Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
571/10.3TACVL–A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CALVÁRIO ANTUNES
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
FALTA DA INDICAÇÃO DAS DISPOSIÇÕES LEGAIS APLICÁVEIS
ELEMENTO SUBJETIVO
Data do Acordão: 05/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283º, 285º E 311º CPP
Sumário: 1.- Sendo a acusação particular omissa quanto à indicação das disposições legais aplicáveis não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção da mesma;

2. Não constando da referida acusação as disposições legais aplicáveis bem como os factos integradores do tipo subjetivo, deve ser rejeitada por manifestamente infundada.

Decisão Texto Integral: I. Relatório:
I.1. No âmbito do inquérito que correu termos nos Serviços do M.P., junto Tribunal Judicial da Covilhã, foi proferida a decisão de fls. 9/10, onde foi decidido (no dia 6/6/2011) receber a acusação particular de fls 81, com a correcção de fls 121, bem como o pedido cível de fls 82.
***

I.2. Discordando de tal, vieram os arguidos, A..., B... e C..., recorrer daquele despacho, formulando na respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

I - Sustenta o Mmo Juiz a quo no despacho recorrido que a falta de indicação das disposições legais aplicáveis ao crime de injúria não impede a admissão da acusação particular, assim julgando-a admissível;
II - A alínea c) do artigo 311° nº 3 estabelece a obrigatoriedade de, na acusação, independentemente da eventual referência ao nome do crime imputado ao arguido, se fazer de forma expressa, a indicação da respectiva norma incriminadora, sob pena de não se ter por preenchido aquele requisito legal.
III - O nosso sistema criminal tem estrutura acusatória, o que se traduz numa clara separação entre os os órgãos de acusação e de julgamento, sendo que é na acusação, seja pública ou particular, que se mostra definido o objecto o processo a ser submetido ao Juiz do julgamento, o qual compreende não só os factos como também a qualificação jurídica.
IV -Em nosso entender, não é de todo admissível ao Juiz convidar ao aperfeiçoamento ou correcção de uma acusação formal ou substancialmente deficiente, para de seguida admitir a sua rectificação por considerar patente a existência de um lapso de escrita;
V - Para se aferir da existência de um lapso de escrita, passível de ser rectificado, seria necessário depreender do próprio contexto da acusação particular que se escreveu coisa diferente do que se queria escrever, e não, como resulta evidente daquela, quando nada se escreveu a propósito das normas incriminadoras, as quais nem sequer estão identificadas;
VI - Impunha-se assim a rejeição da acusação por manifestamente infundada;
VII - De acordo com o que estatui a alínea d) do artigo 311 nº3 do C.P.P., também deveria ter sido rejeitada a acusação particular, por clara omissão do elemento subjectivo do crime de injúria;
VIII - Na verdade, a acusação deve conter a descrição dos factos integradores dos elementos objectivos do crime e dos elementos subjectivos que justificam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança;
IX - Pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 1/06/2011, proferido no processo nº 150/10.5T3OVR.C1, disponível em ww.dgsi.pt que: " ... Num crime doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre ( ... ), deliberada( ... ) e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei( ... );

X - Na acusação particular deduzida nada se diz quanto à vontade e consciência dos arguidos de praticar um facto ou factos ilícitos, omitindo-se assim os elementos volitivo e intelectual do dolo, o qual não se presume;
XI - A acusação é assim totalmente omissa quanto à narração dos elementos subjectivos do crime, logo manifestamente infundada, sem quaisquer condições de viabilidade, pois, ainda que a materialidade objectiva que dela consta resultasse provada em julgamento, estaria vedado ao julgador considerá-la;
XII - O douto despacho recorrido violou, designadamente, o preceituado nos artigos 311° nº 2 e 3 e 312° do C.P.P.
Nestes termos, nos mais de direito aplicáveis e nos que doutamente vierem a ser supridos por V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso nos termos alegados supra, com as legais consequências.
JUSTIÇA !! ”

*
I.4. Cumprido o artº 411, nº 6 do C.P.P., relativamente à assistente e ao M.P., apenas veio o M.P., (fls. 33/43) apresentar a resposta, onde defende a procedência do recurso, na qual conclui que:

