Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2688/13.3TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO
REQUISITOS
PROPRIEDADE
AUTARQUIA
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ASSENTO DO STJ DE 19/4/1989.
Sumário: I – Porque a base da nossa ordem jurídica é a usucapião, para fundear o seu questionado direito de propriedade sobre o leito do caminho, os AA teriam que ter evidenciado a sua prática continuada, em relação ao mesmo, de actos materiais correspondentes a tal direito com a convicção de o estar a exercer.

II - É incompatível com tal convicção a actuação dos AA de que adveio a obtenção do reconhecimento pelo Estado de que o caminho é público e posterior divisão material ou fraccionamento dum prédio rústico, baseada nesse reconhecimento.

III - Para que um caminho possa ser qualificado como público não basta que várias pessoas o utilizem, pois exige-se a sua afectação, desde tempos imemoriais, à satisfação de uma utilidade pública, ou de relevantes interesses radicados na colectividade e comuns à generalidade dos utilizadores, e não de uma soma de meras utilidades individuais.

IV – Tal doutrina não arreda a prova directa da aquisição do domínio público dum caminho, ou seja, de qualquer acto aquisitivo que, substancial e formalmente, se possa reputar de idóneo para conduzir à sua apropriação legítima.

V - Apesar de não estar no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, nem se provar a respectiva apropriação legítima por qualquer ente público, o dito caminho é um bem dominial possuído pela autarquia se esta, na sequência do reconhecimento aludido em II, nele colocou um poste de iluminação, cujo consumo suporta, e nele efectuou reparações e colocou brita.

Decisão Texto Integral:
A..., J... e M... (habilitados na pendência da causa) movem esta acção contra F... e mulher, O..., Município de ... e Freguesia de ..., pedindo que estes sejam condenados: - a reconhecer o seu direito de propriedade sobre os prédios que identificam e que sobre um trato de terreno dos mesmos incide uma servidão de passagem de pé e de carro de bois ou tractores, destinada a fins agrícolas, a favor do prédio dos RR F... e O..., o qual não tem qualquer confrontação com a via pública. Para tanto, alegaram, em síntese, que os RR, invocando ser público o caminho de servidão de passagem que onera os seus prédios, alargaram o leito do mesmo e destruíram algumas videiras.

 Os RR contestaram, defendendo a natureza pública de tal caminho.

Na sentença, o Sr. Juiz julgou a acção improcedente, absolvendo os RR dos pedidos formulados na petição inicial, com a ressalva do de reconhecimento de que a herança aberta por óbito dos primitivos AA é dona dos prédios identificados nos pontos 3 e 4 dos factos provados.

Inconformados, os AA apelaram, delimitando o recurso com conclusões que colocam as questões de saber se:

1ª - Deve alterar-se a decisão proferida sobre a matéria de facto inserta nos pontos 13, 14, 24, 25 e 26, de modo a considerar não provado que: - a cedência de terreno para alargamento do caminho aludida em 14 destinou-se a feitura do caminho em causa como via pública e (apenas) “até à construção efectuada por L...” a passagem referida em 13 foi feita na convicção de ser exercido um direito de servidão; - o caminho em causa nos autos encontra-se provido de iluminação pública pelo menos desde 2009 e é a Câmara Municipal que paga a conta da luz eléctrica do dito poste de iluminação; - a Junta de Freguesia em data anterior à mencionada em 11 efectuou reparações no caminho; - ao utilizarem o referido caminho, os RR F... e O... têm a convicção de que o mesmo é público.

2ª - O dito caminho nunca foi apropriado legitimamente para por ele ser feita uma via pública, permanecendo o mesmo como uma mera servidão de passagem de pé e carro de bois e tractores.

Importa apreciar as enunciadas questões e decidir.

                  1. A matéria de facto.

Na reponderação da decisão proferida sobre a matéria de facto, tratar-se-á de saber se a prova produzida implica a alteração do julgamento da 1ª instância, no sentido decisório que os apelantes pretendem ver reconhecido, por não se confirmar a razoabilidade da convicção probatória do Julgador, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência, e se aquela constitui suporte bastante a uma diferente convicção, por respeito à verdade processualmente adquirida, jurídico-prática, não coincidente, necessariamente, com a absoluta ou ontológica, como se sabe (cf. art. 341º do CC) ([1]).

Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que o princípio da livre apreciação da prova, que alicerça o julgamento da matéria de facto, se sustenta em critérios racionais e objectivos, em juízos de ilações e inferências razoáveis, e conduz a um juízo positivo de prova quando, em face dos instrumentos disponíveis, do seu conteúdo, consistência e harmonia, se afigure aceitável à consciência de um cidadão medianamente informado e esclarecido, que a realidade por eles indiciada já se possa ter como efectivamente assumida. Por outro lado, a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos de testemunhas, dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.

Por fim, relembramos que, na afirmação da verificação de um facto não pode rejeitar-se o concurso de presunções judiciais ou de facto, que, assentando apenas nas regras da experiência de vida e no senso comum, permitem ao julgador, ao declarar a factualidade assente, tirar ilações de facto(s) conhecido(s) para firmar um facto desconhecido ([2]). A presunção judicial para concluir da verificação dum facto desconhecido (presumido) pressupõe a existência de facto(s) conhecido(s), servindo-se o julgador, para esse fim, de regras da experiência da vida.

Nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal, por «não ser possível produzir uma prova segura ou plena dos factos, a lei permite presunções simples, naturais, de homem, de facto, judiciais ou de experiência (por todas estas palavras são conhecidas), que são aquelas que não são estabelecidas pela lei, baseando-se apenas na experiência da vida, as quais são livremente apreciadas pelo juiz, pelo que a sua força pode ser afastada por contraprova» ([3]).

As presunções judiciais representam processos mentais do julgador, numa dedução decorrente de factos conhecidos e «são afinal o produto das regras de experiência: o juiz, valendo-se de certo facto e de regras de experiência conclui que aquele denuncia a existência doutro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência da vida, da qual resulta que um facto é consequência de outro» ([4]).

Nestes casos, a partir de certos «factos (base da presunção), que são ocorrências conhecidas ou tidas por provadas, o tribunal pode dar como provado, fundado nos ensinamentos da experiência, o facto presumido (desconhecido)» ([5]).

A afirmação da existência ou não de parte dos factos presentemente em apreço, que se prendem com a natureza pública (ou não) de um caminho, dificilmente determináveis através de prova directa, porque situados uns em tempos já distantes na memória dos vivos e outros no foro íntimo ou psíquico dos que os praticam, é um campo decisório onde se justifica a utilização de tais presunções.

Estabelecidas as baias da reponderação da decisão proferida sobre a matéria de facto, vejamos agora cada um dos aspectos dessa questão.

1.1. Os pontos 13 e 14.

No que respeita à matéria consignada nestes pontos, os apelantes impugnam que a feitura dum caminho «para via pública» fosse o destino visado pelos então proprietários do prédio com a cedência que fizeram de terreno para o efeito e que a passagem por tal caminho tivesse sido feita na convicção de ser exercido um direito de servidão apenas até à construção da casa que imediatamente desencadeara tal cedência.

...

Ora, porque, factualmente, mais nenhum elemento probatório relevante foi produzido sobre o assunto, parece-nos que deve ser eliminado o segmento da decisão adversado no recurso porque o mesmo não é consentido pela leitura do que resultou da prova à luz das regras da experiência.

A análise da fundamentação da decisão recorrida permite intuir que o Sr. Juiz presumiu que os cedentes do terreno o destinaram à feitura de um caminho público porque o mesmo passou a ser utilizado como passagem, não apenas para fins agrícolas, mas também por todas as pessoas que se dirigissem para e da habitação de L... e daí, também, que apenas até à construção da casa deste a passagem pelos prédios ora dos AA, para os demais referidos em 11, tivesse sido feita na convicção de ser exercido um direito de servidão.

