Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
96/14.8TBSRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE DEPÓSITO
REPARAÇÃO DE VEÍCULO
RESTITUIÇÃO
PRINCÍPIO DA BOA FÉ
Data do Acordão: 06/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.227, 762, 799, 1185, 1186, 1187 CC
Sumário: 1. - Se uma das partes entrega a outra um veículo automóvel para deteção de avaria, orçamentação de reparação e eventual reparação – esta a ser decidida em função dos custos que fossem orçamentados –, ocorre contrato de depósito, com natureza instrumental/preliminar relativamente ao eventual contrato de empreitada de reparação.

2. - Se o depositário, não entregando o orçamento acordado, depois de desmontado parcialmente o motor do veículo, esclarece, todavia, que se trata de avaria no motor, que obriga à respetiva reconstrução ou substituição, incorre em defeituosa prestação de informação, que não é geradora de danos se a finalidade informativa do orçamento foi alcançada, por ter permitindo à contraparte decidir-se pela não reparação.

3. - O depositário está obrigado a restituir a coisa quando lhe for exigida e no estado em que a recebeu, obrigação a ser perspetivada segundo um critério de razoabilidade/proporcionalidade e de justiça contratual, à luz do princípio da boa-fé.

4. - Este princípio revela determinadas exigências objetivas de comportamento – de correção, honestidade e lealdade – impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, postulando certos modos de atuação ao longo de toda a execução do contrato e liquidação da relação.

5. - Cabe ao R. (depositário) o ónus da alegação e prova da impossibilidade não imputável de restituição do bem no estado em que lhe havia sido entregue, por se tratar de matéria de exceção invocada.

6. - Não tendo o depositário procedido à remontagem do motor da viatura, é de ter por irrazoável/desproporcionada a exigência de reconstrução ou substituição do motor ou a indemnização, a expensas daquele, medida pelo valor de mercado de viatura semelhante, se o depositante, perante vício pré-existente do motor, não imputável ao depositário, havia já optado pela não reparação.

7. - A remontagem do motor defeituoso, como obrigação do depositário, configurar-se-ia como um procedimento inútil, pois não supriria o comprometedor defeito pré-existente, não logrando satisfazer o interesse do depositante e onerando excessivamente, sem qualquer retorno, a posição da contraparte.

8. - Em tal caso, é adequado impor ao depositário a entrega, a expensas suas, do veículo no domicílio do depositante, não sendo exigível a este indemnização por ocupação do espaço da oficina onde a viatura foi guardada.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:



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I – Relatório

C (…), com os sinais dos autos,

intentou ([1]) ação declarativa condenatória com processo comum contra

J (…) , também com os sinais dos autos,

pedindo ([2]) a condenação do R.:

“a) A proceder à sua custa, à reparação dos danos causados no veículo do Autor”, de matrícula (...) VR, entregando-lho no estado em que se encontrava no dia 29/06/2013 (data da entrega ao R.);

b) Ou, não sendo possível a reconstituição, a “pagar ao Autor a quantia de € 8.250,00 (…) referente ao valor do veículo”;

c) A pagar-lhe a quantia de € 1.224,00, a título de indemnização pela privação do uso do veículo (cfr. retificação ao pedido formulada na réplica);

d) A que acrescem juros moratórios, à taxa supletiva legal, desde a citação e até integral pagamento.

Para tanto, alegou:

- ser o A. proprietário daquele veículo automóvel, que deixou na oficina de reparações do R., para elaboração de orçamento de reparação de avaria no motor, sendo que tal R., sem autorização e sem elaboração de orçamento, procedeu à desmontagem do motor, sem lograr remontá-lo, assumindo a sua incapacidade para efetuar a reparação, pelo que se limitou a solicitar ao A. que retirasse a viatura (e peças desmontadas) da sua oficina;

- ser, ao tempo, tal veículo o único de que dispunha, de cujo uso ficou privado, até que teve de adquirir nova viatura.

Contestou e reconveio o R., alegando que:

- para determinação da avaria, o A. autorizou a desmontagem, sabendo que tal implicaria a inutilização de algumas peças e custos adicionais;

- após a desmontagem, verificou-se que a reparação obrigava à reconstrução do motor ou colocação de motor usado, tendo o A. sido informado dessa alternativa e respetivos custos;

- em 19/07/2007, o A. informou que perdera o interesse na reparação, por ter adquirido outro veículo, comprometendo-se a retirar a viatura da oficina e a pagar os custos da desmontagem realizada, o que não fez, estando o veículo a ocupar área da oficina, impedindo a utilização desse espaço, o que consubstancia um dano que, fixado à razão de € 6,15 diários, ascende a € 1.832,70, a que acrescem danos não patrimoniais decorrentes da permanência abusiva da viatura na oficina, cuja reparação deve ascender a € 1.500,00.

