Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
445/19.2T8CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO
EFEITOS
LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 09/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.289, 433, 434 CC
Sumário: Apurando-se que o veículo vendido, apesar da desconformidade, não eliminada, continuou a circular sem limitações, percorrendo em cerca de três anos 42 mil quilómetros, com a sua imobilização em 21.1.2019, a devolução do valor do veículo, a efetuar pelo devedor em consequência da resolução, deve ser deduzida do valor daquele uso, nas demais circunstâncias apuradas, a liquidar nos termos do art.609, nº 2, do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:  






           Sumário:

Apurando-se que o veículo vendido, apesar da desconformidade, não eliminada, continuou a circular sem limitações, percorrendo em cerca de três anos 42 mil quilómetros, com a sua imobilização em 21.1.2019, a devolução do valor do veículo, a efetuar pelo devedor em consequência da resolução, deve ser deduzida do valor daquele uso, nas demais circunstâncias apuradas, a liquidar nos termos do art.609, nº 2, do Código de Processo Civil.


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Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

D (…) intentou ação contra J (…) pedindo: “a) se declare anulado o contrato de compra e venda que teve como objecto o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca BMW, modelo 1K2, versão AK, com a denominação comercial 116D, de 1995 de cilindrada, ano de fabrico 2009, com matrícula QX (...) , pelo valor de € 14.000,00 (catorze mil euros), celebrado entre o Autor e o Réu, declarando-se ainda que, em virtude dessa anulação, cada uma das partes deve restituir à outra o que dela recebeu, e em consequência;

b) se condene o Réu a restituir ao Autor os € 14.000,00 (catorze mil euros) que constitui o preço da transação pago pelo Autor ao Réu.

c) se condene o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 2.000,00, por todos os danos não patrimoniais sofridos e alegados;

d) se condene o Réu a pagar juros de mora à taxa legal sobre as quantias referidas anteriormente, desde a citação para contestar até integral pagamento das mesmas.

Subsidiariamente e para o caso de assim não se entender;

e) ser o Réu condenado a restituição a título de enriquecimento sem causa ao Autor a quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros), acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;

f) se condene o Réu a pagar ao Autor € 2.000,00 (cinco mil euros), por todos os danos não patrimoniais sofridos e alegados;”

Para tanto, o Autor alegou, em síntese:

O réu vendeu ao autor, pelo preço de 14.000,00 € um veículo importado do estrangeiro como tendo 126.312 Km, quando, na realidade, tinha, em data anterior à aquisição, 170.852Km2.

Como o réu sabia, o autor só adquiriu o veículo por aquele preço por estar convencido que tinha a quilometragem anunciada. Se soubesse que o veículo tinha, pelo menos, 170.852 Km2 não o teria adquirido, nem nunca teria aceite pagar o que pagou, sendo que com a quilometragem real o veículo valeria aproximadamente 10.000,00 €.

Com esta situação o autor sofreu danos morais.

A contestação foi desentranhada, por extemporaneidade.

As partes apresentaram alegações jurídicas.

Foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência, determinando:

A). Declaro resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre autor e réu tendo por objecto o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca BMW, modelo 1K2, versão AK, com a denominação comercial 116D, de 1995 de cilindrada, ano de fabrico 2009, com matrícula QX (...) , devendo cada uma das partes restituir à outra o que dela recebeu;

B). Condeno o réu a restituir ao autor 14.000,00 € (catorze mil euros) acrescido de juros de mora à taxa legal, sobre a referida quantia, desde a citação até integral pagamento;

C). Absolvo o réu do demais peticionado.


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            Inconformado, o Réu recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1. Resultou provado que o Autor usou o veículo automóvel, ininterruptamente, durante praticamente três anos;

2. Resultou igualmente como provado que o defeito invocado nunca obstou ao normal funcionamento e fruição do veículo;

3. Daquele hiato temporal, resulta inequivocamente uma desvalorização real do veículo que não foi tida em conta;

4. A resolução do contrato com a devolução integral da verba paga configura um caso de enriquecimento sem causa por parte do Autor, inadmissível perante o nosso ordenamento jurídico;

