Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
401/12.1TBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO LEGAL
PRÉDIO ENCRAVADO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ARGANIL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1550º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: i. Pressuposto do direito de exigir o acesso à via pública através do prédio do vizinho é, conforme resulta do disposto no artigo 1550.º do Código Civil, a situação de encrave (absoluto ou relativo).

II. A insuficiência da ligação à via pública (encrave relativo) afere-se à luz daquelas que são as necessidades normais de acesso, estando naturalmente relacionadas e sendo determinadas por aquela que é a afectação do prédio e exploração que dele é feita.

III. Também aqui, só quando não seja possível ao proprietário do prédio encravado adequar a ligação sem excessivo incómodo ou dispêndio é que poderá exigir que a comunicação se faça pelo prédio rústico vizinho.

iv. Enquanto facto constitutivo do direito potestativo à constituição da servidão legal, recai sobre o autor o ónus de alegar e provar a factualidade relevante em ordem à demonstração de tal excessivo incómodo ou dispêndio (v.g. concretizando, por um lado, o rendimento proveniente da exploração do prédio e, por outro, as despesas em que terá de incorrer).

v. Não cumpre a previsão legal um qualquer dispêndio ou incómodo, exigindo a lei um claro excesso, que torne inexigível o sacrifício do dono do prédio dominante e justificado o encargo que irá ser criado sobre o prédio vizinho.

Decisão Texto Integral: I- Relatório
No Tribunal Judicial da comarca de Arganil,

A... e mulher, B..., casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes na (...), Amadora, e também em (...), Arganil, instauraram contra

  C... e mulher, D..., a residir em (...), Arganil, acção declarativa de condenação, a seguir a forma sumária do processo comum, pedindo a final seja declarado que são titulares de um direito de servidão de passagem de pé sobre o lado sul do terreno dos réus, desde a estrada até ao prédio dos demandantes, com as características que descrevem, e que os actos dos réus, impeditivos do exercício desse direito, são ilegais, insubsistentes e de má fé. Mais pedem a condenação dos demandados no reconhecimento desse direito de servidão de passagem a favor do prédio dos autores, a reporem a entrada e todo o leito da servidão no estado anterior às obras que lá fizeram, nomeadamente retirando o portão ou concedendo uma chave aos demandantes, e aterrando o leito da servidão até ao nível anterior, de forma a permitir acesso fácil ao terreno daqueles; a absterem-se de perturbar ou impedir o exercício desse direito de servidão; e a pagarem uma indemnização de valor não inferior a €500,00.

Subsidiariamente, pedem seja reconhecido que o prédio deles, autores, não tem ligação suficiente com a via pública através de uma passagem de pé, nem possibilidade de a estabelecer sem grande prejuízo económico; que a passagem de pé é absolutamente necessária e permite o aproveitamento mais fácil e rentável do prédio, devendo o trajecto da servidão ser concedido nos termos que requerem. Com tais fundamentos pedem a condenação dos RR a consentirem na utilização do caminho de servidão de pé, com a largura e extensão referidas, recebendo aqueles a indemnização que for arbitrada e realizando-se as obras necessárias à utilização da servidão.

Em fundamento alegaram, em síntese útil, que são os donos, por o terem adquirido por usucapião, que expressamente invocam, do prédio rústico inscrito na matriz rústica sob o art.º 222 da freguesia de x(...), o qual se desenvolve em declive, entre a estrada municipal que lhe passa a sul e um caminho de terra batida, com o qual confina do lado norte. Mais alegaram que desde tempos imemoriais o acesso ao identificado prédio é feito, a partir da estrada, por um caminho que, iniciando-se no prédio de um terceiro, flecte depois para a esquerda, atravessando o prédio dos RR numa extensão de cerca de 25 mt. O uso continuado de tal serventia e as suas características conduziram à aquisição, pela via da usucapião, de uma servidão legal de passagem onerando o prédio dos demandados, cujo reconhecimento pretendem.

Sucede, porém, que os RR procederam à aplicação de um portão em ferro no prédio do terceiro, junto à estrada, no início do caminho, o qual mantêm fechado, assim impedindo os demandantes de acederem ao seu prédio, causando-lhes prejuízos que avaliam em pelo menos € 500,00 e cujo ressarcimento reclamam.