1. Nos presentes autos, foi recebida a acusação particular deduzida pela assistente por despacho judicial proferido nos termos do artigo 311.º do CPP.
2.Nessa acusação, a assistente apenas imputa aos arguidos crime de injúria sem qualquer referência ao artigo.
3. Pelo que, os arguidos vieram requerer que a mesma fosse rejeitada nos termos do artigo 311.°, nºs 2 al. a) e 3 al. c) do CPP, por manifestamente infundada dada a omissão de referência às disposições legislativas aplicáveis.
4.Notificada que foi desse requerimento dos arguidos, a assistente veio dizer que por mero lapso não se referiu ao artigo 181.° do CP já que se referiu ao tipo de crime como injúria.
5.Assim sendo, o Tribunal a quo considerou esse mero lapso e recebeu a acusação particular deduzida nestes autos.
6. No entanto, os arguidos não se conformaram com esse despacho de recebimento da acusação onde se decidiu que se admitia a rectificação da acusação deduzida nos presentes autos no sentido da imputação a cada um dos arguidos da autoria de um crime de injúria por:
a. Não ser possível ao juiz convidar a assistente a aperfeiçoar a acusação deduzida por tal conflituar com o princípio do acusatório,
b. Assim sendo, falta a referência à norma incriminadora do crime imputado aos arguidos integrando a previsão da alínea c) do n.º3 do artigo 311.° do CPP
c. Na acusação particular, não se conter qualquer referência ao elemento subjectivo do crime de injuria imputado aos arguidos.
7. Entendemos que assiste razão ao recorrente.
8. Propugnamos que o Tribunal a quo, no momento de recebimento da acusação particular, in casu, apenas podia ter proferido despacho e rejeição da acusação particular deduzida nestes autos.
9. Defendemos que o legislador não contempla nesta fase processual qualquer possibilidade do Tribunal fazer um convite ao assistente a completar a sua acusação por tal possibilidade não estar prevista no artigo 311.°, n.º 2 do CPP.
10. Mas apenas lhe restam duas hipóteses: aceitar a acusação em causa ou rejeitá-la, tendo sempre em conta os requisitos que lhe cumpre analisar nos termos das várias alíneas previstas no artigo 311.°, n.º 3 do CPP.
11. Nenhum outro despacho é legalmente admissível no momento de recebimento da acusação particular sob pena de ser posto em causa o princípio do acusatório do qual decorre que a acusação depois de deduzida não é passível de alteração a não ser na fase do julgamento onde será submetida ao contraditório, o que representa uma separação quem acusa e quem julga
12. A falta de referência ao tipo legal da injúria previsto n artigo 181.° do CP entendemos que não era suficiente para o Tribunal a quo considerar manifestamente infundada e recusar a acusação particular deduzida nestes autos já que apenas existe um tipo legal de crime de injúria.
13. A acusação particular deduzida nestes autos, padecendo apenas desta omissão, não deveria ser considerada como manifestamente infundada por não integrar o espírito da alínea c) do n.º 3 do artigo 311.° do CPP que está previsto apenas para aquelas situações em que não é de todo perceptível qual o crime que é imputado na acusação ao arguido.
14. Consideramos que o Tribunal a quo se deveria ter pronunciado relativamente ao recebimento da acusação sem ter notificado a assistente para se pronunciar sobre a nulidade invocada pelo recorrente.
15.Neste momento, o Tribunal a quo devia ter rejeitado acusação particular por esta não conter qualquer referência ao elemento subjectivo do crime de injúria imputado aos arguidos por na acusação apenas constarem os elementos objectivos deste tipo.
16.O crime de injúria é doloso por natureza não sendo suficiente para preencher o tipo subjectivo a mera referência às expressões ofensiva.
17.Por outro lado, ainda que no pedido de indemnização civil a assistente se refira a que os arguidos adoptaram uma conduta livre, consciente, ilícita e culposa, tal não basta para preencher o elemento subjectivo.
18.Esta referência ao elemento subjectivo é insuficiente para preencher o tipo da injúria, já que, ainda, que a acusação e o pedido cível sejam formulados numa só peça processual não se confundem, não podendo os factos alegados em sede do pedido de indemnização civil relevar em sede de acusação atendendo a que esse pedido se baseia na prática de um crime.
19.Da acusação particular pelo crime de injúria deverão constar os factos consubstanciadores do dolo porque não existem presunções de dolo, não sendo possível afirmar-se a sua existência simplesmente a partir dos factos objectivos imputados as arguidos.
20. Ao não descrever este elemento, a assistente não alegou factos na sua acusação susceptíveis de integrar qualquer crime, não permitindo, por isso, o recebimento da acusação particular nos termos do artigo 11.° do CPP.
21.A consequência legal para esta omissão de referência ao elemento subjectivo, no nosso entendimento apenas pode ser uma: rejeição de acusação particular nos termos do artigo 311.°, nºs 2 e 3 al. d) do CPP por tais factos não constituírem crime atendendo a que não estão preenchidos todos os elementos do mesmo, nomeadamente no que diz respeito ao elemento subjectivo.
Por todo o supra exposto, sem mais delongas por de desnecessárias, deve ser concedido provimento ao recurso dos arguidos, revogando-se o despacho de recebimento da acusação, substituindo-se por outro que rejeite a acusação particular deduzida pela assistente nos presentes autos por se considerar a mesma manifestamente infundada nos termos do artigo 311.°, nºs 2 al. a) e 3 al. d) do CPP, porquanto, não consta da acusação a imputação de todos os elementos típicos do crime de injúria, nos termos do artigo 181.º, n.º 1 do CP, aos arguidos, nomeadamente subjectivos.
Porém, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual
JUSTIÇA!”
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Após o recurso foi admitido (fls. 44).
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I.5. Nesta Relação, aquando da vista a que se reporta o art. 416.º do CPP, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, acompanhando o Digno Magistrado do M.ºP.º da 1.ª instância, emitiu o parecer de fls. 49, manifestando-se no sentido da procedência do recurso.
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I.6. Cumprido o artº 417.º, n.º 2 do CPP, ninguém veio dizer o que quer que fosse.
Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
II.1. Do objecto do recurso

