Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3320/16.9T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: JULGAMENTO
ALEGAÇÕES
REABERTURA DA AUDIÊNCIA
NOVOS MEIOS DE PROVA
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
Data do Acordão: 05/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 4.º, 371.º, E 360.º, N.º 4, DO CPP; ART. 607.º, N.º 1, DO CPC
Sumário: I – Após proferidas as alegações finais e designada data para a leitura da sentença, no dia reservado à publicitação da dita peça processual, o tribunal da 1.ª instância determinou a reabertura da audiência, proferindo então despacho a solicitar determinados elementos de prova documentais.

II – Este procedimento, não se inserindo na disciplina reservada à reabertura da audiência para determinação da sanção (art. 371.º do CPP), tão pouco se enquadrando no n.º 4 do art. 360.º do mesmo diploma, encontra, contudo, fundamento no n.º 1 do art. 607.º do CPC, aplicável ex vi do art. 4.º do CPP, preceito que em nada colide com a segunda das referidas normas e que se harmoniza o mais possível com os princípios do processo penal, concretamente com o dever de prosseguir a verdade material.

Decisão Texto Integral:




I. Relatório

1. No âmbito do processo comum (singular) n.º 3320/16.9T9CBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Coimbra – JL Criminal – Juiz 3, mediante acusação pública, foi submetido a julgamento o arguido A., melhor identificado nos autos, sendo-lhe então imputada a prática em autoria material, em concurso real, de dois crimes de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 15.06.2018 o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

Pelo que ficou exposto o Tribunal:

1. Condena o arguido A., pelo cometimento de dois crimes de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º n.º 1, 182.º e 184.º do Código Penal, por referência ao artigo 132.º n.º 2 al. l) do mesmo diploma legal, cada um destes na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 7 €;

2. Em cúmulo jurídico de penas, condena o arguido A. na pena única de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de € 7 (sete), o que perfaz € 2.100,00 (dois mil e cem euros).

[…].

3. Inconformado com o assim decidido recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

1. O Ministério Público deduziu acusação contra o Arguido ora recorrente, imputando-lhe factos suscetíveis de integrar a prática, em autoria material, em concurso real, de dois crimes de difamação agravada, p. e p. pelos art.ºs 180º, n.º 1, 182º e 184º do Código Penal, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. l) do mesmo diploma legal.

2. O arguido ora recorrente apresentou contestação formal, oferecendo o merecimento dos autos e todas as circunstâncias dirimentes, impedientes e atenuantes que se provassem em audiência de discussão e julgamento, indicando testemunhas.

3. Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal a quo proferiu sentença, pela qual decidiu julgar a acusação procedente, por provada, e em consequência:

a)“Condena o arguido A., pelo cometimento, de dois crimes de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180º n.º 1, 182º e 184º do Código Penal, por referência ao artigo 132º n.º 2 al. l) do mesmo diploma, cada um destes na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 7 €;”

b)“ Em cúmulo jurídico de penas, condena o arguido A. na pena única de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de € 7 (sete), o que perfaz € 2100,00 (dois mil e cem euros).”

c)“Condena o arguido a pagar as custas e encargos do processo fixando em 2,5 Ucs de taxa de justiça devida – arts. 513º e 514º n.º 1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 do RCJ-Tab. III.”

4) O arguido não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal à quo, pelo que dela vem recorrer.

5) Importa, antes de mais, fazer uma breve e sucinta resenha sobre o crime de difamação, a sua autoria, a importância do “terceiro”, quem pode ser responsabilizado criminalmente e sobre quem impende o ónus de demonstrar/provar a verificação da prática deste crime e a sua autoria.

6) O CRIME DE DIFAMAÇÃO, Cf. bem descreve a douta Sentença condenatória ora recorrida, págs. 9 e 10:

“(…) Numa breve incursão na tipologia dos chamados crimes contra a honra, e analisando, desde logo, a tipicidade legal expressa no art. 180º do Código Penal, resulta do mesmo, que comete o crime de difamação, quem “...dirigindo-se a terceiro imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo ofensivos da sua honra e consideração”.

 De acordo com o disposto no tipo legal em referência, pratica igualmente o crime de difamação, quem reproduz a imputação ou o juízo ofensivo da honra e consideração, sendo que à difamação verbal é equiparada a que é feita por escrito, nos termos do artigo 182° do mesmo diploma. Através desta incriminação, pune-se a manifestação dirigida a terceiro, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe “…ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém”, como nos diz Nelson Hungria citado no Código Penal Anotado por Leal Henriques e Simas Santos no Vol. II, p. 203.

 (...)

 (Negrito e sublinhado nosso).

7) QUANTO AO TIPO OBJECTIVO DO CRIME DE DIFAMAÇÃO, porque melhor não resumiríamos, transcrevemos aqui a anotação 4 ao artigo 180.º do Código Penal, na pág. 723 do “Comentário do Código Penal: à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, de Paulo Pinto de Albuquerque, 3.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora:

 “O tipo objetivo inclui a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo. A difamação é “dirigida” a terceiro, ao invés da injúria. A injúria é dirigida exclusivamente ao ofendido.”

(Negrito e sublinhado nosso).

8. QUANTO AO TIPO SUBJECTIVO DO CRIME DE DIFAMAÇÃO, porque melhor não resumiríamos, transcrevemos aqui a anotação 8 ao artigo 180.º do Código Penal, na pág. 724 do “Comentário do Código Penal: à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, de Paulo Pinto de Albuquerque, 3.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora:

 “O tipo subjetivo admite qualquer modalidade de dolo (...). Não se exige um animus diffamandi vel injuriandi (...). O erro do agente sobre a circunstância de a comunicação ser dirigida a terceiro é relevante, quando o agente está convencido de que está a difamar o ofendido perante um terceiro e quem o ouve é o próprio ofendido, ficando afastado o tipo da difamação, sem que a conduta do agente possa ser punida a título de injúria (com razão, FARIA COSTA, anotação 33.ª ao artigo 180.º, in CCCP, 1999, advogando por isso a unificação dos tipos, como acontece na lei espanhola, de modo a suprir a lacuna incriminadora).”

 (Negrito e sublinhado nosso).