Concluiu pela improcedência da ação e formulou pedido reconvencional, assim pedindo a condenação do A./Reconvindo no pagamento das quantias:

a) De € 6,15 por dia, a título de indemnização pela ilícita permanência do veículo na sua oficina, desde 19/07/2013 até à sua efetiva retirada, liquidando-a em € 1.832,70 até à data de instauração da reconvenção;

b) De € 1.500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da sentença e até integral pagamento;

c) De € 233,70, pelo serviço de desmontagem do motor, acrescida de juros moratórios desde a citação até integral pagamento; e

d) Em multa e indemnização a favor do R., esta a liquidar, por litigância de má-fé do A., ante alteração consciente da realidade dos factos e dedução de pretensão cuja falta de fundamentos não podia ignorar.

O A./Reconvindo apresentou réplica, concluindo pela improcedência da reconvenção e peticionando a condenação do R., como litigante de má-fé, por reclamar indemnização a que sabe não ter direito, em multa, a fixar pelo Tribunal.

Realizada audiência prévia, admitida a reconvenção, saneado o processo e fixados o objeto do litígio e os temas da prova, procedeu-se depois à realização da audiência final.

Na sentença (proferida em 31/08/2016) foram a ação e a reconvenção julgadas totalmente improcedentes, com a consequente absolvição das partes dos pedidos.

Inconformado, recorre o A., apresentando alegação, culminada – após convite do Relator ao aperfeiçoamento conclusivo ([3]) – com as seguintes

Conclusões ([4])

(…)

Em contra-alegação recursória, bate-se o R. pela improcedência do recurso.

Tal R. veio, por seu turno, interpor recurso subordinado, alegando e formulando as seguintes

Conclusões

(…)

Não foi apresentada contra-alegação em matéria de recurso subordinado.

Os recursos (principal e subordinado) foram admitidos como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento da matéria recursória, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito Recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pelas partes recorrentes – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito recursório, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([5]) –, incidindo as impugnações sobre a decisão da matéria de facto e de direito, importa saber ([6]):

a) Em matéria de facto:

1. - Se deve ser dado como provado o acervo fáctico, considerado não provado na sentença, a que se reporta o A./Apelante (pontos 2.1. a 2.3., 2.6 e 2.7); e se devem ser alterados os pontos 1.4. e 1.8. do quadro fáctico dado como provado (recurso principal);

2. - Se (recurso subordinado) deve aditar-se um novo facto assente e, bem assim, alterar-se o decidido quanto aos pontos 2.2., 2.4. e 2.8. a 2.19, dados como não provados;

b) Em matéria de direito:

3. - Se houve erro de qualificação jurídica na sentença, por ocorrer responsabilidade contratual (em vez de responsabilidade extracontratual);

4. - Se estão verificados os requisitos da responsabilidade contratual (do R.);

5. - Caso o estejam, qual o montante indemnizatório a arbitrar;

6. - Se, celebrado contrato de empreitada (para desmontagem do motor), é devido o custo da desmontagem;

7. - Se, ocorrendo ocupação ilícita de espaço da oficina, há responsabilidade extracontratual do A. e decorrente obrigação indemnizatória.


***

III – Fundamentação

A) Impugnação da decisão de facto

1. - Quanto ao aditamento de novo facto assente

Pretende o R., em sede de recurso subordinado, que se adite um novo facto ao quadro provado da sentença – ao que a contraparte não deduziu oposição –, de acordo com o decidido em sessão de audiência de 04/06/2015 [gravação em Registo áudio (CITIUS)] ([7]).

Assim, esgrime ter, além do facto provado do ponto 1.6 ([8]), ficado assente que o R., após a desmontagem da cabeça do motor, verificou que o motor se encontrava em mau estado, nomeadamente o piston do quarto cilindro batia na cabeça, devido a folgas dos bronzes da cambota e no cavilhão da viela, tendo já danificado parte do injetor, desgaste nos cilindros e falha de um, veios discêntricos gripados e desgaste acentuado anormal interno, dados esses que foram obtidos ainda sem desmontagem total, o que foi comunicado pelo réu ao autor no dia 3/07/2013.

Ora, consultadas tais ata e gravação áudio, só pode, ouvida a gravação, dar-se razão ao R./Recorrente quando pretende a inclusão deste facto, que foi efetivamente dado como assente na sessão de audiência de 04/06/2015, pelo que só por lapso – aliás, manifesto – não terá sido incluído no elenco dos factos provados.

Resta, assim, aditar tal facto ao quadro fáctico provado, como pretendido pelo R./Recorrente.

2. - Quanto à demais factualidade sob impugnação

(…)

Em suma, improcede neste particular a impugnação, elencando-se seguidamente o quadro fáctico – o provado e o não provado – com inclusão do alterado por esta Relação.

