Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
113/12.6TAVZL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE NOTAÇÃO TÉCNICA
USO DE DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO ALHEIO
CARTÃO TACOGRÁFICO
Data do Acordão: 02/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA, PARCIAMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 255.º, ALÍNEAS B) E C), 258.º E 261.º, DO CP
Sumário: I - A condução, pelo arguido, de um veículo pesado de mercadorias, ostentado o tacógrafo um disco diagrama em nome de terceiro, não integra o tipo objecto do crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo art. 258.º, n.º 1, al. c) e 2, ex vi do art. 255º, al. b), ambos os normativos do CP.

II - Embora o «cartão tacográfico» corporize um documento de identificação, não se inclui na previsão da al. c) do artigo 255.º do CP. III - Deste modo, a conduta acima referida também não preenche o tipo de crime de uso de documento de identificação alheio do artigo 261.º do mesmo diploma.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular 113/12.6TAVZL do Tribunal Judicial de Vouzela em que é arguido A..., devidamente identificado nos autos, após realização da audiência de discussão e julgamento com documentação da prova oral produzida, em 17 de Abril de 2013 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

a) Absolve-se o arguido A... da prática de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 258.º, nºs 1 e 2, al. b), e 355.º, al. b), do Código Penal.

b) Condena-se o arguido A... pela prática, em autoria material, de um crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio, p. e p. pelos arts. 261.º, n.º 1, e 255.º, al. c), do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa à taxa diária de 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos) euros, o que perfaz a quantia total de 715 (setecentos e quinze) euros.

c) Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo (art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P.), fixando-se a taxa de justiça em 2 unidades de conta (art.º 8.º, n.º 9 do R.C.P. e tabela III).

Inconformados com o decidido, recorreram o Ministério Público e o arguido A....

O Ministério Publico condensou a motivação do seu recurso nas seguintes conclusões:

A) O bem jurídico protegido com o crime de falsificação de notação técnica é a segurança e credibilidade que é trazida unicamente pelos próprios aparelhos técnicos.

B) No crime de falsificação notação técnica o fim da acção do agente é o aparelho técnico em si que, automaticamente, produz uma notação técnica.

C) O n.º 2 do artigo 358º do Código Penal equipara à falsificação de notação técnica a acção perturbadora sobre aparelhos técnicos ou automáticos por meio da qual se influenciam os resultados da notação, pelo que comete o crime de falsificação de notação técnica a pessoa que manipular de modo abusivo o aparelho em questão, perturbando, desse modo, o seu funcionamento e, consequentemente, alterando os seus resultados.

D) O aparelho de tacógrafo constitui uma notação técnica pois destina-se a registar o decurso de um acontecimento (informações relativas à marcha do movimento dos veículos onde são apostos, tempos de condução e ainda tempos de repouso dos condutores), com vista à prova de um facto juridicamente relevante (respeito pelos limites máximos de horas de condução e períodos de repouso).

E) O arguido, condutor de um veículo pesado de passageiros, ao trocar o cartão de motorista que o identifica, por cartão da mesma natureza de outra pessoa, seguindo assim viagem, faz com que com o registo de tempo de condução levado por si a cabo não fique registado em seu nome pelo que leva a que o aparelho de tacógrafo forneça uma informação inexacta e juridicamente relevante.

F) A troca dos referidos cartões é, deste modo, uma acção perturbadora do aparelho de tacógrafo e faz com que os dados por si fornecidos não correspondam à realidade ludibriando as autoridades quanto ao tempo efectivo de condução por si efectuado e quanto aos períodos de repouso por si gozados.

G) Provando-se que o arguido inseriu, de modo intencional, no aparelho tacógrafo, o cartão de outro motorista, seguindo assim viagem, com intenção de não acumular horas no seu cartão de motorista, bem como que o mesmo era conhecedor de que com a sua conduta adulterava os dados fornecidos pelo tacógrafo, estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de notação técnica, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 258º, n.º l, alínea e n.º 2 e artigo 255º, alínea b), ambos do Código Penal.