Em via subsidiária, e para o caso de não se considerar constituída a servidão por usucapião, tal como invocaram, pedem seja reconhecido que o prédio de que são donos tem insuficiente ligação com a via pública, não sendo possível estabelecê-la sem grande dispêndio, devendo a constituição da servidão ser deferida mediante expropriação por utilidade particular da parcela necessária do prédio dos RR, nos termos previstos no art.º 1550.º do Código Civil, disposição legal a que fazem apelo.

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Citados os RR, contestaram nos termos da peça de fls. 26 e seguintes, na qual impugnaram de forma especificada a factualidade alegada pelos AA, concluindo pela sua absolvição dos pedidos formulados.

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Dispensada a realização da audiência preliminar e, bem assim, a selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, prosseguiram os autos para a fase do julgamento.

Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo que da acta consta e, tendo-se o Tribunal deslocado ao local da questão na realização de diligência de inspecção judicial, observou quanto fez constar do respectivo auto.

De seguida foi proferida sentença que, dando provimento ao pedido formulado em via subsidiária, no reconhecimento de que o prédio dos AA não tem ligação suficiente com a via pública através de uma passagem a pé nem possibilidade de a estabelecer sem grande prejuízo económico, sendo tal passagem absolutamente necessária para um aproveitamento do prédio mais fácil e rentável, condenou os RR “a consentirem que os autores utilizem o caminho de servidão de pé, com as características (largura e extensão) constantes dos factos provados xiii, xiv, xv, xvi, xviii e xxii[1], recebendo a indemnização que for arbitrada e realizando-se as obras necessárias à utilização da servidão”.

Inconformados, apelaram os RR da sentença e, tendo apresentado as suas alegações, remataram-nas com as seguintes necessárias conclusões:

“a) Entendeu o Tribunal “a quo” na sentença de que ora se apela, condenar os RR num dos dois pedidos formulados pelos AA;

b) Com efeito, entendeu o Tribunal recorrido que “In casu”, afigura-se-nos que estamos perante uma servidão de legal de passagem, no sentido de que os autores como donos do prédio dominante poderiam sempre e de forma coerciva impô-la aos réus, como donos do prédio serviente.”

c) Tomando em consideração o dispositivo legal (art.º 1550.º n.º 1 do CC) refere o Meritíssimo juiz que “(…) o prédio dos autores, embora tendo contacto com a via pública, tem-no de forma insuficiente atentas as suas necessidades normais, nomeadamente não podendo a ele aceder a pé que não seja pelo caminho ou faixa de terreno em apreço, em virtude da estreiteza e irregularidade dos degraus, da irregularidade topográfica do solo – bastante declivosa e perigosa, em nosso entender – enfim do carácter exclusivamente pedonal (em socalcos ou degraus) do acesso à via pública. Pelo que, se pode concluir que o prédio dos autores se encontra numa situação de encravamento relativamente à via pública, já que não poderão os autores sem acréscimo de despesa e de incómodo aceder a ela pelos modos referidos, a não ser pela referida faixa de terreno que integra a prédio dos réus. Pela constituição da servidão de passagem será devida indemnização correspondente ao prejuízo sofrido – cfr. Art.º 1554.º do Código Civil.”

d) Assim, entendeu o Meritíssimo Juiz do Tribunal recorrido condenar os RR “a consentirem que os autores utilizem o caminho de servidão de pé, com largura e extensão referidas em 1., recebendo os mesmos réus a indemnização que for arbitrada e realizando-se as obras necessárias à utilização da servidão.”

e) Entendem o RR que a fundamentação de facto que motivou a condenação, ela própria aponta para a solução contrária.

f) O prédio objecto dos presentes autos confina com a estrada municipal que lhe passa a sul.

g) Relativamente a este prédio, e sendo o mesmo constituído por duas partes, a segunda é de natureza declivosa.

h) A ligação da estrada para o terreno dos autores é agora feita por um muro com 1,30 m de altura, com cinco degraus, com larguras que vão de 28 cm a 33 cm.

i) Com base nos elementos de localização do prédio pode-se ver que, desde o portão – localizado em terreno que não pertence aos RR - até ao início do terreno dos RR, medeia a distância de 5,30 mais 6,30, portanto 12 metros.

j) A decisão afecta o prédio de um terceiro, estranho à demanda entre os sujeitos processuais, activo e passivo.

k) O espaço a ocupar, no prédio dos RR, pela dita servidão de passagem onerando o prédio dos AA, será então de 22,80 m, no caso de resultar das contas feitas com base nas partes apresentadas ou de 31 metros, deduzindo os 5,30 mais 6,30 aos 43 metros referidos em XVIII.