Como resulta do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, de acordo com jurisprudência pacífica e com a doutrina, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, (vidé Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98).

Questão a decidir:
Apreciar da adequação ou não do despacho de recebimento da acusação ou se a mesma deveria ter sido rejeitada.

Para melhor compreendermos as razões da recorrente e do Ministério Publico vejamos o teor do despacho de recebimento da acusação (por transcrição):

“A assistente deduziu acusação particular e requereu o julgamento de D..., pela prática de um crime de injúria previsto(s) e punido(s) pela lei vigente.
O Ministério Público não acompanhou a acusação particular.
Os arguidos vieram, com fundamento no disposto no art.º 311/3/c do C. Processo Penal requerer a rejeição da acusação, por manifestamente infundada.

Notificada, a assistente veio a fls. 121 requerer a correcção da acusação, alegando ser claro que a falta de menção expressa das normas legais aplicáveis se deveu a mero lapso de escrita, não estando em nada prejudicada a defesa coma correcção requerida.

Apreciando e decidindo:
Dispõe o artigo 311/2/ a/3/ c do Cód. de Proc. Penal que o juiz deve rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; a acusação considera-se manifestamente infundada, se não indicar as disposições legais ou as provas que a fundamentam.
No caso dos autos, a assistente na acusação que deduziu, não indicou a disposição legal aplicável ao crime de injúria imputado aos arguidos.
Todavia, no momento do saneamento a que alude o art.º 311 do CP, convidada a pronunciar-se sobre a invocada omissão da norma legal aplicável a arguida veio, invocando a lapso de escrita, corrigir a acusação, no sentido de a mesma constar a imputação a cada um dos arguidos a autoria de um crime de injúria previsto e punido pelo art.º 181/1 do C.Penal.
O lapso de escrita (omissão) é patente lace à descrição das condutas vertida na acusação e à qualificação dos factos como de crime de injúria.
Assim e atento o disposto no art.º 249 do CC admito a rectificação da acusação nos termos apontados no requerimento de fls 121, improcedendo, assim, a requerida rejeição da acusação.
Assim, decidido:
Não existem excepções, nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
Recebe-se:
•A acusação particular de fls 81 com a correcção de fls 121 cujos termos aqui se dão por reproduzidos. (313 nº 1 al. a) do C. P. Penal).
•O pedido cível de fls 82;

Julgamento: 11 de Outubro de 2011, pelas 9,30 horas.

Notifique para os fins aludidos no art.º 155 do Código de Processo Civil aplicável ex vi do art.º .312 n.º4 do Código de Processo Penal.
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Em caso de adiamento, e atento o teor do art.º312 n.º 2 designo o próximo dia 13/10/11, pelas 9,30 horas.
Medida de coacção: O(s) arguido(s) aguardará(ão) os ulteriores termos do processo sujeito(s) a Termo de Identidade e Residência já prestado (s) nos autos .