H) Este crime encontra-se numa situação de concurso efectivo o crime de uso de documento de identificação alheio, previsto e punível pelo artigo 261º do Código Penal, crime este pelo qual o arguido foi condenado.

I) No concurso de crimes o critério de determinação é o previsto no artigo 30º n.º 1 do Código Penal que dispõe que "o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente".

J) O crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio protege a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico probatório.

K) Na conduta do arguido há uma dupla ilicitude uma vez que não só usou um documento que não lhe pertencia e identificava outrem, como também forjou, com esse uso, os dados fornecidos pelo tacógrafo.

L) O artigo 261º do Código Penal na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007 de 4 de Setembro, acrescentou a expressão ff com intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime", pelo que, ao fazê-lo, quis prever a punição de forma autónoma, duas condutas do agente vistas em separado.

M) Havendo dois bens jurídicos distintos protegidos pelas normas incriminadoras e uma dualidade da ilicitude contida na conduta do arguido, praticou o mesmo, em concurso efectivo, um crime de falsificação de notação técnica e um crime de uso de documento de viagem ou de identificação alheio.

Pelo exposto, V. Exas. deverão conceder provimento ao recurso e, em consequência, condenar o arguido A... na prática, em concurso efectivo, de um crime de um crime de falsificação de notação técnica, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 258º n.º 1 e n.º 2, alínea b) e 255º, alínea b) do Código Penal, e de um crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio, previsto e punível pelo artigo 261º n.º 1 e 255º alínea C), do citado diploma legal, assim fazendo, Justiça!

O arguido condensou a sua motivação de recurso nas seguintes conclusões:

1 - A decisão recorrida, ao dar como provado que o arguido introduziu no tacógrafo o cartão de terceiro, que agiu com a intenção de não acumular horas no seu cartão de motorista e assim ter a possibilidade de conduzir por um período superior a 9 horas ou começar a trabalhar mais cedo no dia seguinte, não respeitando o período de descanso diário exigido, pondo deste modo em causa a segurança rodoviária e a dos passageiros que transporta, que quis iludir a actividade fiscalizadora das autoridades e que agiu consciente e deliberadamente, interpretou de forma errónea as declarações da testemunha F....

2 - As declarações prestadas pela dita testemunha, cuja reapreciação se requer, designadamente as prestadas a 01m55ss e 07m 21ss da gravação, não permitem concluir quem introduziu no tacógrafo o cartão, com que intenção agiu o arguido, que o arguido pôs em causa a segurança rodoviária e a dos passageiros que transporta e que o arguido quis iludir a actividade fiscalizadora das autoridades.

3 - O recurso aos juízos de experiência comum, não suportados em factos materiais suficientes, não bastam para dar como provada a matéria de facto indicada nos pontos 7 e 8.

4 - O cartão de tacógrafo, ainda que se deva considerar um cartão de identificação pessoal, não se enquadra na definição de documento de identificação nos termos e para os efeitos do art. 255.° alínea c) do CP.

5 - A definição legal de documento de identificação, ao especificar a "situação profissional", refere-se a "certificados ou atestado", não sendo este o caso do cartão de tacógrafo.

6 - O conceito de documento de identificação foi já alterado, para introdução expressa da menção ao cartão de cidadão, em data posterior à obrigatoriedade da utilização de tacógrafos digitais, sem que se introduzisse o aditamento do cartão de tacógrafo.

7 _ O aditamento do cartão de tacógrafo ao art. 255.° do CP poderia ainda ter sido feito com a publicação do regime aplicável ao incumprimento das regras relativas à instalação e uso do tacógrafo, assim como aquando das recentes alterações ao Código Penal, pelo que se deve concluir ser vontade do legislador a sua não inclusão.

8 - O conceito legal de documento de identificação não deve englobar o cartão de tacógrafo "sob pena de esquecermos o carácter subsidiário ou fragmentário do direito penal, pois, se por aí seguirmos, estaremos a alargar o campo de aplicação da norma e a postergar um efectivo critério limitador da intervenção daquele".