l) Como foi aceite pelo tribunal recorrido, não ficou provado ter havido, em tempo algum, qualquer servidão de passagem.

m) 22,80 m ou 31 metros seria o espaço, em comprimento, sendo a largura de 1,40 e na parte mais estreita de 90 cm, que ocupava e dividia ao meio o prédio dos RR.

n) Esse prédio ficaria devassado e por isso mesmo desvalorizado para venda.

o) O prejuízo global daí resultante, embora não quantificável agora, afigura-se-nos de valor significativo.

p) Os AA. e anteriores donos e possuidores sempre comunicaram com o seu prédio rústico, nunca tendo tido necessidade de reivindicar direito a passarem a pé pelo terreno que hoje é dos RR.

q) O desnível do terreno do prédio dos AA é de 1,30 de altura, sendo certo que as escadas existentes são, e foram no passado, utilizadas para ligação da estrada ao prédio.

r) Dada a forte inclinação do terreno, com escadas largas ou apertadas, dadas as características normais de pessoas com estas idades, a vontade de deslocação ao terreno para apanhar castanhas não será muita. Pessoas com idades mais novas não estão impossibilitadas de lá se deslocarem.

s) Não obstante, a ligação num desnível de 1,30, onde já existem umas escadas com apenas cinco degraus, com facilidade e sem grande dispêndio, utilizando o tempo de meio-dia, um trabalhador poderá alargar as escadas para o dobro de largura ou mais. Poderá ainda “chumbar”, com cimento, um varão em ferro ou em madeira ao lado dos cinco degraus para amparar qualquer utilizador das escadas.

t) A despesa será certamente muito mais reduzida do que a causada com a criação de uma servidão de passagem a pé que, podendo ser utilizada a todo o tempo, dadas as características do terreno e o rendimento que os AA de lá tiram, que é apenas da apanha da fruta no seu tempo, uma vez o terreno não se prestar a qualquer outra exploração agrícola.

u) Tomando em consideração a explanação apresentada pelo Meritíssimo juiz “a quo”, e com ela concordando, não poderá, no entanto, deixar de discordar-se precisamente no conceito utilizado, “in casu” quanto ao teor do artigo 1550.º do Código Civil.

v) “In casu” foi constatado, através da deslocação ao local, que para se poder alargar as escadas, pelo menos, (para já não referir outra solução acima adiantada – caso de uma rampa de dimensões reduzidas, feita com terra e penedos) o valor, no máximo, da fruta apanhada um ano apenas, chegaria, largamente, para pagar a despesa com a ampliação da escada que lá existe.

w) Só o valor da indemnização referida na douta sentença será muito superior à despesa a ter com essa pequena alteração”.

Com tais fundamentos pretendem a revogação da sentença proferida e sua substituição por decisão que absolva os RR dos pedidos formulados.

Contra alegaram os AA apelados, defendendo naturalmente a manutenção do julgado, sintetizando as suas alegações nas seguintes conclusões:

“1.ª Na apelação, os RR. não cumprem o ónus imposto pelo 2º do art.º 639º do CPC.

2.ª Na verdade, os RR. não indicam qualquer norma que tenha sido violada pela decisão.

3.ª As conclusões de recurso não beliscam sequer a situação de encrave relativo em que se encontra o prédio dos AA.

4.ª Confundem propositadamente os socalcos do prédio dos AA. ou apontam apenas ao 1.º socalco quando o 2.º é que se encontra praticamente inacessível a partir da via pública e é o de maior área e com árvores de fruto secos e um castanheiro de grande porte a pender sobre a mesma (Cfr. conclusão s), e factos VI e VII).

5.ª Sublinha-se que a servidão, em terreno dos RR., tem apenas 22,80m de comprimento e largura irregular (cerca de 1m), sendo composto, em toda a extensão por sinais visíveis e permanentes – leito de terra batida (Cfr. factos XXI e XXII).

6.ª Estão preenchidos os pressupostos legais previstos no art.º 1550.º do CC para o reconhecimento da servidão de pé a favor do prédio do AA.

7.ª Os RR. não põem em causa nenhum dos factos dados como provados.

8.ª O prédio dos AA. (em socalcos) não tem comunicação suficiente com a via pública, pois que ao mesmo se acede só através de degraus perigosos instalados em muros, tendo um deles mais de 2m de altura.

9.ª O único acesso viável ao prédio dos AA. é o caminho descrito nos factos V e XXII dos provados, o qual já nem sequer carece de obras para cumprir a sua finalidade.

