Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1230/10.2TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PENA ACESSÓRIA
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
CRIME DE VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
Data do Acordão: 05/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO CRIMINAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 353º CP
Sumário: 1. A Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro ampliou a previsão do art. 353º do C. Penal, que passou a abranger também a violação de imposições, de obrigações de conteúdo positivo, quando anteriormente apenas previa a violação de proibições ou interdições portanto, a violação de obrigações de non facere;

2. O preenchimento do tipo do art. 353º do C. Penal, independentemente do conteúdo positivo – imposições – ou negativo – proibições ou interdições – das obrigações, continua a exigir que a sentença condenatória as determine como integrantes da pena acessória;

3. Não integra a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a obrigação de entrega do título de condução prevista no art. 69º, nº 3, do C. Penal, que é apenas uma imposição conexa – uma obrigação relativa e dependente – daquela pena acessória;

4. Por isso, o incumprimento doloso desta imposição conexa pelo condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, não preenche o tipo do crime de violação de imposições, proibições e interdições, p. e p. pelo art. 353º do C. Penal.

Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO


No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, mediante acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o arguido A..., com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art. 353º do C. Penal.

Por sentença de 8 de Novembro de Outubro de 2011, foi o arguido absolvido da prática do imputado crime.
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Inconformado com a decisão, dela recorre o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
“ (…).
1ª – Vem o presente recurso interposto da sentença que absolveu o arguido da prática de um crime de violação de proibições, p, e p, pelo art.353º do Código Penal.
2ª – Porquanto tal decisão violou, por errada interpretação, o disposto no mencionado art. 353º do CP, bem assim como o artigo 69º do mesmo diploma.
3ª – Na verdade, entendeu a Mma Juiz a quo que o artigo 353º do CP não abrange a falta de entrega do titulo de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir, entendendo que aquela obrigação de entrega extravasa o âmbito de tal pena acessória (previsto no artigo 69º), o qual se resume à proibição de conduzir (obrigação de non facere).
4ª – Porém, tal interpretação contraria manifestamente o texto da lei e deixa por explicar as alterações introduzidas pela Lei 59/2007 no artigo art. 353.º do CP.
5ª – Resultando manifestamente da referida alteração que quando o legislador se refere à violação de imposições determinadas por sentença criminal a titulo de pena acessória, está a abranger a violação da obrigação/imposição de entrega da carta de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir a que alude o artigo 69º do CP.
6ª – Na verdade, como decorre dos artigos 69º, nº 3, do Código Penal e 500º, nº 2 e 4, do CPP, a obrigação (sinónimo de imposição) de entrega da carta de condução é inerente à própria pena acessória de proibição de conduzir, não existindo esta sem aquela. 7ª – Como decorre de tais normativos, a condenação em pena de proibição de conduzir implica a imposição ao condenado da obrigação de entrega do título de condução.
8ª – Aliás, a interpretação efectuada pela Mma Juiz, salvo o devido respeito por opinião contrária, para além de violar o texto da lei, não tem em conta a unidade do sistema jurídico.
9ª – Na verdade, segundo tal interpretação teríamos de concluir que o legislador tratava de forma mais benévola a violação da «sanção» de natureza criminal do que a violação da correspondente sanção de natureza contra-ordenacional.
10ª – Pelo exposto, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de violação de proibições, previsto e punível pelo artigo 353º do CP, que lhe vem imputado na acusação.
(…)”.
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Respondeu ao recurso o arguido aderindo à posição que consta da sentença, alegando que nunca representou que a omissão de entrega da carta de condução no prazo assinalado constituísse crime, que o regime a aplicar quando ocorre tal omissão é o previsto no art. 500º, nºs 2 e 3 do C. Processo Penal, e que o regime previsto para a contra-ordenação não é mais grave, concluindo pela improcedência do recurso.
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Na vista a que refere o art. 416º, nº 1, do C. Processo Penal a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, referindo a divergência jurisprudencial existente quanto à questão objecto do recurso, acolhendo a fundamentação de dois recentes acórdãos desta Relação no sentido defendido pelo Digno Magistrado recorrente, e concluindo pela procedência do recurso.
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Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do C. Processo Penal.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO


Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões da motivação constituem pois, como é unanimemente entendido, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, pág. 335, e Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, pág. 103).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo Digno Magistrado recorrente, a questão a decidir é a de saber se o não cumprimento doloso da obrigação de entrega da carta de condução em tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de dez dias a contar do trânsito da sentença que impôs pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos dos arts. 69º, nº 3, do C. Penal e 500º, nº 2, do C. Processo Penal, preenche ou não, o tipo do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto no art. 353º do C. Penal.
Oficiosamente [Ac. nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995], haverá que conhecer da existência do vício do erro notório na apreciação da prova.
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Para a resolução desta questão importa ter presente o que, de relevante, consta da decisão recorrida. Assim:

A) Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
“ (…).
1. O arguido foi condenado em 26 de Outubro de 2009, por sentença proferida no processo sumário n.º 228/07.2 TVIS, que correu termos no 2º Juízo Criminal de Viseu, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses;
2. O arguido foi notificado no dia 26 de Outubro de 2009, para em 10 dias, após o trânsito em julgado da decisão, entregar a sua carta de condução no Tribunal ou em qualquer posto policial;
3. Nos 10 dias após o trânsito em julgado da sentença o arguido não entregou a sua carta de condução como podia e devia, só a tendo entregue no dia 27 de Janeiro de 2010;
4. O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que estava obrigado a cumprir a imposição determinada na sentença proferida de proceder à entrega da sua carta de condução a fim de cumprir a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses, não obstante, não procedeu à referida entrega;
5. O arguido encontra-se desempregado e aufere de subsidio a quantia mensal de € 335,00;
6. Vive com a sua companheira que é reformada e aufere a quantia mensal de cerca de € 200.00 de pensão de reforma;
7. Vive em casa própria e paga a quantia mensal de € 300,00 de um empréstimo bancário que contraiu para a sua aquisição;
8. O arguido é licenciado em Biologia;
9. O arguido já sofreu a seguinte condenação:
a. No processo sumário n.º 228/07.2GTVIS, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, foi condenado por sentença de 26/10/2009, transitada em julgado no dia 11/12/2009, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, sendo os factos de 30/10/2007 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 5 meses.
(…)”.

B) Foi considerado não provado o seguinte facto:
“ (…).
1. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
(…)”.

C) E dela consta a seguinte fundamentação de direito:
“ (…).
O arguido está acusado da prática de um crime de violação de proibições ou interdições nos termos do artigo 353º Código Penal.
Prescreve o artigo 353º do Código Penal que, "Quem violar proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias."
O bem jurídico tutelado pelo crime de desobediência traduz-se na não frustração de sanções impostas por sentença criminal. (cf. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, Tomo III, pág. 400).
Sob o ponto de vista objectivo a descrição típica é aparentemente clara, uma vez que aponta a espécie de proibições ou interdições impostas por sentença criminal que devem considerar-se abrangidas: apenas as que integram uma pena acessória ou uma medida de segurança. (cf. Cristina Líbano, in ob. citada, na mesma página).
Do ponto de vista subjectivo, este crime integra não apenas a representação de que a conduta que se adopta viola uma proibição ou uma interdição, mas também a consciência de que essa proibição ou interdição violadas forma parte de sentença criminal (cf. Cristina Líbano, in ob. citada, pág. 403).
Da matéria de facto dada como provada resulta não estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos de tal ilícito.
Na verdade, na esteira da mais recente jurisprudência dos tribunais superiores a propósito deste ilícito criminal, como aquela que se encontra plasmada nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra proferidos nos processo n.º 295/09.4 TAVIS.C1, n.º 2185/08.1 TALRA.C1 e 1745/08.2TAVIS.Cl, entende-se que a não entrega da carta de condução para cumprimento de pena acessória de proibição de conduzir não integra o ilícito criminal constante do artigo 353º do Código Penal.
Com efeito, decorre da supra citada jurisprudência, que a violação de imposições prevista naquele preceito legal reporta-se a uma imposição relativa a pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, sendo certo que a entrega da carta de condução no prazo legal após o trânsito cm julgado da decisão não é em si mesma uma pena acessória e sim antes o materializar e até controlo do cumprimento da pena acessória.
Deste modo, a sentença não deve impor a entrega e, caso não se verifique a entrega voluntária, encontra-se solução no disposto no artigo 500º do CPP, cujo n.º 2 e n.º 3 prescrevem que: "2 – No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo; 3 – Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução".
Donde, a consequência da não entrega da licença de condução é apenas ser ordenada a sua apreensão.
(…)”.
*
*

