Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ORLANDO GONÇALVES | ||
Descritores: | TRÁFICO DE PESSOAS; BEM JURÍDICO TUTELADO EXECUÇÃO VINCULADA SITUAÇÃO DE ESPECIAL VULNERABILIDADE DA VÍTIMA | ||
Data do Acordão: | 01/15/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU - J3) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART.º 160.º, N.ºS 1, ALÍNEAS A) E D); 2, 3 E 8 DO CP | ||
Sumário: | I – As disposições constantes do art.º 160.º do CP foram introduzidas pela Revisão Penal de 2007, na sequência de exigências internacionais e europeias, e, com tais alterações alargou-se o âmbito do crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual em país estrangeiro (que constava do art.º 169.º), também ao tráfico com fins de exploração laboral ou de extração de órgãos. II - O crime de tráfico de pessoas deixou de estar integrado no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e passou a constar do capítulo IV, «Dos crimes contra a liberdade pessoal», constituindo hoje um crime de quase-escravidão. III - Em termos sucintos pode afirmar-se que o bem jurídico aí protegido é a liberdade pessoal, de decisão e ação de outra pessoa, consumando-se o ilícito quando a prática de qualquer uma das condutas típicas atinge de forma radical e direta a vítima na sua dignidade como pessoa humana. IV - O crime de tráfico de adultos é um crime de execução vinculada quanto aos meios utilizados. Assim, a entrega, o alojamento ou acolhimento de pessoa maior de idade, entre outras condutas, para aqueles fins ilícitos, tem de ser precedida ou acompanhada de algum dos meios referidos nas várias alíneas do n.º 1 do art.º 160.º do CP. V – Salvo, porém, sendo a vítima de menor idade, pois que então, e de acordo com o n.º 2 do art.º 160.º do CP, pode ser praticado por «qualquer meio». VI – E, se cometido através da utilização de tais meios, integrando a agravante do n.º 3 do art.º 160.º do CP. VII - O aproveitamento de situação de especial vulnerabilidade da vítima, que integra os meios de execução do crime aludidos na al. d), do mesmo n.º 1 do art.º 160.º do CP, é um conceito de difícil determinação. Pode considerar-se que estará nesta situação quem não tem uma alternativa real e aceitável senão submeter-se ao que lhe é proposto. VIII – A descrita conduta do arguido, em relação à (então) menor TS, entre fevereiro e março de 2017, violou de modo radical e direto a dignidade como pessoa desta menor, integrando, por isso, os elementos constitutivos do crime de tráfico de menor, p. e. p. pelo art. 160.º, n.ºs 1, alíneas a) e d) e 3 do CP. IX – Por seu turno, a factualidade assente quanto ao período compreendido entre novembro de 2017 e 12 de fevereiro de 2018, porquanto também violadora em grau elevado da dignidade de TS, preencheu a previsão típica do crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160.º, n.º 1, alínea a) do CP. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.
Relatório
Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo Central Criminal de Viseu - Juiz 3 de Viseu, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, o arguido RL, (...) imputando-se-lhe a prática, em concurso efetivo, de: (...) - um crime de tráfico de pessoas agravado p. e p. no n.º 160.º, n.º 1, alíneas a), c) e d) e n.º 2 e 3 do Código Penal; - um segundo crime de tráfico de pessoas p. e p. no n.º 160.º, n.º 1, alíneas a), c) e d) do Código Penal, (...) (...) - De um crime de tráfico de pessoas (menores de 18 anos) praticado entre fevereiro de 2017 e 29 de março de 2017, p.p. pelo art. 160.º, n.º 1, al. a) e d), n.º 2 e 3 do Código Penal [em concurso aparente com o crime de lenocínio de menores], na pena de seis anos e dois meses de prisão; - De um crime de tráfico de pessoas, praticado entre novembro de 2017 e fevereiro de 2018, p.p. pelo art.º 160.º, n.º 1, al. a), do Código Penal [em concurso aparente com o crime de lenocínio], na pena de cinco anos e cinco meses de prisão; (...) - Operando o cúmulo jurídico destas penas, condenar o arguido na pena única de 9 anos de prisão. (...) Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido RL, concluindo a sua motivação do modo seguinte: 1 - Do teor da, aliás douta, acusação e da motivação do douto Acórdão de que agora se recorre, resulta evidente que, quer antes na acusação, quer agora na decisão, existe um propósito manifesto, que resulta legítimo enquanto esforço de subsunção de um ato a um tipo legal de crime, de demonstrar que o arguido agiu com a intenção confessada e premeditada de explorar a vítima, aproveitando-se da sua especial venerabilidade de forma a obter para si enriquecimento ilegítimo. 