Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5277/20.2T8CBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DEFESA POR EXCEPÇÃO
AINDA QUE DEDUZIDA DE FORMA IMPLÍCITA
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 662.º, 1, DO CPC
Sumário:
I - A defesa por exceção pode até ser implícita.

Importa é que a parte alegue os factos integradores do direito que invoca, evidenciando inequivocamente que dele pretende prevalecer-se.

No caso, a seguradora invocou que a amputação que o autor sofreu e que determinou a sua invalidez total e absoluta podia decorrer da sua declarada doença diabética.

II - A reapreciação da matéria de facto revela que a incapacidade do Autor decorreu da sua declarada e prévia doença diabética.

III - Esta decorrência integra a cláusula de exclusão invocada pela Seguradora.

Decisão Texto Integral:
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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

AA veio instaurar ação contra Banco 1..., S.A., e A... Companhia de Seguros, S.A., pedindo:

a) Seja declarada inoponível ao A. e excluída do contrato a cláusula prevista nos respectivos contratos de seguro, na qual se refere que a apólice apenas garante invalidez absoluta e definitiva, considerando-se tal a limitação funcional permanente e sem possibilidade clínica de melhoria que incapacite a pessoa segura para o exercício de qualquer actividade remunerada, necessitando de uma terceira pessoa para efetuar os actos normais da vida diária;

b) A Ré Seguradora seja condenada a pagar à Banco 1..., S.A. a importância do empréstimo em débito em Outubro de 2019, no valor de € 41.951,03;

c) A Ré Seguradora seja condenada a pagar/estornar ao A. os prémios de seguros pagos desde Outubro de 2019 até à liquidação do capital à Banco 1..., S.A., acrescidos dos juros de mora a contar da citação, importância a liquidar em incidente de liquidação ou em execução de sentença;

d) Seja ré Banco 1..., S.A. condenada a pagar/estornar ao A. as prestações pagas desde Outubro de 2019 até à liquidação do capital à Banco 1..., acrescidos dos juros de mora a contar da citação, importância a liquidar em incidente de liquidação ou em execução de sentença.

Para tanto, o Autor alega, em síntese:

No dia 23 de Abril de 2007, celebrou uma escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca, através da qual comprou o prédio urbano – casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e sótão, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...97 e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... com o nº ...25.

Nessa escritura, a Banco 1..., S.A. concedeu ao Autor um empréstimo da quantia de cinquenta e dois mil e quinhentos euros, sendo que os mutuários obrigaram-se a constituir seguro de vida cobrindo o risco de morte e invalidez permanente, pelo valor dos empréstimos e pelo seu prazo total, fazendo averbar nas respectivas apólices o interesse do Banco enquanto credor hipotecário e beneficiário irrevogável.

Por contratos de seguro titulados pelas apólices nº ...27e ....28 foram contratados com a Ré A... dois seguros do ramo Vida Grupo Risco, associados ao empréstimo hipotecário, tendo como tomador e beneficiário a Banco 1..., S.A. e pessoa segura o Autor, os quais garantem, durante o prazo de amortização do empréstimo, o pagamento ao beneficiário do total do capital em dívida em caso de morte ou invalidez absoluta e definitiva da pessoa segura.

Aquando da celebração dos contratos de seguro, apenas foi explicado ao A. que a garantia desse seguro era concedida em caso de morte ou de invalidez da pessoa segura, caso em que a seguradora liquidaria ao banco o capital seguro que estivesse em dívida, nada mais tendo sido informado, não lhe tendo sido entregues as condições gerais e especiais da apólice.

À data da celebração do aludido contrato de seguro, o Autor era uma pessoa saudável.

Todavia, por parecer da Junta Médica do Ministério da Saúde, realizada em 14 de Abril de 2016, o Autor foi considerado incapaz, com um grau de desvalorização de 67,70%.

O Autor está reformado por invalidez desde o dia 21.01.2018, padece de grave deficiência motora, tendo-lhe sido amputado o membro inferior.