5. A devolução integral do preço contratual liquidado pelo autor e a correspondente devolução do veículo por este, com o uso e desgaste entretanto sofrido, envolve, de facto, um enriquecimento sem causa nos termos do artigo 473º, do C. Civil por parte do autor e, outrossim, violador da boa fé contratual;

6. A sentença deve acautelar o crédito do Recorrente e o cálculo da indemnização ser remetido para liquidação de sentença, incidente regulado no artigo 358 e seguintes do CPC;

7. A sentença recorrida viola claramente o artigo 473.º do Código Civil.

Face ao acima exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso, anulando-

se a condenação do recorrente ao pagamento integral do preço acordado, sendo acautelado o crédito do Recorrente e o cálculo da indemnização ser remetido para liquidação de sentença, incidente regulado no artigo 358 e seguintes do CPC.


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            O Autor contra-alegou, defendendo a correção da decisão recorrida.

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            Considerando que já não se discute a resolução do contrato, a questão a decidir é a de saber se devemos considerar o valor do uso do veículo, entretanto acontecido, para deduzir ao preço a restituir pelo Réu.

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            O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos (não impugnados):

A) O Réu é comerciante em nome individual que se dedica com carácter habitual e com escopo lucrativo ao comércio de veículos automóveis, explorando, para o efeito, um estabelecimento comercial – vulgo, stand – denominado M (...) , sito na (…) concelho de C (...) , distrito de Coimbra.

B) Em data não concretamente apurada, mas situada entre o mês de Janeiro de 2016 e o dia 14 de Fevereiro de 2016, o Autor tomou conhecimento de um anúncio através do sítio www.standvirtual.com, por via do qual o anunciante profissional designado M (...) – registado nessa plataforma desde 31 de Dezembro de 2009 – anunciava a venda de um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca BMW, modelo 1K2, versão AK, com a denominação comercial 116D, de 1995 de cilindrada, ano de fabrico 2009, pelo preço de € 14.000,00 (catorze mil euros).

C) Em ato seguido ao conhecimento do anúncio referido no artigo precedente, o Autor estabeleceu contato telefónico para o número indicado no anúncio, a fim de se inteirar das condições do referido veículo automóvel, nomeadamente do seu estado de conservação e do número de quilómetros do mesmo.

D) Tendo esse contato sido correspondido com o aqui Réu que garantiu, desde logo, nessa ocasião, ao Autor que o veículo de marca BMW, com a denominação comercial 116D, de 1995 de cilindrada, ano de fabrico 2009, se encontrava em bom estado de conservação e de utilização e que tinha 126.312 Km (cento e vinte e seis mil, trezentos e doze quilómetros).

E) Declarando, de igual modo, de que se trataria de um ótimo negócio, propondo ao Autor que se deslocasse às suas instalações, sito (…) C (...) , distrito de Coimbra, a fim de observar e testar o veículo que ali se encontrava.

F) Nessa conformidade, o Autor, em 14 de Fevereiro de 2016, acompanhado pelo seu pai e pela sua actual esposa [à data dos factos namorada], deslocaram-se ao local indicado pelo Réu, tendo sido recebidos por este que se identificou como proprietário do estabelecimento denominado M (...) .

G) Uma vez observado o veículo automóvel de marca BMW, com a denominação comercial 116D, de 1995 de cilindrada, ano de fabrico 2009, o Réu informou de que se trataria de um veículo importado de França há relativamente pouco tempo, ao qual havia sido atribuído a matrícula QX (...) [doravante abreviadamente designado veículo QX (...) ].

H) Havendo sido, nesse ato, reafirmado de viva voz pelo Réu que o veículo QX (...) se encontrava em bom estado de conservação e de utilização e que tinha 126.312 Km (cento e vinte e seis mil, trezentos e doze quilómetros) como indicado no conta-quilómetros do veículo.

I) Exibindo o Réu, nesse ato, um documento que apelidou de livro de revisões realizada à viatura, segundo o qual constava que à data da última anotação datada de 03 de Agosto de 2015 o veículo QX (...) apresentava 121.244 Km (cento e vinte e um mil, duzentos e quarenta e quatro quilómetros).

J) Tal documento aliado à afirmação proferida pelo Réu de que os quilómetros que o veículo automóvel QX (...) ostentava eram reais e verdadeiros provocou no Autor a convicção de que o veículo apenas tinha essa quilometragem.