9. Sendo assim exigido, para o preenchimento do crime de difamação no que concerne ao tipo objetivo, que: a) Alguém impute a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo ofensivo da sua honra e consideração; b) Tal imputação seja dirigida e chegue ao conhecimento de terceiro (que não o visado das imputações) que dela tome efetivamente conhecimento.

10) Sendo exigido, para o preenchimento do crime de difamação no que concerne ao tipo subjetivo: o dolo – que pode abarcar qualquer das formas previstas no art. 14º do C. Penal (direto, necessário e eventual) –, ou seja, o agente tem de representar os elementos do tipo.

11) Os requisitos aludidos no n.º 1 do artigo 180.º do CPP configuram condições objetivas de punibilidade dos factos ilícitos típicos descritos em tal normativo.

12) Quanto à CONSUMAÇÃO DO CRIME DE DIFAMAÇÃO, porque melhor não diríamos, transcrevemos aqui parte do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-07-2007 (em www.dgsi.pt - Proc. 07P2288):

 “IV – (...) em qualquer caso, o crime consuma-se logo que “chegue ao conhecimento de uma pessoa diversa do ofendido, pessoa que tenha conhecimento da natureza ofensiva da expressão” (Luís Osório, Notas ao Código Penal Português, Vol. III, pág. 321). (…)”

VII – (...) a consumação se verificou na capital pois foi aí que a carta foi aberta em primeiro lugar e as imputações ofensivas foram conhecidas por terceiros – cf. Ac. deste Supremo Tribunal de 05-06-97, Proc. n.º 2/97 - 3.ª, 26 segundo o qual “os crimes de difamação e de injúrias consumam-se no momento e no lugar em que tiverem sido imputados os factos ofensivos, formuladores dos juízos difamatórios ou proferidas por escrito as palavras injuriosas em causa. Sendo os crimes cometidos através de carta, só se consumam quando esta for recebida pelo terceiro ou pelo ofendido que dela tomou conhecimento”.

 (Negrito e sublinhado nosso).

13) Sendo exigido, para se considerar consumado o crime de difamação, que as imputações ofensivas sejam dirigidas a terceiros e cheguem efetivamente ao seu conhecimento, lugar e momento em que se considera consumado o crime de difamação.

14) Quanto à RESPONSABILIDADE CRIMINAL, POR AUTORIA OU COMPARTICIPAÇÃO, NO CRIME DE DIFAMAÇÃO, porque melhor não diríamos, transcrevemos aqui o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2014 (em www.dgsi.pt - Proc. 144/11.3TRPRT.S1):

 " I - Do art. 26.º do CP resulta que coautor é o que executa o facto, toma parte direta na sua realização, por acordos ou juntamente com outro ou outros, ou determina outrem à prática do mesmo, suposta, obviamente, a ocorrência de execução ou início de execução.

II - Por outro lado, essencial à coautoria é a existência de um acordo, expresso ou tácito, este assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas à luz das regras da experiência comum, bem como a intervenção maior ou menor, dos comparticipantes na fase executiva do facto, em realização de um plano comum.

III -Ora, no caso dos autos, inexistem indícios suficientes de que a arguida A se concertou com o coarguido B na elaboração e apresentação do requerimento de recusa que aquele fez juntar ao processo disciplinar instaurado contra a arguida pelo CSM, não se mostrando suficientemente indiciado que, por qualquer forma, a arguida participou ou colaborou relevantemente na redação do texto daquele requerimento.

IV - É que, para tal se concluir, ao contrário do defendido pelo assistente, não basta ter-se por indiciado, tendo em vista a relação conjugal existente entre a arguida e o coarguido, bem como as atividades profissionais por ambos exercidas, que a primeira transmitiu ao segundo parte ou a totalidade dos factos vertidos naquele requerimento ou que com o mesmo dialogou sobre esses factos tout court. Essencial àquele juízo conclusivo seria, também, a ocorrência de indícios sobre a existência de um plano comum ou de um acordo na elaboração e entrega do requerimento, o que, manifestamente, não se verifica.

V - Não existem, assim, fundamentos para alterar a decisão recorrida, de não pronúncia da arguida como coautora de um crime de difamação agravada e de denúncia caluniosa.”

 (Negrito e sublinhado nosso).

15) Sendo exigido, para se responsabilizar criminalmente alguém pela prática do crime de difamação, que se demonstre provado que foi o arguido que executou o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomou parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda que, dolosamente, determinou outra pessoa à prática do facto, desde que a haja execução ou começo de execução. Cf. art.º 26 do C.P.

16) PARA COMPROVAÇÃO DO CRIME DE DIFAMAÇÃO, é indispensável que o Ministério Público (adiante apenas MP), em obediência ao Principio da Legalidade, do Acusatório, da Prova e do In Dubio Pro Reo, produza prova, em audiência de discussão e julgamento, que demonstre de forma inequívoca:

a) Que o arguido, por si mesmo ou por intermédio de outrem, elaborou ou mandou elaborar o escrito objeto dos presentes autos;

b) Procedeu ou mandou proceder ao seu envio;

c) Que o teor de tal escrito chegou efetivamente ao conhecimento de terceiros; e,

d) Que o conteúdo de tal escrito é atentatório da honra e consideração dos queixosos/ofendidos.

17) O Tribunal à quo, na Sentença condenatória ora recorrida, considerou provado, no confronto da prova produzida e examinada em audiência, apreciada segundo as regras da experiência, da lógica e do normal acontecer, à luz da livre convicção do tribunal, que:

a) O arguido, no dia 4 de Setembro de 2016, às 11h03m, por si ou por interposta pessoa, remeteu uma mensagem eletrónica assinada por “(…)”, dirigida designadamente ao correio oficial do Tribunal da Relação de Coimbra, para conhecimento dos respetivos juízes, com o conteúdo constante do ponto 5 dos factos provados - Vide ponto 4 dos Factos Provados;

b) Com esta mensagem, o arguido logrou adjetivar e reputar os queixosos de desonestos, mentirosos, falaciosos e incompetentes - Vide ponto 6 dos Factos Provados.

c) Ao praticar os factos acima descritos, o arguido atuou com o propósito concretizado de ofender a honra, consideração, credibilidade e o prestígio social e profissional dos queixosos, que sabia serem juízes desembargadores, tendo agido por causa dessas mesmas funções desempenhadas pelos queixosos – Vide ponto 7 dos Factos Provados.

d) Que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente da proibição e da punição criminal da sua conduta - Vide ponto 8 dos Factos Provados.

e) Que o arguido iniciou o cumprimento de nova pena de prisão, tendo sido condenado pela prática dos crimes de associação criminosa e burla qualificada - Vide ponto 16 dos Factos Provados.