Do vício do erro notório na apreciação da prova

1. No âmbito do regime dos vícios da decisão previstos no art. 410º, nº 2, do C. Processo Penal o tribunal de recurso não reaprecia a prova produzida, limitando-se a verificar a existência e a sancionar a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.
Trata-se dos três vícios intrínsecos da sentença, que têm que resultar, como estipula a lei, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ficando portanto arredada a possibilidade de, para a sua demonstração, se lançar mão de elementos alheios à decisão, ainda que constem do respectivo processo.

Existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, pág. 341). Dito de outra forma, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, pág. 74).

Fixado o conteúdo deste vício, vejamos agora se e em que medida afecta o mesmo a decisão em crise.

No ponto 1 dos factos provados foi como tal considerado que «O arguido foi condenado em 26 de Outubro de 2009, por sentença proferida no processo sumário n.º 228/07.2 TVIS, que correu termos no 2º Juízo Criminal de Viseu, na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses.», e no ponto 2 dos factos provados foi como tal considerado que «O arguido foi notificado no dia 26 de Outubro de 2009, para em 10 dias, após o trânsito em julgado da decisão, entregar a sua carta de condução no Tribunal ou em qualquer posto policial.»
Na motivação de facto da sentença escreveu-se que «O Tribunal formou a sua convicção sobra a factualidade dada como provada com base na análise crítica e ponderada da prova produzida, concretamente, no teor dos documentos de fls. 4 a 22. No que se refere aos antecedentes criminais teve-se em consideração o teor do certificado do registo criminal de fls. 50 e 51.». Daqui decorre que o tribunal a quo formou a sua convicção, quanto aos factos provados, com base na prova documental.
Quanto ao facto não provado, a sentença é omissa na respectiva fundamentação, o que só não conduz à nulidade prevista no art. 379º, nº 1, a), do C. Processo Penal, porque a decisão resulta, à evidencia, da posição de fundo assumida quanto à tipicidade da conduta relativamente ao ilícito imputado ao arguido.

Como vimos, a convicção do tribunal recorrido fundou-se na certidão de fls. 4 a 22, extraída do processo comum singular nº 228/07.2GTVIS, referido no ponto 1 dos factos provados.
A sentença proferida neste processo foi datada de 26 de Outubro de 2009, e no último parágrafo do seu Dispositivo escreveu-se «Deverá o arguido, no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar a sua licença de condução neste tribunal ou no posto policial mais próximo, sob pena não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência.» (cfr. fls., 12 e 13). E resulta claramente de fls. 14 a 17, que o arguido não esteve presente na audiência de julgamento nem na audiência em que foi publicitada a sentença condenatória, tendo desta sido notificado, bem como para proceder à entrega da carta de condução no prazo de dez dias, sob pena de crime de desobediência, através da autoridade policial, no dia 5 de Novembro de 2009.
Assim, é notório o erro de apreciação da prova documental, quando no ponto 2 dos factos provados, se considerou o arguido notificado no dia 26 de Outubro de 2009 [aliás, como já constava da própria acusação].
Constando dos autos todos os elementos de prova relevantes, pode o tribunal de recurso modificar a decisão (art. 431º, nº 1, a), do C. Processo Penal), sem necessidade de proceder ao reenvio do processo, sendo certo que o vício detectado não contende, de forma alguma, com o fundo da questão submetida a este tribunal.

Desta forma, modifica-se o ponto 2 dos factos provados, que passa a ter a seguinte redacção:
O arguido foi notificado no dia 5 de Novembro de 2009, para em 10 dias, após o trânsito em julgado da decisão, entregar a sua carta de condução no Tribunal ou em qualquer posto policial.”.
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Do preenchimento do tipo do crime de violação de imposições, proibições ou interdições

2. Como atrás se deixou dito, a questão colocada pelo Digno Magistrado do Ministério Público recorrente consiste em saber se, ao contrário do decidido na sentença recorrida, o não cumprimento doloso da entrega da carta de condução pelo condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista nos arts. 69º, nº 3, preenche o tipo do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto no art. 353º do C. Penal.