2 - No enquadramento jurídico-penal, respeitante ao crime de Tráfico de Pessoas, o tribunal colectivo conclui que o arguido praticou actos de exploração, que o arguido veio a lograr que TS se dedicasse à pratica de actos sexuais a troco de dinheiro com outras pessoas por via do medo que lhe incutiu, por a TS não ter meios de subsistência, nomeadamente onde ficar e estar fugida da instituição, e por o arguido lhe dizer que, se o não fizesse, iria divulgar as imagens do seu corpo desnudo e dos vídeos que tinha feito contendo registo da prática de actos sexuais consigo, aproveitando-se da especial vulnerabilidade da vítima. 3 - que o arguido sabendo (entre novembro de 2017 e 12 de fevereiro de 2018), que a TS não tinha meios de subsistência ou apoio familiar, disse-lhe que esta teria de voltar a prostituir-se e entregar-lhe o dinheiro resultante de tal actividade. 4 - que o arguido defrontou-se com expressa oposição de TS, oposição que venceu fazendo uso de violência física, agredindo-a, o que fez repetidas vezes – quando TS manifestava expressa oposição – e aproveitando-se do medo que lhe incutia, veio a conseguir por via do recurso a essa violência, que efectivamente TS viesse a manter relações sexuais com outras pessoas. 5 - O tribunal indica a existência de um fundamento dogmático a diferenciar a tipologia do crime de tráfico de pessoas do crime de lenocínio, num é evidenciada a ofensa à liberdade de acção ou decisão, noutro a liberdade sexual. 6 - Quanto à existência de actos ou factos típicos destinados a agredir a liberdade de acção ou decisão da vítima, o tribunal só se pode socorrer das declarações desta. 7 - Em parte alguma da prova documental relevante ou das testemunhas inquiridas se extrai que a vítima tivesse sido manietada na sua liberdade de acção ou decisão. 8 - Já quanto às declarações da vítima, que são, como se disse o verdadeiro suporte fáctico da condenação pelos crimes de tráfico de pessoas, o tribunal reconhece que a TS não respondeu sempre com verdade às questões que então lhe foram feitas e que manifesta incongruência na análise conjugada dos vários depoimentos. 9 - Importa clarificar que no julgamento que o recorrente faz da valorização das declarações da TS e que foram o único suporte para a sua condenação pelos crimes de tráfico de pessoas, nenhuma prova documental corrobora a supressão da sua liberdade de acção ou decisão. 10 - As declarações prestadas em audiência de julgamento pela TS não deixam de se mostrar contraditórias até com factos que o tribunal vem a dar como provados. 11 - Nas declarações prestadas em audiência de julgamento de dia 04.06.2019 o MM Juiz Presidente nota que a depoente, tendo já sido ouvida diversas vezes, apresenta alterações nas declarações que foi prestando. 12 - Neste depoimento a TS reconhece que viveu na casa da avó logo após sair da instituição, no Verão de 2017, e depois de ser “retirada” da casa dos pais do arguido, em finais de Fevereiro de 2018, no entanto o Tribunal no facto provado com o n.º 44, assevera que a T não tinha meios de subsistência próprios ou apoio familiar. 13 - A TS sempre teve apoio de retaguarda, fosse da família, fosse da instituição onde estava alojada, mas antes escolheu livremente estar com o arguido. 14 - A TS declara que quando foi apanhada em Março de 2017 não queria voltar para a instituição. Estava fugida porque queria e vivia com o arguido porque lhe convinha! 14 - Gostaria é de voltar para casa dos seus pais, mas não a deixavam, sabendo-se que quem a não deixava não era o arguido, antes era a decisão que tinha determinado a sua institucionalização! 15 - No depoimento prestado em audiência de julgamento, no dia 04.06.2019, a declarante afirma que tentou sair, fugir, várias vezes da casa dos pais do RL, mas acabava lá novamente. 16 - No depoimento da testemunha VR, prestado no dia 19.02.2019, a testemunha diz que, referindo-se a permanência da T no apartamento da Quinta (...), esta voluntariamente quis permanecer a viver com o R, não saindo dali com ela. 17 - A mesma testemunha refere que no inverno de 2017, por volta de Outubro/Novembro, encontra T e esta refere que estava mal, por que tinha discutido com o R e saído de casa deste, duas semanas mais tarde (trecho que se inicia ao minuto 36.00) a T volta a falar com a VR e quer o apoio desta porque quer sair de casa do R, fica em casa da VR uma noite e no dia seguinte após falar com o R ao telefone, volta voluntariamente para junto deste. 18 - A testemunha refere claramente que a T foi atrás do R e que a T lhe confidencia que a sua vida com o R esteva a correr tudo bem e que o contacto com a V se ficava a dever a precisar de sair da casa, de estar sozinha. 19 - Mais se retira do depoimento desta testemunha que a T recusou a “ajuda” da V e a da sua mãe e da sua avó, voltando sempre para o R ao primeiro telefonema deste. 