18) Da motivação da sentença recorrida o Tribunal a quo fez constar que:

a) Analisou o teor do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em 30/06/2016, e constatou que o TRC confirmou a condenação em 1.ª instância do arguido e bem assim do coarguido naqueles autos A., no âmbito do processo comum coletivo n.º (…), do 2.º Juízo de (...) – Comarca de (...) , confirmando a condenação do arguido de um crime de burla qualificada;

b) Analisou o escrito remetido, designadamente, ao Tribunal da Relação de Coimbra (correio oficial) e constatou que na identificação da origem do mesmo, é identificado o ora arguido A.;

c) Constatou que o subscritor do mencionado documento, na parte final, apôs-lhe o nome de “(…)”;           

d) O arguido nada disse a tal respeito, remetendo-se ao silêncio, não veio aos autos fornecer qualquer explicação ou versão que afastem a leitura que considerou lógica dos factos e que considerou apontar inevitável e manifestamente para a sua autoria;

e) O próprio escrito refere por mais do que uma vez ao “recurso que apresentei”;

f) Os interessados e diretamente afetados pelo Acórdão visado eram os dois recorrentes e únicos arguidos no processo;

g) O nome do arguido surge como o subscritor de tal escrito;

h) Não foi alegado nem se vislumbrou que pudesse ter existido quem, tomando “as dores de um ou outro recorrente” por solidariedade ou por maldade, intriga ou vingança, quisesse ou tivesse interesse em subscrever tal escrito em nome do ora arguido;

i) A conclusão lógica que atribui a autoria do escrito ao arguido impõe-se;

j) O teor dos depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa não abalaram a leitura dos factos e a valoração da prova nos termos descritos, afirmando/confirmando essencialmente o estado de abalo e indignação da família do arguido;

k) As testemunhas (…) e (…), Juízes desembargadores no Tribunal da Relação de Coimbra, queixosos e ofendidos nos presentes autos, depuseram por escrito confirmando o conhecimento dos factos e o abalo sentido.

19) Aqui chegados, após titânico esforço de interpretação, atenta a prova produzida em audiência de julgamento, não se percebeu o raciocínio que o Tribunal a quo construiu (por total ausência probatória e de razão de ciência da lógica invocada) para condenar o arguido pelos crimes de difamação agravada, em nome da verdade material e em busca da composição de decisão justa, importa desde já afirmar que a decisão ora recorrida para além de consubstanciar na flagrante e descarada violação do princípio geral do processo penal in dubio pro reo e consequentemente do princípio Constitucional da presunção da inocência, assenta numa errada interpretação da Lei, numa errada valoração da prova e na consideração de “prova” obtida extemporaneamente e por isso ilegal e nula.

20) Pois, o Tribunal à quo para dar como provado, como deu, os pontos 4, 6, 7, 8 e 16 dos factos provados, fê-lo à margem da lei, refugiando-se no art.º 127.º do Código de Processo Penal, invocando as regras da experiência, da lógica e do normal acontecer, sem qualquer prova documental ou testemunhal que demonstrasse a autoria da prática dos crimes pelo arguido, assentando essencialmente num juízo de presunção de culpa, o que é bem patente e a seguir se demonstrará.

21) Os presentes autos têm origem numa queixa-crime apresentada pelos supra identificados Venerandos Juízes Desembargadores, que a fizeram acompanhar de dois documentos que intitularam de “queixa transmitida por correio eletrónico” e de “cópia integral do acórdão da Relação”, não tendo indicado qualquer testemunha.

22) O MP recebeu a referida queixa-crime, que autuou como inquérito e sem que tivesse praticado qualquer ato de inquérito - nomeadamente, a recolha de prova documental, a obtenção de prova digital (prova que, tratando-se de um alegado e-mail, exige a observação de formalismos legais previstos para a sua obtenção e preservação – Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro – Lei do Cibercrime, o que não se verificou), a inquirição dos queixosos, a identificação e inquirição de prova testemunhal essencial (o (s) “terceiro (s) ” que alegadamente tomou (aram) conhecimento das imputações) - formulou um juízo de prognose da existência de responsabilidade criminal por parte do arguido e, sem mais, aliás, sem nada fazer, proferiu despacho de acusação.

23) O arguido apresentou a sua contestação, oferecendo o merecimento dos autos e arrolou prova testemunhal.

24) O arguido, ao abrigo do direito ao silêncio, do princípio da proibição de autoincriminação e do direito à não incriminação de cônjuge, filhos ou irmãos, por saber não ter praticado os factos de que vinha acusado, nem por si, nem por interposta pessoa, remeteu-se ao silêncio, direito que tem e que não o pode prejudicar, confiante no respeito do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo, acreditando poder ter um julgamento justo.

25) As testemunhas da acusação, apenas os próprios dois queixosos, no exercício de prerrogativa legal, prestaram os seus depoimentos por escrito, neles nada tendo acrescentado ao que já constava da queixa-crime que haviam apresentado conjuntamente, limitando-se a reiterar o nela já declarado, não referindo nunca que tais imputações haviam sido do conhecimento de “terceiro”, mais, afirmando expressamente que tais imputações haviam sido dirigidas aos próprios queixosos.

26) Veja-se que, na queixa-crime, a fls. 2 dos autos, os queixosos declararam: “4 – Na sequência disso veio o ali arguido e ora denunciado A., em “queixa” transmitida por correio eletrónico e dirigida aos Tribunais da Relação de Coimbra, (...), para conhecimento dos respetivos juízes, ...” (negrito e sublinhado nosso).