O tribunal a quo absolveu o arguido por entender, na esteira de vários acórdãos desta Relação, que cita, a falta de tipicidade da sua conduta, uma vez que a violação de imposições pressuposta no tipo legal se refere a uma imposição relativa a pena acessória ou medida de segurança não privativa da liberdade, quando a entrega do título de condução no prazo assinalado na lei não é, em si mesma, uma pena acessória, mas a materialização e controlo do cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.

Não tem, no entanto, existido resposta unânime quanto à qualificação jurídica desta conduta. Para uns, a falta de entrega da carta de condução nas apontadas circunstâncias preenche o crime de violação de imposições, proibições ou interdições do art. 353º do C. Penal. Para outros, preenche o crime de desobediência do art. 348º, nº 1, ora pela alínea a), ora pela alínea b), do mesmo código. E para outros ainda, trata-se de conduta penalmente atípica.
Como demonstração do que acaba de ser dito, registamos nesta Relação, a título meramente exemplificativo, no sentido de que a conduta preenche o crime do art. 353º do C. Penal [após a alteração operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro], os acórdãos 24 de Fevereiro de 2010, proc. nº 117/09.6TAVNO.C1, de 30 de Junho de 2010, proc. nº 149/08.1TAVGS.C1, de 14 de Julho de 2010, proc. nº 48/09.0TAVGS.C1, e de 25 de Janeiro de 2012, proc. nº 433/11.7TAPBL.7C114 [todos em www.dgsi.pt], e no sentido de que se trata de conduta penalmente atípica, os acórdãos de 12 de Maio de 2010, proc. nº 1745/08.2TAVIS.C1, de 6 de Outubro de 2010, proc. nº 24/09.2TAVGS.C1, de 12 de Julho de 2011, proc. nº 295/09.4TAVIS.C1 e de 9 de Novembro de 2011, proc. nº 984/09.3TAVIS.C1 [todos in www.dgsi.pt].
A divergência existe também noutras Relações, ainda que em termos não exactamente coincidentes. Assim, no sentido de que se trata de crime de desobediência, podem ver-se os acórdãos da R. do Porto de 2 de Março de 2011, proc. nº 583/09.0TAVFR.P1 e de 15 de Fevereiro de 2012, proc. nº 319/02.TAVRL.P1, da R. de Lisboa de 24 de Março de 2010, proc. nº 470/04.8TAOER.L1 e de 5 de Abril de 2011, proc. nº 1712/08.6TACSC.L1, da R. de Évora de 27 de Maio de 2010, proc. nº 171/09.0TASLV.E1 e de 31 de Janeiro de 2012, proc. nº 1102/08.0TAABF.E1 [todos in, www.dgsi.pt]. Pelo crime de violação de imposições alinham os acórdãos da R. do Porto de 10 de Novembro de 2010, proc. nº 118/09.4T3OVR.P1 e da R. de Guimarães de 3 de Maio de 2011, proc. nº 50/11.1GBGMR.G1 [todos in www.dgsi.pt]. E no sentido da irrelevância penal da conduta, podem ver-se os acórdãos da R. de Lisboa de 18 de Dezembro de 2008, proc. nº 1932/2008 e da R. de Évora de 27 de Março de 2012, proc. nº 154/10.8TAPSR.E1 [in www.dgsi.pt]
Na doutrina registam-se as posições discordantes, de Paulo Pinto de Albuquerque, para quem o alargamento da previsão do art. 353º do C. Penal, operado pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, foi feito com o propósito de ali incluir estes casos de incumprimento de imposições resultantes de penas acessórias designadamente, a entrega do título de condução (Comentário do Código de Processo Penal, UCP, pág. 1278 e Comentário do Código Penal, UCE, pág. 226 e 834), e de António Tolda Pinto que, inclinando-se para a verificação do crime de desobediência, entende que a previsão do tipo do crime do art. 353º do C. Penal só se preencherá com a condução de veículo já no decurso do período de execução da pena acessória (Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. I, UCE, pág. 402 e ss.).