B) Quadro fáctico a considerar

Após as alterações realizadas na sede recursória, provou-se a seguinte factologia:

«1.1. O Autor é dono do veículo automóvel da marca Mazda e matrícula (...) VR, do ano de 2003;

1.2. Em 29.Junho.2013 esse veículo tinha percorrido 137.685 kms;

1.3. O Réu é dono de uma oficina de reparação de veículos automóveis, mecânica e electrónica;

1.4. Em 29.junho.2013 o Autor dirigiu-se à oficina do Réu com o veículo (...) VR porque este quando em funcionamento (parado ou em marcha) fazia um barulho (batida) e tinha diminuição de potência, o que o Réu veio a verificar ser devido a uma avaria no motor [ALTERADO];

1.5. O veículo de matrícula (...) VR ficou na oficina do Réu com vista à detecção da causa dessa avaria e posterior orçamentação para eventual reparação;

1.6. O Réu procedeu à desmontagem parcial do motor do veículo de matrícula (...) VR, apenas tendo retirado a cabeça do motor e o cárter do óleo;

1.6.-A) Após a desmontagem da cabeça do motor, o R. verificou que o motor se encontrava em mau estado, nomeadamente o piston do quarto cilindro batia na cabeça, devido a folgas dos bronzes da cambota e no cavilhão da viela, tendo já danificado parte do injetor, desgaste nos cilindros e falha de um, veios discêntricos gripados e desgaste acentuado anormal interno, dados esses que foram obtidos ainda sem desmontagem total, o que foi comunicado pelo réu ao autor no dia 3/07/2013 [ADITADO];

1.7. O Réu, após a desmontagem do motor e do cárter, informou o Autor que a reparação da avaria implicava ou a “reconstrução do motor” ou a “colocação de um motor usado”;

1.8. O Autor não transmitiu ao Réu quaisquer instruções num ou noutro sentido, visto este não lhe ter apresentado orçamento discriminado de reparação para o efeito [ALTERADO];

1.9. O veículo de matrícula (...) VR permanece na oficina do Réu com a cabeça do motor e o cárter desmontados;

1.10. O Autor obteve junto da sua seguradora, “Zurick, S.A.”, um veículo de substituição entre os dias 5 e 10.Julho.2013;

1.11. Em 19.Julho.2013 o Autor adquiriu um veículo automóvel usado da marca Toyota, modelo Auris, pelo valor de 14.600 €;

1.12. Após a aquisição do veículo automóvel da marca Toyota, o Autor solicitou ao Réu a entrega do veículo de matrícula (...) VR no estado em que estava quando lhe foi entregue em 29.Junho.2013 (6º tema de prova).

1.13. O Réu endereçou ao Autor, e este recebeu, carta datada de 19.Março.2014 (constante de fls. 37 e 38 e cujo conteúdo se tem como reproduzido) interpelando-o para proceder à retirada do veículo Mazda e matrícula (...) VR da sua oficina.

1.14. O veículo de matrícula (...) VR constituía o único meio de transporte do agregado familiar do Autor [ADITADO];

1.15. Este veículo ocupa cerca de 10 m2 da área útil da oficina do Réu [ADITADO]».

E foi julgado não provado que:

«2.1. o Autor tenha deixado o veículo de matrícula (...) VR na oficina do Réu apenas para elaboração de orçamento para reparação da avaria que o afectava (1º tema de prova);

2.2. o Réu tenha procedido à desmontagem parcial do motor desse veículo sem autorização do Autor (2º tema de prova);

2.3. o Réu tenha comunicado ao Autor que não conseguia proceder à montagem do motor e à reparação do veículo de matrícula (...) VR (3º tema de prova);

2.4. o Réu, em 15.Junho.2013, tenha solicitado ao Autor que retirasse da sua oficina o dito veículo (4º tema de prova);

2.5. em 29.Junho.2013, o veículo de matrícula (...) VR tivesse o valor comercial de 8.250 € (5º tema de prova);

2.6. o veículo de matrícula (...) VR, e respectivo motor desmontado, se encontrem deteriorados pelo facto de permanecerem a garagem do Réu (7º tema de prova);

2.7. [SUPRIMIDO];

2.8. o Réu tenha informado o Autor que para determinar a causa da avaria do veículo de matrícula (...) VR seria necessário proceder á desmontagem da cabeça do motor e que essa operação implicaria a danificação de algumas peças e teria custos, ainda que não decidisse avançar com a ordem de reparação (tema de prova 9º);

2.9. tenha sido na sequência desses esclarecimentos que o Autor determinou que o Réu procedesse á desmontagem do motor (tema de prova 10º);

2.10. o Autor também tenha autorizado o Réu a desmontar o cárter do motor para averiguar o estado do óleo (tema de prova 11º);

2.11. o Réu, ao informar o Autor que a erradicação da avaria implicava ou a “reconstrução do motor ou a “colocação de um motor usado”, o tenha esclarecido sobre o tempo e os custos de cada uma dessas reparações (tema de prova 12º);

2.12. o Autor, na sequência dos esclarecimentos prestados pelo Réu, tenha decidido não avançar de imediato com a ordem de reparação (tema de prova 13º);

2.13. o Réu tenha informado o Autor que a remontagem do motor com peças novas importaria em 800€/900 €, a que acresceria o IVA (tema de prova 14º);

2.14. o Autor tenha informado o Réu que já não estava interessado na reparação do veículo de matrícula (...) VR, mecê da aquisição de um novo veículo, comprometendo-se a retirá-lo da sua oficina e a pagar os custos de desmontagem (tema de prova 15º);

2.15. [SUPRIMIDO];

2.16. a permanência do veículo de matrícula (...) VR na oficina do Réu tenha impedido a instalação de uma máquina para montagem e calibragem de pneus (tema de prova 18º);

2.17. a permanência desse veículo na oficina do Réu desde 29.Junho.2013 suscite reparos e comentários dos clientes da oficina que atinjam o Réu no seu brio e prestígio profissionais (tema de prova 19º);

2.18. o Réu, no período decorrente entre Julho.2013 e Fevereiro.2014, insistiu junto do Autor para que este retirasse o veículo de matrícula (...) VR da sua oficina (tema de prova 16º);

2.19. o custo do serviço de desmontagem do motor, compreendendo a mão-de-obra e consumíveis, ascendesse a 233,70 €, com IVA incluído (tema de prova 20º).».


