Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ORLANDO GONÇALVES | ||
Descritores: | CORRECÇÃO DE ERROS OU LAPSOS DE ESCRITA | ||
Data do Acordão: | 06/15/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | 1.º JUÍZO CRIMINAL DO TRIBUNAL DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 380º CPP | ||
Sumário: | 1- Impõe-se a correcção de erros ou lapsos de escrita, se os mesmos resultarem evidentes no contexto do que se escreveu. 2.- Assim se do contexto do despacho de acusação e dos termos que precederam a sua elaboração, resultar inequívoco que a referência do Ministério Público, na parte final da acusação, ao nome de um terceiro, é um erro material de escrita, um lapso manifesto, em que querendo-se escrever o nome do único arguido do processo, se escreveu nome diferente, incumbe ao Juiz suprir esse erro material, ordenando-se a respectiva rectificação | ||
Decisão Texto Integral: | Relatório
Por despacho de 31 de Janeiro de 2011, proferido pela Ex.ma Juíza do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Coimbra, foi decidido rejeitar a acusação do Ministério Público, nos termos do art.311.º, n.º 1, 2, al. a) e 3, al. a) do Código de Processo Penal, por ser manifestamente infundada.
Inconformado com este despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público na Comarca de Coimbra, concluindo a sua motivação do modo seguinte: 1- Não deveria ter sido rejeitada esta acusação por força da falta de identificação do arguido (artigo 317.º/2 a) e 3 a) do CPP), na medida em que foi feita essa identificação no local habitual e apropriado (antes dos factos). 2 - A aposição do nome «CR...» não passou de um mero (embora lamentável) erro material (artigo 249.º do CCivil), absolutamente revelado no próprio contexto da declaração, apenas dando direito a uma sua rectificação e nunca à rejeição de uma acusação. 3- Conforme decorre do próprio contexto dos autos, o Exmo Juiz «a quo» deveria ter entendido que a alusão a «CR...» na parte final da acusação não era mais do que um mero lapso de escrita, perfeitamente rectificável. 4- Considerando que este é o único arguido nos autos, é evidente tratar-se de manifesto lapso cometido na parte final da acusação, o qual era naturalmente susceptível de ser suprido por parte do tribunal face aos restantes elementos que deles já constavam. O que nada justificaria era rejeitar a acusação por lapso ou mesmo erro na sua identificação já que se tratava de uma única pessoa física o arguido dos autos, não sendo aqui reconhecível qualquer outro indivíduo de nome «CR...». 5- A decisão de rejeitar a acusação por considerar que não foi feita a identificação do arguido a quem aí se imputa um crime violou as normas referidas nos artigos 119.º, 283 n.º 3 al. a); 311.º todos do C.P.P., por não efectuar uma correcta interpretação do espírito e letra da lei, sendo ferido de irrazoabilidade. 6 - A existir na acusação em causa uma deficiência formal é sempre possível corrigi-la (artigo 249.º do CC), sem que esse facto viole o princípio da independência do Juiz em relação às partes. Deve, assim, em consequência, ser revogado o douto despacho de fls 67 e substituído por outro que receba a acusação deduzida nos autos contra SF… . Termos em que se pede a procedência do presente recurso, com as legais consequências, desta forma se fazendo a acostumada e pretendida J u s t i ç a!
O arguido SF…, a quem foi notificado o despacho recorrido, não respondeu ao recurso.
O Ex.mo Procurador da República neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Fundamentação
O despacho recorrido tem o seguinte teor: « O MP deduz acusação contra SF…, que identifica, imputando no final ao arguido CR... um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ªs 202.º, d), 203.º, 1, e 204.º,2 e), todos do Cód. Penal. Cumpre apreciar e decidir. A acusação é deduzida contra um arguido e na parte final da mesma o crime é imputado a arguido diferente, que nem se acha constituído nos autos. Assim, é de rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, não só porque não contém a identificação do arguido a quem imputa o crime, como também, porque não imputa crime algum ao arguido que identifica ( art. 311.º, 2 a) e 3 a), do CPP ). Face ao exposto, porque a troca de nome do arguido na imputação do crime obsta à apreciação quer do teor da acusação quer do mérito da causa, nos termos do art. 311.º, l , 2 a) e 3 a), do Cód. Proc. Penal, rejeita-se a acusação, porque manifestamente infundada.».