3. O crime de violação de imposições, proibições ou interdições, integrado no Capítulo II, Dos crimes contra a autoridade pública, visa garantir a eficácia coactiva de decisões criminais dela carecidas, através de uma norma dissuasora do seu não acatamento, tutelando, como bem jurídico, a protecção da realização da justiça e, mais concretamente, a não frustração de sanções impostas por sentença criminal (cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, págs. 360 e 400).

Dispõe o art. 353º, do C. Penal [na redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro], sob a epígrafe, «Violação de imposições, proibições ou interdições»:
Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.”.

São elementos constitutivos do tipo deste crime:
[Tipo objectivo]
- Que o agente viole imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo;
- Que o agente viole imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena acessória;
- Que o agente viole imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de medida de segurança não privativa da liberdade;
[Tipo subjectivo]
- O dolo, o conhecimento e vontade de realizar o facto, o conhecimento pelo agente de que a sua conduta viola uma imposição, proibição ou interdição integradas numa sentença criminal [em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal].

Na redacção anterior [a do Dec. Lei nº 48/95, de 15 de Março] o art. 353º do C. Penal previa e sancionava apenas a violação de proibições ou interdições impostas por sentença criminal a título de pena acessória ou medida de segurança [sob a epígrafe, «Violação de proibições ou interdições», dispunha: “Quem violar proibições ou interdições impostas por sentença criminal, a título de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.], aparentemente, por serem estas as penas e medidas mais difíceis de efectivar (cfr. Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., pág. 401).
Algo mudou entretanto, e na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 98/X, que está na génese da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, pode ler-se: «O ilícito criminal de violação de proibições ou interdições é alargado. Entre as condutas típicas inclui-se agora também a violação de imposições, pelo que o tipo de crime englobará o incumprimento de quaisquer obrigações impostas por sentença criminal, tenham elas conteúdo positivo ou negativo.».
É pois inquestionável o alargamento do âmbito do art. 353º do C. Penal que passou a englobar a violação de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade.

A palavra imposição, neste contexto, pode suscitar dúvidas de interpretação pois que, enquanto acto de impor, significa uma ordem a que tem de obedecer-se, e a ordem tanto pode ter por conteúdo uma acção como uma omissão. Mas o legislador afastou qualquer dúvida ao plasmar o seu pensamento na Exposição de Motivos supra referida, dela se depreendendo as imposições como referidas a obrigações de conteúdo positivo.
Assim, imposição será um mandado positivo, uma ordem para fazer, uma obrigação positiva, o estabelecimento de uma conduta positiva, enquanto as proibições e as interdições serão ordens de abstenção de certa conduta, ordens de não fazer, o estabelecimento de uma conduta omissiva.
O preenchimento do tipo exige que estes mandados, positivos e negativos, em primeiro lugar, tenham sido determinados por sentença criminal e, em segundo lugar, que o tenham sido, como pena em processo sumaríssimo, ou como pena acessória ou medida de segurança não privativa da liberdade.

Aqui chegados, cumpre agora verificar se nos autos existiu imposição – ordem de entrega do título de condução – e se, existindo, ela foi determinada a título de pena acessória.

4. O arguido foi condenado no processo sumário nº 228º/07.2GTVIS, por sentença de 26 de Outubro de 2009, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de cinco meses. E no último parágrafo do Dispositivo desta sentença consta o seguinte: «Deverá o arguido, no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar a sua licença de condução neste tribunal ou no posto policial mais próximo, sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência.».
Temos por certo que, com esta determinação, o tribunal visou dar cumprimento ao disposto no art. 69º, nº 3, do C. Penal, que reza assim:
No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.”.
Com efeito, a única dissensão a assinalar entre a norma e o determinado na sentença é a cominação nesta feita da prática do crime de desobediência, de que agora não cuidamos.

A norma do art. 69º, nº 3, do C. Penal, sendo idêntica à do art. 500º, nº 2, do C. Processo Penal [a única diferença consiste em, nesta, se referir «licença de condução» em vez de «título de condução» e as necessárias concordâncias gramaticais], é uma norma penal portanto, uma norma substantiva. Dela decorre a obrigação de entrega do título de condução conduta que, face ao que supra se deixou dito, é subsumível ao conceito de imposição.

