Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/14.1GDAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CONFISSÃO
ARGUIDO
Data do Acordão: 11/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA (JUÍZO DE PEQUENA INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÍLHAVO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDA
Legislação Nacional: ART. 344.º DO CP; ART. 353.º DO CC
Sumário: A presunção de inocência do arguido – presunção abstracta - não tem o alcance de presunção de verdade das declarações do arguido sobre factos concretos que lhe são imputados, particularmente no que se refere a factos favoráveis ao “confitente”.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra – Secção Criminal:

I.

Após audiência de discussão e julgamento, em processo sumário, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

- Condena-se o arguido A..., pela prática em 10-03-2014, como autor material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena principal de 115 dias de multa à taxa diária de €5,50, o que perfaz o quantitativo total de € 632,50 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria por um período de 7 meses e 15 dias.

- Fixa-se em 52 dias a prisão subsidiária que o arguido terá de cumprir, caso a multa por que foi condenado não ser paga, voluntária ou coercivamente, já se computando um dia de desconto relativo à detenção sofrida.

- Determina-se que, aquando da liquidação da pena de multa, se proceda ao desconto de um dia de detenção sofrido nos termos do disposto pelo artigo 80º, n.º2 do Código Penal.

- O arguido deverá, no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar a sua carta de condução na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de a mesma lhe ser apreendida, o que desde já se determina.

*

Inconformado, recorre o arguido, motivando o recurso com as seguintes CONCLUSÕES:

1. O ponto 4. dos factos julgados como provado, deveria ter sido julgado como não provado.

2. Em primeiro lugar, o arguido ora recorrente A... (cujos declarações foram prestadas na sessão de julgamento de 19/03/2014 com início aos minutos 00:01 a 09:04) afirma, de forma inequívoca e sincera que não sabia que se conduzisse de bicicleta com álcool estaria a cometer o crime pelo que foi condenado.

3. Tais declarações foram corroboradas pela testemunha B..., o agente autuante, que prestou depoimento de forma clara e credível e confirmou que o arguido desconhecia que estava a praticar o crime pelo qual foi condenação se após ingerir bebidas alcoólicas conduzisse uma bicicleta.

4. Assim sendo, para que um agente possa ser jurídico penalmente responsabilizado tem de praticar um facto típico, ilícito e culposo, sendo que, o facto é típico quando preenche objectiva e subjectivamente os elementos de um tipo legal de crime.

5. O arguido confessou ter ingerido bebidas alcoólicas mas afirmou desconhecer não poder conduzir uma bicicleta após tal ingestão.

6. O tipo de ilícito tem por função dar a conhecer ao destinatário que determinada espécie de comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico, sendo constituído por uma vertente objectiva (comportamento do agente) e por uma vertente subjectiva: o dolo ou a negligência, e só da conjugação destes dois elementos pode resultar o juízo de contrariedade da acção à ordem jurídica, ou seja, o juízo de ilicitude - neste sentido vide Figueiredo Dias, in "Direito Penal Parte Geral" Tomo I, pg. 231.

7. O dolo (art. 14° do C.P.) não se basta com o conhecimento dos elementos típicos, exigindo simultaneamente a "verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização" - vide Figueiredo Dias, in "Direito Penal Parte Geral" Tomo I, pg.349.

8. Para que o dolo se afirme, quanto ao seu elemento intelectual, é necessário que o agente conheça e represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo.

9. O que se pretende é que o agente ao actuar conheça tudo o quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isto é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento. Só quando a totalidade dos elementos de facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela sua conduta, Por isso numa palavra, o conhecimento da realização do tipo subjectivo do ilícito constitui o sucedâneo indispensável para que nele se possa ancorar uma culpa dolosa e a punição do agente a esse título, com a consequência de que sempre que o agente não represente, ali represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objectivo, o dolo terá desde logo de ser negado - de novo Figueiredo Dias, pgs. 334 e 335.

10. Para além do que supra se referiu o arguido teria ainda para a afirmação do dolo do tipo que ter actuado com conhecimento da proibição legal, o que não é o caso.