10.ª A decisão recorrida não ofende qualquer norma jurídica, antes faz boa aplicação do art.º 1550º do CC.”

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Questão prévia

Invocaram os apelados, nas contra alegações, que os recorrentes não deram cumprimento ao ónus imposto pelo art.º 639.º do CPC, omitindo a indicação da norma jurídica violada.

Nos termos da citada disposição legal, recai sobre os recorrentes o duplo ónus de alegar e formular conclusões, sendo que nestas, versando o recurso sobre matéria de direito, devem indicar as normas jurídicas violadas e o sentido em que, no seu entender, deveriam ter sido interpretadas e aplicadas (cfr. as als. a) e b) do n.º 2 do preceito).

No caso em apreço, vistas as alegações apresentadas pelos recorrentes e conclusões a final formuladas, é evidente que têm por violada a disposição contida no art.º 1550.º do Código Civil, conforme expresso na conclusão u), discordando da interpretação que da mesma foi feita pelo Mm.º juiz “a quo” no que respeita à ponderação do requisito dispêndio a que ali se alude e sua aplicação ao caso concreto. E tanto a norma jurídica tida por violada foi indicada com clareza, que os recorridos não deixaram de defender, nas suas contra alegações, a interpretação que da mesma foi feita pelo Mm.º Juiz.

Nestes termos, sendo manifesta a falta de razão dos apelados, improcede a arguida irregularidade.

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Delimitação do objecto do recurso

O âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente, podendo fazê-lo no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (art.º 635.º, n.ºs 2 e 4 do CPC). Diversamente, o âmbito do recurso pode ser ampliado a pedido da parte vencedora nos termos previstos no n.º 1 do artigo 636.º do mesmo diploma legal, nomeadamente, e para o que aqui importa, no caso de ter sido invocada uma pluralidade de fundamentos da acção e ter decaído em algum ou algum deles.

Ora, isso mesmo se verificou no caso vertente, tendo os autores, a parte aqui vencedora, invocado uma dupla causa de pedir tendo em vista fundamentar o direito de servidão de passagem cujo reconhecimento pretendiam. Verificando-se que não questionaram a sentença proferida, no segmento em que não reconheceu a constituição por usucapião da servidão, pedido formulado em via principal, conformando-se com o assim decidido, mostra-se tal segmento da decisão transitado em julgado e, deste modo, excluído do objecto do recurso (cf. o n.º 5 do preceito citado).

Finalmente, sendo correcto que o recurso interposto não incidiu sobre a decisão proferida sobre a matéria de facto, tal não impede este Tribunal de proceder a alterações, ainda que oficiosamente, nos termos consentidos pelo disposto no n.º 1 do art.º 662.º.

E a verdade é que, analisado o acervo factual que nos chega da 1.ª instância, é patente a contradição entre o facto discriminado na sentença sob o n.º 13. e os factos ali alinhados sob os nrs. 14., 15. e 16.

Sob o n.º 13 fez-se constar que “O prédio dos AA, do lado norte, confina com aquele caminho de terra batida cujo leito confina com um terreno que é propriedade dos RR” (é nosso o destaque), para logo se afirmar que o acesso àquele caminho de terra batida inicia-se, a partir da estrada, por um caminho que no início não assenta em terreno dos RR mas depois faz uma curva à esquerda e dirige-se, no sentido nascente-poente, sobre o terreno destes (factos 14. 15. e 16.)

O primeiro dos factos transcritos provém do art.º 8.º da petição, aceite pelos RR na sua contestação (cf. art.º 15.º). Todavia, em contrário do que o seu teor parece sugerir, ou seja, que estamos perante um caminho que, confinando com o terreno propriedade dos RR, dele não faria parte, a verdade é que, para lá da impropriedade da denominação -não estamos perante um caminho, mas antes e apenas de um acesso-, como resulta do teor da petição inicial e também da contestação, o leito do mesmo ocupa (ainda que em parte, como vimos) o prédio dos RR, pois só assim faz sentido pedir o reconhecimento de um direito de servidão predial (sempre constituída sobre prédio pertencente a dono diferente, conforme resulta claro da definição legal que nos é dada pelo art.º 1543.º do Código Civil).