O A. exercia a profissão de operador de resíduo, competindo-lhe aspirar as ruas, limpar as ruas, separar os resíduos.

Sucede que o A. padece de uma incapacidade total para o exercício da profissão habitual, necessitando de ajuda de terceira pessoa para as necessidades e cuidados que carece.

O Autor solicitou o acionamento da apólice nº ...27, tendo a Ré Seguradora declinado a responsabilidade pelo pagamento à Banco 1..., S.A. da importância do capital do empréstimo e continuou a cobrar os prémios do seguro e as prestações do empréstimo continuaram a ser pagas à Banco 1....

Em Outubro de 2019, a importância em débito à R. Banco 1... era de € 41.951,03.

A ré Banco 1..., S.A. contestou, confirmando que o Autor celebrou o contrato de crédito referido na petição inicial, tendo efectivamente o seguro sido contratado com a Ré A..., e vigorando nos termos e condições estabelecidas na apólice de seguro e respectivas condições particulares.

No momento da subscrição do seguro de vida associado ao empréstimo em causa nos autos, a Ré Caixa explicou ao Autor as condições gerais a que o mesmo se mostrava sujeito e entregou cópia das condições gerais do mesmo ao mutuário.

Acresce que consta do Boletim de Adesão subscrito pelo Autor no momento da contratação do seguro que foi por este declarado que lhe foram entregues as respectivas condições gerais de que obteve completo conhecimento.

A Ré Caixa tem conhecimento, por força da sua qualidade de credora e tomadora do seguro, que para que seja considerada a invalidez por doença como determinante para o pagamento de indemnização é necessário verificarem-se dois requisitos cumulativos, a saber, ser a incapacidade total previamente reconhecida pela entidade de segurança social pela qual o beneficiário se encontre abrangido e ter a incapacidade um grau superior a 66,6% de acordo com a tabela nacional de incapacidades.

Sucede que, de acordo com o documento ora junto pelo Autor, o Serviço de Segurança Social atribuí-lhe uma pensão de invalidez relativa, nada referindo quanto à dependência de terceira pessoa nem a incapacidade para desenvolver actividade profissional, o que poderá terá motivado a alegada resposta da Ré A....

Confirma que as prestações do empréstimo contratado continuam a ser debitadas e pagas, entendendo nada ter a reembolsar porque não reteve nem recebeu qualquer quantia que não lhe fosse devida.

A Ré A... Companhia de Seguros, S.A. também contestou, alegando que o Autor não celebrou qualquer contrato de seguro de vida com a Ré.

O Autor aderiu ao contrato de seguro de vida grupo celebrado entre a Ré A... e a Banco 1....

Na verdade, entre a Banco 1..., enquanto entidade mutuante, e a Ré, enquanto seguradora, foi celebrado contrato de seguro que cobre os riscos de morte e invalidez ligados a contratos de mútuo de crédito à habitação, garantindo a seguradora ao beneficiário designado o capital seguro em caso de morte ou invalidez absoluta e definitiva.

Nesse contrato de seguro, a Banco 1... assumiu a qualidade de tomadora do seguro, sendo pessoas seguras os clientes desta instituição de crédito que com ela contratem empréstimos para a compra de habitação própria.

Em 13 de Abril de 2007, o A. propôs-se à adesão do seguro de vida grupo celebrado entre a Ré e a Banco 1..., titulado pela apólice ...53, iniciando-se esse contrato em 7 de Maio de 2007 e correspondendo a essa adesão os certificados ...27 para o capital de € 37.065,22€ e ...28 para o capital de € 7.060,07.

Não compete à Ré o dever de informação. As adesões ao seguro são sempre subscritas aos balcões da Banco 1..., sendo os seus funcionários responsáveis por prestar as informações pré-contratuais e contratuais, designadamente as concernentes às garantias da adesão.