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento ao recurso substituindo-se a sentença recorrida por outra que, nos termos supra concluídos, seja apta a fazer JUSTIÇA.

O arguido respondeu ao recurso do Ministério Público, concluindo que lhe deve ser negado provimento.

O Ministério Público respondeu ao recurso do arguido, concluindo que se deverá negar-lhe provimento, confirmando-se a decisão recorrida no que respeita à condenação do arguido pela prática de um crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que deve ser provido o recurso do Ministério Público e negado provimento ao recurso do arguido.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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            II. Fundamentos da decisão recorrida

A decisão recorrida contém os seguintes fundamentos de facto:

Factos provados:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos (faz-se alusão a que todas as horas serão mencionadas com referência ao constante no tacógrafo, sendo que para se obter a hora real, haverá de acrescentar-se sempre uma hora):

1) No dia 10 de Julho de 2011, o arguido A... iniciou a condução do veículo pesado de passageiros, com a matrícula HJ..., pertença de S..., Lda.”, empresa esta para quem o arguido trabalhava, pelas 05:00, na localidade dos Carvalhais – São Pedro do Sul, com destino a Tomar.

2) Nessa altura, o arguido introduziu o seu cartão de condutor com o n.º 251876000, onde figurava ainda o seu nome, no interior do aparelho de controlo instalado naquela viatura, designado por tacógrafo.

3) Às 20h01, o arguido retirou o seu cartão do tacógrafo e inseriu às 22h02 no mesmo, o cartão de B..., que era passageiro da viatura conduzida pelo primeiro, cartão com o n.º 171074000, com o nome e fotografia do segundo.

4) Seguiu o arguido A... viagem, depois de ter efectuado a troca em cima descrita, em direcção a São Pedro do Sul.

5) Agiu do modo descrito com intenção de não acumular horas no seu cartão de motorista, que são registadas automaticamente pelo aparelho de controlo, e assim ter a possibilidade de conduzir por um período superior a 9 horas ou de começar a trabalhar mais cedo no dia seguinte, não respeitando o período de descanso diário exigido, pondo, deste modo, em causa, a segurança rodoviária e a dos passageiros que transporta.

6) Sabia que usava um documento que não o identificava como motorista e que, desse modo, colocava em causa a credibilidade que é depositada nos documentos de identificação.

7) Mais era conhecedor de que com essa conduta adulterava os dados fornecidos pelo tacógrafo, forjando um registo dos dados referentes à condução e descanso sem correspondência com a realidade, assim lesando o Estado e fé pública que é depositada na veracidade dos dados fornecidos por aquele aparelho e que o Estado quer preservar, iludindo a actividade fiscalizadora das autoridades e alcançando, deste modo, benefícios ilegítimos para si e para a sua entidade empregadora.

8) Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido, livre, deliberada e conscientemente.

9) O arguido é contínuo numa escola auferindo, mensalmente, €620.

10) Vive com a sua mulher e uma filha, de 10 anos de idade, em casa própria.

11) A sua mulher é funcionária de balcão auferindo, mensalmente, o valor de €485.

12) O arguido paga mensalmente, a título de empréstimo bancário contraído para a aquisição de veículo automóvel, €200

13) Tem o 12.º ano de escolaridade.

14) Nunca teve qualquer condenação criminal.

Factos não provados:

Da discussão da causa, não resultou provado que:

A) Às 20:01, o arguido A... parou a viatura que tripulava na área de serviço da Mealhada, onde fez uma paragem de cerca de duas horas.

B) Nesta área de serviço, o arguido A... pediu ao arguido B... que o deixasse usar o seu cartão de motorista no tacógrafo, ao que este prontamente acedeu.

C) O arguido retirou o seu cartão do tacógrafo às 22h02.

D) Seguiu viagem pela A1 até Albergaria, onde alcançou a A25.

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O tribunal não se pronuncia sobre a demais matéria alegada na acusação e contestação porquanto a mesma apresenta natureza jurídica, conclusiva ou irrelevante para a decisão da causa.