Cumpra o disposto nos art.ºs 78, .313 n.º 2, 315 e 317 n.º 1 todos do C. P. Penal.

Covilhã, 6/6/201”
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II. Do recebimento, ou não, da acusação particular.

Face a tal, há agora que apurara se, caso concreto, assiste alguma razão à recorrente.
Vejamos.
No caso dos autos, o Ministério Público não deduziu acusação contra os arguidos, tendo a assistente, deduzido acusação particular contra os arguido acima identificados e cujo teor é o que consta de fls 81, que aqui damos por reproduzida.
A fls. 9/10 foi proferida a decisão de receber a acusação particular de fls 81, com a correcção de fls 121.
Discordando de tal decisão, vieram os arguidos recorrer da mesma, importando agora saber se a acusação particular deduzida a fls 81, deviria ter sido recebida, como foi ou se deveria ter sido rejeitada, por manifesta improcedência da mesma.
Nos termos do disposto no art.º 311°, n.º 2, al. a) do C.P.P., se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
A única questão a que importa dar resposta é, como resulta do exposto esta apenas: a acusação admitida pelo despacho ora sob censura satisfaz ou não os requisitos formais do artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, maxime das alíneas b) e c), do n.º 3 ?
Como é sabido, aplica-se à acusação particular a disciplina legal da acusação deduzida pelo Ministério Público, ex vi do n.º 3 do artigo 285º do CPP.
Dispõe o artigo 285º, n°1, do Cód. de Proc. Penal, que findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em dez dias, querendo, acusação particular.
A acusação deverá obedecer aos seguintes requisitos:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis. d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devem depor sobre os aspectos referidos no nº 2 do artº 128º, as quais não podem exceder o número de cinco;
e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
g) A data e assinatura.
A omissão na acusação de alguma dessas matérias contidas nas referidas alíneas é cominada com nulidade que, porém, não é insanável, uma vez que não está taxativamente enumerada no artigo 119, do Cód. de Proc. Penal. Daí que tenha de ser arguida, nos termos do artigo 120, do mesmo diploma legal.
E, estabelece o artigo 311º, nº 2, alínea a) do Cód. de Proc. Penal, que o juiz deve rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
Daqui resulta que o modelo processual penal vigente desde 1987 em Portugal se estrutura no princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, (estrutura acusatória mitigada pelo princípio da acusação, segundo artigo 2º n.º 2 ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal) um dos seus traços estruturais radica exactamente na distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e se for caso disso sustenta uma acusação e uma outra entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação.
Por isso, e com essa intenção, estabeleceu-se, normativamente, no artigo 311º nº 3 as situações que o legislador entendeu poder o juiz sustentarem uma rejeição da acusação, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido. Ou seja, ficou impedido o juiz de, quando profere o despacho ao abrigo do artigo 311º, ter um papel equivalente ao Ministério Público ou outro sujeito processual, fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida.
Por isso agora, são apenas os quatro motivos explicitados na lei que permitem ao juiz rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, e são eles: a) quando a acusação não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime (nº3 do artº 311º do C.P.P.).
Ora esta taxatividade, legalmente estabelecida, não pode e não deve ser substituída por outra interpretação que não aquela que o legislador quis.
Por outro lado, importa considerar que as referidas previsões do n.º 3 do art. 311 têm correspondência nas alíneas do nº 3 do artigo 283º, que definem as nulidades da acusação, onde se prevê, de forma genérica, as nulidades da acusação - as quais, na falta de preceito que as regule especificamente, deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
Ora, o art. 311º nº3 prevê apenas os casos extremos pois a rejeição liminar só se justifica em casos limite insusceptíveis de correcção sem prejudicar o direito de defesa fundamental, que a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria. Trata-se de um tipo de nulidade sui generis, extrema, insuperável ou insanável, ainda que susceptível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de permitir ao juiz de julgamento a intromissão na acusação, de forma a evitar um julgamento sem objecto fáctico e probatório, sem acusado, sem incriminação, ou sem objecto legal.
Daí que o nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, ainda que o legislador não o diga de forma expressa, veio a consagrar um específico regime de nulidades da acusação que, face à gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material. Mas só esses.
Ou seja, a exigência de indicação precisa na acusação dos factos imputados ao arguido, emanação clara do princípio acusatório consagrado na Constituição, art. 32 nº 5, tem como implicação directa, que ninguém pode ser julgado por um crime sem precedência de acusação por esse crime, deduzida por órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Só assim ficam satisfeitas as garantias de defesa que este preceito constitucional consagra.
Há a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles possa convenientemente defender-se, e para que não possa ser surpreendido em julgamento com factos que a acusação não lhe tivesse posto «diante dos olhos».
Por isso a rejeição liminar apenas pode ter lugar naquelas situações típicas extremas e não relativamente a outros vícios de menor densidade.
No caso dos autos, temos que a acusação deduzida pela assistente (fls 81/82), é do seguinte teor (por transcrição):
Indiciam suficientemente os autos que no passado dia 16 de Julho de 2010, por volta das 9,00 horas da manhã, a Arguida B..., dirigindo-se á ofendida, que estava ao portão da sua casa, ás espera da sua neta, proferiu a seguinte expressão: “estão aqui estas gajas, estas bisbilhoteiras…o que querem é rir-se”, acrescentando ainda “anda cala-te minha porca que essa entrada não é tua