A Ré seguradora não tem qualquer contacto com os clientes da Banco 1... e a adesão ao seguro só pode ser contratualizada aos balcões desta instituição bancária, pelo que, sendo a tomadora do seguro em análise a Banco 1..., o dever de informação que o A. alega ter sido violado compete àquela e não à aqui Ré.

Quando o A. aderiu ao contrato de seguro grupo em que é tomadora a Banco 1..., o Autor respondeu a um questionário clínico, tendo declarado sofrer de diabetes e ter uma doença de olhos, tendo a Ré aceite a adesão solicitada pelo Autor, com exclusão da invalidez resultante de qualquer incapacidade ou doença que a pessoa segura seja portadora à data da sua inclusão no contrato e suas consequências. Tal significa que, mesmo que o A. seja portador de invalidez absoluta e definitiva, para que tenha direito ao capital seguro constante do certificado, torna-se necessário que essa invalidez não resulte ou seja consequência da incapacidade ou doença de que o A. já era portador quando aderiu ao contrato de seguro, em Maio de 2007.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência decidiu:

a) Condeno a Ré A... – Companhia de Seguros, S.A. a pagar à Ré Banco 1..., S.A. a importância do empréstimo em débito em Outubro de 2019, no montante de € 33.710,65 (trinta e três mil setecentos e dez euros e sessenta e cinco cêntimos);

b) Condeno a Ré A... – Companhia de Seguros, S.A. a pagar/estornar ao autor os prémios de seguro pagos desde Outubro de 2019 até à liquidação do capital à Banco 1..., S.A., acrescidos dos juros de mora a contar da citação, importância a liquidar em incidente de liquidação;

c) Condeno a Ré Banco 1..., S.A. a pagar/estornar ao autor as prestações pagas desde Outubro de 2019 até à liquidação do capital à Banco 1..., S.A. acrescidos dos juros de mora a contar da citação, importância a liquidar em incidente de liquidação;

d) Absolvo as rés do demais peticionado.


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Inconformada, a Ré A... recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1- O ponto 10. da matéria provada enferma de erro de julgamento da materialidade apurada porquanto o Apelado sofreu a amputação dos dois membros inferiores e não apenas de um membro inferior.

2- O relatório pericial e o depoimento da testemunha Sra. D. BB impunham resposta diferente da que ficou provada.

3- No entendimento da Apelante, a prova pericial e testemunhal produzidas exigem que a matéria do ponto 10. passe a ter a seguinte redação: “O Autor padece de deficiência motora, tendo-lhe sido amputados os membros inferiores”.

4- Ocorreu erro de julgamento na subsunção do Direito aos factos porquanto o relatório pericial, concatenado com a prova testemunhal produzida nos autos determinam inequivocamente que a invalidez do recorrido resulta da doença de que este era portador à data da sua inclusão no contrato de seguro de vida a que o mesmo aderiu em 7 de Maio de 2007.

5- A Recorrente não podia antecipar juízos sobre a causalidade adequada entre a doença de que o Apelado já sofria quando aderiu ao seguro e a invalidez que ditou a sua incapacidade absoluta e definitiva mas anunciou a possibilidade de vir a requerer exame médico-legal ao A., invocando que, se se verificasse esse nexo causal entre a doença coeva da subscrição do seguro e a invalidez do recorrido, o seguro não cobriria essa invalidez por previamente excluída da sua garantia, conforme carta que a recorrente endereçou ao recorrido por ocasião da adesão, datada de 7 de Maio de 2007.

6- Produzida a prova pericial e definida a situação de invalidez absoluta e definitiva, perante a exceção invocada de doença ou incapacidade pré-existente à adesão do seguro, competia ao Tribunal realizar o enquadramento da apólice por forma a considerar a invalidez absoluta e definitiva, apurar a sua origem e, caso ela fosse determinada por doença ou incapacidade contemporânea da adesão ao contrato de seguro, excluí-la da cobertura contratual.

7- Do relatório ressalta com toda a evidência que a diabetes de que o Apelado sofre é a causa da amputação dos membros inferiores.