19 - Concluindo-se que: a T saiu quando quis e voltou porque quis! 20 - No depoimento da testemunha G, no dia 23.04.2019, a testemunha refere que conheceu a T quando esta namorava e vivia com o F; 21 – De seguida a testemunha esclarece que a T só depois de se despedir do (...) e acabar o namoro com o F é que passou a residir com o R em casa dos pais deste. 22 – Posteriormente, a testemunha declara que a T saiu de casa do R e esteve na sua casa durante 3 dias. 23 – O depoimento da TS, prestado no dia 04.06.2019, corrobora o depoimento da testemunha G. 24 – E no mesmo depoimento a TS confirma que, no período em que viveu com o R em casa dos pais deste, esteve coma V um dia e depois regressou e três dias em casa do G. 25 - Em face da prova analisada o Tribunal não poderia dar como provado, como o fez: - no item 42 dos factos provados que a T tenha aceitado viver novamente com o R no apartamento na (...), apartamento do qual não tinha chave. - no item 44, que em data não concretamente apurada, mas situada no mês de novembro de 2017, o arguido, sabendo que a TS não tinha meios de subsistência ou apoio familiar, disse-lhe que esta teria de voltar a prostituir-se e entregar-lhe o dinheiro resultante de tal actividade. - no item 56, que por via da situação em que se encontrava e porque não lograva convencer arguido a deixar de exigir-lhe que se prostituísse, poucos dias antes do Natal do ano 2017 TS saiu de casa e contactou um conhecido do arguido que aceitou a acolhê-la. 26 - Da mesma forma não é aceitável que o Tribunal dê como provado, que faz no item 57) e 58) dos factos provados que o arguido viesse a descobrir onde TS se encontrava, pedido a outra pessoa que se deslocasse a casa de quem tinha acolhido a TS. E que essa pessoa tenha dali levado a T à força. 27 - Da mesma forma as conclusões, que não são factos, vertidas nos itens 68), 69), 70) e 71) devem ser removidas dos factos dados como provados, porque salvo o devido respeito por opinião distinta, não está demonstrada qualquer especial vulnerabilidade da vítima, seja por dependência económica, menoridade, ausência de suporte familiar e tenha havido ameaça grave. 28 - A TS foi viver com o R na mesma casa que este, fosse na (...), fosse na Urbanização (...), porque quis e quando quis, sempre teve apoio familiar e de amigos e até tinha o apoio da instituição onde deveria ter ficado, mas optou por ficar com o R. 29 - Durante os momentos em que esteve a viver com o R era livre de se deslocar de e para onde quisesse; durante estas permanências junto do R, por mais de uma vez a T decidiu abandonar este e depois regressar voluntariamente. 30 - Não se pode concluir serenamente e sem qualquer dúvida razoável que no relacionamento entre a T e o R esta tivesse sido sujeita uma qualquer das acções que tipificam o crime de tráfico de pessoas. 31 Não se pode considerar que a conduta do R no seu relacionamento com a T tenha atingido um nível e intensidade de gravidade que o coloque no tipo criminal de tráfico de pessoas. 32 - Nunca a TS esteve numa situação em que não tivesse outra escolha real e aceitável! 33 - Aliás, julgamos confiada e tranquilamente, que subsumir este relacionamento em concreto, com os factos que durante ele ocorreram, a crime de tráfico de pessoas é estar a banalizar o tipo penal em causa. 34 - Pelo que não deveria, salvo o devido respeito por opinião distinta, julgar verificados os pressupostos objectivos que constituem o crime de tráfico de pessoas, nomeadamente que tenha havido violência, rapto, ameaça grave, ou que a vítima estivesse em situação de especial venerabilidade ou o arguido tivesse intenção lucrativa. 35 - Pelo que existe uma evidente contradição na formação da convicção do tribunal: os depoimentos em que se sustenta para comprovar a existência dos crimes de tráfico de pessoas, nomeadamente que tenha havido violência, rapto, ameaça grave, ou que a vítima estivesse em situação de especial venerabilidade ou o arguido tivesse intenção lucrativa, antes infirmam tais factos. 36 - No estando preenchido o tipo objectivo dos ilícitos, não pode ser o arguido condenado pela prática de tais crimes, seja quantos aos factos ocorridos em Fevereiro/Março de 2107, seja quanto aos factos ocorridos entre Novembro de 2017/Fevereiro de 2018. 37- Ao condenar o arguido pela prática dos crimes de Tráfico de Pessoas, o tribunal violou o disposto no artigo 160.º do Código Penal. Nestes termos, e nos melhores de direito aplicáveis, deve o presente recurso ser considerado procedente e, por via disso, absolver-se o arguido da prática dos crimes Tráfico de pessoas, praticados, o primeiro entre Fevereiro/Março de 2107, e o segundo entre Novembro de 2017/Fevereiro de 2018, tudo com as legais consequências. (...)