Também indiciam suficientemente os autos que no passado dia 2 de Setembro, entre as 19,30 horas e as 20,00 horas, o Arguido A… dirigiu-se para o quintal da Assistente e quando ia a sair deu-lhe um empurrão enquanto lhe gritou “isto é tudo meu. Você tem a mania que isto é tudo seu, mas você não tem cá nada! Vendes-te ao do terceiro andar por dois tostões, mas isto é tudo meu”

Também nessa ocasião as Arguidas B... e C... apareceram no local e a C..., logo que o Arguido A... disse à assistente que ela se vendia ao vizinho do 3º andar por dois tostões, acrescentou “esta porca, o que vale é que o marido pode bem com eles”

Em consequência,
Requer a Vª Exª se digne submeter os arguidos a julgamento, pela prática de um crime de injúrias cada um, previsto e punido pela lei penal vigente, a fim de ser provada a presente acusação, devendo os arguidos, por isso, serem condenados.
PROVA…….”
***
Vejamos então se é de manter ou alterar o despacho recorrido.
As questões a que importa dar resposta são as seguintes: determinar se na acusação da assistente se verifica ou não a causa de rejeição do citado artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea c), do Cód. de Proc. Penal, por não indicar as disposições legais aplicáveis ou do da al. b) do mesmo artigo, por não conter a narração dos factos.
1. Quanto á primeira questão, estabelece o artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea c), do Cód. de Proc. Penal, que o juiz deve rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; a acusação considera-se manifestamente infundada, se não indicar as disposições legais ou as provas que a fundamentam.
No caso vertente, embora a assistente indique o tipo incriminador (crime de injúrias), não indica quais as disposições legais que os contemplam, tendo o despacho recorrido entendido, que após convite para tal, a assistente corrigiu invocando a lapso de escrita, corrigir a acusação, no sentido de a mesma constar a imputação a cada um dos arguidos a autoria de um crime de injúria previsto e punido pelo art.º 181/1 do C.Penal, pelo que o tribunal a quo, atento o disposto no art.º 249 do CC admitiu a rectificação da acusação nos termos apontados no requerimento de fls 121, improcedendo, assim, a requerida rejeição da acusação.
Não podemos concordar com tal entendimento.
Primeiro porque não ocorreu qualquer lapso de escrita. Apenas e só a assistente nada disse quanto á indicação da disposição legal aplicável e apenas veio indicar as normas aplicáveis, após convite para tal. Ora, não se pode corrigir um lapso de escrita daquilo que não está escrito.
Por isso entendemos que assistente apenas e só não tinha dado cumprimento à exigência da al. c) do n° 3 do artigo 311º do Cód. Proc. Penal, onde se estabelece a obrigatoriedade de na acusação, independentemente da eventual referência ao nome do crime imputado, se fazer, de forma expressa, a indicação da respectiva norma incriminadora.
Ora, não obstante opiniões em contrário, somos dos que entendemos que, ao contrário do que entendeu o tribunal a quo, não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correcção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente.
Na verdade, no nosso actual sistema, de acordo com o nº 5 do art.º 32º da Constituição da República, o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Essa estrutura acusatória importa uma clara separação entre os órgãos da acusação e do julgamento e, num processo penal de estrutura acusatória, a acusação é que define o objecto do processo e este integra não só os factos mas também a incriminação. (Neste sentido vidé Acórdão da Relação do Porto de 14/12/2005 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo: 10476/2008-9, de 11-12-2008 ambos in www.dgsi.pt)
Assim, o artigo 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. c) do Código de Processo Penal, determina que a acusação deve ser rejeitada quando manifestamente infundada, e que se considera manifestamente infundada a acusação em que não são indicadas as disposições legais aplicáveis, sendo que tal diz respeito à fase do julgamento (Livro VII do CPP) e na fase de saneamento do processo, a falta de indicação das disposições legais aplicáveis surge, como motivo de rejeição, dado ter de considerar-se a acusação manifestamente infundada, como resulta do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea c), do Cód. de Proc. Penal.