K) Assim, tomando em consideração o que lhe havia sido transmitido pelo Réu sobre o estado e as características do veículo automóvel de marca BMW, com a denominação comercial 116D, de 1995 de cilindrada, ano de fabrico 2009, com a matrícula QX (...) , o Autor declarou comprar e o Réu declarou vender o referido veículo automóvel pelo preço de € 14.000,00 (catorze mil euros), tendo o pagamento sido integralmente realizado através do cheque número 8106415661 datado de 24 de Fevereiro de 2016, sacado sobre a conta bancária número (...) , domiciliada no (...) Banco, titulada pelo aqui Autor.

L) Havendo sido prestada pelo Réu, no exercício da sua actividade profissional, e na qualidade de entidade vendedora, garantia de bom funcionamento, pelo período de 12 meses, à qual foi atribuído o número 25386, com data de início 24 de Fevereiro de 2016, e cuja gestão cabe à sociedade I (…) sendo emitido e entregue ao Autor o correspondente boletim de adesão.

M) Em ato seguido ao pagamento e entrega do veículo QX (...) , o Réu enviou um e-mail ao Autor através do endereço eletrónico «motorsport@sapo.pt» com o assunto “DAV Eletrónica BMW 116D QX (...) .pdf”, do qual fez anexar a Declaração Aduaneira do Veículo (“DAV”) da Autoridade Tributária, relativa à importação do veículo, que aqui se junta sob Doc. 4.º e cujo conteúdo se dá nesta sede por reproduzido para os devidos efeitos legais.

N) Só após se inteirar do conteúdo de tal declaração, o Autor tomou conhecimento de que o veículo havia sido desalfandegado em seu nome – não obstante ter sido absolutamente alheio a todas as circunstâncias e procedimentos tidos para esse efeito.

O) De igual, nas mesmas circunstâncias, o Autor tomou conhecimento que o processo de atribuição de primeira matrícula tinha ocorrido em seu nome.

P) Tendo estes procedimentos, assim como o pedido de registo da propriedade do veículo QX (...) a favor do Autor, sido realizados e diligenciados pelo Réu, para o que o Autor facultou cópia do seu documento de identificação.

Q) Sem embargo, no próprio dia da aquisição, quando o Autor conduzia o veículo QX (...) , surgiu no computador de bordo a indicação de avaria nos airbags, tendo tal avaria sido assumida e reparada pelo Réu enquanto vendedor do veículo.

R) Volvidas semanas desde a data de aquisição, o computador de bordo do veículo QX (...) começou a acusar uma deficiência ao nível das pastilhas e discos de travão, havendo o Réu, uma vez mais, assumido e reparado tal deficiência.

S) Pela apresentação número 194 de 30 de Abril de 2016, foi inscrito a favor do Autor o registo inicial de propriedade do veículo QX (...) .

T) Em 03 de Maio de 2016 foi emitido Documento Único Automóvel (“DUA”) relativo ao veículo QX (...) , nos termos do qual o Autor consta como proprietário da aludida viatura.

U) Ora, sucede que, em 19 de Dezembro de 2018, na sequência da entrega do veículo QX (...) na oficina L (…). para diagnóstico de uma avaria, o responsável dessa oficina estabeleceu contacto telefónico com o Autor, transmitindo-lhe de que no âmbito dos trabalhos realizados havia sido realizada uma busca informática ao histórico das intervenções que o referido veículo teve, havendo sido constatado que a quilometragem constante do conta-quilómetros do veículo se encontrava adulterada.

V) Posto que, o veículo QX (...) àquela data [19 de Dezembro de 2018] apresentava uma quilometragem inferior à quilometragem indicada à data de 3 de Novembro de 2015 nos registos históricos informatizados do referido veículo.

W) Em face da informação recebida, o Autor informou que no dia seguinte se deslocaria à oficina a fim de se inteirar de tal desconformidade.

X) Assim, em 20 de Dezembro de 2018, o Autor dirigiu-se à oficina L (…), LDA., sito (…), Coimbra, tendo aí sido confrontado com as informações constantes do histórico informatizado do veículo – nos termos do qual se incluí várias anotações relacionadas com o veículo de matrícula QX (...) , sendo que a última anotação aí aposta registava que o veículo numa intervenção realizada no dia 3 de Novembro de 2015 apresentava no conta-quilómetros a distância percorrida de 170.852 Km (cento e setenta mil, oitocentos e cinquenta e dois quilómetros).