Fundamentação
A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes do acórdão recorrido é a seguinte: Factos provados * O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso . Como bem esclarecem os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801). (...) 2.ª - se foi violado o disposto no art.160.º do Código Penal, por não se mostrarem preenchidos os elementos do tipo objetivo dos crimes de tráfico de pessoas, quanto aos factos ocorridos entre fevereiro/março de 2017 e entre novembro de 2017/fevereiro de 2018.
1.ª Questão: do erro de julgamento da matéria dada como provada. (...) Pelo exposto, e nos termos conjugados dos artigos 431.º, al. b) e 412.º, n.º 3, do C.P.P., o Tribunal da Relação decide alterar, parcialmente, a factualidade constante dos pontos n.ºs 68), 69), 70) e 71) do acórdão recorrido, passando a ter a seguinte redação: (...)
2.ª Questão: do preenchimento do tipo objetivo dos crimes de tráfico de pessoas. Por fim, entende o recorrente RL que deve ser absolvido quer da prática do crime de tráfico de pessoas respeitante ao período de fevereiro/março de 2017, quer ao relativo ao período que vai de novembro de 2017/fevereiro de 2018. Alega neste sentido, e em síntese, que não se mostram verificados os pressupostos objetivos que constituem o crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.160.º do Código Penal, nomeadamente, que a TS tivesse sido manietada na sua liberdade de ação ou decisão, por violência, rapto, ameaça grave e especial venerabilidade ou que o arguido tivesse intenção lucrativa. Não se pode considerar que a conduta do R no seu relacionamento com a TS tenha atingido um nível e intensidade de gravidade que o coloque no tipo criminal de tráfico de pessoas, pois nunca a TS esteve numa situação em que não tivesse outra escolha real e aceitável. Vejamos. O art.160.º, do Código Penal, estabelece a respeito do tráfico de pessoas, nomeadamente e com interesse para a decisão: «1 - Quem oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos ou a exploração de outras atividades criminosas: a) Por meio de violência, rapto ou ameaça grave; (…). d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; (…) é punido com pena de prisão de três a dez anos. 2 - A mesma pena é aplicada a quem, por qualquer meio, recrutar, aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor, ou o entregar, oferecer ou aceitar, para fins de exploração, incluindo a exploração sexual, a exploração do trabalho, a mendicidade, a escravidão, a extração de órgãos, a adoção ou a exploração de outras atividades criminosas. 3 - No caso previsto no número anterior, se o agente utilizar qualquer dos meios previstos nas alíneas do n.º 1 ou atuar profissionalmente ou com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de três a doze anos. (…) 8 - O consentimento da vítima dos crimes previstos nos números anteriores não exclui em caso algum a ilicitude do facto.». Como bem anota o Prof. Américo Taipa de Carvalho, quase todas as disposições constantes do art.160.º foram introduzidas pela Revisão Penal de 2007, na sequência de exigências internacionais e europeias. Com as alterações então introduzidas alargou-se o âmbito do crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual em país estrangeiro, (que constava do art.169.º), também ao tráfico com fins de exploração laboral ou de extração de órgãos. O crime de tráfico de pessoas deixou de estar integrado no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e passou a constar do capítulo IV, «Dos crimes contra a liberdade pessoal», constituindo hoje um crime de quase-escravidão.[4] Em termos sucintos diremos que o bem jurídico protegido é a liberdade pessoal, de decisão e ação de outra pessoa. O crime consuma-se quando a prática de qualquer uma das condutas típicas atinge de forma radical e direta a vítima na sua dignidade como pessoa humana. O tipo objetivo do tráfico de adulto exige para o seu preenchimento, em primeiro lugar, das seguintes condutas do agente: oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher pessoa, com vista à exploração da sua mão-de-obra, à exploração sexual, à exploração do trabalho, à mendicidade, à escravidão, à extração de órgãos à exploração de outras atividades criminosas. O crime de tráfico de adultos é um crime de execução vinculada quanto aos meios utilizados. Assim, a entrega, o alojamento ou acolhimento de pessoa maior de idade, entre outras condutas, para aqueles fins ilícitos, tem de ser precedida ou acompanhada de algum dos meios referidos nas várias alíneas do n.