8- Essa relação causal foi também evidenciada pela mulher do Apelado, Sra. D. BB, como a própria sentença salienta na formação da convicção da Sra. Juíza “a quo” com esta testemunha.

9- Do mesmo modo, o depoimento da testemunha Dr. CC, médico, evidenciado pelo Tribunal recorrido para formação da livre apreciação da prova, contribuiu para reforçar o nexo de causalidade adequada entre a diabetes e a amputação dos membros inferiores do recorrido.

10- Segundo as condições gerais do seguro em apreciação, verifica-se a situação de invalidez absoluta e definitiva no caso de limitação funcional permanente e sem possibilidade clínica de melhoria que incapacite a pessoa segura para o exercício de qualquer atividade remunerada, necessitando da assistência de uma terceira pessoa para efetuar os atos normais da vida diária e essa situação identificava-se com a do Apelado quando este, em Outubro de 2019, acionou o seguro junto da co-Ré Banco 1..., Sa.

11- O Tribunal tinha de avaliar se, não obstante o recorrido integrar a situação de

invalidez absoluta e definitiva, ele tinha direito à cobertura contratual do seguro em virtude de padecer de doença à data da adesão ao contrato de seguro que foi a causa da invalidez.

12- Sendo a invalidez causada, como foi, pela diabetes e sofrendo o recorrido desta doença quando aderiu ao seguro, como ele próprio declarou no questionário clínico, verifica-se a exclusão da garantia do seguro.

13- Apurado através da produção da prova pericial e da prova testemunhal o nexo causal entre a invalidez do recorrido e a diabetes de que este sofria à data da adesão ao contrato de seguro, nenhuma outra solução restava ao Tribunal que não fosse a de absolver do pedido a recorrente com base na verificação da exceção invocada na sua contestação.

14- Decidindo como decidiu, violou o Tribunal a quo o comando do artº. 611º do

Código de Processo Civil.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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Importa decidir:

1º Sobre a alegação expressa ou implícita apresentada pela Ré, quanto a certa cláusula contratual de exclusão.

2º Sobre a prova do nexo de causalidade entre a diabetes inicialmente declarada e a amputação sofrida pelo Autor.

3º Sobre a exclusão da protecção contratual.


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Sobre a alegação expressa ou implícita apresentada pela Ré, quanto a certa cláusula contratual de exclusão.

O Tribunal recorrido entendeu, para o que aqui interessa:

“Assim sendo, verifica-se que a Ré Seguradora não alegou o nexo de causalidade entre a doença de que o A. padecia antes do acidente, no caso concreto, a diabetes, e a invalidez de que ficou a padecer e com base na qual o Autor acionou o seguro.”

Tratemos primeira desta invocada falta de alegação.

Se os arts. 34 a 38 da contestação da Ré A... ainda podiam deixar alguma dúvida a esse respeito, entendendo nós que a Ré está a dizer que deve ser excluída a protecção caso se venha a demonstrar que a situação do Autor decorre da declarada diabetes, devemos atentar na ata de 11.9.2023, da qual se retira que as partes e o Tribunal estão conscientes dessa questão. Diz a Ré A...:

“Nesta medida, afigura-se-nos que apenas fica por apurar nos presentes autos a causa de exclusão da garantia do contrato seguro celebrado, uma vez que, à data da adesão do autor ao seguro de grupo celebrado entre a A... e a Banco 1..., o autor era portador de diabetes, tal como resulta do questionário clínico a que este respondeu por ocasião da celebração da adesão ao referido contrato e, constituindo esta questão uma causa de exclusão da responsabilidade da A..., uma vez que a amputação que o autor sofreu e que determinou a sua invalidez total e absoluta, decorre da doença diabética, do pé diabético, e portanto, está excluído da garantia do seguro.”

“Neste pressuposto, considera a Ré desnecessário ouvir toda a prova produzida à excepção dos médicos da A... relativamente à questão do nexo causal entre a diabetes que como doença gerou o pé diabético do autor e a sua consequente amputação, tornando-se desnecessário ouvir a demais prova, prescindindo do depoimento de parte do autor.”