***

C) Impugnação de direito

1. - Da adequada qualificação da relação jurídica

Ante as questões que se suscitam em matéria de direito – vem questionada, desde logo, a qualificação jurídica operada na sentença, quanto ao objeto do litígio e ao peticionado na ação e na reconvenção, no quadro da responsabilidade civil extracontratual, âmbito em que pretende o A., dissentindo, a aplicação da disciplina jurídica da responsabilidade contratual, defendendo o R., por sua vez, ter sido celebrado contrato de empreitada, para desmontagem do motor –, urge começar por sindicar a qualificação assumida pelo Tribunal a quo.

O A., na sua petição, demitindo-se de proceder ao enquadramento jurídico do caso, limitou-se a narrar a sua versão dos factos, para concluir que, perante um veículo carecido de reparação (problema no motor), esta só seria opção em função do seu custo económico, «pois poderia não compensar o “arranjo”» (cfr. art.ºs 12.º e 33.º desse articulado), posto que se tratava de viatura com um “valor de mercado” – isto é, se (estivesse) em adequado estado de funcionamento e conservação – de € 8.250,00 (cfr. art.º 42.º do mesmo articulado).

Partindo, então, de uma não autorizada desmontagem parcial do motor pelo R., que não apresentou orçamento de reparação, pretende o A./Apelante a condenação daquele, sem ilustrar com base em que instituto jurídico, na reparação integral dos danos existentes no motor da viatura (independentemente, pois, de qualquer avaria pré-existente à desmontagem, como se tudo derivasse simplesmente desta última) ou, na impossibilidade de reparação, em indemnização medida por aquele valor comercial (dito montante de € 8.250,00), acrescido ainda de € 7.704,00, como indemnização pela privação do uso do veículo (ou a quantia que for liquidada até à data da reparação integral e definitiva do veículo).

Quer dizer, entregando na oficina, para orçamentação de reparação, um veículo com avaria que até “poderia não compensar o arranjo”, o A. encontra motivos para peticionar indemnização no montante total de capital de € 15.954,00 (valor do seu pedido), quando o alegado valor comercial (de mercado) de uma viatura semelhante, mas em adequado estado de conservação e funcionamento, ascenderia apenas a de € 8.250,00.

O R., na contestação, alegando que o A. deu ordem de desmontagem do motor e cárter para diagnóstico da avaria, bem sabendo, por disso ter sido esclarecido, que tal teria custos, ainda que não fosse efetuada reparação, e que, feita estimativa de custos de opções de reparação, o A. entendeu não reparar, sendo que também não retirou a viatura da oficina, como podia (com recurso ao serviço de reboque), ocupando espaço interior desta, apesar de instado à desocupação, assim causando prejuízo ao R., concluiu que a sua recusa em suportar os custos da remontagem é legítima ao abrigo da exceção de não cumprimento do contrato – assim pressupondo a existência de relação contratual – e que a exigência dessa remontagem implicaria enriquecimento sem causa do A., enfatizando, por fim, já em sede de reconvenção, que a ocupação ilícita de espaço da oficina faz incorrer o A./Reconvindo em “responsabilidade civil” (art.º 98.º desse articulado), e peticionando por forma a atribuir à reconvenção o valor de € 3.566,40.

Por aqui se ficou, pois, a discussão jurídica inter partes em sede de articulados da causa, apenas nas peças recursórias, depois da qualificação de direito da sentença ([9]), sendo dados outros contributos qualificativos.

Perante ação indemnizatória (a que se reconduz o petitório da ação e da reconvenção), cabe perguntar: tratar-se-á aqui de responsabilidade extracontratual? Ou responsabilidade contratual? Ou, diversamente, responsabilidade pré-contratual?

Quanto à relação jurídica estabelecida, vem provado que o veículo foi inicialmente entregue ao R., perante deficiência de funcionamento – o motor, quando a funcionar (com o veículo parado ou em marcha), fazia um barulho (batida) e tinha diminuição de potência, que o R. verificaria depois ser devido a uma avaria em tal motor –, para (i) deteção da causa da avaria, (ii) subsequente orçamentação de reparação e (iii) eventual reparação (esta em função dos custos que fossem orçamentados).

Foi neste quadro que o R., para cabal deteção da deficiência/avaria, procedeu à desmontagem parcial do motor, retirando a cabeça do motor e o cárter do óleo, desconhecendo-se, por não apurado, se com ou sem autorização para o efeito.

Certo é, porém – por provado –, que, realizada essa desmontagem, foi possível, então, ao R. verificar que o motor se encontrava em mau estado (“o piston do quarto cilindro batia na cabeça, devido a folgas dos bronzes da cambota e no cavilhão da viela, tendo já danificado parte do injetor, desgaste nos cilindros e falha de um, veios discêntricos gripados e desgaste acentuado anormal interno”), o que foi comunicado ao A., que não deixou de ser informado de que a reparação da avaria implicava a “reconstrução do motor” ou a “colocação de um motor usado”.