Por isso mal andou o tribunal a quo, ao decidir como decidiu, sendo nesta parte procedente o recurso.
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2. Quanto á segunda questão, estabelece o artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), do Cód. de Proc. Penal, que o juiz deve rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; a acusação considera-se manifestamente infundada, se não contiver a narração dos factos.
A assistente imputa aos arguidos a prática de um crime de injúrias, mas face ao teor da mesma, que acima se transcreveu, temos de concluir que a dita acusação particular é manifestamente infundada, pois não narra os factos como era obrigada a fazer.
Na verdade de acordo com o art. 181º nº1 do Código Penal, “1 -Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena d e multa até 120 dias.”
Ora do que consta da acusação particular poder-se-ia concluir, com alguma boa vontade, que estão indicados factos que poderiam levar a que se imputasse aos arguidos a prática de tal.
Contudo Artigo 13º do C.P. diz-nos que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.”.
Por outro lado o Artigo 14º do mesmo diploma, adianta que “1 -Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 -Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 -Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.” e o artigo 15º refere que “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”
Daqui resulta que só pode ser condenado pela prática de um ilícito o agente que preencha os seus elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime.
Ou seja, apenas se poderia dizer que os arguidos teriam praticado o crime de injúrias se, por um lado, eles tivessem dirigido a alguém palavras ou imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivas da sua honra e consideração. Por outro lado era necessário ainda que se verificasse o elemento subjectivo, ou seja que tivessem actuado com intenção de ofender a assistente, quando lhe dirigiram as expressões que lhe são imputadas, sabendo da ilicitude de tal conduta.
E será e que tais requisitos factuais se encontram contidos no requerimento de abertura da instrução?
É manifesto que não estão.
Ou seja não consta do “libelo acusatório”, um elemento essencial do tipo de ilícito, isto porque no caso concreto, verifica-se que o assistente, na sua acusação, não indica factos que consubstanciem o elemento subjectivo do crime que imputa aos arguidos.
Assim não está cumprido o disposto na lei quanto á narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (artigos 283º, nº3, P), uma vez que o dolo é um facto.
Além disso também nada consta, na acusação particular, quanto á consciência da ilicitude por parte dos arguidos.
Nem se diga, como já se defendeu que a deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo (dolo genérico) pode ser integrada, em julgamento, por recurso à lógica, racionalidade e normalidade dos comportamentos humanos, donde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum, pois que no caso, não se trata de uma acusação meramente deficiente mas antes de uma acusação que pura e simplesmente é totalmente omissa quanto à narração dos elementos subjectivos do falado crime.
Por isso tal acusação é manifestamente improcedente e, por isso, não deveria ter sido admitida, como mal fez o tribunal “a quo”. (Neste sentido vidé, entre outros, Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo: 597/11.0T3AVR.C1, Relator: BELMIRO ANDRADE, de 21-03-2012; Processo: 150/10.5T3OVR.C1, Relator: MARIA PILAR OLIVEIRA, de 01-06-2011; Processo: 127/09.3SAGRD.C1, Relator: MOURAZ LOPES, de 25-03-2010 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo: 10221/2006-5, Relator: JOSÉ ADRIANO, de 30-01-2007, todos in www.dgsi.pt)
Consequentemente, é o recurso dos arguidos procedente, implicando a revogação do despacho recorrido o qual vai ser substituído por outro onde se rejeita a acusação por a mesma ser manifestamente improcedente

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III. Decisão:
Posto o que precede, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar o recurso procedente, revogando o despacho recorrido o qual vai substituído por esta decisão, em que se rejeita a acusação particular de fls 82, por manifesta improcedência da mesma, face ao disposto no artº 311º, nº2 al a) e nº 3, als. b) e c) do C.P.P.
Sem custas.
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Calvário Antunes (Relator)
Vasques Osório