Porém, salvo o devido respeito, aquele singelo facto traduz apenas uma alteração consensual das utilidades colhidas dessa passagem, não consentindo, por si só, o salto lógico criticado pelos apelantes, porque, como é evidente, o acesso para uma habitação também pode ser assegurado, pelo menos em parte, por um caminho não público e, por isso, nada de sólido se retira quanto ao desiderato prosseguido pelos particulares intervenientes nessa cedência, para além de ser completamente ignorada qualquer participação na mesma de alguma entidade pública.

Quanto ao animus subjacente à passagem feita pelo questionado trato de terreno, acresce a inexistência de dados objectivos que o permitam inferir com segurança, num ou noutro sentido, conduzindo os elementos contraditórios apresentados à ausência da prova efectiva de qualquer uma das versões sustentadas nesta acção ([6]). Por isso, não pode ser atendida a pretensão com o único sentido relevante expresso no recurso de que, a partir da dita construção, subsistiu nos utilizadores do caminho a convicção de que exerciam um direito de servidão de passagem de pé e carro.

Pelo exposto, elimina-se do ponto 13 o trecho subsequente a «quem quer que fosse» e do 14 a expressão «para via pública».

 1.2. O ponto 24.

...

1.3. O ponto 25.

Entendem os apelantes que tem de se haver como não escrito que «a Junta de Freguesia em data anterior à mencionada no art. 11º efectuou reparações no caminho», porque nesse art. 11º ou nos correspondentes articulados apresentados pelas partes não consta a referência a qualquer data.

Realmente, importa suprir o lapso de escrita manifesto de que enferma o ponto em questão – do qual os recorrentes, certamente, não quiseram tirar proveito, o que, de todo o modo, também seria inútil.

A matéria que consta desse ponto 25 emerge, lógica e tematicamente, na sequência do que o precede (24), o que permite concluir que o que o Sr. Juiz pretendeu plasmar na sua decisão foi que antes da data mencionada no artigo anterior (2009) a Junta de Freguesia efectuou reparações no caminho, o que, aliás, está em consonância com o teor do depoimento da já referenciada testemunha ..., consignado na motivação desse segmento da decisão, do qual se extrai que tal autarquia, de vez em quando, na altura em que viviam as pessoas na casa (do Sr. L...), foi efectuando algumas reparações no caminho ao longo dos tempos.

Assim, decide-se proceder à rectificação de tal erro material, nos termos indicados.

1.4. O ponto 26.

Por fim, defendem os recorrentes que nenhuma prova se fez de que, ao utilizarem o referido caminho, os RR F... e O... têm a convicção de que o mesmo é público ([7]). Ora, como é evidente, da afirmação de que os RR teriam uma tal convicção não adviria que o caminho é público e daí que a sua consignação ou não nenhuma repercussão teria para ter por adquirido que o trato de terreno em causa constitui o leito de um caminho público ou, ao invés, integra os prédios dos AA, como estes pediram. E como os processos não servem para perdermos tempo com questões irrelevantes ou meramente teóricas, decidimos, simplesmente, desconsiderar o segmento controvertido no recurso.

Assim, são os seguintes os factos provados a considerar:

...

2. A propriedade do leito do caminho.

Neste litígio, os AA pretendem o reconhecimento de que o seu direito de propriedade sobre os dois identificados prédios abrange o leito onde se exerce a passagem mencionada nos autos, estando os mesmos, tão-só, onerados com a correspondente servidão, enquanto os demandados se defendem pugnando pela admissão de que esse leito faz parte de um caminho público.

  Esta questão impõe que se um faça um rápido enquadramento da realidade jurídica que nela emerge.

Uma passagem é susceptível, em abstracto, de ser qualificada como caminho público e como servidão predial ([8]).

Como se sabe, a servidão é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente ([9]).

Na reponderação da decisão recorrida, atendendo ao objecto da acção e do recurso e às razões neste aduzidas, teremos que nos deter, muito brevemente, com alguns dos aspectos concretos que se prendem com a primeira de tais figuras jurídicas, o caminho público ([10]).

Discutiu-se longamente na jurisprudência se para a dominialidade (pública) de um caminho seria suficiente o uso directo e imediato pelo público – citério do uso – ou se deveria, antes, exigir-se que o caminho tivesse sido construído, apropriado ou conservado por entidade pública – critério da construção ou da manutenção.