º 1 do art.160.º do Código Penal. Para o caso, importa considerar os meios de execução do crime previstos nas alíneas a) e d), n.º1, deste tipo penal, uma vez que estes foram tidos em consideração na condenação do arguido, ora recorrente. No que respeita aos meios referidos na alínea a), anotamos, de modo breve, que a violência tanto pode ser física, como psíquica. Tanto pode passar pela intervenção da força física sobre a pessoa, como por formas não consentidas de domínio da vontade da vítima, que pode integrar a colocação desta na impossibilidade de resistir à prática do crime. O rapto é a transferência da vítima de um lugar para outro, mediante violência, ameaça ou astúcia (art.161.º do C.P.). A ameaça grave, sendo uma ameaça deverá conter a promessa de um mal futuro, e sendo grave deverá traduzir um mal importante. O aproveitamento de situação de especial vulnerabilidade da vítima, que integra os meios de execução do crime aludidos na al. d), do mesmo n.º 1 do art.161.º do C.P., é um conceito de difícil determinação. Pode considerar-se que estará nesta situação quem não tem uma alternativa real e aceitável senão submeter-se ao que lhe é proposto.[5] O recorrente refere que doutrinariamente, sendo o crime de tráfico de seres humanos um crime bastante complexo, pois implica diferentes ações e formas de violência e exploração, pode recorrer-se a alguns indicadores para facilitar a identificação de possíveis situações desse tráfico, referindo, entre outros indicadores, os seguintes: - a pessoa está a ser forçada a práticas sexuais; a pessoa não tem liberdade de movimentos; caso tente escapar, a pessoa ou a sua família pode sofrer vinganças; a pessoa foi agredida ou privada de comida, água, sono, cuidados médicos ou outras necessidades básicas; a pessoa não pode livremente contactar amigos e familiares; a pessoa não pode livremente socializar com outras pessoas. No entender do recorrente a TS não foi sujeita a qualquer uma destas ações, nem a conduta do arguido no seu relacionamento com esta atingiu um nível de intensidade e gravidade que preencha o tipo penal ora em causa. Realçamos, a terminar, sobre a prática deste crime, que sendo a vítima menor de idade, o n.º2 do art.160.º do Código Penal, não exige execução vinculada do tráfico, uma vez que pode ser praticado por «qualquer meio». A utilização dos meios descritos no n.º 1 para cometimento do crime de tráfico de menores, integra a agravante do n.º3 do art.160.º do Código Penal. Como se refere no douto acórdão recorrido, apesar do agente procurar um dos resultados descritos no tipo, ele não tem de ser alcançado para se consumar: para que o crime de tráfico de pessoas se considere consumado, apenas é necessário que o agente pratique um dos atos constitutivos do crime, empregando um dos meios enumerados para alcançar aquele objetivo. Estando dado como provado que o arguido RL procedeu ao alojamento e acolhimento da TS, entre fevereiro e março de 2017, portanto quando esta ainda era menor, para fins de exploração sexual e do trabalho, conhecendo e querendo aquela factualidade, e agindo com consciência da censurabilidade penal da sua conduta, preencheu o mesmo arguido os elementos do tipo previsto no art.160.º, n.º2 do Código Penal. Resultando dos pontos n.ºs 14 a 29, 68, e 70 dos factos provados, que o arguido ao dar alojamento e acolhimento à TS, para fins de exploração sexual e do trabalho, se aproveitou das circunstâncias desta ser uma menor fugida de uma instituição, sem meios de subsistência e suporte familiar, entendemos que aquele se aproveitou de uma situação de especial vulnerabilidade da TS. Com o alojamento e acolhimento surgem ameaças graves e violência psíquica sobre a TS, como a imposição de manter relações sexuais com outras pessoas a troco de dinheiro, que lhe havia de entregar, com o argumento de que se não praticasse os atos de prostituição iria divulgar as imagens do seu corpo desnudo e dos vídeos que tinha feito contendo registo da prática de atos sexuais consigo. O trabalho doméstico sem remuneração, acompanhado de outras obrigações abusivas e o trabalho sexual com proveitos totalmente revertidos para o arguido, contra a sua vontade, que cedeu por medo, por não ter meios de subsistência, apoio familiar e sob ameaça e pressão de divulgação de imagens suas de nível sexual, como se mostram narrados nos pontos n.