Daqui já resulta que, no âmbito da relação estabelecida, foi celebrado entre as partes um primeiro contrato, mesmo se instrumental ou preliminar de outro que se pretendia eventualmente celebrar.

Com efeito, a entrega do veículo logo consubstancia um contrato de depósito (art.º 1185.º do CCiv.), a que, quanto ao seu caráter gratuito ou oneroso, se aplica o disposto no art.º 1158.º, por remissão do art.º 1186.º, ambos do CCiv..

Contrato esse – pelo qual o A. (depositante) entregou ao R. (depositário) o veículo (bem móvel) para que o guardasse e restituísse no tempo próprio – com a finalidade convencionada de deteção da causa da avaria e orçamentação e, bem assim, com função instrumental da eventual reparação (esta sujeita ao que resultasse do orçamento a elaborar).

Tal reparação da viatura, se viesse a concretizar-se, traduziria – então, sim – um contrato de empreitada (cfr. art.º 1207.º do CCiv.), reportando-se a realização da obra à reparação da avaria do motor do veículo ([10]).

Porém, como a reparação não veio a ocorrer, não chegou a tomar corpo contratual a perspetivada empreitada, em que, por isso, se não vincularam as partes.

E não veio a ocorrer, desde logo, por o R., tendo detetado a causa da avaria, não ter, todavia, entregue o orçamento acordado – prova-se que o A. não transmitiu instruções de reparação perante a falta de orçamento discriminado para o efeito (orçamento que contivesse natural identificação de trabalhos a realizar, peças a incorporar, mão-de-obra a consumir, respetivos custos e imposto, concluindo por um preço global final, contemplando as duas possibilidades, alternativas, de reparação, de molde a permitir uma esclarecida escolha, adequadamente informada, do cliente, aliás, um consumidor perante um comerciante/profissional).

Cumpriu, pois, o R. a finalidade primeira do depósito (deteção da avaria e sua causa), mas não observou a subsequente finalidade de entrega de orçamento (prestação completa de informação necessária), a que também se vinculara no contrato celebrado.

Ora, é bem patente o papel relevante do princípio da boa-fé no campo contratual, fundando, por vezes, mormente em situações de desigualdade entre as partes ([11]), designadamente quando uma delas esteja em situação de deficit informativo, a imposição legal de deveres de informação, mas ainda de lealdade e prote­ção, de uma parte à outra, por forma a salvaguardar o fim contratual tido em vista por esta última – aqui o princípio da boa-fé “constitui o fundamento jurídico”, enquanto o “fundamento material” se encontra “na desigualdade ou desnível da informação” (esta de caráter técnico e complexo), em situação de “particular necessidade de protecção” de um dos interlocutores ([12]), no escopo de, na medida do possível, deixar, afinal, compensada, em termos substanciais, aquela desigualdade anterior.

Porém, in casu a finalidade informativa do orçamento foi de alguma forma realizada – não em termos cabais, é certo –, posto que, como visto, efetuada a necessária desmontagem ([13]), verificou o R., somente então, que o motor se encontrava em mau estado (deficiente funcionamento, peças danificadas e gripadas e desgaste acentuado anormal interno), o que não deixou de ser comunicado ao A., assim informado de que a reparação, sendo de apreciável monta, teria de passar pela “reconstrução do motor” ou pela sua substituição, através da “colocação de motor usado”.

E tal defeituosa prestação de informação (faltou o orçamento acordado, com os elementos concretos e exatos que deveria conter) não deixou de ser utilizada/aproveitada pelo A., que decidiu, apesar de tudo, quanto à perspetivada reparação.

Com efeito, a final, o A. acabou por optar pela não reparação, como tem de concluir-se da sua conduta posterior: vinte dias após o início do depósito (em 19/07/2013) adquiriu outro veículo automóvel, após o que solicitou ao R. a restituição do veículo depositado no estado em que se encontrava quando lhe fora entregue.

Assim, não se demonstra, nesta perspetiva, salvo o devido respeito, que da defeituosa prestação de informação orçamental tenha emergido qualquer dano para o A. quanto à sua opção – oportunamente exercida, e em termos suficientemente esclarecidos – pela não reparação da viatura.

Esta devia então ser restituída, posto que o depositário está obrigado a restituir a coisa quando lhe for exigida (art.ºs 1185.º e 1187.º, al.ª c), ambos do CCiv.), e, como também tem de concluir-se, no estado em que este a recebeu, sempre, porém, segundo um critério de razoabilidade e de justiça contratual, como é apanágio do imprescindível princípio da boa-fé em sede de execução contratual (cfr. art.º 762.º, n.º 2, do CCiv.).