“Dada a palavra à Ilustre Advogada do Autor, pela mesma foi dito o seguinte:

“Entende que no momento estão já prejudicadas várias questões, nomeadamente, a falta de informação devida ao autor pelo grau de incapacidade deste, a necessidade de ajuda de terceiros para as atividades da vida diária. A contrario, não concebo que a esta data esteja já verificada o nexo de causalidade entre a doença diabética que o autor já sofria antes da celebração do contrato de seguro e a sua incapacidade.”

“Pelo exposto, parece resultar apenas faltar a prova ou não da causa de exclusão invocada pela Ré A....”

O Tribunal nada disse a respeito e considerou prescindidos certos depoimentos.

Neste contexto, entendemos que todos percebiam que a Ré A... alegou, como possível, que a amputação que o autor sofreu e que determinou a sua invalidez total e absoluta pudesse decorrer da sua declarada doença diabética.

Além de referir essa possibilidade, a conferir, como disse, pelos exames médicos, não há dúvidas que a Ré evidenciou inequivocamente que queria prevalecer-se dessa potencial prova, invocando a respetiva cláusula contratual de exclusão.


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Reapreciação da matéria de facto sobre a prova do nexo de causalidade entre a diabetes inicialmente declarada e a amputação sofrida pelo Autor.

A Recorrente indica o exame médico e dois depoimentos, conforme assinalados pelo Tribunal recorrido.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil (doravante CPC)).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados. (Abrantes Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.)

Os elementos probatórios apresentados e disponíveis para a concreta reapreciação são sujeitos à livre apreciação do julgador.

Em primeiro lugar, decorre da prova pericial produzida (13.3.2023) que foram imputados ao Autor os dois membros inferiores e não um deles. Mais fica ali declarado:

“Manteve seguimento em Consulta do Pé Diabético por pé isquémico desde 2013, tendo sido reencaminhado para Consulta de Cirurgia Vascular. De acordo com relatório do Serviço de Angiografia e Cirurgia Vascular do CHUC, foi observado no Serviço de Urgência em maio de 2015, por queixas de dor no pé direito e úlcera plantar com um mês de evolução. Como antecedentes pessoais apresentava diabetes mellitus, hipertensão arterial, dislipidemia, sendo ex-fumador. Foi avaliado em consulta, onde a 27/05/2015 fez doppler velocimétrico que revelou IPR direito 7/14, esquerdo 11/14; em junho de 2015 foi submetido a estudo angiográfico que mostrou lesões difusas da artéria femoral superficial, bilateralmente, oclusão da artéria tibial anterior, artéria tibial posterior e peroneal patentes bilateralmente até ao tornozelo. Por necrose do 2º dedo do pé direito a 15/09/2015 foi submetido a amputação aberta do mesmo. No dia 16/12/2015 apresentava úlcera plantar com cicatrização insidiosa e placa de necrose no 3º dedo do pé direito, foi submetido a desarticulação do 3º dedo do pé direito. Por má evolução cicatricial, a 01/12, foi submetido a amputação transmetatársica direita, vindo a ter alta hospitalar a 07/12, mantendo penso de vácuo. Foi admitido no internamento do referido serviço, no dia 27/01/2016, por infeção do coto de amputação. Cumpriu antibioterapia e a 01/02 foi submetido a angioplastia AFS direita com balão 4*80mm; angioplastia 1/3 distal ATP e arcada plantar com balão 2*40mm. Não apresentou melhoria do quadro, razão pela qual a 03/02 foi realizada guilhotina pelo 1/3 distal da perna e drenado abscesso da face antero-lateral da perna. A 12/02 foi submetido a amputação infracondiliana direita. Durante internamento necessitou de suporte transfusional. Foi observado e orientado para Medicina Física e de Reabilitação. Teve alta hospitalar no dia 17/02/2016, com indicação para manter cuidados de penso no Centro de Saúde .... No dia 01/08/2019 foi novamente intervencionado, tendo-lhe sido efetuada amputação infracondiliana do membro inferior esquerdo…A amputação da perna esquerda e da perna direita do Apelado confere-lhe uma desvalorização de 84%, assumindo as restantes patologias uma influência manifestamente residual (0,2536).”