O Assento do STJ de 19/4/1989 ([11]) – hoje com a autoridade de acórdão de uniformização de jurisprudência –, orientando-se pelo critério do uso, fixou a seguinte proposição: são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público ([12]).

O uso diz-se imemorial quando se perdeu da memória dos homens o seu início ou começo, quando os vivos não sabem quando começou ([13]), quer por observação directa, quer por informações que lhe chegaram dos seus antecessores, ou quando já não está na memória directa ou indirecta – por tradição oral dos seus antecessores – dos homens, que por isso, não podem situar a sua origem ([14]).

A doutrina do Assento tem sido, porém, objecto de uma consensual interpretação restritiva – sob pena de todos os atravessadouros de uso imemorial se terem de qualificar como caminhos públicos – no sentido da publicidade do caminho exigir a sua afectação a uma utilidade pública, traduzida na satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância ([15]).

Ou seja, por muitas que sejam as pessoas que utilizem determinado caminho ou terreno, apenas poderá sustentar-se a relevância desse uso por todos, com vista à sua classificação como público, se o fim visado pela utilização radicar na colectividade e for comum à generalidade dos utilizadores, por a finalidade última dessa utilização consistir na satisfação de uma utilidade pública e não de uma soma de meras utilidades individuais. Assim, para se decidir da relevância dos interesses públicos satisfeitos com a utilização do caminho, para poder classifica-lo como público, há que ponderar, em primeiro lugar, o número normal de utilizadores, que tem de consistir numa generalidade de pessoas – como é, decerto, uma percentagem elevada dos habitantes de uma povoação – e, por outro lado, a importância que o fim visado tem para esses utilizadores, à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições.

 O uso público relevante pressupõe, portanto, uma finalidade comum desse uso e daí que, «por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público, se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais» ([16]).

Reside nessa afectação ao trânsito que corresponda à satisfação de interesses colectivos com atendível grau e relevância, por um lado, ou ao mero encurtamento de distâncias, por outro, a distinção entre, respectivamente, caminhos públicos e atravessadouros ([17]).

Ora, parece óbvio que a realidade trazida aos autos se afasta radicalmente do conceito de caminho público com os contornos que lhe são definidos pela exposta doutrina porque, sobremaneira, estamos aqui perante um trilho que tem sido usado, dentro do espaço temporal abrangido pela memória dos vivos, por um grupo restrito, muito circunscrito e determinável de pessoas, o que nada tem a ver com um caminho que serve relevantes interesses da colectividade em geral, desde tempos imemoriais.

Mas, por outro lado, como pertinentemente lembrou o Sr. Juiz, tal doutrina não arreda a prova directa da aquisição do domínio público dum caminho. Foi o que decidiu o Ac. do STJ de 21/1/2014 ([18]): «Não pode interpretar-se aquele Assento no sentido de excluir a dominialidade de um caminho que, tendo sido construído ou legitimamente apropriado, em data recente por pessoa colectiva de direito público, foi por ela afectado ao uso público, servindo o interesse colectivo que lhe é inerente. Nestes casos, desde que se prove que o caminho foi construído ou foi legitimamente apropriado por uma autarquia, que exerce sobre ele jurisdição, administrando-o, melhorando-o e conservando-o, não pode duvidar-se que se trata de um caminho público pertencente àquela entidade pública. A suficiência do uso imemorial a que se refere o Assento, de modo algum exclui outras vias de aquisição da dominialidade, como acontecerá quando a lei directamente integra determinada coisa na categoria do domínio público, ou quando uma pessoa de direito público, depois de a construir, produzir ou dela se apropriar, a afecta à utilidade pública.».

Também o já cit. Ac. do STJ de 15/6/2000 concluiu, além do mais: «(…) a aquisição da dominialidade pública depende, em regra, de dois requisitos: pertencer a coisa a entidade de direito público e ser afectada à utilidade pública, podendo esta resultar de um acto administrativo ou de uma "prática consentida pela administração, em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público" ..., e aquela utilidade pública, que "consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas", traduz o "verdadeiros fundamento" da sua publicidade, cfr. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume II, 10. edição, páginas 886/888.)».