Deste modo, tendo em atenção o alegado por AA e RR, nesta parte concordantes, ao abrigo do disposto nos art.ºs 607.º, n.º 4, 663.º, n.º 2 e 662.º, n.º 1, todos do CPC, altera-se a redacção do facto 13., que passará a ser a seguinte:

O prédio dos AA confina do seu lado norte com o referido caminho de terra batida, cujo leito se encontra no limite do prédio dos RR, rústico inscrito na matriz sob o art.º 219.º da freguesia de x(...), descrito na Conservatória do Registo Predial de Arganil sob o n.º 70/19870522 da sobredita freguesia.

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Sabido que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso são questões a decidir:

i. da excepção dilatória da ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário

ii. do erro de julgamento: da errada interpretação do art.º 1550.º do Código Civil

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i. da ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário

O art.º 28.º do CPC em vigor ao tempo da propositura da acção impunha a intervenção de todos os interessados na relação controvertida, importando a falta de algum a ilegitimidade do(s) demandado(s) “quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a proferir produza o seu efeito útil normal” (vide n.º 1), logo acrescentando o n.º 2 do preceito que a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes em relação ao pedido formulado.

Face ao teor da explicitação contida no referido n.º 2 resulta claro que o litisconsórcio só é imposto nas situações em que a prolação da decisão pode vir a ser inutilizada por outra proferida em face dos restantes interessados, “por virtude de a relação jurídica ser de tal ordem que não possam regular-se inatacavelmente as posições de alguns sem se regularem as dos outros”.[2] Inversamente, por maior que possa ser a contradição lógica entre as decisões, desde que susceptíveis de aplicação sem incompatibilidade prática, a decisão produz o seu efeito útil normal, não se impondo o litisconsórcio.

Assim explicitados os termos da disposição legal em referência, logo se intui que, face à alegação e prova de que o acesso ao prédio dos AA se faz, partindo da estrada, sobre prédio de terceiros, só depois atravessando o prédio dos RR, a definitiva regulação da situação concreta submetida a juízo -constituição de servidão de passagem a favor do prédio dos demandantes- impunha a intervenção deste terceiro, cuja posição é desconhecida no processo. Todavia, considerando ter ficado demonstrado que permitiu a colocação pelos RR de um portão no início do caminho, o qual ficou assim implantado no prédio que lhe pertence, portão que aqueles, conforme também ficou provado, mantêm fechado, tal factualidade permite que pelo menos se insinue a dúvida sobre a disponibilidade do terceiro não demandado para autorizar a passagem dos AA. E assim sendo (ou mesmo não sendo), teria necessariamente que ser chamado à acção, por de nada valer condenar os RR a permitirem a passagem dos demandantes sobre o seu terreno se este terceiro, não vinculado pela decisão (cf. art.º 619.º do CPC), obstar a que a passagem se faça pelo seu prédio.

Deste modo, para que a decisão a proferir definisse e regulasse de forma definitiva a situação ajuizada, necessária era a intervenção dos titulares do direito de propriedade de todos os prédios onerados com a servidão a constituir, sem a qual a mesma não produziria o seu efeito útil normal, para utilizarmos as palavras da lei[3].

Estamos assim perante a excepção dilatória de ilegitimidade passiva, de conhecimento oficioso e conducente à absolvição dos demandados da instância nos termos das disposições conjugadas dos artigos 577.º, al. e), 578.º e 278.º, n.º 1, al. d), todos do mesmo diploma legal. Não obstante, considerando quanto dispõe o n.º 3 deste último preceito, só assim será decretado caso a decisão final não se mostre favorável aos RR apelantes, em favor e no interesse de quem foi consagrada a aludida excepção.

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II. Fundamentação

De facto

São os seguintes os factos a considerar (agora logicamente ordenados):

1. O artigo 222 rústico da freguesia de x(...) tem o seguinte teor: terra de cultura com 3 nogueiras e 1 castanheiro, com a área de 0,0360ha, sita em Linhares, a confrontar de norte com (...) (herdeiros), sul estrada, nascente (...) e poente (...).

2. Os AA. são os donos do prédio identificado em 1., o qual se encontra descrito sob o n.º 667 da freguesia de x(...) e inscrito a seu favor pela inscrição G1 de 23.11.1999.

3. Os AA., por si e seus antecessores, desde há mais de 15, 20 e até 40 anos, sem interrupção e com respeito pelos limites estabelecidos por marcos e muros divisórios, têm vindo a cultivar o prédio identificado em 1. de forma independente, nele semeando, adubando, plantando e colhendo frutos, melhorando-o, beneficiando-o e vigiando-o em seu exclusivo proveito e interesse, e pagando os respectivos contribuições e impostos.