A questão coloca-se quanto aos termos dessa restituição, sendo aqui notório o dissenso instalado entre as partes, com o A./Apelante a pretender que a contraparte estava obrigada a restituir a viatura no exato estado em que se encontrava aquando da entrega (com o motor remontado e em igual estado de funcionamento, que permitisse ao veículo, embora com avaria, circular pelos seus próprios meios) e esta a pretender que aquele fosse retirar, a expensas suas, o veículo da oficina com o motor parcialmente desmontado (por entender não ser viável a remontagem, vista a necessária inutilização de peças na operação de desmontagem, o que levaria a que o veículo não ficasse apto a circular).

Na economia do contrato e da ação, cabia ao R. (depositário) o ónus da alegação e prova desta impossibilidade não imputável de restituição do bem no estado em que havia sido entregue, por se tratar de factualidade integrante de matéria de exceção invocada (cfr. art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.).

E o que se prova?

Ora, para além de não se apurar se a desmontagem ocorreu com, ou sem, conhecimento e autorização do A. (matéria em que nenhuma das partes logrou fazer prova), resulta não provado que o R. tenha informado o A. que a operação de desmontagem da cabeça do motor implicaria a danificação de algumas peças e teria custos, ainda que não decidisse avançar com a ordem de reparação (ponto 2.8.).

Quer dizer, se o R. o alegou, já, contudo, não logrou provar, como lhe competia, que (i) a desmontagem da cabeça do motor implicaria a necessária danificação de peças e (ii) disso tenha informado o A. (ou que este o tenha autorizado a proceder desse modo ou nisso tenha consentido).

Assim, a situação dos autos, em matéria de ação, deve ser perspetivada no âmbito da responsabilidade contratual, por força da relação de depósito estabelecida, havendo contrato nesse sentido, apesar de não ter chegado a haver contrato de empreitada.

2. - Da obrigação de prestação, designadamente indemnizatória

Neste âmbito qualificativo tem de constatar-se, como visto, a não restituição da coisa, já exigida pelo dono/depositante, no estado em que se encontrava aquando da sua entrega (isto é, com o motor, embora portador da avaria/deficiência de que padecia já, remontado e capaz de fazer circular a viatura pelos seus próprios meios), o que traduz, objetivamente, inobservância de obrigação contratual do R./depositário, sem que este demonstre causa justificativa da sua conduta omissiva.

Cabe, então, verificada a ilicitude da conduta contratual do R., que se presume culposa (cfr. art.º 799.º, n.º 1, do CCiv.), indagar da existência/relevância e medida do decorrente dano, no quadro da ação indemnizatória.

Ora, no seu pedido de reparação do veículo ou de pagamento de montante indemnizatório correspondente ao valor de mercado da viatura, o A./Apelante tem como pressuposto ter sido o R. a causar os danos que esta apresenta.

O que já se viu não ser exato, pois o motor era portador de sérios danos pré-existentes [cfr. ponto 1.6.-A)], aos quais apenas acresce o que tiver resultado da operação – que se constatou ter sido necessária – de desmontagem da cabeça do motor e do cárter do óleo, posto que não se prova qualquer deterioração (do veículo e seu motor desmontado) decorrente da permanência na garagem do R. (ponto 2.6.).

A esta luz, a reconstrução ou substituição do motor, a expensas do R., seria de ter como flagrantemente excessiva, face ao defeito pré-existente, que em nada é imputável àquele, imposição nesse sentido que se apresentaria, salvo o devido respeito, como desproporcionada e injusta, levando ao sacrifício total ou intolerável do interesse contratual do depositário, solução, pois, a excluir por força do princípio da boa-fé, na vertente da justiça contratual (subprincípio daquele).

Com efeito, é bem sabido que tanto na negociação/formação como no cumprimento/execução dos contratos e, bem assim, no exercício de direitos correspondentes, devem as partes conformar-se com o princípio da boa-fé (art.ºs 227.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, ambos do CCiv.), adotando conduta honesta, correta e leal, e, a mais disso, comprometida, não só com a confiança gerada na contraparte (com correspondente investimento desta última), mas em geral com o interesse contratual de ambas as partes (aquele que visam atingir/satisfazer com o cumprimento do negócio), de molde a que não resulte desnecessária e intoleravelmente prejudicado/comprometido o interesse contratual de qualquer delas.

É que o princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabili­dade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, indicando um certo modo de atuação dos sujeitos, considerado conforme à boa-fé ([14]), a qual deve estar presente no âmbito das tarefas valorativas e aplicativas aos casos concretos, tendo em conta a natureza e função económico-social do contrato ([15]) a que se visa aplicar ([16]) e da relação jurídica estabelecida entre as partes.

Bem se compreende, assim, que, no contexto das relações civis e, mais ainda, das de índole comercial, onde predomina, de certo modo, o individualismo, abrindo horizontes, através da influência conformadora do princípio da liberdade contratual, a que cada uma das partes nos contratos aja por forma a obter para si, dentro dos limites da lei, o máximo possível de vantagens ou utilidades, sem se preocupar com os interesses da outra parte, que podem, por isso, ficar subalternizados ou até inviabilizados, podendo levar, por essa via, a um saldo da execução da relação contratual, vista a finalidade do contrato, manifestamente desequilibrado, surja já por vezes uma outra atmosfera relacional, com novas perspetivas dos direitos e deveres a cargo de cada parte, onde postulados ético-jurídicos de lealdade, correção e honestidade, e até solidariedade, corresponsabilizam os contraentes no levar da relação por caminhos de razoabilidade, equilíbrio e máximo proveito comum possível.