*

Motivação:

Todos os elementos probatórios constantes dos autos foram analisados de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, tendo sido todos articulados e concatenados entre si.

Quanto ao factos dados como provados, e no que toca aos factos 1) a 4), o Tribunal baseou-se nas declarações sérias, espontâneas e peremptórias de F..., cabo da G.N.R. que procedeu à fiscalização do arguido no dia em apreciação e que o interceptou quando este conduzia o veículo pesado, confirmando que também estava no veículo B..., os quais foram identificados com base na carta de condução, e que auxiliou o Tribunal na leitura dos dados impressos do tacógrafo e constantes dos autos (tendo frisado, tal como se referiu supra que, para harmonização europeia, os dados do tacógrafo têm uma hora de antecedência relativamente ao horário português), bem como de António Tavares, gestor da empresa para a qual este trabalhava, conjugadas com o teor dos documentos de fls. 11 a 13, 53 a 64 e 70 a 72.

No que concerne à factualidade constante dos pontos 5) a 8), resulta das regras da experiência comum que, agindo como agiu, o arguido revelou ter intenção directa de praticar os factos, como efectivamente, o fez e com as motivações aí constantes, pois é sabido que os motoristas utilizam tais artifícios como forma de alterarem a legislação que impõe que não conduzam mais do que um determinado número de horas seguido. Como se refere no Ac. da R.P. de 23/02/93, B.M.J. 324/620, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”. No mesmo sentido vide Ac. da R.P. 0140379, 03/10/2001, Ac. R.G. 1559/05.1, de 14/12/2005, ambos em www.jurisprudencia.vlex.pt.

Quanto às condições pessoais do arguido, o tribunal baseou-se nas suas próprias declarações, que se afiguraram credíveis.

No que diz respeito à ausência de antecedentes criminais, serviu de meio de prova o certificado de registo criminal de fls. 475.

Quanto aos factos dados como não provados, o tribunal atendeu à falta de produção de prova no seu sentido, pois nenhuma prova inclui a indicação do local onde o arguido terá parado e o caminho que utilizou de regresso, bem como não se sabe se a troca de cartões partiu de iniciativa do arguido ou de incitação de B..., apenas se podendo ter certeza que o arguido procedeu à troca dos cartões, por ser quem conduzia e, naturalmente, não se poderá fazer crer que o motorista não controle o cartão que se encontra inserido no tacógrafo por tal ser da sua responsabilidade e ter obrigação de isso controlar.

O facto C) deu-se como não provado atenta a prova do facto 3.

As testemunhas C, D, e E, todos amigos do arguido e por o mesmo apresentados apenas vieram depor sobre a sua situação pessoal.


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            III. Apreciação do Recurso

A documentação em acta das declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento determina que este Tribunal, em princípio, conheça de facto e de direito (cfr. artigos 363° e 428º nº 1 do Código de Processo Penal).

Mas o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso. E vistas essas conclusões as questões a apreciar são as seguintes:

- Se a factualidade provada da sentença recorrida integra a prática pelo arguido do crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo artigo 258º, nº 2 do Código Penal, devendo ser condenado;

- Se a factualidade provada na sentença recorrida não é susceptível de integrar a prática do crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio p. e p. pelo artigo 261º, nº 1 do Código Penal;

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo ser alterada no sentido pugnado pelo arguido com a sua consequente absolvição.

Propositadamente se mencionou em último lugar a questão de facto suscitada porque, a responder-se afirmativamente à questão de direito enunciada pelo arguido da não punibilidade dos factos que determinaram a sua condenação, despiciendo será verificar se ocorreu o invocado julgamento da matéria de facto.