* No caso dos autos , face às conclusões da motivação do Ministério Público a questão a decidir é a seguinte: - se o despacho recorrido ao rejeitar a acusação do Ministério Público, ao abrigo do art. 311.º, n.ºs l , 2 al. a) e 3, al. a), do Cód. Proc. Penal, violou o disposto nos artigos 119.º, 283.º, n.º 3, al. a) e 311.º, do mesmo Código, porquanto o arguido está ali identificado, constituindo a alusão a “ CR...”, na parte final da acusação, um lapso manifesto de escrita, que o Tribunal deveria ter rectificado. Passemos ao conhecimento da questão. De acordo com o estatuído no art.283.º, n.º1, do Código de Processo Penal, se o Ministério Público, durante o inquérito, tiver recolhido indícios suficientes de se ter verificado um crime e quem foi o seu agente, deduz acusação. Atento o disposto no n.º3, deste preceito processual, « A acusação contém, sob pena de nulidade: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) A indicação ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis.». A nulidade cominada neste n.º3 não é insanável, uma vez que como tal não é referida no preceito, nem está abrangida na enumeração taxativa do art.119.º do Código de Processo Penal. O art.311.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, estabelece que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente pode despachar no sentido, designadamente, « a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada». O n.º3, deste artigo, clarifica que « Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não identificar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Se os factos não constituírem crime.» As alíneas a) , b) e c) do n.º 3 do art.311.º do C.P.P., são nitidamente casos de nulidade da acusação, constituindo a alínea d) o único caso de verdadeira acusação manifestamente infundada. Se a acusação não contém a identificação do arguido, o art. 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. a), do C.P.P., permite conhecer oficiosamente aquela nulidade da acusação. Neste sentido o Prof. Germano Marques da Silva sustenta que “ O art. 311.º parece ter querido transformar a nulidade sanável do art.283.º, n.º 3 , al. a), em nulidade de conhecimento oficioso.”[4]. Questão completamente diferente da rejeição da acusação por manifestamente infundada, é a da simples existência de um erro ou lapso na acusação, relativamente à identificação do arguido. Nos termos do art.380.º, n.ºs 1, al. a) e 3, do Código de Processo Penal, o Tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção dos actos decisórios previstos no art.97.º do mesmo Código, quando contiverem « erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.». Neste aspecto são de considerar válidos os ensinamentos do direito civil, designadamente o disposto no art.249.º do Código Civil, apontado pelo recorrente, bem como o processo civil. O art.249.º do Código Civil, referente ao negócio jurídico, estabelece que « O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”. É o contexto do escrito que há-de fornecer a demonstração clara do erro material. A propósito da rectificação de erros materiais de escrita ou de cálculo, nos actos decisórios do Juiz, o Prof. Alberto dos Reis, com a sua habitual clareza, acentuou expressamente que “ é necessário que do próprio contexto da sentença ou despacho, ou dos termos que o precederam, se depreenda claramente que se escreveu coisa diferente do que se queria escrever; se assim não for a aplicação do art.667.º é ilegal.». No caso em apreciação o Ministério Público, declarou a folhas 58 dos autos, que “acusa”, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, “ SF…, solteiro, natural da Sé Nova, Coimbra, residente na Rua …, Coimbra”, narrando em seguida os factos que lhe são imputados. No final da acusação escreveu que, “ Ciente de que pratica acto proibido e punível por Lei, constitui-se o arguido CR... autor material de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art. 202.º/d; 203.º/1, 204.º n.º2 al.e) do C.P..”. O Tribunal da Relação entende que existe apenas um arguido identificado na acusação tal como o impõe o art.283.º, n.º 3, al.a) do Código de Processo Penal, e esse arguido é o SF… . Dos termos que precederam a elaboração do despacho de acusação resulta que o único suspeito do crime de furto constituído como arguido pelo Ministério Público foi SF…, tendo sido apenas relativamente a ele que se procederam a diligências investigatórias. O acusador público apenas juntou aos autos o CRC do arguido SF… . Nos meios de prova indicados na acusação, enumeram-se os autos de busca e apreensão de folhas 21 e 22, na residência de SF… . Não existe menção a qualquer CR... nos presentes autos. O despacho que rejeitou a acusação do Ministério Público por manifestamente infundada, reconhece, logo no primeiro parágrafo, que o Ministério Público deduziu acusação contra SF…, e que este está identificado na acusação. Sendo certo que na parte final o Ministério Público, por uma vez, refere que do exposto resulta que o “ CR...” praticou um crime de furto, não deixou o despacho recorrido de notar que o Ministério Público procedeu, naquela parte, “ a troca de nome do arguido”. Do contexto do despacho de acusação e dos termos que precederam a sua elaboração, resulta inequívoco, para o Tribunal da Relação, que a referência do Ministério Público, na parte final da acusação, ao nome “ CR...”, é um erro material de escrita, um lapso manifesto, em que querendo-se escrever o nome do único arguido do processo, SF…, escreveu-se “ CR...”. A acusação não padece assim, da nulidade a que alude os art. 283.º, n.º 3, al. a) do C.P.P., nem é manifestamente infundada nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, al.a) e 3, al.a), do mesmo Código. Não passando a referencia a “ CR...”, na acusação, de um simples erro material, de um lapso manifesto, urge proceder à sua correcção nos termos do art.380.º, n.ºs 1, al.b) e 3 do Código de Processo Penal. Tendo os autos já sido recebidos no Tribunal a quo e até por uma razão de economia processual, cremos que, em lugar de se devolverem os autos ao Ministério Público para proceder à rectificação, incumbe ao Juiz suprir o erro material detectado no despacho de acusação, ordenando-se a respectiva rectificação, de modo que no último parágrafo da acusação, a folhas 59, onde consta “ …constitui-se o arguido CR… autor material..”, passe a constar “ … constitui-se o arguido SF… autor material..”. Procedendo o recurso interposto pelo Ministério Público, não pode subsistir o despacho recorrido.
Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e revogar o despacho recorrido, ordenando-se a sua substituição por um outro, em que a Ex.ma Juíza rectifique o lapso material de escrita constante da acusação, nos termos atrás consignados. Sem custas. *
* |