Porém, não podemos concordar com a asserção do Sr. Juiz de que, no caso em apreço, «resulta demonstrado que a autarquia se apropriou legitimamente daquele caminho», depois de, no início da década de 1970, os então donos dos prédios hoje da herança aberta por óbito dos primitivos AA terem cedido o terreno para alargamento e feitura do caminho para que o Sr. L... construísse e tivesse acesso à sua casa, o qual passou a permitir a única passagem de todas as pessoas que a ela pretendiam aceder e deixou de ser utilizado apenas para fins agrícolas.

Salvo o devido respeito, contrariamente ao sustentado pelo Sr. Juiz, os factos mencionados nos pontos 24 e 25, podendo constituir actos materiais de cariz possessório – assunto sobre que ainda nos teremos de debruçar –, não podem ser tidos por actos de apropriação, substancial e formalmente, legítima, sendo certo que para esta também nada releva o facto de aquele caminho ter deixado de ser utilizado apenas para fins agrícolas e passar a sê-lo também para uma casa (actualmente duas) de habitação, incluindo com veículos automóveis, por daí não advir a sua afectação à satisfação dum interesse colectivo relevante, com o conteúdo acima definido.

Realmente, como anotam os apelantes, não se retira da factualidade provada que tenha havido qualquer acto aquisitivo que, substancial e formalmente, se possa reputar de idóneo para conduzir à invocada apropriação legítima. Tal assim é porque, desde logo, não consta dos factos que o falado acordo de cedência do terreno tenha tido qualquer espécie de envolvimento de alguma entidade pública, antes deles ressalta que a intervenção no mesmo se quedou pelos identificados particulares interessados, e no lapso de tempo posteriormente decorrido também se não regista, no que se apurou, que tenha havido da parte de qualquer órgão público, em momento algum, um acto jurídico com os referidos alcance e natureza.

Contudo, esta constatação não implica o reconhecimento de que os apelantes lograram demonstrar o direito de propriedade a que se arrogavam sobre o leito do mencionado caminho.

Na verdade, como é sabido, as realidades prediais, nomeadamente as que são objecto de direitos reais, não se alcançam com o recurso a elementos identificativos dos prédios em poder de serviços ou entidades públicas, nem mesmo do Registo Predial, porque a base da nossa ordem jurídica é a usucapião. As descrições prediais, as informações de autarquias, as inscrições matriciais podem ser úteis na identificação ou localização daquelas realidades, mas não podem ter qualquer repercussão nas relações jurídico-privadas, nomeadamente delimitando o objecto sobre que incindem tais direitos, nada provando, por si só, quanto a esse objecto, designadamente quanto ao respectivo domínio (público ou privado). O que releva, sim, são os actos possessórios e respectiva natureza – verificados ao longo do tempo, variável em função do direito em questão – incidentes sobre aquelas realidades físicas e concretas.

Donde, para fundear o seu questionado direito de propriedade sobre o leito do caminho – ou, por outras palavras, que a faixa de terreno deste se contém dentro dos limites físicos dos seus prédios –, teriam que ter evidenciado a sua posse, ou seja, a sua prática continuada, em relação ao mesmo, de actos materiais correspondentes a tal direito com a convicção de o estarem a exercer ([19]).

Ora, o que se retira dos factos é o oposto da posse que os apelantes teriam que ostentar. Não, evidentemente, porque ocorreu a dita cedência do terreno para alargamento e prolongamento do caminho, um acto, em si mesmo, compatível com a posse correspondente a um direito de propriedade sobre o leito do caminho e a correspectiva (mera) servidão de passagem em benefício dos prédios daqueles que, para tanto, o utilizam. Mas, sim, porque os primitivos AA exigiram e conseguiram do Estado o reconhecimento de que tal caminho é público com o qual – só com o qual – consumaram a divisão material e consequente eliminação do prédio rústico inscrito na matriz sob o (inicial) artigo 277 e a substituição deste por quatro diferentes prédios. Se não se concretizasse essa sua pretensão de que o leito do questionado caminho integrava o domínio público, os mesmos não teriam obtido o fraccionamento em quatro lotes do dito prédio rústico. Porém, tal actuação realiza o reconhecimento do domínio público que agora pretenderiam negar e, como contrapartida, a manifestação duma sua convicção de que não eram titulares da posse correspondente ao direito de propriedade sobre o caminho.

