..., Lda. que a devedora insolvente adquiria, em melhores condições do que noutros fornecedores, os produtos que depois distribuía pelos seus estabelecimentos comerciais para posterior revenda ao consumidor final.

-que o património oferecido pela C..., Lda. não foi aceite pela E..., SA;

-que o grupo económico N... tinha interesse sério, relevante e justificado em manter o estabelecimento da C...;

-que a dívida à E..., SA resultava também da existência de saldos devedores da insolvente à V.M. Lda..

Que dizer?

Como pertinentemente se observa na sentença recorrida, “independentemente dos factos provados e não provados, verifica-se, deste logo, perante a factualidade alegada, que não existe qualquer relação de domínio ou grupo entre a mesma e a C..., Lda.”.

No que respeita à N..., apenas se alegou a aprovação da firma, acto prévio necessário para a constituição da sociedade, mas não se alegou a celebração do contrato de sociedade, nem o registo dessa sociedade comercial, elementos necessários para adquirir personalidade jurídica; em consequência, não existe juridicamente um grupo “ N...” e não estamos perante o conceito jurídico de sociedades coligadas.

Também não integra os conceitos legais de relação de domínio ou de grupo o facto das duas sociedades – C..., Lda. e a devedora insolvente – serem constituídas pelos mesmos sócios e gerentes.

Tratando-se de sociedades por quotas, essa influência apenas poderia ter fundamento legal se as próprias sociedades tivessem uma qualquer participação uma na outra que lhes permitisse influenciar os destinos da outra; o que não é o caso.

Também não existe uma relação de grupo por domínio total inicial, uma vez que não estamos perante sociedades anónimas; o que afasta igualmente a possibilidade de se tratar de uma relação de domínio total superveniente.

Por último, nada foi alegado/invocado que permite identificar, no caso, um contrato de grupo paritário ou de subordinação.

Afastada a existência de uma relação de grupo ou de domínio, também os factos alegados não permitem a verificação da primeira hipótese/ressalva consagrada no art. 6º/3, 2ª parte, do CSC – o “justificado interesse próprio da sociedade garante”.

A alegação da devedora ser cliente da C..., Lda. e adquirir, em melhores condições do que noutros fornecedores, os produtos que depois distribuía pelos seus estabelecimentos comerciais para posterior revenda ao consumidor final e a alegação de uma parte da dívida da C..., Lda incluir a própria dívida da devedora em relação à C..., Lda, são, pela sua generalidade, insuficientes para corporizar um justificado interesse próprio da sociedade garante.

Efectivamente, não se concretizou o que eram as “melhores condições” de aquisição; não se indicou o valor concreto da dívida da devedora para com a C..., Lda. e, sem estes concretos factos, não se pode aspirar a “justificar” que fosse vantajoso para a devedora garantir a dívida da C..., Lda..

O que os factos acima sintetizados impõem que se conclua é, no mínimo, que a devedora favoreceu uma empresa na qual os seus sócios tinham interesse directo; e que a constituição do penhor[15], o acordo de pagamento (referido em 25) e as vendas/trespasses (referidas em 32) que se lhe seguiram foram contrários aos interesses da devedora insolvente.

Ademais, os restantes factos também apontam no mesmo sentido, de ter sido feito dos bens da devedora insolvente um uso contrário aos seus interesses, em proveito de terceiros.

Repare-se no seguinte:

Em 15-10-2010 – isto é, 3 dias antes do negócio que envolveu a G... – a devedora “trespassou” 1 estabelecimento a S.... e 2 estabelecimentos à sociedade T... , Lda., constituída três dias depois (cfr. facto 57), cujos sócios são os pais do aqui apelante (cfr. factos 34) e 36).

Ou seja, numa “vertigem” negocial de não mais de 72 horas (entre 15 e 18/10/2010), desfez-se a insolvente da totalidade dos seus 7 estabelecimentos, substituindo no activo do balanço tais valores tangíveis por, em rigor e boa verdade, coisa nenhuma palpável; conclusão esta que, só por si, é mais do que suficiente para consubstanciar o preenchimento da alínea f) em análise.

Tanto mais que, ao desfazer-se da totalidade dos seus estabelecimentos comerciais, ficou impossibilitada de realizar o seu objecto social, vindo logo a seguir, em 23/11/2010, a ser declarada insolvente, sem qualquer património susceptível de servir de garantia patrimonial aos seus credores – cujos créditos atingem o montante total de € 1.247.004,40 (cfr. facto 41).

É por tudo isto que o mínimo que se pode dizer é que não se compreende o comportamento da devedora insolvente, satisfazendo (em cerca de 550 mil euros) a dívida de outra entidade, “preocupando-se” com os credores de terceiros, mas deixando os seus próprios credores de “mãos a abanar”.