27) Veja-se ainda, no depoimento escrito do queixoso, Venerando Juiz Desembargador (…), junto aos autos em 30/01/2018, o mesmo declarou o seguinte: “3 – Com a conduta do Arguido, (...), referindo-se ao conteúdo do acórdão proferido pelos Queixosos e dirigindo-lhes essas expressões, senti-me (...)” (Negrito e sublinhado nosso).

28) Foram inquiridas as testemunhas de defesa, que para além de confirmarem as características da personalidade do arguido, demonstraram que a condenação do arguido, nos autos referidos no escrito objeto dos presentes autos, foi do conhecimento dos familiares do arguido, que manifestaram abalo e indignação em relação ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou a referida condenação do seu familiar – o que consta da motivação da sentença ora recorrida.

29) No entanto, a prova testemunhal produzida pela defesa, foi mais longe e provou ainda que tais familiares tiveram acesso a cópias integrais do processo que havia condenado o arguido e que manifestaram a sua indignação de diversas formas. Uns quiseram contactar juiz amigo para procurarem opinião jurídica, por forma a ajudarem o seu familiar. Outros manifestaram a intenção de contactar amigo da televisão SIC para tornar público tal assunto e outros quiseram publicar o assunto nas redes sociais, criando blogues, todos por solidariedade e tudo à revelia do arguido e sem a sua concordância, que se opôs determinantemente a qualquer ação que não fosse dentro dos mecanismos previstos na Lei, ou seja recorrendo aos Tribunais por via de recurso, o que fez, tendo recorrido para o Tribunal Constitucional e tendo até apresentado Recurso Extraordinário de Revisão junto do Supremo Tribunal de Justiça.

30) Vejam-se as declarações da testemunha “(…)”, que constam do seu depoimento prestado em 23-04-2018, gravado por sistema áudio, cujas partes mais relevantes, gravadas de 00:00:43 a 00:07:45, a seguir se transcreveram na motivação.

31) Do que resulta que é perfeitamente admissível considerar possível que alguns destes familiares do arguido, esposa, filha, irmãos ou sobrinhos, pudessem, à revelia do arguido, sem o seu conhecimento e sem a sua concordância, por solidariedade, ter sido o autor do teor do escrito objeto dos presentes autos e do seu alegado envio por via eletrónica (apenas em tese, a considerar-se a existência de tal e-mail, porquanto não foi produzida prova válida de tal).

32) Nos presentes autos não existe qualquer prova de que tal correio eletrónico (e-mail) tenha sido redigido pelo arguido, seja da sua autoria, tenha sido por ele enviado, que o endereço eletrónico csbmcorp@gmail.com lhe pertença ou tenha sido alguma vez por ele utilizado, que ele tivesse tido sequer conhecimento da sua existência e do conteúdo de tal correio eletrónico.

33) O arguido apenas tomou conhecimentos dos factos que lhe são imputados nos presentes autos com a sua notificação nos presentes autos.

34) O facto de constar o nome “(…)” no referido escrito, tal como, o facto de constar a referência mais do que uma vez ao “recurso que apresentei”, por si só, não basta para lhe atribuir a autoria dos factos de que vinha acusado. Pode ser indício, mas não é prova.

35) Porquanto, a capacidade de conhecer dos autos referidos em tal escrito, de nele fazer constar o nome do arguido, de redigir na primeira pessoa como se do arguido se tratasse, estava ao alcance de qualquer dos seus familiares que conheceram dos autos, que movidos por sentimento de indignação, como se provou e consta provado, e perante a manifesta subjugação do arguido às regras do sistemas judicial, quiçá, pensou que com tal ato poderia estar a ajudar o arguido, ou então que deveria ser manifestada a indignação em nome do arguido.

36) Quando se refere qualquer familiar, inclui-se a esposa, os filhos, os irmãos, sobrinhos.

37) E mesmo que o arguido, no momento da realização do julgamento nestes autos, já soubesse quem eventualmente poderia ter sido o autor, a tratar-se de algum dos supra mencionados, não lhe era, nem legalmente, nem moralmente exigível que o alegasse em sua defesa, razão que poderá justificar a sua remissão ao silêncio.

38) Silêncio esse que nunca o poderia ter prejudicado, como prejudicou in casu, por manifesta violação do princípio in dubio pro reo da presunção da inocência, o que desde já se invoca e requer seja reconhecido.

39) O Tribunal a quo não fez uma avaliação crítica da prova e da falta dela.

40) Aliás, é tão patente a inexistência de qualquer prova, que após terminarem as alegações finais e o encerramento da audiência de discussão e julgamento para deliberação, designando-se data para a leitura da sentença, o Tribunal a quo, na data designada para o efeito, ao invés de comunicar a decisão proferida, por bem saber NENHUMA PROVA TER que permitisse fundamentar a condenação, decidiu reabrir a audiência e promover oficiosamente, a obtenção dos originais dos documentos que acompanharam a queixa-crime, junto do Tribunal da Relação de Coimbra, o que, atento o momento em que sucedeu, após a conclusão das alegações e encerramento da audiência de discussão e julgamento para deliberação, é contra legem e consubstancia NULIDADE, por inadmissibilidade legal, cf. n.º 4 do art.º 360 do C.P.P., o que desde já se invoca e requer seja reconhecido.

41) Tendo sido realizada a audiência de discussão e julgamento, na data designada (23-04-2018), nela foi, quer pela acusação, quer pela defesa, produzida toda a prova arrolada pelo MP e pela defesa, sem que tivessem requerido qualquer prova superveniente, nem esta o foi pela Digníssima Juiz de Direito do Tribunal a quo.

42) Conforme consta da ata da referida audiência: “Finda a produção de prova, pela Mm.ª Juiz de Direito foi concedida a palavra, sucessivamente, à Digna Procuradora-Adjunta e ao ilustre mandatário presente, para em alegações orais exporem as conclusões de facto e de direito que hajam extraído da prova produzida.” - sic. Ata da audiência de 2304-2018 (Negrito nosso) - O que sucedeu.