Por sua vez, os órgãos autárquicos locais colocaram um poste de electricidade a iluminar o caminho em causa nos autos, cujo consumo é suportado por receitas públicas, para além de outros dois a conduzir tal energia, e, em data anterior a 2009, efectuaram reparações nesse caminho, em parte do qual, em 2012 ou 2013, colocaram brita.

Assim, desde data não concretamente determinada, os órgãos autárquicos locais têm mantido a posse sobre o caminho, porquanto vêm actuando sobre ele por forma correspondente ao exercício do seu domínio público e, concomitantemente, com a convicção de exercerem o domínio público sobre o mesmo, por estar dotado da inerente natureza pública. Fornecem os autos elementos sólidos para afirmar, sem margem para qualquer possível dúvida, que a tal actuação subjaz o apontado animus: o processo de licenciamento da construção da casa do Sr. L..., iniciado em 1973, teve seguimento porque o ente público competente tinha a convicção de que o prédio em que veio a ser implantada a construção confrontava com o dito caminho e que este era público e, principalmente, como já se disse, em 2001, o Estado (em sentido amplo) permitiu a divisão material ou fraccionamento em quatro dum prédio rústico por haver essa mesma convicção de que tal caminho é público por parte dos entes aos quais, uma vez reconhecida essa sua natureza, têm competência para o administrarem.

Em conclusão, apesar de não estar no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, nem se ter demonstrado a sua apropriação legítima por qualquer ente público, o dito caminho é um bem dominial possuído pelos órgãos autárquicos.

Assim, improcede o recurso.

Síntese conclusiva:

1. - Porque a base da nossa ordem jurídica é a usucapião, para fundear o seu questionado direito de propriedade sobre o leito do caminho, os AA teriam que ter evidenciado a sua prática continuada, em relação ao mesmo, de actos materiais correspondentes a tal direito com a convicção de o estar a exercer.

2. – É incompatível com tal convicção a actuação dos AA de que adveio a obtenção do reconhecimento pelo Estado de que o caminho é público e posterior divisão material ou fraccionamento dum prédio rústico, baseada nesse reconhecimento.

3. - Para que um caminho possa ser qualificado como público não basta que várias pessoas o utilizem, pois exige-se a sua afectação, desde tempos imemoriais, à satisfação de uma utilidade pública, ou de relevantes interesses radicados na colectividade e comuns à generalidade dos utilizadores, e não de uma soma de meras utilidades individuais.

4. – Tal doutrina não arreda a prova directa da aquisição do domínio público dum caminho, ou seja, de qualquer acto aquisitivo que, substancial e formalmente, se possa reputar de idóneo para conduzir à sua apropriação legítima.

5. - Apesar de não estar no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, nem se provar a respectiva apropriação legítima por qualquer ente público, o dito caminho é um bem dominial possuído pela autarquia se esta, na sequência do reconhecimento aludido em 2., nele colocou um poste de iluminação, cujo consumo suporta, e nele efectuou reparações e colocou brita.

Decisão.

Pelo exposto, julgando improcedente a apelação, decide-se confirmar a sentença recorrida.

         Custas pelos apelantes.

Coimbra, 30/06/2015

Alexandre Reis (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo

***

[1] Como refere o Prof. Teixeira de Sousa, «o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente (…)» (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 348).

[2] Cfr. arts 349º e 351º do CC.

[3] Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), in BMJ 110º-81 e s. São as denominadas presunções naturais ou de experiência, praesumptiones facti ou hominis (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 215).

[4] A. Lopes Cardoso in RT 86º-112.

[5] Antunes Varela, in RLJ 122º-219.

[6] A questão do animus que tem presidido à actuação dos órgãos estaduais em relação ao caminho suscita considerações diferentes das motivadas pela passagem ou utilização do caminho pelos particulares e, como tal, terão de ser enfrentadas especificamente.