4. Sempre à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, convictos de serem os seus únicos donos e de não lesarem direitos de terceiros.

5. O terreno dos AA. desenvolve-se em declive, entre a estrada municipal que lhe passa a sul e um caminho de terra batida que passa mais abaixo, do lado norte, e que é a continuação daquele que se inicia actualmente num portão, encontrando-se ainda limitado por um muro de suporte.

6. O prédio dos AA. é formado por dois socalcos: na primeira calhada estão plantados um castanheiro, dois pessegueiros e um abrunheiro, encontrando-se o terreno de pousio e com arbustos, sendo que parte dos galhos do castanheiro pende sobre a segunda calhada.

7. A segunda calhada apresenta uma topografia de natureza declivosa acentuada, sendo de área manifestamente superior à primeira calhada.

8. Na segunda calhada estão plantadas quatro nogueiras, sendo uma de maior porte e as restantes de médio porte, encontrando-se igualmente o terreno de pousio e com arbustos.

9. Entre a primeira e a segunda calhada existe uma escada em pedra composta por 8 degraus, o primeiro tem 30 cm de largura e o último 35 cm de largura; a altura da parede onde estão embutidas as escadas é de 2,20 m.

10. O muro de suporte da estrada com o qual confina a 1.ª calhada tem 1,30 m de altura.

11. São cinco os degraus de acesso à primeira calhada, tendo o primeiro degrau 33 cm de largura e o último 28 cm de largura.

12. O prédio dos AA confina do seu lado norte com o referido caminho de terra batida, cujo leito se encontra no limite do prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º 219.º da freguesia de x(...), descrito na Conservatória do Registo Predial de Arganil sob o n.º 70/19870522 da sobredita freguesia e aqui inscrito em favor dos RR pela Ap. 3 de 1987/09/21[4].

13. O aludido caminho de terra batida inicia-se na estrada e situava-se, no início, entre uma casa e uma linha de água ali existentes.

14. Nesta parte, o caminho não assenta em terreno dos RR. e tem actualmente uma escadaria em cimento e um patamar.

15. A seguir, o caminho faz uma curva à esquerda e prossegue, no sentido nascente -poente, sobre o terreno dos RR.

16. O caminho supra referido apresenta, a partir da escadaria em cimento e do patamar aludidos em 14. e ao longo do seu percurso, uma largura irregular, sendo composto em toda a sua extensão por ervas e terra batida.

17. Na sua parte mais larga, entre o murete que suporta a 2ª calhada e o muro que suporta o aludido caminho, este apresenta a largura de 1,40 m; na parte mais estreita a largura do caminho é de 90 cm.

18. O murete de suporte da segunda calhada, que a separa do caminho, tem actualmente alturas variáveis entre 55 cm de início, 42 cm a meio e 50 cm no fim, tendo um metro de altura na parte Poente/Sul do prédio, na extremidade oposta ao prédio dos réus.

19. Recentemente, os RR. aplicaram um portão em ferro junto à estrada, no início do caminho.

20. Entre o referido portão e o acesso à primeira calhada do prédio dos autores, a distância é de 43 metros.

21. Do dito portão até à esquina da casa pertencente à Sra. E..., a distância é de 5,30 metros.

22. Da esquina da casa da Sra. E... à esquina de uma casa de arrecadação em xisto, pertencente aos réus, distam 6,30 metros.

23. Da esquina da casa de xisto acima referida até ao início da segunda calhada distam 22,80 metros.

24. O local onde foi assente o portão nem sequer pertence aos RR.

25. O portão encontra-se fechado pelos RR. à chave.

26. Este caminho serve outras propriedades vizinhas.

27. Os AA. têm, respectivamente, 74 e 69 anos.

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De Direito

Da constituição se uma servidão legal a favor dos autores/apelados

Tendo recusado o pedido formulado pelos AA no sentido de ser reconhecido que o prédio dos RR se achava onerado com uma servidão de passagem constituída por usucapião a favor do prédio identificado em A), acabou todavia o Mm.º juiz “a quo” por decretar a constituição de tal servidão, desta feita com fundamento no encrave relativo do prédio dominante, apoiando-se para tanto na factualidade que se deixou enunciada.