43) “Findas as alegações, foi dada a oportunidade ao arguido de dizer algo que ainda não tivesse dito e que entendesse ser útil para a sua defesa, após o que a Mm.ª Juiz de Direito proferiu o seguinte:

DESPACHO

Oficie a DGRS pela elaboração de relatório social, sumário, acerca das condições pessoais e económicas do arguido A., nos termos do art.º 1º, nº 1 al. g) e 370º do Código de Processo Penal. Com a dilação necessária à elaboração do documento ora solicitado, para a leitura da sentença, designo o próximo dia 08 de maio de 2018, pelas 15:30 horas. Notifique.” - sic. Ata da audiência de 23-04-2018 (Negrito e sublinhado nosso) - O que sucedeu.

44) Sucede que, na data designada para leitura da sentença (0805-2018), a Mm.ª Juiz de Direito, declarou reaberta a audiência e, ao invés de dar início à leitura da sentença, conforme determinado, promoveu que fossem juntos aos autos os documentos originais que suportam a queixa e a cópia de fls 6 a 8, para o que determinou que fosse oficiado ao Tribunal da Relação de Coimbra, solicitando que – junto dos serviços da Secretaria - se providencie pela junção a estes autos, do documento original (o e-mail original) bem como, do comprovativo de receção e envio de tais e-mails.

45) A defesa do arguido pediu de imediato a palavra e, no uso da mesma, manifestou a sua expressa oposição ao promovido, que por extemporâneo é inadmissível, por carecer de fundamento legal, arguindo a nulidade de tal decisão, o que foi indeferido.

46) Nulidade essa que ora se invoca, arguindo-a nos termos e com os fundamentos ora expostos.

47) Realce-se que o promovido não assentou em qualquer requerimento da defesa ou do MP, tendo-o sido, apenas e tão somente, por iniciativa Digníssima Juiz de Direito do Tribunal a quo.

48) Realce-se ainda que não foi realizada qualquer alteração não substancial ou substancial dos factos, nada tendo sido comunicado nesse sentido em algum momento dos autos.

49) Sucede que tal promoção ocorreu na data designada para a leitura da sentença. 

50) Portanto, após, finda a produção de prova, findas as alegações das partes sem que tivessem sido suspensas e, bem assim, após determinada a data para a leitura da sentença e encerrada a respetiva audiência de discussão e julgamento.

51) Após encerrada a audiência de discussão e julgamento, na qual finda a produção de prova e findas as alegações das partes e a recolha do Tribunal para deliberação, apenas pode ser reaberta a audiência para carrear para os autos prova necessária para a determinação da sanção - cf. Art.ºs 371º e 369º do C.P.P.

52) Não sendo por isso admissível, naquele momento, qualquer iniciativa para aduzir para os autos prova a considerar na deliberação.

53) O art.º 360º, n.º 4 do C.P.P., apenas prevê a possibilidade de produção de meios de prova quando tal se revelar indispensável para a boa decisão da causa, desde que supervenientes, em casos excecionais e, sempre, antes de terminadas as alegações, que para isso, têm que ser suspensas.

54) In casu, Digníssima Juiz de Direito do Tribunal a quo promoveu a produção de meios de prova, que não são supervenientes, porquanto são do conhecimento dos autos desde o momento em que foi apresentada a queixa,

55) Não se verificando qualquer situação excecional, que por inexistir, não foi pela Digníssima Juiz de Direito do Tribunal a quo invocada.

56) E na data designada para a leitura da sentença, tendo as alegações sido findas na audiência que antecedeu, sem que tivessem sido suspensas.

57) Entende-se que os documentos juntos aos autos pelo Tribunal da Relação de Coimbra não podem ser considerados na decisão a proferir, razão pela qual não mereceram da defesa qualquer pronunciamento.

58) A única situação que eventualmente aparentaria alguma excecionalidade, mas não o pode, é o facto de os queixosos e únicas testemunhas da acusação nestes autos, serem Venerando Juízes Desembargadores neste Tribunal.

59) Assim, importa questionar, qual é a prova produzida em julgamento de que:

a) O endereço de e-mail constante como remetente do escrito objeto dos autos é do arguido, alguma vez foi por ele utilizado ou que é sequer dele conhecido;       

b) O Arguido elaborou, mandou elaborar ou soube que havia sido elaborado tal escrito;            

c) O Arguido enviou, mandou enviar ou soube que havia sido enviado tal escrito;

d) Que tal escrito foi efetivamente enviado;

e) Que tal escrito foi efetivamente recebido pelo Tribunal da Relação de Coimbra;

f) Que o teor de tal escrito foi efetivamente conhecido por terceiro, diga-se, pessoa física diferente dos queixosos;

60) Para além de suspeitas, indícios e inadmissíveis presunções, PROVA, obtida legalmente e produzida e examinada em sede de produção de prova na audiência de julgamento, INEXISTE !!!

61) Pelo que, se demonstra suficientemente claro que a Sentença recorrida carece de fundamentos de facto e de direito para levar à condenação do arguido pelos dois crimes de difamação agravada.

62) Pelo que, deveria o Tribunal à quo ter absolvido o arguido dos crimes de que vinha acusado.

63) É inequívoca a insuficiência/inexistência probatória para a decisão da matéria de facto considerada provada, a contradição insanável entre a fundamentação e a prova, o erro notório na apreciação e valoração da prova, a existência de prova nula, a errada interpretação da lei, a violação do princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência. 

64) O Tribunal a quo concretiza ter formado a sua convicção relativamente à matéria de facto provada e não provada, com base na prova produzida e examinada em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência, da lógica e do normal acontecer, à luz do art.º 127º do C.P.P.

65) Sucede que o Tribunal a quo não pode apenas invocar o art.º 127.º do C.P.P., para decidir como bem lhe apraz, sempre tem que demonstrar preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime, tudo suportado em PROVA.

66) A inexistência de prova tem que necessariamente resultar na absolvição de qualquer arguido, não obstante a qualidade profissional/ou outra de qualquer queixoso/ofendido.

67) No entanto, o Tribunal à quo erra na apreciação da prova documental e testemunhal produzidas em julgamento, porquanto NADA PROVA a AUTORIA do escrito alegadamente difamatório pelo arguido, o ENVIO do escrito pelo arguido, o seu prévio conhecimento e consentimento de tal facto e o conhecimento de tal escrito por TERCEIRO.