Y) Nesse conspecto, e após constatar pessoalmente tal informação, o Autor deslocou-se no dia seguinte [21 de Dezembro de 2019] ao stand M (...) , acompanhado pelo seu pai, denunciando a situação ao Réu de que havia tomado conhecimento, designadamente de que aquando da entrega do veículo QX (...) na oficina L (…), LDA. para diagnóstico de uma avaria, lhe foi comunicado pelo respectivo responsável dessa oficina que através de uma busca informática ao histórico do referido veículo se constatou que o mesmo numa intervenção mecânica realizada no dia 3 de Novembro de 2015apresentava no conta-quilómetros a distância percorrida de 170.852 Km (cento e setenta mil, oitocentos e cinquenta e dois quilómetros).

Z) Informando, nessa sequência, o Réu de que existia, assim, uma desconformidade entre o número de quilómetros que aquele lhe garantiu ter o veículo automóvel aquando da venda e a quilometragem real e verdadeira.

AA) Transmitindo ainda o autor que, quando se popôs a adquirir o veículo QX (...) , foi na firme convicção de que o mesmo teria a quilometragem garantida pelo Réu aquando da venda, isto é, 126.312 Km (cento e vinte e seis mil, trezentos e doze quilómetros), pois se soubesse que o veículo tinha pelo menos 170.852 Km (cento e setenta mil, oitocentos e cinquenta e dois quilómetros) não o teria adquirido.

BB) Nem nunca teria aceite pagar o valor que efetivamente pagou se tivesse conhecimento que o veículo referido tinha pelo menos essa quilometragem.

CC) Tendo o Réu declarado, de imediato, que se comprometeria a encontrar uma solução para o problema, pedindo ao Autor que aguardasse pelo seu contacto.

DD) Volvidos dias após a comunicação ao Réu, o Autor recebeu um contacto telefónico, através do qual aquele informou que o assunto não estaria esquecido, questionado o Autor se já teriam sido tomadas algumas iniciativas legais relativamente a este assunto.

EE) Tendo o Autor transmitido que se encontrava a aguardar por uma solução por parte daquele para a resolução do problema, em conformidade com o que havia sido acordado na ocasião referida em Y).

FF) O Autor endereçou carta via correio registado com Aviso de Receção, datada de 18 de Fevereiro e recebida pelo Réu em 20 de Fevereiro de 2019, na qual vem reiterar o que havia já sido transmitido na ocasião referida em Y) e comunica que face à diferença entre a quilometragem apresentada pelo veículo no conta-quilómetros e a sua quilometragem real, pretende resolver o contrato de compra e venda, solicitando a devolução do preço pago.

GG) Não tendo, conquanto, sido obtida qualquer resposta.

HH) Ora, como transmitido ao Réu, o Autor apenas adquiriu o veículo de matrícula QX (...) por estar convencido de que o mesmo tinha 126.312 Km (cento e vinte e seis mil, trezentos e doze quilómetros).

II) A quilometragem percorrida, constituía para o Autor, um fator determinante na decisão de comprar o veículo ao Réu – facto que este não ignorava.

JJ) Ademais, o Réu não podia desconhecer que ao apresentar ao Autor um veículo com uma quilometragem inferior à real provocava neste a convicção de que o veículo apenas tinha essa quilometragem.

KK) Acresce que este não ignorava que a quilometragem fictícia é que foi determinante para alienar o veículo QX (...) pelo preço de € 14.000,00 (catorze mil euros).

LL) Ora, com a quilometragem real o modelo em causa, o veículo valeria aproximadamente € 10.000,00 (dez mil euros) e não o valor desembolsado pelo Autor.

MM) Nunca o Autor aceitaria pagar o valor que efetivamente pagou se tivesse conhecimento que o veículo referido tinha pelo menos 170.852 Km.

NN) A quilometragem actual indicada no quadrante do veículo é de aproximadamente 168.000 Km (cento e sessenta e oito mil quilómetros).