Discorrendo, a nosso ver acertadamente, sobre os pressupostos de que a lei faz depender a constituição de uma servidão legal de passagem ao abrigo do disposto no art.º 1550.º do Código Civil e ponderando ter resultado provado que “o prédio dos autores, embora tendo contacto com a via pública, tem-no de forma insuficiente atentas as suas necessidades normais (…)”, concluiu o Mm.º juiz “a quo” que o mesmo se encontra numa situação de encravamento “por não poderem os autores, sem acréscimo de despesa e de incómodo, aceder a ela pelos modos referidos, a não ser pela referida faixa de terreno que integra o prédio dos réus”. Em consequência, condenou os mesmos RR “a consentirem que os AA utilizem o caminho de servidão a pé”, com as características que indicou.

“Prima facie”, cumpre precisar que o sentido da decisão proferida é o de declarar constituída a favor do identificado prédio dos AA uma servidão legal de passagem onerando o vizinho prédio dos RR, com o conteúdo e extensão que deixou precisados, cumprindo pois indagar se a factualidade apurada sustenta o decidido, ou antes assiste razão aos apelantes quando defendem o entendimento contrário.

Servidão predial, di-lo o artigo 1543.º do Código Civil (diploma legal a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem), é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente. Podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, ainda que não aumentem o seu valor (cf. art.º 1544.º).

O art.º 1550.º confere aos proprietários que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos, faculdade igualmente reconhecida ao proprietário que tenha comunicação insuficiente pela via pública, por terreno seu ou alheio.

A lei consagra assim a favor do dono do prédio encravado -quer estejamos perante uma situação de encrave absoluto ou meramente relativo- o direito potestativo de constituir uma servidão sobre determinado prédio, independentemente portanto da vontade do dono deste.

Pressuposto do direito de exigir o acesso à via pública através do prédio do vizinho é, conforme resulta da lei, a situação de encrave. Encravado é o prédio que tem entre ele e a via pública outro ou outros prédios de permeio, situação por lei equiparada àquela em que só com excessivo incómodo ou dispêndio poderá estabelecer-se tal comunicação, critério este que obriga ao confronto do custo das obras necessárias com o rendimento produzido pelo prédio.[5] Finalmente, concede a lei igual tratamento aos prédios em que a comunicação existe mas é insuficiente, atentas as necessidades de exploração do prédio.

Em suma, para efeitos do normativo que se analisa, “a lei considera encravado não só o prédio que carece de qualquer comunicação com a via pública (encrave absoluto), mas também aquele que dispõe de uma comunicação insuficiente para as suas necessidades normais e aquele que só poderia comunicar com a via pública através de obras cujo custo esteja em manifesta desproporção com os lucros prováveis da exploração do prédio ou com as vantagens que ele proporciona (encrave relativo)”[6].

Finalmente, cabe referir que, sendo a situação de encrave do prédio que se pretende dominante, facto constitutivo do direito à constituição da servidão legal de passagem, o ónus da respectiva alegação e prova recai sobre os AA.

Isto dito, e revertendo ao caso dos autos, vista a factualidade apurada logo se conclui que não estamos perante uma situação de encrave absoluto, posto que o prédio dos demandantes confina do sul com estrada pública (cf. pontos 1 e 5), tendo até acesso estabelecido através de degraus, os quais fazem a ligação entre os dois patamares em que se desenvolve (calhadas) e também entre a estrada e o 1.º daqueles patamares (ou calhada).

Face à natureza declivosa do terreno e apuradas características dos degraus que fazem a referida ligação, entendeu o Mm.º juiz que o prédio dos demandantes se encontra numa situação de encrave relativo, sendo insuficiente a ligação de que dispõe à via pública, atentas as suas necessidades normais.

As necessidades normais, para efeitos de preenchimento da previsão do preceito em referência, estão naturalmente relacionadas e são determinadas por aquela que é a afectação do prédio, ou seja, a exploração que dele é feita, à luz da qual terá de se aferir se a comunicação existente fornece condições regulares de acesso à via pública. Sendo este o critério aferidor, é escasso o contributo trazido pelo elenco dos factos assentes, dele resultando apenas e tão só existirem no prédio dos AA um castanheiro, dois pessegueiros, um abrunheiro e quatro nogueiras, os quais se desconhece se se encontram ou não em produção, qual o volume de frutos que produzem e quais as características exigidas ao acesso, em ordem a permitir a sua retirada do prédio (aqui irrelevando naturalmente a idade dos AA, posto que as servidões têm natureza real, conforme resulta claro do art.º 1543.º logo de início citado). Dada tal insuficiente caracterização da exploração que do prédio é feita afigura-se que os factos apurados não permitem concluir, ao contrário do entendimento expresso na sentença apelada, pela insuficiência do acesso existente, “onus probandi” que recaía sobre os AA e assim resultou incumprido.