Neste âmbito já não haverá lugar para o estrito egoísmo individualista, em que cada parte se preocupa apenas consigo própria, na obtenção e consolidação de todos os seus interesses motivadores da contratação, se necessário à custa do total sacrifício do escopo contratual da outra parte, mas, em vez disso, para um paradigma virado para exigências de eticização, em que o fim global da relação contratual pretendida só se atinge quando ambas as partes dela logram retirar as utilidades mínimas expectadas e recíproca e comummente aceites como intencionadoras do programa contratual, pelo que as partes, que se juntaram na celebração em comum do contrato, em vez de se oporem na pretensão de satisfação exclusiva de interesses egoísticos próprios, são chamadas a concorrer no imprimir de uma direção de execução contratual que, de forma equilibrada, possa dar frutos contratuais expectados típicos para ambas, numa liquidação materialmente justa da relação.

Relevante é aqui o chamado princípio da primazia da materialidade subjacente – focado na finalidade contratual projetada –, não se bastando com aparências, como a mera adoção de condutas apenas formalmente conformes aos objetivos jurídicos, mas exigindo uma conformidade no plano material/substancial. Os exercícios jurídicos devem ser avaliados, segundo a boa-fé, em termos materiais, de acordo com as suas efetivas consequências. Daí a prioridade para soluções jurídicas de materialidade ou substância – a justiça material – em vez de soluções meramente formais, importando ao caso a exigência de equilíbrio/proporção no exercício de posições jurídicas, postulando a necessidade de sindicar condutas, mesmo se permitidas, à luz do sistema, vedando as atuações gratuitamente danosas para outrem ou as gravemente desequilibradas – condutas que, em vista de uma vantagem mínima para o próprio, provocam um dano máximo para outrem ([17]).

Ante os apurados contornos do caso dos autos, a remontagem do motor defeituoso, como obrigação do R., configurar-se-ia como um procedimento essencialmente inútil, pois não supriria o defeito pré-existente (que o A. entendeu não corrigir, a expensas suas), não logrando satisfazer o interesse do depositante (na sua ambição de voltar a ter o veículo em adequado estado de funcionamento), e oneraria excessivamente, sem qualquer retorno, a posição do R./depositário.

Contexto este em que, em termos de liquidação da relação, se mostra adequado que o R., que recebeu o veículo a poder ainda circular pelos seus próprios meios (embora de forma obviamente deficiente), o entregue, a expensas suas, no domicílio do A. – seria injusto impor a este último o custo do transporte da viatura, em reboque, pois que foi por efeito da conduta do R. (desmontagem) que aquela ficou em estado de não se poder (auto)mover.

E, perante esta obrigação do R., de si ainda não cumprida, não se justifica a pretensão (reconvencional) deste de cobrança pela permanência do veículo nas instalações do depositário (ocupando espaço interior da oficina), inexistindo mora debitoris do A..

Também, nesta perspetiva, não é caso de pagamento ao R. pela desmontagem efetuada para elaboração de orçamento, posto que não resulta demonstrado que tenha havido acordo nesse sentido, ao que acresce que o orçamento nem sequer foi prestado.

Nem será caso, por fim, de pagamento indemnizatório pela privação do uso da viatura, visto que esta não estava, pelo defeito pré-existente de que era portador o respetivo motor, em condições de poder circular, estável e continuadamente (sem a reparação que o A. não entendeu suportar), carecendo de arranjo necessário para o efeito, tendo o respetivo dono optado, por razões compreensíveis – mas que só a si respeitam e a que o R. é naturalmente alheio –, por adquirir, como adquiriu, outra viatura ([18]), não se mostrando excessivo o tempo que o R. levou para deteção da avaria/deficiência e sabido que o A., de permeio, ainda beneficiou de veículo de substituição.

Esta é, a nosso ver, a liquidação da relação de depósito que, face às vicissitudes e desfecho do caso concreto, se mostra, salvo o devido respeito, mais justa e equilibrada, sem sacrificar – total ou inutilmente – o interesse contratual de qualquer das partes.

Termos em que, quanto à ação e ao recurso principal, apenas procede a pretensão do A./Apelante de entrega pelo R. do veículo – no domicílio do A. –, entrega essa, com tudo o que o integra, no estado em que se encontra na sequência da desmontagem parcial realizada e a expensas de tal R..

Em tudo o mais sindicado, mantendo-se a improcedência de ação e reconvenção, naufragam os recursos interpostos.

                                               ***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Se uma das partes entrega a outra um veículo automóvel para deteção de avaria, orçamentação de reparação e eventual reparação – esta a ser decidida em função dos custos que fossem orçamentados –, ocorre contrato de depósito, com natureza instrumental/preliminar relativamente ao eventual contrato de empreitada de reparação.

2. - Se o depositário, não entregando o orçamento acordado, depois de desmontado parcialmente o motor do veículo, esclarece, todavia, que se trata de avaria no motor, que obriga à respetiva reconstrução ou substituição, incorre em defeituosa prestação de informação, que não é geradora de danos se a finalidade informativa do orçamento foi alcançada, por ter permitindo à contraparte decidir-se pela não reparação.