ºs 14 a 29 dos factos provados, constituíram, quanto a nós, atos de exploração de elevada intensidade e gravidade. Provado está igualmente que o arguido agiu com intenção lucrativa. Entendemos assim, tal como no acórdão recorrido, que a descrita conduta do arguido RL, em relação a TS, entre fevereiro e março de 2017, violou de modo radical e direto, a dignidade como pessoa da menor TS e, consequentemente, que tal conduta integra os elementos constitutivos do crime de tráfico de menor, p. e. p. pelo art.160.º, n.ºs 1, alíneas a) e d) e 3 do Código Penal. Relativamente à prática do crime de tráfico de pessoas, que o Tribunal a quo considerou praticado pelo arguido entre novembro de 2017 e 12 de fevereiro de 2018, verificamos que praticamente ao seguimento da maioridade da TS, depois desta ter sido despedida do seu trabalho, por razões não apuradas e do arguido ofender a integridade física, o património e a liberdade de ação do namorado da TS de modo a não manter mais contactos com aquela, o que vai conseguir, volta esta a ficar numa situação de vulnerabilidade. É nesta situação, explicada no ponto n.º 42 dos factos provados, que TS, a pedido do arguido, volta a viver com este, convencida que iria ter com ele uma relação de namoro. O que aconteceu a seguir foi uma continuação da degradação da dignidade da TS, que foi compelida através de agressões físicas e do medo, a dedicar-se novamente à prostituição, com limitação da sua liberdade física, uma vez que não podia entrar e sair livremente das casas do arguido e dos pais deste, onde passou a viver. Por alturas do natal de 2017, tendo conseguido sair do alojamento dos pais do arguido RL, para onde se mudara com este na sequência da aplicação de uma medida coativa de obrigação de permanência na habitação, conseguiu sair de casa, vindo a acolher-se na casa de um conhecido daquele. Depois ou três dias depois, o arguido conseguiu localizá-la e através de um indivíduo, que se deslocou à casa onde estava acolhida, logrou, à força, levar a TS para o carro e conduzi-la novamente a casa dos pais do arguido. Estes atos de violência, praticados a pedido do arguido, integram o conceito de rapto, uma vez que através deles foi retirada e deslocada a TS da casa onde se acolhera, para ir novamente a casa dos pais do arguido, onde permaneceu, sujeita às mesmas sevícias do arguido, até fevereiro de 2018. Consta do acórdão recorrido ainda a este respeito, que “tudo isto permite afirmar a existência de um grau de instrumentalização de TS que ultrapassa o que seria próprio da exploração da prostituição para aquilo a que a jurisprudência já caracterizou como “debt bondage”, na medida em que com a atividade do tráfico e os rendimentos dele provenientes, na sua totalidade, eram entregues ao arguido, como forma de retribuição pelo acolhimento e alojamento, retribuição essa manifestamente desvalorizada”. Em suma, com esta conduta, violadora em grau elevado da dignidade de T Sofia, preencheu o arguido RL, como consta do acórdão recorrido, a previsão típica do crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art.º 160.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, pelo que improcedendo esta questão se mantém a condenação do arguido recorrente. (...) Decisão Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido RL, limitado à alteração da factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 68), 69), 70) e 71) e, no mais, negar-lhe provimento, mantendo-se o douto acórdão condenatório. Custas pelo recorrente, fixando em 5 Ucs a taxa de justiça (art.513.º, n.ºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa). * (Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.). * Coimbra, 15 de Janeiro de 2020
Orlando Gonçalves (relator)
Alice Santos (adjunta)
[4] “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Ed., pág. 677. |