OO) Desde a conclusão da prestação de serviços realizados pela sociedade L (…), LDA., em 21 de Janeiro de 2019, que o Autor se vem abstendo de conduzir o veículo com a matrícula QX (...) , por saber que o número de quilómetros constantes no quadrante do veículo se encontra adulterado.

PP) Encontrando-se, desde então, o veículo QX (...) imobilizado.

QQ) Passando o Autor a utilizar, para as suas deslocações, um outro veículo da propriedade da sua esposa.

RR) Toda esta situação, provocou e continua a provocar ao Autor um forte abalo psicológico, angústia e tristeza.

SS) Sentindo-se, igualmente, ludibriado e revoltado.


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Já não se discute a resolução do contrato, por desconformidade entre o objeto descrito pelo vendedor e declarado vendido e o efetivamente entregue.

A questão a decidir é a de saber se devemos considerar o valor do uso do veículo, entretanto acontecido, para deduzir ao preço a restituir pelo Réu.

A resolução do contrato, na falta de disposição especial, tem como efeito legal, nos termos do art. 433 do Código Civil (doravante CC), a aplicação do regime da nulidade e da anulabilidade, salvo o disposto nos artigos seguintes.

Por seu lado, o nº 1 do art. 434 do mesmo diploma prescreve que a resolução tem efeito retroativo, salvo se a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução.

E o seu nº 2 prescreve que nos contratos de execução continuada ou periódica, a resolução não abrange as prestações já efetuadas, exceto se entre estas e a causa de resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas.

O art. 289, nº 1, do CC estipula que tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

Em face destes preceitos, e à primeira análise, o Autor teria direito a devolver o veículo comprado e o Recorrente teria de devolver o preço contratual daquele.

Porém, o autor deveria devolver o veículo no estado da aquisição, o que é impossível.

Desta forma, a devolução do preço contratual e a correspondente devolução do veículo, com o uso acontecido e o desgaste sofrido, envolveria uma vantagem para o Autor, desequilibradora, violadora da boa fé contratual.

(Neste sentido, acórdão do STJ, de 5.5.2015, proc. 1725/12, em www,dgsi.pt; Calvão da Silva (“Compra e venda de coisas defeituosas”, 5ª ed., pág. 169): “no reembolso ao consumidor do preço por força da resolução potestativa do contrato ou da actio quanti minoris, a utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir”.)

Ao contrário do que defende o Recorrido, a questão não é nova, foi levantada nas alegações do Réu (art. 23 e 25), sendo matéria jurídica a analisar com base nos factos provados.

É matéria de conhecimento oficioso porque lida com o instituto do abuso do direito e com os limites da resolução, pela boa fé.

Depois de ter usado o veículo durante cerca de 3 anos, por 42 mil Km, o Autor não pode querer receber o preço por inteiro, devolvendo algo que já não tem o mesmo valor que tinha. (Segundo os factos provados, o veículo tinha então o valor comercial de dez mil euros (facto LL), tendo sido pagos pelo Autor quatorze mil euros.)

Ajusta-se, portanto, procurar encontrar o valor do uso referido ou da desvalorização percetível do veículo, para deduzir aos quatorze mil euros, no contexto dos factos provados, em adequada proporcionalidade.

Será considerável atender que o Réu teve ao seu dispor 4.000 € a mais, que pôde usar como entendeu, ao longo dos referidos anos.

Como foi matéria não debatida, porventura sujeitável a perícia, importará acionar o previsto no art.609, nº 2, do Código de Processo Civil.


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Decisão.

Julga-se o recurso procedente e, mantendo o demais decidido, determina-se que o valor que o Réu tem de devolver ao Autor, em consequência da resolução do contrato de compra e venda, será o valor de €14.000,00 (quatorze mil euros), deduzido do valor do uso provado do veículo ou desvalorização do mesmo, por referência aos 42 mil Km percorridos e cerca de 3 anos passados, no contexto do demais circunstancialismo provado, em adequada proporcionalidade, a fixar nos termos do art. 609º, nº 2, do Código de Processo Civil.

            Custas do recurso, sem encargos, pelo Recorrido, vencido.

            Coimbra, 2020-09-22

Fernando Monteiro ( Relator )

Ana Vieira

António Carvalho Martins