11. O art. 16, nº 1 do CP ao reconhecer o erro sobre a proibição prevê que a sua existência exclui o dolo, equiparando-o ao erro sobre a factualidade típica, quando o seu conhecimento "for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto".

12. O princípio da culpa constitui uma máxima fundamental do direito penal, derivando daí a exigência de que a aplicação de qualquer pena supõe sempre que o ilícito típico foi praticado com culpa, traduzindo-se esta numa censura dirigida ao agente pela prática do facto.

13. Existe uma ausência de conhecimento sobre a relação de contrariedade entre a conduta do arguido e o comando emergente da norma jurídica, pelo que deveria o mesmo ter sido absolvido do crime pelo que foi condenado, o que se, pugna.

Se assim não se entender, o que se não concede,

14. O Acórdão recorrido violou, prima facie, os artigos 40º e 71º do Código Penal ao aplicar ao arguido a pena de 115 (cento e quinze) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta Cêntimos), o que perfaz o quantitativo global de € 632,50 (seiscentos e trinta e dois euros e cinquenta Cêntimos).

15. Atento que o antecedente que o arguido possuía de igual natureza data de 1993, ao mesmo deveria ter sido aplicado uma pena de multa bastante inferior à que foi aplicada, pois seria adequada para atingir as finalidades da punição.

16. Não o tendo feito, violou pois o Acórdão recorrido os critérios dosimétricos do artigo 71º do Código Penal.

17. Atento o juízo de prognose favorável que, atentos os motivos invocados na motivação do presente recurso, ainda é possível fazer do arguido, e todos estes factos conjugados fazem-nos, salvo o devido respeito por entendimento diverso, discordar da sentença recorrida, na medida em que deveria ter sido fixado um pena de multa ao arguida bastante inferior à que foi fixada, atendendo entre outros factores que acima já se referiu, o facto de o mesmo ter um parco rendimento mensal, contando apenas com uma média de € 150,00 (cento e cinquenta Euros) mensais.

Ora,

18. Devendo ter um sentido eminentemente ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primeira de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada (prevenção geral positiva ou de integração) e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal. Por sua vez, a função da culpa é designadamente, a de estabelecer o máximo da pena concretamente aplicável (toda a pena tem como suporte axiológico - normativo a culpa concreta),

Assim sendo,

19. E atendendo ao facto de o arguido ora recorrente, ter prestado declarações objectivas e espontâneas, contribuindo relevantemente para a descoberta da verdade material, e tendo o mesmo referido as suas condições económicas e familiares, deveria justificar-se a aplicação de uma pena de multa muito inferior ao que foi aplicada pelo Tribunal a quo.

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Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido sustentando a manutenção integral da decisão recorrida.

No visto a que se reporta o art. 416º do CPP a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual, secunda a resposta apresentada em 1ª instância, ponderando todavia, quanto à medida da pena, que, não obstante o arguido ter sido anteriormente condenado ela prática do mesmo tipo de crime, atendendo a todas as circunstâncias pessoais do arguido nomeadamente a precariedade da situação económica e a circunstância de a pena fixada se mostrar muito próxima do limite mínimo da respectiva moldura abstracta, não repugna a sua redução conforme propugnado pelo recorrente.

Corridos vistos, cumpre decidir.


***

II.

1. O recurso incide sobre reapreciação da matéria de facto – ponto 4 da matéria dada como provada – e de direito – erro sobre a ilicitude e medida da pena de multa.

Para proceder à apreciação, vejamos a matéria de facto provada e a motivação probatória que a suporta.

2. A decisão do tribunal recorrido quanto à matéria de facto é a seguinte:

A) Matéria de facto provada:

1. No dia 10-03-2014, cerca das 23 horas, A... seguia ao volante e na condução de um velocípede, pela Rua das Almas, sita na freguesia de Cacia, concelho de Aveiro, área da Comarca do Baixo Vouga, apresentando uma taxa de álcool no sangue registada de 2,82 g/l, a que corresponde o valor apurado após dedução do erro máximo admissível, de 1,97g/1.

2. Sabia o arguido que, ao conduzir o veículo nas circunstâncias acima descritas estava a fazê-lo sob a influência do álcool e com as suas capacidades físicas e psíquicas afectadas por aquela substância.

4. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

5. O arguido é pedreiro e faz trabalhos esporádicos na agricultura e na recolha de sucata e aufere por mês quantia monetária variável, aproximada a €150,00.

6. O arguido é solteiro, vive em casa da mãe e como habilitações literárias tem o 6º ano de escolaridade.

7. O arguido já foi condenado nas penas de:

a) 75 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 meses, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º588/93, do 1 º Juízo do Tribunal Judicial de Aveiro, pela prática, em 09-10-1993, de um crime de condução em estado de embriaguez;

b) 210 dias de multa, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º461/95, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Aveiro, pela prática, em 15-07-1994, de um crime de falsificação de documento;

c) 150 dias de multa, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º205/95, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, pela prática, em Abril de 1992, de um crime de falsificação e de um crime de burla;

d) 200 dias de multa, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º346/96, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, pela prática, em 21­05-1994, de um crime de falsificação e de um crime de burla;

e) 210 dias de multa, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º219/97, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, pela prática de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla;

f) 13 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de dois anos, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n. º393/96, do 1 º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, pela prática, em 08-09-1993, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla;

g) 12 meses de prisão, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º383/00, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, pela prática, em 13­08-1998, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla;

h) 120 dias de multa, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º510/05.3GCAVR, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro, pela prática, em 12-07-2005, de um crime de furto.

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B) Matéria de facto Não provada

Não existem outros factos dados como provados que tenham interesse para a decisão da causa ou que se mostrem em contradição com os dados como provados.

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C) Fundamentação / análise crítica da prova

A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios que regem a matéria, da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, designadamente e no essencial:

- nas declarações do arguido, o qual, de forma credível e espontânea admitiu a prática dos factos objectivos. Porém, alegou desconhecimento da necessidade de realizar teste de detecção de álcool no sangue por se encontrar a conduzir uma bicicleta. Ora, nesta parte, pese embora a confirmação da estranheza pela testemunha B..., a verdade é que não convenceu o Tribunal, pois que o arguido já foi condenado pela prática deste tipo legal de crime, o qual sempre se ateve a veículos com ou sem motor.

Esclareceu ainda quanto aos factos atinentes às suas condições pessoais e económicas, o que não levantou reservas ao Tribunal.

- no teor do documento de fls. 9 dos autos, do qual consta o resultado do teste quantitativo de pesquisa de álcool ao ar expirado do aparelho Dragger 7110 MKIII P.

No que tange a este documento, haverá que referir que a veracidade do documento ou a assinatura nele constante não foram impugnados.

Em 01-01-2014 entraram em vigor as alterações ao Código da Estrada, passando a constar do artigo 170°, n.01, alínea b) que, no auto de notícia deve ser feito constar "o valor registado e o valor apurado após dedução do erro máximo admissível previsto no regulamento de controlo metrológico dos métodos e instrumentos de medição, quando exista, prevalecendo o valor apurado, quando a infracção for aferida por aparelhos ou instrumentos devidamente aprovados nos termos legais e regulamentares".

Na sequencia desta alteração legislativa surgiram diversos acórdãos de Tribunais superiores, com cuja tese se concorda e de que se destaca os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 15-01-2014, relatados pelos senhores Desembargadores Neto de Moura, Alves Duarte e Donas Botto e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-01­2014, relatado pelo senhor Desembargador Jorge Gonçalves, que vieram fazer ressurgir a imperatividade de se efectuar o desconto do erro máximo admissível, pois que entenderam que:

"Nos termos do disposto no artigo 153. º, n. º 1, do Código da Estrada, o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito e o controlo metrológico dos analisadores quantitativos, já o sabemos, é regulado pela Portaria nº 1556/2007, de 10 de Dezembro.

Por outro lado, embora se refira, como é natural, apenas, às contra-ordenações (uma vez que o Código da Estrada não prevê crimes), não se descortina nenhuma razão válida para não aplicar o disposto na alínea b) aos casos em que a condução de veículo na via pública com uma taxa de álcool no sangue acima de determinado limite constitui crime.