Por outro lado, ainda a reconhecer a insuficiência do acesso, dada a sua perigosidade, ditada pela estreiteza dos degraus e declive acentuado do terreno -não relevando obviamente o argumento extraído do carácter exclusivamente pedonal (em socalcos ou degraus) do acesso à via pública, posto que de acesso a pé se trata ainda no âmbito da servidão cuja constituição foi pedida- não podemos acompanhar o Mm.º juiz quando conclui que o prédio dos autores se encontra numa situação de encravamento relativamente à via pública, por não poderem, sem acréscimo de despesa e de incómodo, aceder a ela pelos modos referidos, a não ser pela referida faixa de terreno que integra o prédio dos réus. Com efeito, se com facilidade se concede que o melhoramento do acesso existente não se fará sem algum dispêndio -quer pela via do, pelos apelantes sugerido, alargamento dos degraus (não sendo despiciendo aqui recordar que a serventia que os AA pretendem ver constituída implica, também ela, a utilização de degraus), quer pela sua substituição por rampas menos acentuadas- não é qualquer dispêndio ou incómodo que faculta ao dono do prédio (relativamente) encravado o direito de exigir acesso à via pública pelo prédio do vizinho.

Sendo a servidão predial um encargo, a sua constituição implica sempre uma restrição ou limitação ao direito de propriedade e ao gozo efectivo do prédio pelo respectivo dono. Daí que a lei seja, a este propósito, clara e impressiva: terá de se tratar de um incómodo ou dispêndio excessivos, impondo ao autor a alegação e prova dos factos -rendimento extraído do prédio, de uma banda, despesa ou incómodos implicados no estabelecimento do acesso, de outro- de cujo confronto o julgador possa extrair aquela conclusão. Não cumpre assim a previsão legal a prova de um qualquer dispêndio ou incómodo, exigindo a lei um claro excesso, que torne inexigível o sacrifício do dono do prédio dominante e justificado o encargo que irá ser criado sobre o prédio vizinho.

Ora, o que se verifica no caso que nos ocupa é que tal prova nem ao de leve foi feita, inexistindo factos dos quais o Mm.º juiz pudesse licitamente extrair, ainda que por presunção, a excessiva onerosidade do dispêndio ou incómodo. Daí que não se encontrem demonstrados os requisitos de que a lei faz depender a constituição de uma servidão legal de passagem, não podendo por isso subsistir a sentença proferida.

*

III Decisão

Em face a todo o exposto, acordam os juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso, revogando a sentença recorrida.

Custas nesta e na 1.ª instância a cargo dos AA.

                                                    *

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida

[1] Com o seguinte teor:

“xiii. O prédio dos AA, do lado norte, confina com aquele caminho de terra batida cujo leito confina com um terreno que é propriedade dos RR, mormente, o prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º 219.º, freguesia da x(...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Arganil sob o n.º 70/19870522 da dita freguesia.

xiv. O acesso àquele caminho de terra batida, inicia-se a partir da estrada, por um caminho situado, no início, entre uma casa e uma linha de água.

xv. Nesta parte, o caminho não assenta em terreno dos RR e tem uma escadaria em cimento e um patamar.

xvi. A seguir, o caminho faz uma curva à esquerda e dirige-se no sentido nascente-poente sobre o terreno dos RR.

xviii. Entre o portão referido em v. e o acesso à primeira calhada do prédio dos AA a distância é de 43 mt.

xxii. O caminho supra referido apresenta, a partir da escadaria em cimento e um patamar aludidos em xv. e ao longo do seu percurso, uma largura irregular sendo composto em toda a sua extensão por ervas e terra batida.”

 

[2] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, pág. 205.

[3] Neste mesmo sentido, acórdãos da Relação do Porto de 17/3/2009, proferido no processo n.º 27705.6 TBBAO e desta Relação de Coimbra de 3/12/2012, proferido no processo n.º 217/12.5 TBSAT.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

[4] Facto que na sentença recorrida tinha o nr. 13, tendo agora sido modificado.

[5] Cf. A. Varela/Pires de Lima, CC anotado, vol. III, comentário ao artigo 1550.º.

[6] Pires de Lima/A. Varela, ob. e loc. citados.