Indiciada ali uma clara ligação entre a diabetes e as complicações arteriais, temos depois dois depoimentos (e não foram ouvidos outros).

A testemunha BB, esposa do Autor, demonstrou ter conhecimento de alguns factos em causa nos autos. Explica que o marido viu introduzida uma pedra numa das botas que calçava, tendo ele começado a sentir dores por baixo do pé, tendo-lhe sido diagnosticada uma inflamação e receitado antibiótico. Como o Autor não melhorou, dirigiu-se ao Serviço de Urgência, onde o médico o informou que já tinha o pé preto e lhe amputou um dos dedos do pé; passados uns dias, a situação piorou, razão pela qual voltou ao Serviço de Urgência, onde lhe foi dito que tinha que ir ao bloco para drenar e tirar o pus que o autor já tinha no membro inferior; nessa altura, amputaram metade do pé ao autor; a ferida não cicatrizava e a infeção permanecia no membro inferior; voltou ao Serviço de Urgência, foi outra vez ao bloco operatório e amputaram-lhe a perna porque a infeção estava a subir. A causa da amputação foi a infeção causada pela ferida, pelo facto de o autor ser diabético e a ferida não cicatrizar. Depois, o outro pé do autor começou também a ficar negro, tendo-lhe sido amputado o outro pé. Explicou que a infeção que conduziu à amputação da perna foi causada pela diabetes.

A testemunha CC, médico, demonstrou ter conhecimento de alguns factos em discussão. Disse ter conhecimento do questionário que o autor preencheu quando assinou o contrato de seguro, e no qual declara sofrer de diabetes e que a sua visão já estava afetada pela diabetes. Explicou que a diabetes pode causar danos na parte circulatória do doente, no grau de visão, no cérebro, no rim, no sistema nervoso com dormência dos membros inferiores, o que leva ao aparecimento de feridas nos pés. No caso concreto, quando a pedra entrou na bota do autor, provavelmente ele já teria uma diminuição de sensibilidade nos membros inferiores, pelo que só se apercebeu da ferida causada pela pedra mais tarde. Se o autor não fosse diabético teria sentido a presença da pedra na bota mais cedo, o que impediria a existência da ferida. Acrescentou que a má circulação sanguínea que dificulta a cicatrização da ferida do autor é uma consequência da diabetes, sendo que a amputação dos membros inferiores do autor foi uma consequência da diabetes. Mais referiu que leu o relatório médico legal junto aos autos e que a amputação causada pela diabetes é que determinou a invalidez do autor.

Neste contexto probatório e na falta de qualquer infirmação, entendemos provado que a amputação sofrida pelo Autor decorre das complicações circulatórias do seu sangue causadas pela diabetes de que sofria.

Pelo exposto, julgamos a impugnação procedente e decidimos alterar o facto fixado em 10 e aditar um outro facto à matéria de facto decidida, do seguinte modo:

Facto 10 alterado:

O Autor padece de deficiência motora, tendo-lhe sido amputados os membros inferiores.

Aditar:

A amputação sofrida pelo Autor decorreu das complicações circulatórias do seu sangue causadas pela diabetes de que sofria, desde antes de 2007.