Desconhecemos as razões da opção efectuada de fazer prevalecer (sobre o valor registado pelo aparelho) o valor apurado após dedução do erro máximo admissível, mas não pode haver dúvidas de que o legislador quis pôr termo à controvérsia actualmente existente, a que já nos referimos, procedendo a uma interpretação autêntica. (...)

O tipo objectivo do crime de condução de veículo em estado de embriaguez (artigo 292. º, n. º 1, do Código Penal) exige que o condutor tenha uma taxa de álcool no sangue igualou superior a 1,2 g/I.

A prova da verificação desse elemento objectivo do tipo de ilícito em causa exige um exame e na realização deste tem de ser utilizado um analisador quantitativo do teor de álcool no sangue, o designado alcoolímetro, que não é um meio de prova, como, por vezes, se diz, mas simplesmente um instrumento utilizado na realização de um exame, que é um meio de obtenção de prova. O meio de prova (ou, se assim se preferir, a prova) é o talão emitido pelo aparelho, no qual é registada, além do mais, a taxa de álcool acusada pelo condutor fiscalizado.

Por razões óbvias, esse meio técnico de aferição da quantidade de álcool no sangue tem de ser fiável e por isso, previamente à sua utilização, passa por um processo, que se pretende rigoroso, de aprovação e verificação.

(. . .) Reconhecido que a qualquer resultado de medição está sempre associada uma incerteza de medição, uma vez que não existem instrumentos de medição absolutamente exactos, tal incerteza é avaliada e devidamente ponderada no acto da aprovação (do modelo) de instrumento a utilizar e na sua verificação, nomeadamente mediante a consideração de erros máximos admissíveis, legalmente previstos (em consonância com a já referida Recomendação 126 da OIML).

Com efeito, estabelece o artigo 8.º da Portaria n." 1556/2007, de 10 de Dezembro, que: "Os erros máximos admissíveis (EM A) , variáveis em função do teor de álcool no ar expirado (TAE), são o constante do quadro que figura no quadro anexo ao presente diploma e que dele faz parte integrante".

A controvérsia que se instalou está em saber qual a função desses erros máximos admissíveis.

A tese que aqui defendemos considera que o EMA é uma variável que integra o controlo metrológico no momento da aprovação e/ou verificação do(s) modelo(s) de alcoolímetro(s), não sendo dedutível após cada uma das utilizações desse modelo.

Para a tese adversa, essa variável tem, também, como função superar a dúvida sobre a correcção do resultado apresentado pelo aparelho, dúvida com que o julgador, forçosamente, se há-de defrontar dada a reconhecida incerteza inerente a qualquer medição, pelo que ao resultado do exame casuisticamente efectuado por cada alcoolímetro, mesmo que em condições regulares de funcionamento, impõe-se a dedução do valor do EMA.

Foi esta a solução que o legislador decidiu adoptar, consagrando-a no artigo 170. º, n. º 1, al. b), do Código da Estrada, ao determinar que o valor apurado após dedução do erro máximo admissível prevalece sobre o valor registado.

É pacífico que a lei interpretativa não constitui uma nova e distinta manifestação da vontade do legislador. Por isso que, como se dispõe no artigo 13. º do Código Civil, a lei interpretativa considera-se, para efeitos da sua aplicação, integrada na lei interpretada, do que resulta o reconhecimento àquela (lei interpretativa) de eficácia retroactiva."

Assim, aderindo a esta tese, no caso dos autos, pressupondo que o alcoolímetro já foi objecto de verificação periódica, tendo em consideração o erro máximo admissível de 30%, o "valor apurado" da alcoolémia com que o arguido conduzia, nas referidas circunstância de tempo e lugar, o velocípede será de 1,97g/1.

- no teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 11 e seguintes.

- nas regras da experiência comum, que permitem inferir, com base nos factos objectivos dados como provados, a intenção subjectiva do arguido, já que se trata de uma presunção natural que quem conduz após ter ingerido quantidade indeterminada de bebidas alcoólicas suficiente para apresentar a taxa de álcool no sangue verificada e apurada, sabe que o que está a praticar é crime e tem vontade de praticar tal facto.