Começando, porém, por apreciar a questão de direito suscitada pelo Ministério Público, não desconhecemos a divergência jurisprudencial existente, mesmo no seio desta Relação. Mas seguimos o entendimento expresso no acórdão do TRC desta mesma secção de 29.02.2012, proferido no proc n.º 24/11.2GTCTB.C1, de que foi relator o Exmo. Desembargador Alberto Mira (a decisão recorrida apoia-se em acórdão anterior do mesmo relator) que transcrevemos e é do seguinte teor:

«Dispõe o artigo 258.º, do Código Penal:

 «1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:

a) Fabricar notação técnica falsa;

b) Falsificar ou alterar notação técnica;

c) Fizer …constar falsamente de notação técnica facto juridicamente relevante; ou

d) Fizer uso de notação técnica a que se referem as alíneas anteriores, falsificada por outra pessoa;

é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2. É equiparável à falsificação de notação técnica a acção perturbadora sobre aparelhos técnicos ou automáticos por meio da qual se influenciam os resultados da notação.

      3. A tentativa é punível.

         4. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 256º».

O artigo 255º, al. b) do Código Penal define nestes termos o conceito de “notação técnica”: «a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os resultados e que se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente» (o negrito pertence-nos)».

Citando Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 671, prossegue o aresto «Como sucede com o documento, não é o objecto material onde se realiza a notação técnica o relevante no domínio jurídico – penal; «o que importa para efeitos do crime de falsificação de notação técnica é a interferência em qualquer processo automático de notação que acabe por dar origem a um registo de notação falsa de um valor, de um peso, de uma medida, de um decurso de acontecimento e, por conseguinte, de uma notação técnica falsa. Aquela notação constitui a prova de um facto juridicamente relevante que devido à manipulação do processo automático está desvirtuada…»

O crime de notação técnica tem em vista a protecção de um específico bem jurídico-criminal, qual seja a autenticidade da notação.

Como adverte Helena Moniz, «não se trata da veracidade ou da autenticidade do conteúdo da notação; o que se pretende é a “protecção da exactidão formal” garantindo que a produção da notação é “livre” de qualquer manipulação humana …»

O objecto da acção típica no crime de notação de falsificação técnica é o objecto material que, total ou parcialmente, de forma automática, criou o registo técnico relevante.

No específico domínio da a. c) do n.º 1 do artigo 258º, do Código Penal, para a existência do crime é indispensável que se verifique, de forma automática, através de um aparelho técnico, o registo de um valor falso, de um peso falso, de uma medida falsa ou de um decurso falso de um acontecimento, devendo a notação técnica assim produzida ser adequada objectivamente para ter efeitos probatórios ou algum tipo de relevância jurídica.

No que tange à previsão do n.º 2 do artigo 258º, para que o crime ocorra é indispensável a acção perturbadora sobre um aparelho técnico ou automático e uma actuação posterior do agente para desencadear a produção da notação …»

Transpondo para a situação que ora nos ocupa, estando, tão só em causa – no que a este crime concerne – a condução, por parte do arguido, do veículo tractor de mercadorias, de matrícula (...) 27, ostentando o tacógrafo um disco diagrama em nome de C (...), à luz do que exposto ficou quanto à conformação do tipo legal, é nossa convicção não integrar tal factualidade a acção relevante/típica do crime em referência, já que não traduz a mesma qualquer interferência no processo de registo do tacógrafo do veículo e, logo, não se verificou, por intermédio da manipulação do aparelho, a produção de notação falsa das horas de condução." (fim de transcrição)

E outros argumentos não temos, além dos expostos no transcrito acórdão que nos merece total concordância, pelo que apenas concluímos com base nele, pelo acerto da decisão recorrida no sentido de absolver o arguido do crime em referência, com a consequente improcedência do recurso do Ministério Público.

Por outro lado, o recorrente arguido pugna no sentido da sua absolvição também relativamente ao crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio por entender que os factos imputados ao arguido o não integram.

Quanto a este aspecto substantivo não podemos deixar de perfilhar a posição expressa no acórdão do TRC de 06.04.2011, proferido no proc n.º 48/09.0GTGRD.C1, de que foi relator ora adjunto, Exmo. Desembargador José Eduardo Martins (não desconhecendo também decisão de sentido contrário nesta Relação que a sentença recorrida cita) cujo teor se passa a transcrever:

«Será o cartão tacógrafo … um verdadeiro documento de identificação para os efeitos da alínea c), do artigo 255º, do C. Penal?