Até porque, para além desta “liberalidade” de cerca de 550 mil contos (decorrente do “corte” de 4 estabelecimentos ao seu activo), foi também efectuado, como bem se observa na sentença recorrida, o trespasse de mais 2 estabelecimentos à T..., Lda., cujos “sócios são os pais do aqui apelante (…) relação que é suficiente para afirmar a existência de um interesse indirecto, pois o aqui apelante é herdeiro legitimário dos sócios da T..., Lda, tendo uma expectativa de aquisição das quotas tituladas pelos pais.”; tudo, como se sublinhou, numa acelerada “vertigem” temporal – como os factos 17 a 37 e 57 deste acórdão o retratam.

É por tudo isto que sobram razões para considerar verificada a hipótese prevista no alínea f) do art. 186º/2 do CIRE.

E é ainda por tudo isto – e terminamos como começámos a análise da presente alínea – tendo as coisas os contornos fácticos e jurídicos que acabámos de traçar, que não compreendemos o desfecho/encerramento da insolvência por insuficiência da massa (cfr. facto 58).

A “mera” qualificação da insolvência como culposa, tendo presente os comprovados actos contrários ao interesse da devedora insolvente, representa, do ponto de vista do interesse dos credores, um final bastante incompleto e imperfeito; uma vez que, insiste-se, tais actos violam a 1.ª parte do art. 6.º/3 do CSC[16] sendo nessa medida nulos (cfr. art. 294.º do CC) e, além disso, também indiciam poder estar incursos na previsão dos art. 113.º e ss do CIRE.


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Enfim, tudo razões que conduzem à improcedência de tudo o que o apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o completo naufrágio da apelação e a confirmação do sentenciado na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.

Efectivamente, quanto à capacidade de exercício, não sendo as sociedades comerciais pessoas físicas, necessitam de quem as represente, isto é, de alguém que pratique actos que, mediante certo condicionalismo, produzam efeitos na esfera jurídica da sociedade, de alguém que intervenha por elas e no seu interesse, formando e manifestando a vontade social.

Formação e manifestação da vontade social que cabe, nas sociedades por quotas, quanto à administração e representação, à gerência nos termos do art. 252.º, n.º 1, do CSC; sendo os gerentes designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios – cfr. 252.º, n.º 2, do CSC.

Gerentes que têm poderes e competência para praticar todos os actos – de administração e de disposição – pertinentes à realização do escopo social (cfr. 259.º do CSC); que dispõem duma competência genérica e indefinida para realizar todas as operações sociais, só não podendo praticar os actos que a lei ou o contrato social reservam à competência de outros órgãos (assembleia-geral ou ao órgão fiscalizador).

Vale isto para dizer e explicar que, sendo assim, a qualificação, como culposa, da insolvência duma sociedade por quotas tem necessariamente que afectar e que se reflectir sobre as pessoas que constituem o órgão que forma e manifesta a sua vontade[17]; sobre as pessoas – enquanto elementos e “partes componentes” da sociedade – que conceberam e praticaram os actos de administração e de disposição que conduziram à situação de insolvência culposa, o mesmo é dizer, os gerentes designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios.

É justamente o caso do aqui apelante, sócio-gerente da devedora insolvente nos últimos 3 anos; a quem a sentença recorrida, nos termos do art. 189.º/2 c) do CIRE, inibiu para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial, pelo período de 5 anos.

Concorda-se totalmente; resulta de tudo o que supra se referiu (e que aqui nos dispensamos de repetir) que a conduta do apelante A...[18] foi bastante grave, pelo que, atenta a “moldura” da inibição (entre 2 e 10 anos), não peca certamente por excesso, embora seja a primeira inibição que sofre, o lapso temporal fixado à inibição que lhe foi decretada.


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Em conclusão, a apelação improcede

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IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.


Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Ao arrepio do disposto no art. 685.º-A do CPC em que se diz que o recorrente “ (…) conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”. Deficiência que, é verdade, dá lugar a convite a aperfeiçoamento (cfr. art. 685.º-A/3, do CPC), mas que não conduzindo, em boa verdade, a uma imediata e efectiva sanção processual – razão pela qual já “desistimos” do convite ao aperfeiçoamento – leva a que, hoje em dia, rara seja a alegação cujas conclusões não se apresentem como um ostensivo exercício de indiferença pela referida “forma sintética” imposta pela lei.