Mas o que não vemos é que, ressalvado sempre o devido respeito por opinião contrária, esta imposição, mesmo constando do Dispositivo da sentença condenatória, tenha sido determinada a título de pena acessória. Explicando.

5. É verdade que, como tivemos já oportunidade de referir, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, a previsão do art. 353º do C. Processo Penal foi alargada, passando agora a abranger também a violação de obrigações de conteúdo positivo, quando antes apenas previa a violação de proibições ou interdições portanto, de obrigações de non facere. E entre as imposições cuja violação, por via do referido alargamento, preenche agora o tipo, contam-se as decretadas a título de pena [que não a de multa] em processo sumaríssimo, pondo-se desta forma termo, embora a opção tomada não seja isenta de crítica, a uma lacuna da lei (cfr. Sónia Fidalgo, Jornadas dobre a Revisão do Código de Processo Penal, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, nº 9 Especial, pág. 317 e ss.).

Mas o que a letra da lei não consente, em nosso entender, e ressalvado sempre o devido respeito por opinião contrária que é muito – não sendo ocioso aqui relembrar que nos encontramos no campo dos princípios da legalidade e da tipicidade –, é o entendimento de que este alargamento visou também abranger a violação de imposições conexas com penas acessórias decretadas.

O conteúdo da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor é constituído apenas pela própria proibição de conduzir veículos com motor. E a violação desta proibição, traduzida, necessariamente, na acção de conduzir veículo motorizado, preenche o tipo do art. 353º do C. Penal.
A imposição de entrega do título de condução não integra o conteúdo desta pena acessória nem com ela se confunde, sendo antes e apenas uma imposição conexa com tal pena, e que se destina somente a possibilitar [como resulta do art. 500º, nº 4, do C. Processo Penal] a sua execução e respectivo controlo.

Acresce que o art. 69º, nº 3, do C. Penal não faz qualquer referência ao cometimento do crime previsto no art. 353º, no caso de incumprimento da obrigação de entrega, como, aliás, não faz referência a qualquer outro preenchimento típico.
Por outro lado, nos termos do art. 69º, nº 3, do C. Penal a obrigação de entrega do título de condução decorre directamente da lei, não pressupondo nem determinando este preceito [nem o seu homólogo art. 500º, nº 2, do C. Processo Penal] que da sentença condenatória conste a imposição de entrega do título.

E também não vemos que possa extrair-se da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 98/X, ou dos escassos elementos acessíveis dos trabalhos preparatórios [a eles de refere o Ac. da R. de Évora de 31 de Janeiro de 2012, supra identificado, transcrevendo um segmento da acta nº 16, sessão de 27 de Março de 2006], o propósito de abranger no tipo do art. 353º do C. Penal, a violação de qualquer obrigação conexa com penas acessórias designadamente, a violação da obrigação de entrega do título de condução, pois que da leitura de ambos apenas resulta que se pretendeu alargar a previsão deste tipo de ilícito por forma a abranger o incumprimento de quaisquer obrigações impostas por sentença criminal, independentemente do seu conteúdo positivo ou negativo, mas obrigações integrantes da pena acessória decretada.

6. Em síntese conclusiva do que antecede:
- A Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro ampliou a previsão do art. 353º do C. Penal, que passou a abranger também a violação de imposições, de obrigações de conteúdo positivo, quando anteriormente apenas previa a violação de proibições ou interdições portanto, a violação de obrigações de non facere;
- O preenchimento do tipo do art. 353º do C. Penal, independentemente do conteúdo positivo – imposições – ou negativo – proibições ou interdições – das obrigações, continua a exigir que a sentença condenatória as determine como integrantes da pena acessória;
- Não integra a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a obrigação de entrega do título de condução prevista no art. 69º, nº 3, do C. Penal, que é apenas uma imposição conexa – uma obrigação relativa e dependente – daquela pena acessória;
- Por isso, o incumprimento doloso desta imposição conexa pelo condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, não preenche o tipo do crime de violação de imposições, proibições e interdições, p. e p. pelo art. 353º do C. Penal.

Assim, não tendo o Digno Magistrado recorrente suscitado no recurso qualquer outra questão/pretensão quanto à qualificação jurídica da conduta do arguido, resta julgar o mesmo improcedente.
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III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Sem tributação.
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Heitor Vasques Osório (Relator)

Jorge Dias