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3. Impugnação da matéria de facto

Reportando como objecto de impugnação o ponto 4 da matéria dada como provada pelo tribunal recorrido, o recorrente questiona apenas o segmento “bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”.

O fundamento probatório invocado é o de que o arguido “afirma, de forma inequívoca e sincera que não sabia que se conduzisse de bicicleta com álcool estaria a cometer o crime pelo que foi condenado. Tais declarações foram corroboradas pela testemunha B..., o agente autuante, que prestou depoimento de forma clara e credível e confirmou que o arguido desconhecia que estava a praticar o crime pelo qual foi condenação se após ingerir bebidas alcoólicas conduzisse uma bicicleta”.

A afirmação do arguido de que não sabia que a condução de um velocípede na via pública sob o efeito do álcool (com taxa registada de 2,82 g/l, a que corresponde, após dedução do erro máximo admissível, a taxa de 1,97g/1) constitui crime constituiu objecto de análise específica da decisão recorrida, nos seguintes termos:

(…)o arguido (…) alegou desconhecimento da necessidade de realizar teste de detecção de álcool no sangue por se encontrar a conduzir uma bicicleta. Ora, nesta parte, pese embora a confirmação da estranheza pela testemunha B..., a verdade é que não convenceu o Tribunal, pois que o arguido já foi condenado pela prática deste tipo legal de crime, o qual sempre se ateve a veículos com ou sem motor”.

Ora, confrontado com tal motivação probatória, o recorrente não a rebate. Permanecendo assim inatacável a base nuclear da decisão recorrida: “o arguido já foi condenado pela prática deste tipo legal de crime, o qual sempre se ateve a veículos com ou sem motor”. E que “este tipo legal de crime, sempre se ateve a veículos com ou sem motor”.

Afirmação incontornável que evidencia o bom fundamento da decisão recorrida.

Por outro lado, os fundamentos probatórios invocados pelo recorrente são dois: - que ele próprio “afirma, de forma inequívoca e sincera”; e - que “o agente autuante confirmou que o arguido desconhecia que estava a praticar o crime”.

O primeiro equivaleria atribuir força probatória plena às declarações do arguido relativamente á negação do facto típico objecto da acusação. O mesmo é dizer a força de confissão de facto desfavorável ao confitente.

Certo é que o artigo 344º, n.º1 do CPP prevê expressamente a valoração da confissão do arguido. Fazendo-o porém – cfr. corpo do referido preceito - relativamente aos “factos que lhe são imputados”.

A presunção de inocência do arguido – presunção abstracta - não tem o alcance de presunção de verdade das declarações do arguido sobre factos concretos que lhe são imputados, particularmente no que se refere a factos favoráveis ao “confitente”.

Com efeito o CPP reporta-se à confissão do arguido quanto a “factos que lhe são imputados”. O mesmo é dizer, factos descritos na acusação, como tal constitutivos do crime ou crimes imputados na acusação, como tais “desfavoráveis” ao arguido, a quem assiste o direito à não auto-incriminação.

Em conformidade não só com elementares regras da experiência (é fácil e vantajoso confessar o que interessa ao confitente) mas ainda com o princípio geral sobre a confissão enunciado pelo artigo 353º do C. Civil: Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.

Não podendo, pois, atribuir-se às declarações do arguido a força probatória qualificada de confissão da negação do facto típico.

Por outro lado, a afirmação de que “o agente autuante confirmou que o arguido desconhecia” constitui clara extrapolação do depoimento.

Em primeiro lugar o agente autuante não afirmou - nem podia afirmar - que o arguido não sabia que o facto constituía crime. Apenas afirmou que o arguido “manifestou estranheza pela autuação”. O que é diferente, uma vez que o testemunho se reporta apenas a uma declaração ouvida ao agente e não ao facto tema de prova, em si, que, no caso, sendo subjectivo, apenas o agente poderia declarar.

De onde que o depoimento do agente sempre seria depoimento de ouvir dizer ao próprio arguido. Não tendo, por isso, outro valor intrínseco que não o de reproduzir o depoimento do próprio arguido, também ouvido em audiência.

Em segundo lugar o agente não invocou qualquer razão de ciência sobre o facto – e sendo facto de natureza subjectiva somente o próprio poderia ter conhecimento dele, não podendo o agente testemunhar, a não ser por dedução.