Estatui o artigo 261º, do C. Penal que:

«1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, utilizar documento de identificação ou de viagem emitido a favor de outra pessoa, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

(…)
Por seu lado, a alínea definitória c), do artigo 255º, do C. Penal consagra o seguinte:

«c) Documento de identificação ou de viagem – o cartão de cidadão, o bilhete de identidade, o passaporte, o visto, a autorização ou título de residência, a carta de condução, o boletim de nascimento, a cédula ou outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível».

Por sua vez, a definição do cartão tacográfico consta do Decreto-Lei n.º 169/09, de 31 de Julho [diploma que define o regime contra-ordenacional aplicável ao incumprimento das regras relativas à instalação e uso do tacógrafo estabelecidas no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, alterado pelo Regulamento (CE) n.º 2135/98, do Conselho de 24 de Setembro, e pelo Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março], mais propriamente do seu artigo 2.º, alínea b), onde se refere que se trata de um “cartão com memória destinado à utilização com o aparelho de controlo e que permite determinar a identidade do titular, armazenar e transferir dados destinados, segundo o respectivo titular, ao condutor, à empresa detentora do veículo, ao centro de ensaio e às entidades de controlo.”

Estamos, pois, a falar de um documento emitido pelo IMTT, sem dúvida de identificação, que é imprescindível para a condução de veículos equipados com tacógrafos digitais.

Ora, ninguém coloca em causa que este cartão de condutor, pessoal e intransmissível, permite, em exclusivo, aceder à condução de veículos equipados com tacógrafo digital.

Mas daí não se pode retirar que se integra na definição de documento prevista no artigo 255.º, alínea c), do Código Penal.

Há vários tipos de identificação. Pensemos, por exemplo, na identificação fiscal, na identificação respeitante ao cartão de utente de saúde, nos passes sociais, nos cartões que demonstram o estatuto profissional de um cidadão.

Acontece que o âmbito de aplicação do artigo 261º não abarca todos os tipos de identificação, uma vez que contempla só aqueles que constam da noção constante da al. c), do artigo 255.º, do C. Penal. E esta não engloba o cartão tacográfico.

(…) o artigo está dirigido a documentos que se prendem com o conceito elevado de cidadania e não com aqueles que respeitam, sem mais, a uma actividade profissional e ao registo de determinados actos a ela inerentes.

Saliente-se, até, que o artigo 255º, al. c), do C. Penal, ao mencionar a “situação profissional”, refere expressamente “certificados ou atestados” e “donde possam resultar direitos e vantagens, designadamente …”

Não é feita qualquer alusão a cartões.

Não pode ser outra a interpretação a dar ao preceito, sob pena de esquecermos o carácter subsidiário ou fragmentário do direito penal, pois, se por aí seguirmos, estaremos a alargar o campo de aplicação da norma e a postergar um efectivo critério limitador da intervenção daquele».

A análise levada efectuada no aresto em referência, não negando em face das características e finalidade assinaladas ao dito «cartão tacográfico», tratar-se de um documento de identificação – como parece inequívoco – afasta a sua integração na previsão da al. c) do artigo 255.º do Código Penal que, pese embora a sua ampla formulação, efectivamente, não se vislumbra que o contemple.

Assim, pelos fundamentos expostos sem que outros tenhamos a acrescentar, deve ser provido o recurso do arguido e revogada a decisão recorrida na parte em que o condenou pela autoria do citado crime.


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IV. Decisão

Nestes termos acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que o condenou pela autoria de um crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio p. e p. pelo artigo 261º, nº 1 do Código Penal, decidindo absolvê-lo o que, igualmente, implica a revogação da sua condenação em custas.

Não há lugar a tributação em razão dos recursos.


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Coimbra, 26 de Fevereiro de 2014

 (Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)


 (José Eduardo Fernandes Martins)