68) Pelo que, deverá ser alterada a matéria de facto considerada provada nos pontos 4, 5, 6, 7, 8 dos factos provados, devendo passar a constar como FACTOS NÃO PROVADOS.

69) Deverá ser alterada a matéria de facto considerada provada no ponto 16 dos factos provados, devendo passar a constar: “... condenado pela prática do crime de burla qualificada ...”.

70) Alteração à decisão que ora se requer a V. Ex.ªs., pois é escandalosamente insuficiente, por inexistente, incoerente e inadmissível, em processo penal, a verificação como provada da prática destes dois crimes, assente numa livre convicção do tribunal formada com a total ausência de qualquer prova, que inexiste.

71) Pois, não é admissível, à luz dos Princípios Constitucionais e dos Princípios Processuais Penais, que o Tribunal considere verificado o preenchimento dos elementos do tipo do crime, sem prova, vagueando no abismo de meros e singelos exercícios mentais intuitivos e dedutivos, por querer chegar onde a prova não chega, sob pena da total subversão dos supra referidos Princípios, com a falência certa e inevitável das garantias dos cidadãos de terem um julgamento justo e obterem uma decisão concretizadora da Justiça.

72) Noutro sentido, assumamos de vez que o Processo penal está desvinculado do Direito e se rege por meros exercícios de intuição, que levam a deduções, que fazem crer gerar informação, que correlacionada, produz uma qualquer decisão, que quiçá, por sorte dos azarados, poderá ser justa.

Termos em que, e nos demais de direito que V. Ex.ªs doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e determinar a sua substituição por outra que declare o arguido absolvido da prática dos dois crimes de difamação agravada.

Com o que V. Exas. farão, como sempre, a tão costumada justiça.

4. Foi proferido despacho a admitir o recurso.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:

1. Da análise do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não resulta que enferme de qualquer dos vícios a que alude o artº 412º, nº 2, do CP;

2. Também não resulta da sentença que os factos dados como provados nos pontos 4 a 8 da matéria de facto provada estejam incorretamente julgados;

3. Analisada a decisão sob recurso, não pode concluir-se pela violação do princípio in dubio pro reo, pois da leitura da motivação não resulta que o processo decisório tivesse conduzido o tribunal a um estado de dúvida e que, ainda assim, tivesse decidido contra o arguido, ou que a conclusão extraída pelo tribunal em matéria de prova traduza uma decisão contra o arguido, sem suficiente suporte.

4. Da análise da matéria de facto provada, resulta que conduta do arguido integra os elementos típicos, objetivo e subjetivo, de dois crimes de artºs 180º, nº1, 182º e 184º, por referência ao artº 132º, nº 2, al. l), todos do CP;

5. Em face do exposto, concluímos que a sentença recorrida é justa e adequada, que não violou quaisquer normas ou princípios jurídicos e que nenhum reparo merece, devendo ser mantida.

Termos em que, deverão Vªs Exas. negar provimento ao recurso, mantendo a douta sentença recorrida, assim fazendo, JUSTIÇA.

6. Remetidos os autos à Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.

7. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o recorrente não reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos …

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso em apreço importa decidir se (i) ocorre a nulidade decorrente da reabertura da audiência de discussão e julgamento após proferidas a alegações; (ii) enferma a decisão de facto de “erro de julgamento”, dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 do CPP, violando os princípios da presunção de inocência e do in dúbio pro reo, bem como o direito ao silêncio; (iii) o tribunal ao integrar no ilícito típico de difamação agravada a conduta do arguido incorreu em erro de direito.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença em crise [transcrição parcial]:

1. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão da causa encontram-se assentes os seguintes factos:

1. Os queixosos (…) e (…) são juízes desembargadores e, à data dos factos, desempenhavam funções na 2.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra. 

2. No processo comum coletivo n.º (…), do 2.º Juízo de (...) - Comarca de (...) , foi o arguido condenado, em primeira instância, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º n.º 1 e 218.° n.ºs 1 e 2, alínea a), por referência ao artigo 202.°, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão. 

3. Dessa decisão veio o arguido interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, na sequência do qual foi proferido acórdão, transitado em 30/06/2016, subscrito pelos queixosos (…) e (…), o primeiro na qualidade de relator e o segundo na qualidade de adjunto, que, apreciando de facto e de direito, julgou o recurso improcedente. 

4. Nessa sequência, o arguido, no dia 4 de Setembro de 2016, às 11h03m, por si ou por interposta pessoa, remeteu uma mensagem eletrónica assinada por “(…)”, com o assunto “QUEIXA CONTRA JUIZES DESEMBARGADORES”, dirigida designadamente ao correio oficial do Tribunal da Relação de Coimbra para conhecimento dos respetivos juízes, dizendo, com relevo, o seguinte: 

5. “Meritíssimos juízes Recentemente apresentei queixa junto do CSM contra os juízes desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra (5.ª secção) (…) e (…) por terem proferido em Setembro de 2015, um miserável acórdão, com um chorrilho de mentiras, desonestidade, não escrutinando a fundamentação do Tribunal de 1ª instancia (na parte a que me diz respeito), dando como provados factos para os quais não tem competência técnica nem cientifica e sem recorrer a perito, autênticos disparates, com contradições, ignorando em absoluto a fundamentação do meu recurso. UMA POUCA VERGONHA para quem é considerado titular de um cargo de órgão de soberania. 

Por uma questão de cidadania e por pugnar por uma sociedade mais justa, foi criado um blogue que vai estar na Web (Facebook, Instagram, Twitter, Linkedin, etc) a partir de meados de setembro, com os acórdãos, recurso, queixa e um vídeo ao mesmo tempo a correr no youtube. Os meus familiares e são muitos já se encarregarem disso. 

No referido blogue e para que não haja dúvida sobre este embuste poder-se-á perceber a conduta destes dois juízes desembargadores (…) e (…), cuja única preocupação foi fazer um alinhamento total do acórdão pelo acórdão de (...) . Isto não é justiça, isto é um total desrespeito pelos cidadãos, pelo Estado, mas também pelos seus pares que são honestos e que todos os dias trabalham e se esforçam para uma maior credibilização da justiça. 