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Assim, os factos provados são os seguintes:

1. No dia 23 de Abril de 2007, no Cartório Notarial ..., da Srª Drª DD, foi outorgada uma escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca, na qual figuraram como primeiros outorgantes EE, FF, GG, na qualidade de únicos sócios e em representação da sociedade B..., Limitada, como segundos outorgantes AA (aqui A.) e BB, casados sob o regime da comunhão de adquiridos, como terceiro outorgante HH, em representação da Banco 1..., S.A., e, como quartos outorgantes II e JJ, na qual ficou, além do mais, declarado o seguinte: I. Pelos Primeiros Outorgantes, foi dito: Que pela presente escritura os primeiros outorgantes, em nome da sua representada, vendem ao segundo, pelo preço de cinquenta e dois mil e quinhentos euros, que já receberam, o prédio urbano - casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e sótão, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...97, com o valor patrimonial de € 33.508,17, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .../..., registado definitivamente a favor da sociedade pela inscrição C..., de 29.01.2007; II. Pelos segundos e terceiro outorgantes, foi dito: - Que, pela presente escritura, a Banco 1..., S.A., adiante designada apenas por Caixa ou credora, concede aos segundos outorgantes, adiante designados por parte devedora, um empréstimo da quantia de cinquenta e dois mil e quinhentos euros, importância de que estes se confessam, desde já, solidariamente devedores; III. Tal empréstimo reger-se-á pelas cláusulas constantes da presente escritura bem como pelas cláusulas constantes do documento complementar elaborado nos termos do número 2 do artigo 64º do Código do Notariado;

2. Do referido documento complementar consta, nomeadamente, que os mutuários se obrigam a constituir seguro de vida cobrindo o risco de morte e invalidez permanente, pelo valor dos empréstimos e pelo seu prazo total, fazendo averbar nas respectivas apólices o interesse do Banco enquanto credor hipotecário e beneficiário irrevogável;

3. Entre a Banco 1..., enquanto entidade mutuante e a Ré, enquanto Seguradora, foi celebrado contrato de seguro que cobre os riscos de morte e invalidez ligados a contratos de mútuo de crédito à habitação, garantindo a seguradora ao beneficiário designado o capital seguro em caso de morte ou invalidez absoluta e definitiva;

4. Nesse contrato de seguro, a Banco 1... assumiu a qualidade de tomadora de seguro, sendo pessoas seguras os clientes desta instituição de crédito que com ela contratem empréstimos para a compra de habitação própria;

5. Em 13 de Abril de 2007, o Autor propôs-se à adesão do seguro de vida grupo celebrado entre a A... Companhia de Seguros, S.A. e a Banco 1..., titulado pela apólice nº ...53, iniciando-se esse contrato em 7 de Maio de 2007 e correspondendo a essa adesão os certificados ...27 para o capital de € 37.065,22 e ...28 para o capital de € 7.060,07;

6. O Autor aderiu ao contrato de seguro de vida de grupo celebrado entre a A... Companhia de Seguros, S.A. e a Banco 1..., S.A.,

7. Por Parecer da Junta Médica do Ministério da Saúde (ARS Centro, ACES Baixo Mondego) de 14 de Abril de 2016, foi atribuída ao Autor uma incapacidade parcial permanente de 67,70%;

8. O Autor encontra-se reformado por invalidez desde 21.01.2018;

9. Foi atribuída ao Autor, pelo ISS, IP, uma pensão de aposentação com início a 08.06.2018;

10. (Alterado) O Autor padece de deficiência motora, tendo-lhe sido amputados os membros inferiores;

11. O Autor exercia a profissão de operador de resíduo (operador de 1ª), na D..., S.A.;

12. Competia-lhe aspirar as ruas, limpar as ruas e separar os resíduos;

13. O Autor padece de uma incapacidade total para o exercício da profissão habitual;

14. O Autor necessita da ajuda de terceira pessoa para as necessidades e cuidados de que carece;

15. O Autor solicitou o acionamento da apólice nº ...27;

16. A Ré seguradora declinou a responsabilidade pelo pagamento à Banco 1..., S.A. da importância do capital do empréstimo;

17. A Ré seguradora continuou a cobrar os prémios de seguro;

18. As prestações do empréstimo continuaram a ser pagas à Banco 1...;

19. Em Outubro de 2019, a importância em débito à Ré Banco 1... era de € 33.710,65;

20. Consta do Boletim de Adesão assinado pelo Autor no momento da contratação do seguro que foi por este declarado que lhe foram entregues as respectivas condições gerais de que obteve completo conhecimento;