3. - O depositário está obrigado a restituir a coisa quando lhe for exigida e no estado em que a recebeu, obrigação a ser perspetivada segundo um critério de razoabilidade/proporcionalidade e de justiça contratual, à luz do princípio da boa-fé.

4. - Este princípio revela determinadas exigências objetivas de comportamento – de correção, honestidade e lealdade – impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, postulando certos modos de atuação ao longo de toda a execução do contrato e liquidação da relação.

5. - Cabe ao R. (depositário) o ónus da alegação e prova da impossibilidade não imputável de restituição do bem no estado em que lhe havia sido entregue, por se tratar de matéria de exceção invocada.

6. - Não tendo o depositário procedido à remontagem do motor da viatura, é de ter por irrazoável/desproporcionada a exigência de reconstrução ou substituição do motor ou a indemnização, a expensas daquele, medida pelo valor de mercado de viatura semelhante, se o depositante, perante vício pré-existente do motor, não imputável ao depositário, havia já optado pela não reparação.

7. - A remontagem do motor defeituoso, como obrigação do depositário, configurar-se-ia como um procedimento inútil, pois não supriria o comprometedor defeito pré-existente, não logrando satisfazer o interesse do depositante e onerando excessivamente, sem qualquer retorno, a posição da contraparte.

8. - Em tal caso, é adequado impor ao depositário a entrega, a expensas suas, do veículo no domicílio do depositante, não sendo exigível a este indemnização por ocupação do espaço da oficina onde a viatura foi guardada.

***
V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação do A. (recurso principal), alterando em consequência a decisão recorrida, termos em que, em substituição do Tribunal a quo, vai o R./Apelado condenado a entregar – a expensas suas – ao A., no domicílio deste, o veículo automóvel identificado, com tudo o que o integra, no estado em que se encontra na sequência da ocorrida desmontagem parcial, improcedendo em tudo mais os recursos interpostos.

Custas da apelação do A., por este e pelo R./Apelado, na proporção de 5/6 pelo A. e 1/6 pelo R..

Custas do recurso subordinado, pelo R., ante o seu total decaimento nesta parte.


Coimbra, 20/06/2017

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinatura eletrónica.

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo (1.º Adjunto)

                                     

Fernando Monteiro (2.º Adjunto)


([1]) Em 30/03/2014 (cfr. fls. 8 dos autos em suporte de papel).
([2]) Após retificação efetuada na réplica.
([3]) Deve atender-se ao aperfeiçoamento oferecido na medida em que se quadra no despacho de convite (cfr. despacho do Relator de fls. 201 e seg. dos autos em suporte de papel).
([4]) Que se transcrevem, com negrito retirado.
([5]) Processo instaurado após 01/09/2013, data da entrada em vigor daquele NCPCiv. (cfr. art.ºs 1.º e 8.º, da referida Lei n.º 41/2013).
([6]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([7]) Cfr. ata de fls. 91 dos autos em suporte de papel.
([8]) Segundo o qual o R. procedeu à desmontagem parcial do motor, apenas tendo retirado a cabeça do motor e o cárter do óleo.
([9]) Nesta, por sua vez, concluiu-se, sem mais fundamentação, que ação e reconvenção se estruturam como “acção de indemnização fundada na responsabilidade civil por factos ilícitos”, instituto (da responsabilidade extracontratual) cujos pressupostos normativos logo passaram a ser analisados, para se concluir, finalmente, pela não demonstração da existência de ilicitude na conduta de A. e R., com a consequente improcedência de ação e reconvenção.
([10]) Afastada fica a invocada existência de um contrato de empreitada para desmontagem do motor, pois, como visto, nem sequer se prova que a realizada desmontagem tenha sido autorizada pelo A..
([11]) Cfr. Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Coimbra, 1989, p. 165.
([12]) Cfr. Sinde Monteiro, op. cit., ps. 360 e ss..
([13]) Só através dela foi possível detetar a causa concreta da avaria e os danos existentes (pré-existentes) no motor.

([14]) Vide Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, tomo I, Almedina, Coimbra, 1999, p. 180.
([15]) O contrato é visto na sua função instrumental de realização de interesses, falando­‑se a este propósito em “economia do contrato” – cfr. Sousa Ribeiro, “Economia do Contrato”, Autonomia Privada e Boa Fé. BFD, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, vol. IV, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, ps. 969 e ss.. Como refere este Autor, a boa-fé pode ser perspetivada como “fonte normativa dos comportamentos devidos para o atingimento dos fins contratuais”, aparecendo os seus ditames como instrumento apontado à conformidade da execução contratual aos objetivos negociais das partes (cfr., op. cit., p. 974).
([16]) Cfr. Judith Martins-Costa, Os campos normativos da boa-fé objetiva: as três perspectivas do Direito privado brasileiro, em Estudos de Direito do Consumidor, Centro de Direito do Consumo, n.º 6, 2004, p. 105.
([17]) Cfr., ainda, Menezes Cordeiro, Tratado …, cit., t. I, ps. 189 e seg..
([18]) Ficando, a partir dessa aquisição, novamente a dispor de veículo automóvel.