Não tendo, pois, tal depoimento força capaz de impor decisão diversa da recorrida.

Impõe-se assim, manifestamente, a improcedência do recurso em matéria de facto.

4. Os fundamentos jurídicos invocados para a pretendida absolvição do crime – erro sobre a proibição / falta de consciência da ilicitude, previstos nos artigos 16 / 17º do CP – caem pela base, arrastados, por efeito lógico, inexorável, da queda da premissa em que assentam: a prévia modificação, para não provada, da questionada matéria do ponto 4 da matéria de facto provada. Premissa que, como resulta da apreciação supra efectuada, se não verifica.

Aliás, ainda que o arguido pudesse ter actuado com falta de consciência da ilicitude, sempre esta seria censurável, visto que sempre o crime incluiu todo o tipo de veículos, com ou sem motor. Além do mais o arguido tinha sido já condenado pelo mesmo tipo de crime, pelo que não pode, seriamente, afirmar o seu desconhecimento.

Ensina o Professor Figueiredo Dias (O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, pp. 341 e 342) quanto ao critério pessoal - objectivo da censurabilidade da falta da consciência da ilicitude:

"Se lograr comprovar-se que a falta de consciência de ilicitude ficou a dever-se, directa e imediatamente, a uma qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade do agente, aquela deverá sem mais considerar-se censurável. (…)

São, por seu turno, requisitos daquela rectitude e da respectiva atitude:

1) Que a questão da licitude concreta (seja quando se considera a valoração em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação) se revele discutível e controvertida; e isto, não porque nos outros casos se pretenda reverter à velha ideia jusnaturalista do inatismo e evidência de certas valorações, mas a questão há-de ser uma daquelas em que se conflituem diversos pontos de vista de estratégica ou oportunidade, estas também juridicamente relevantes.

2) Que a solução dada pelo agente à questão da ilicitude corresponda a um ponto de vista de valor juridicamente reconhecido, por forma a poder dizer-se que ele conduziria à ilicitude da conduta se não fosse a situação de conflito anteriormente aludida.

3) Que tenha sido o propósito de corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante ou, quando não o propósito consciente, pelo menos o produto de um esforço ou desejo continuado de corresponder às exigências do direito, para prova do qual se poderá lançar mão dos indícios fornecidos pelo conhecimento do seu modo-de-ser ético-jurídico adquirido o fundamento da falta de consciência da ilicitude".

Ora, no caso dos autos, resulta provado o conhecimento da ilicitude da sua conduta, pelas razões já aduzidas, nos termos resultantes da reapreciação da matéria de facto.

Por outro lado, ainda que assim não fosse, sempre a alegada falta de consciência da ilicitude seria censurável porquanto revelaria uma qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade do agente, estando afastada, outrossim, qualquer atitude de fidelidade ou correspondência a exigências ou pontos de vista de valor juridicamente relevante.

É pois, também manifesta a improcedência do recurso nesta parte.

5. Subsidiariamente, sustenta o recorrente a aplicação de uma “pena de multa bastante inferior à que foi aplicada”.

Estabelece o artigo 47º do C. Penal:

1. A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º1 do art. 71º (...).

2. Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5,00 e € 500,00, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

O n.º 1 define o critério para estabelecer o quantum de dias de multa, enquanto o n.º 2 define o critério para a taxa diária a aplicar ao n.º de dias previamente definido. Consagrando o chamado modelo escandinavo dos dias de multa, segundo o qual a fixação desta pena pecuniária se faz através de duas operações sucessivas: na primeira determina-se o número de dias de multa, através dos critérios gerais da fixação das penas; e, na segunda, fixa-se o quantitativo de cada dia de multa, em função da capacidade económica do agente. – cfr. MAIA GONÇALVES, C. Penal Anotado, 15ª ed., em anotação ao art. 47º.
Por sua vez o art. 71º, nº1 do C.P., para que remete o art. 47º, estabelece o critério geral segundo o qual “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigência de prevenção”.
Critério que é precisado depois no nº2: “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.
Circunstâncias que são depois exemplificadas (“nomeadamente”) nas várias alíneas do citado nº2 e se reconduzem a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpa sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}.