21. Consta do mesmo Boletim de Adesão que o Autor optou pelo seguro de vida na modalidade de IAD, sendo que igualmente lhe foi oferecida a modalidade IPT;

22. Pelo menos no ano de 2020, a Ré Seguradora enviou ao Autor os certificados de seguro que contêm as condições particulares do seguro, designadamente as condições das coberturas e o limite do capital seguro;

23. Nos termos das condições gerais da apólice, a Ré Seguradora obrigou-se a pagar o capital seguro mencionado nos certificados de adesão em caso de morte ou no caso de invalidez absoluta e definitiva ocorrida durante a vigência da adesão;

24. Em caso de invalidez são beneficiários a Banco 1... pelo capital em dívida até ao limite do capital seguro e pelo eventual remanescente para o capital seguro à pessoa segura;

25. Segundo as condições gerais, a invalidez absoluta e definitiva verifica-se no caso de limitação funcional permanente e sem possibilidade clínica de melhoria que incapacite a pessoa segura para o exercício de qualquer actividade remunerada, necessitando da assistência de uma terceira pessoa para efetuar os actos normais da vida diária;

26. Quando o Autor aderiu ao contrato de seguro grupo em que é tomadora a Banco 1..., S.A., o Autor respondeu a um questionário clínico, tendo declarado sofrer de diabetes e ter uma doença de olhos, tendo a Ré Seguradora, em consequência, aceite a adesão solicitada pelo Autor, com exclusão da invalidez resultante de qualquer incapacidade ou doença que a pessoa segura seja portadora à data da sua inclusão no contrato e suas consequências;

27. Ficou excluída da garantia do seguro a invalidez que resulte de qualquer incapacidade ou doença que o Autor fosse portador à data da sua inclusão no contrato de seguro e as consequências dessa incapacidade ou doença, conforme a Ré comunicou ao Autor por cartas que lhe remeteu por ocasião da adesão, datada de 7 de Maio de 2007.

28. (Aditado) A amputação sofrida pelo Autor decorreu das complicações circulatórias do seu sangue causadas pela diabetes de que sofria, desde antes de 2007.


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Sobre a exclusão da protecção contratual.

Nenhuma das partes questiona o teor da cláusula de exclusão acordada.

Quando o Autor aderiu ao contrato de seguro grupo em que é tomadora a Banco 1..., S.A., o Autor respondeu a um questionário clínico, tendo declarado sofrer de diabetes, tendo a Ré Seguradora, em consequência, aceite a adesão solicitada pelo Autor, mas com exclusão da invalidez resultante de qualquer incapacidade ou doença que a pessoa segura seja portadora à data da sua inclusão no contrato e suas consequências.

Ficou então excluída da garantia do seguro a invalidez que resulte de qualquer incapacidade ou doença que o Autor fosse portador à data da sua inclusão no contrato de seguro e as consequências dessa incapacidade ou doença.

Não obstante a situação do Autor integrar a previsão de invalidez absoluta e definitiva, ele perde o direito à cobertura contratual do seguro em virtude de padecer de doença à data da adesão ao contrato de seguro que foi a causa daquela invalidez.

Sendo a invalidez causada pela diabetes e sofrendo o Autor desta doença quando aderiu ao seguro, como ele próprio declarou no questionário clínico, verifica-se a acordada exclusão da garantia do seguro, o que significa que a Seguradora não poderia ter sido condenada a pagar ou a restituir qualquer quantia em consequência de tal contrato de seguro.

A absolvição da Ré Seguradora acarreta a absolvição da Ré Banco 1..., pois que a condenação desta dependia da condenação da Seguradora a pagar-lhe o restante mutuado.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida, absolvendo-se as Rés dos pedidos.

            Custas pelo Autor, vencido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

2024-04-09


(Fernando Monteiro)

(Alberto Ruço)

(Moreira do Carmo)