[2] Sem prejuízo de se observar que, no caso, os “negócios ruinosos” da insolvente – como, principalmente, o liquidar uma dívida alheia de cerca de € 590 mil euros – caiem mais claramente na alínea f), razão porque também “preterimos” o preenchimento desta alínea b).
[3] Sem prejuízo de se propender para considerar, com Catarina Serra, in Novo Regime Jurídico da Insolvência, pág. 122 (e notas contendo abundante jurisprudência num e noutro sentido), que o art. 186.º/3 consagra não meras presunções (relativas) de culpa grave, mas autênticas presunções (relativas) de insolvência culposa; o que – entendimento do art. 186.º/3 como consagrando apenas uma presunção de culpa grave (como se faz na sentença recorrida e é maioritariamente defendido - cfr. Carvalho Fernandes, João Labareda, Raposo Subtil e Menezes Leitão), mas não também uma presunção de causalidade da conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração, nos termos do art. 186.º, n.º 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta – não conduz, no caso, a uma solução diferente daquela a que se chegaria pelo entendimento para que propendemos.
[4] Entretanto revogado/substituído pelo Sistema de Normalização Contabilística – DL 158/2009, de 13-07; ao caso não aplicável uma vez que a insolvência foi decretada em 2008.

[5] Relatório de gestão – art. 66.º, n.º 1, do CSC – assinado por todos os administradores, gerentes e directores, devendo constitui “uma exposição fiel e clara sobre a evolução dos negócios e a situação da sociedade”.

[6] No termo de cada exercício, o membro ou membros do órgão de administração devem elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, as contas de exercício e os demais documentos de prestação de contas previstas na lei (cfr. art. 65.º do CSC); e no tocante às sociedades por quotas – resulta do art. 263.º, n.º 3, do CSC – deverão ser elaboradas, pelo menos, “o relatório de gestão, as contas e a proposta sobre a aplicação de lucros e tratamento de perdas”.

[7] Quem, minimamente familiarizado com balanços e balancetes e minimamente expedido nas ilações que, a partir deles, é mister retirar quanto à situação patrimonial e financeira que os mesmos procuram espelhar, não podia deixar de ficar perplexo com os € 762.353,00 que a contabilidade dizia terem sido emprestados pela insolvente aos sócios.
[8] Obra e local citados.

[9] Catarina Serra, o Novo Regime Português da Insolvência (4.ª ed.), pág. 122/123.

[10] A devedora foi declarada insolvente, o seu sócio gerente será afectado pela qualificação da insolvência como culposa e inibido do comércio durante 5 anos, mas, em termos úteis e práticos, o mais relevante continua, a nosso ver e com o devido respeito, por cumprir.
[11] Sustenta-se que o regime previsto nos art. 260.º/2 e 409.º/2 do CSC não pode ser aqui invocado; para o que se argumenta que a capacidade de gozo das sociedades comerciais é limitada pelo respectivo fim, pelo que não se poderá dizer que a lei atribui poderes aos órgãos sociais das sociedades comerciais para a prática de actos que não respeitam sequer o fim social – cfr. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II, pág. 188/9

[12] Assim como poderá não ser quando a prestação de garantias for remunerada, ou seja, a regra/nulidade vale para a hipótese comum e normal, como é o caso dos autos, da garantia a título gratuito.

[13] Na generalidade dos casos, entende-se, nenhuma expectativa de terceiros existe que deva ser tutelada; os terceiros estão obrigados a conhecer a lei e os limites que esta fixa para a capacidade das sociedades comerciais, estão obrigados a saber que as sociedades existem para buscar o lucro (e não para conceder garantias gratuitas a terceiros).
[14] A propósito da interpretação do art. 6.º do CSC, ver, entre outros, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II, pág. 184 e ss.; e Comentário ao CSC do IDET, pág. 108 e ss.

[15] Invocou o apelante, a determinada altura da sua alegação, a invalidade do penhor dos 7 estabelecimentos por não se haver operado a respectiva tradição nos termos do art. 669.º/1 do CC.

Para além de estarmos perante um penhor mercantil, para o qual a lei comercial consagrou a relevância da entrega meramente simbólica (art. 398.º do C. Comercial – cfr. v. g. Garantias de Cumprimento, Pedro Martinez, pág. 69 ou Os contratos no C. Comercial, Engrácia Antunes, pág. 371 e ss.), dá-se o caso – nada irrelevante, salienta-se – de as coisas não se terem ficado pela garantia/penhor, uma vez que a seguir, “obedecendo” à garantia, a devedora insolvente assumiu o acordo de pagamento do facto 25 e “trespassou” 4 estabelecimentos, deixando, em tais “trespasses”, de receber o montante de € 526.335,50.
[16] Em face do que está provado violam claramente; sem prejuízo, evidentemente, desta ter sido uma apreciação “interlocutória” que não vincula, que está fora e para além do objecto dos presentes autos e recurso e para a qual não estão e/ou foram ouvidas (nem tinham que ser, em face do thema decidendum) todas as partes com legitimidade para se lhe opor (não se ignorando que, no meio processual próprio, um real e efectivo contraditório entre todas as partes legítimas, pode trazer novas e diferentes perspectivas factuais).
[17] Como é evidente, se afectasse apenas o ente jurídico autónomo, seria bastante inócuo.
[18] Que, como resulta dos factos 14, 16, 18, 20, 24, 26, 30, 33, 35 e 37, sempre representou a insolvente nos inúmeros actos contrários ao seu interesse.