Releva ainda, no que toca às finalidades da punição o art. 40º do C. Penal que postula no seu nº 1 (redacção introduzida pela Reforma de 95): “a aplicação da pena... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Acrescentando o nº2: “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Dentro da moldura abstracta a medida concreta deve ser proporcionada ao grau de ilicitude e de culpa e a assegurar as finalidades da pena – dar satisfação ao sentimento de justiça e segurança da comunidade e servir de elemento dissuasor da prática de novos crimes. Tendo como limite máximo a medida da culpa e devendo contribuir, na medida do possível, para a reinserção social do delinquente.

No caso, numa moldura abstracta de 10 a 120 dias de multa, a sentença recorrida aplicou 115 dias, á taxa diária de € 5,50.

O recorrente não dirige especificamente a sua crítica ao número de dias de multa ou à taxa diária arbitrada. Mas ao efeito sancionatório global.

Os fundamentos materiais invocados para a aplicação de uma “pena de multa bastante inferior” são: “o antecedente que o arguido possuía de igual natureza data de 1993” e “ter prestado declarações objectivas e espontâneas, contribuindo relevantemente para a descoberta da verdade material, e tendo o mesmo referido as suas condições económicas e familiares”.

A anterior condenação pelo mesmo tipo de crime, ainda que já em 1993, não constitui factor atenuativo, por o crime dos autos ir contra a solene advertência daquela condenação, pelo mesmo tipo de crime. Se a condenação fosse mais recente poderia ter maior significado mas a circunstância de ter mais de 10 anos não erradica o efeito de solene advertência, tanto mais que existem outras condenações, por outros crimes.

O alegado “contribuindo para a descoberta da verdade material” é irrelevante tendo em vista a detenção em flagrante e natureza da prova, pericial. Além de que o recorrente apenas reconheceu o óbvio, não reconhecendo a consciência da ilicitude do facto. 

Estão, porém, ainda subjacentes os fundamentos invocados no âmbito da consciência da ilicitude do facto, que, embora tendo sido julgados improcedentes para efeito de exclusão do dolo, podem relevar no âmbito do grau de ilicitude do facto – decorrente da condução de um velocípede.

E, na verdade, estendo em causa a condução de um velocípede (nem sujeito à obrigação de seguro de circulação obrigatório) o perigo causado aos restantes utilizadores da via pública (bem jurídico tutelado pelo crime) é significativamente menor do que se tratasse de veículo a motor, criador de maior risco.

Em contrapartida a taxa de alcoolemia apresentada (1,97g/1) situa-se significativamente acima do limite tipificado como crime (1.20).

Assim, o grau de ilicitude, vistos os dois factores referidos, aponta para um patamar médio.

Já o grau de culpa, a personalidade do arguido e exigências de prevenção especial daí decorrentes, tal como as exigências de prevenção geral, reclamam uma pena significativamente acima do patamar médio.

Assim, em conformidade com o douto parecer, mais do que a pena arbitrada, apenas 5 dias abaixo do limite máximo, afigura-se adequado fixar a pena concreta bem acima do meio-termo da moldura abstracta mas ainda a alguma distância do máximo, concretamente em 90 dias.

No que toca à taxa diária da multa (entre € 5,00 a € 500,00) é fixada pelo tribunal em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. De onde resulta que nesta segunda fase, para a definição do montante diário da multa relevam apenas critérios de natureza económica e financeira. Constituindo aqui a finalidade da lei eliminar, ou pelo menos esbater, as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre os arguidos possuidores de diferentes meio de solver a multa.

Ora, no caso, tendo sido fixada praticamente no limite mínimo, não há que censurar a decisão recorrida.

III.

Nos termos e com os fundamentos expostos julga-se parcialmente procedente o recurso, fixando-se a pena de multa aplicada em 90 (noventa) dias, mantendo-se a decisão recorrida em tudo o mais.

Sem tributação – decaimento apenas parcial.

Coimbra, 19 de Novembro de 2014


Belmiro Andrade
(Relator)
Abílio Ramalho