[7] Como é natural, não se fez prova directa do animus inerente à passagem dos RR pelo caminho, mas, em boa verdade, nem seria essa a questão, pois do que se trataria seria saber se se mostra fundamentada a presunção judicial em que o Sr. Juiz assentou para afirmar tal facto, ou, por outras palavras se foi adequado o processo mental de que se serviu numa dedução decorrente de factos conhecidos, à luz das regras de experiência.

[8] Ou, ainda, como atravessadouro, mas esta qualificação não é para aqui chamada [sobre as três qualificações, cf. Oliveira Ascensão, in O Direito, Ano 123 (1991), IV, p. 535].

[9] Cf. art. 1543º do CC.

[10] Os caminhos públicos são pela lei qualificados como municipais, destinados ao trânsito automóvel, e como vicinais, para o trânsito rural, a cargo das Câmaras e das Juntas de Freguesia (art. 1 a 6 do Decreto-Lei nº 345 593, de 11/5/1945).

[11] DR I-Série A, de 2/6/1989.

[12] São, portanto, dois, segundo tal doutrina, os requisitos exigíveis para a caracterização do caminho como público: o uso directo e imediato pelo público; a imemorabilidade desse uso.

[13] Ac. do STJ de 19/11/02 (02A2995-Garcia Marques).

[14] Acs. do STJ de 8/5/07 (07A981-Sebastião Póvoas). Cfr. no mesmo sentido, P. Lima e A. Varela, CC Anot., III, 2ª ed., Coimbra,1987, p. 283, e Rui Pinto Duarte, Cadernos de Direito Privado, 13 Janeiro-Março de 2006, p. 5.

[15] Cfr., entre outros, os Ac. do STJ de 10/11/1993 (084192-Martins da Costa), de 15/6/2000 (00B429-Miranda Gusmão), de 13/1/2004 (03A3433-Silva Salazar), de 14/2/2012 (295/04.OTBOFR.C1.S1-Azevedo Ramos), de 9/2/2012 (p. 1007/03.1TBL.SD.P1.S1-Lopes do Rego) e de 18/9/2014 (44/1999.E2.S1-Prazeres Beleza). Raciocinando em sede de dominialidade pública – o que vale também para os caminhos –, o cit. Ac. de 13/1/2004  – considerou: «Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todas para conduzir à clarificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais. (…) Tem assim de se dar por assente que se deve entender por uso imediato e directo pelo público a utilização do caminho ou terreno por uma generalidade de pessoas, obviamente por si próprias e não por intermédio de representantes, sem necessidade de qualquer autorização particular, percorrendo-o ou nele permanecendo, com vista a satisfazer relevantes interesses comuns.».

[16] V. Ac. da RC de 20/4/2010 (261/06.1TBSRT.C1-Martins de Sousa).

[17] A distinção entre caminho público e atravessadouro deve fazer-se presumindo ser atravessadouro o caminho que se dirige a imóvel determinado e público a passagem que liga caminhos, dado que o fundamento da lei é preservar a malha de caminhos públicos, por um lado, e assegurar, por outro, que os acessos a imóveis determinados sejam estabelecidos com o mínimo de sacrifício às propriedades vinculadas por estes. Cfr., neste sentido, Oliveira Ascensão, “Caminho público, atravessadouro e servidão de passagem”, in O Direito, Ano 123, 1991, IV, p. 535 e, ainda, o cit Ac. do STJ de 10/11/1993 e Henrique Mesquita, RLJ, Ano 135, p. 64.

[18] P. 6662/09.6TBVFR.P1.S2-Moreira Alves.

[19] A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251º do CC), nela se distinguindo um elemento material, o «corpus» - a actuação material praticada sobre a coisa – e um elemento intelectual, o «animus» - a intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados –, em caso de dúvida, presume-se naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º nº2 do CC) e adquire-se, nomeadamente, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito e mantém-se enquanto durar essa actuação ou a possibilidade de a continuar - artigos 1251º, 1252º, 1257º e 1263º do CC.