Enquanto os meus familiares me virem a sangrar da ferida causada por estes dois juízes em Setembro de 2015, não hesitarão em continuar a denunciar esta falácia junto de todos os meios, incluindo a comunicação social que já foi contactada. Quem mente reiteradamente e de uma forma intencional é possuído por altos índices de desonestidade.

Veja-se apenas como um exemplo: No miserável acórdão e em 18.03.2003, que anexo, estes dois juízes (…) e (…) dão como prova direta os factos provados de 15 a 57 (como se lê na pág. 130), principalmente documental. Lê-se no facto provado 57 “ Os ex-sócios da " L (...) " encontram-se prejudicados pelo menos em montante igual ao valor da " L (...) " à data da cessão das quotas, correspondente pelo menos ao valor dos capitais próprios, ou seja, pelo menos, 65.706,98 euros ". No recurso que apresentei foi dito que o facto 57 era um verdadeiro disparate, não estava sequer fundamentado, ignorância absoluta do que é o valor de uma empresa e dos capitais próprios, também nenhum perito foi chamado a depor. Em sede de recurso foi provado que o valor dos capitais próprios 65.706,98 eur diziam respeito a 31.12.2002 (ver documento anexo) data muito anterior à data da cessão de quotas que foi como se sabe. Mesmo assim tiveram estes dois juízes a petulância de manter tais disparates. Isto não é um erro, isto é uma falácia. Este é apenas um exemplo entre dezenas. 

Se sabiam que não era verdade o que estava no acórdão de (...) o que os levou a manter e a dar como provado tal disparate? Que interesses motivaram estes juízes, preferindo manter a calinada, a mentira, a fraude, quando sabiam em abono da verdade e da justiça que não podiam fazer? Mas vale a pena em nome desses interesses (que só os meritíssimos juízes saberão quais) exporem-se estes juízes desembargadores a tamanha vergonha e em nada contribuindo para a confiança que os cidadãos devem ter dos Tribunais (juízes)? 

Mas leram os Srs. Drs. juízes o meu recurso? Se não leram que é a minha convicção, é GRAVISSIMO se leram e mantiveram os disparates do acórdão de (...) , é também GRAVISSIMO. 

No blogue além da queixa na íntegra (com anexos) vão constar outros aspetos que se prendem com o exercício da magistratura por partes destes dois meritíssimos. 

UM VERDADEIRO EMBUSTE. MENTIRAS NÃO SÃO ERROS.” 

6. Com esta mensagem, o arguido logrou adjetivar e reputar os queixosos de desonestos, mentirosos, falaciosos e incompetentes. 

7. Ao praticar os factos acima descritos, o arguido atuou com o propósito concretizado de ofender a honra, consideração, credibilidade e o prestígio social e profissional dos queixosos, que sabia serem juízes desembargadores, tendo agido por causa dessas mesmas funções desempenhadas pelos queixosos. 

8. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente da proibição e da punição criminal da sua conduta. 

9. A., natural de (...) , é o mais novo de três filhos, nascido no seio de uma família de condição sócio económica mediana (pai comerciante e mãe doméstica), investida na transmissão aos descendentes de normas e regras assertivas de vivência em sociedade. 

10. Os pais já faleceram há alguns anos.

11. O arguido teve um percurso escolar regular e normativo, encontrando-se habilitado com o curso superior de contabilidade e administração, e com o curso de estudos superiores especializados, tendo também frequentado mais tarde um mestrado em negócios internacionais, no Instituto Politécnico de (...) . 

12. Após ter cumprido o serviço militar obrigatório, exerceu a partir daí as funções de professor. 

13. Em meados dos anos 80, paralelamente à atividade letiva, iniciou funções por conta própria, na área da contabilidade e assessoria de gestão, contexto em que mais tarde ocorreram factos que determinaram a sua reclusão, cessando esta atividade no ano de 1999, mantendo a de professor do ensino secundário na Escola Secundária (...) .

14. No plano afetivo, o arguido mantém uma relação matrimonial há sensivelmente 37 anos, e fruto deste relacionamento possui dois filhos, de maioridade, os quais se encontram autonomizados e com agregados autónomos.

15. O arguido cumpriu pena de prisão, permanecendo preso preventivamente, de dezembro de 1999 a julho de 2002, e posteriormente cumpriu pena de prisão efetiva nesse mesmo processo, de fevereiro a outubro de 2011, pela prática de dois crimes de associação criminosa e burla qualificada na forma continuada.

16. Em junho de 2017, iniciou o cumprimento de nova pena de prisão, tendo sido condenado pela prática dos crimes de associação criminosa e burla qualificada, saindo em liberdade condicional em 26/03/2018.

17. Após sair em liberdade condicional, em março do corrente ano, A. passou a residir na localidade da (…), concelho de (…), com a esposa, atualmente com 58 anos de idade, doméstica, mantendo também contactos frequentes com os dois filhos e os quatro netos, beneficiando de um enquadramento familiar estruturante e gratificante.

18. O arguido e sua esposa residem numa moradia geminada, que já foi própria, e atualmente lhes é cedida por pessoas amigas, constituída por um rés-do-chão, 1º, 2º andares, e sótão, em bom estado de conservação, encontrando-se adequadamente mobilada, reunindo boas condições de habitabilidade e conforto.

19. A. é professor, fazendo parte do quadro de funcionários da Escola Secundária (…), em (…), desde há cerca de 12 anos. 

20. Desde a sua libertação que tem permanecido na situação de baixa médica, alegando motivos de ordem psicológica, alegadamente relacionados com a situação de reclusão vivenciada (prevendo retomar as suas funções em setembro do corrente ano).

21. Ao nível económico o agregado possui como rendimentos mensais os provenientes do salário do arguido, na quantia de cerca de 1.985,00€, permitindo-lhes fazer face às despesas correntes de forma positiva.

22. No âmbito da saúde, após ter saído do EP em situação de liberdade condicional, o arguido passou a ser acompanhado em consultas de clinica geral na Clinica (…), em (…), estando a sua situação de saúde a ser avaliada no sentido de eventual encaminhamento para consultas de psicologia e/ou psiquiatria.

23. O arguido foi acompanhado pelos Serviços da DGRSP, no âmbito da liberdade condicional (Processo n.º 5338/10.6TXLSB-G, do TEP de Lisboa) cujo termo ocorreu em 21/04/2018, tendo o mesmo cumprido de forma positiva as obrigações fixadas.

24. No meio de residência, (…) é considerado atualmente uma pessoa mais reservada ao nível da interação pessoal do que no passado. São conhecidos alguns dos seus problemas com o sistema de justiça, não sendo, aparentemente hostilizado, nem conotado à data atual com práticas delituosas.

25. A. verbaliza atualmente sentido crítico face ao tipo de crime semelhante ao de que vem sendo acusado no âmbito do presente processo e reconhece a sua ilicitude. 

26. Socialmente não são notórios impactos decorrentes da presente situação judicial.

27. Em caso de condenação, existem condições para a execução de uma medida penal na comunidade, com acompanhamento pelos serviços da DGRSP e direcionado entre outras vertentes, para a sua situação de saúde mental.

28. Sofreu as condenações supra mencionadas constantes do CRC de fls. 183 ss, que no mais se dá aqui como reproduzido.).

29. O arguido é considerados pelos seus familiares e conhecidos como pessoa calma, correta e de bom trato.

FACTOS NÃO PROVADOS

Com interesse para a causa não resultaram provados outros factos de entre os alegados, acima não descritos ou que estejam com eles em contradição.

MOTIVAÇÃO DO TRIBUNAL 

(…).

3. Apreciação

§1. Da nulidade decorrente da reabertura da audiência de discussão e julgamento após proferidas as alegações.

Reserva o recorrente os pontos 40 a 58 das conclusões à arguição da nulidade resultante de o tribunal a quo após proferidas as alegações finais e designada data para a leitura da sentença, no dia reservado à publicitação da mesma ter procedido à reabertura da audiência, proferindo então despacho a solicitar ao Tribunal da Relação de Coimbra os originais dos documentos que acompanharam a queixa-crime, o que mereceu, desde logo, a sua oposição, estando em causa a violação do artigo 360.º, n.º 4 do Código de Processo Penal e, bem assim, o disposto nas normas constantes dos artigos 371.º e 369.º do mesmo diploma, enquanto apenas preveem a possibilidade de reabertura da audiência para efeitos de determinação da sanção, sendo que, por um lado, os elementos em questão não configurariam meios de prova supervenientes e, por outro lado, o caso não poderia ser qualificado como excecional.

Vejamos, pois.

Analisados os autos constata-se que na sessão da audiência de julgamento de 23.04.2018 (ata de fls. 284/286), finda a produção da prova e realizadas as alegações foi designado para a leitura da sentença o dia 08.05.2018, pelas 15.30h, data em que o tribunal, reabrindo a audiência, proferiu despacho do seguinte teor:

Ponderados e analisados os documentos juntos ao processo, em confronto com o teor das doutas alegações das partes, entende o Tribunal ser necessário e pertinente para a apreciação do mérito da ação penal, a junção aos autos dos documentos originais que suportam a queixa e a cópia de fls. 6 a 8.

Para tanto, ao abrigo do disposto designadamente nos art.ºs 360.º, n.º 4 e 371.º do Código de Processo Penal, determino que se oficie ao Tribunal da Relação de Coimbra, solicitando que – junto dos serviços da Secretaria – se providencie pela junção a estes autos, do documento original (o e-mail original) bem como do comprovativo de receção e envio de tais e-mails.

Fixa-se o prazo, para tais diligências, em 20 (vinte) dias.

Junta tal documentação, abra conclusão de imediato.

Para continuação da audiência de discussão e julgamento, designa-se o próximo dia 29 de Maio de 2018, pelas 15:00 horas, com a anuência do Ilustre Mandatário, neste Tribunal.

Notifique”.

Na sequência de tal despacho, conforme consta da respetiva ata, completada pelo correspondente registo áudio, o Exmo. mandatário do arguido reagiu, opondo-se ao “ordenado”, invocando em síntese não se verificarem os pressupostos das citadas disposições legais, após o que o julgador fez exarar em ata:

A decisão do Tribunal ancora-se nos princípios da descoberta da verdade material, tendo por base as alegações da própria defesa e para segurança dos direitos de defesa do próprio arguido, pelo que, a formalidade mencionada, não obsta à junção do aludido documento/elementos solicitados, os quais serão sempre sujeitos a contraditório, podendo em face dos mesmos, serem prestados pela defesa os esclarecimentos tidos por convenientes” – (cf. fls. 293/294).

Chegados ao processo os documentos provindos do Tribunal da Relação de Coimbra e notificadas as “partes”, o ora recorrente, desde logo, reagiu, por escrito (fls. 337/338), renovando os fundamentos que já havia apresentado por ocasião da prolação do primeiro despacho (acima reproduzido) referindo haver então arguido a nulidade de “tal decisão”, entendendo não merecerem os documentos juntos, por não poderem vir a ser considerados na sentença, “qualquer pronunciamento”.

Na (nova) data designada para a leitura da sentença o julgador fez consignar em ata mostrar-se cumprido o contraditório, exarando em despacho: “Nos termos e com os fundamentos já anteriormente consignados nos autos – cf. ata de fls. 293-294 – o Tribunal entende necessário e pertinente a junção dos documentos de fls. 297 e ss.”; após o que foi concedida aos sujeitos processuais a palavra para alegações, seguida da leitura da sentença.

Esta a resenha das vicissitudes que importa à decisão.

Isto dito.

Ao invés do que invoca o recorrente não decorre, quer do que documentado se mostra nas atas concernentes à audiência de julgamento, quer dos respetivos registos áudio que, em data anterior à do recurso, haja sido arguida a nulidade do despacho proferido em 08.05.2018.

Seja como for, atento o princípio da legalidade que domina a matéria (artigo 118.º, n.º 1 do C.P.P.), a alegada violação das normas convocadas não acarreta invalidade de semelhante natureza, conforme artigos 119.º e 120.º do Código de Processo Penal, inexistindo outra disposição legal que assim o determine; por outro lado, caso assistisse razão ao recorrente – o que não sucede – considerando o respetivo regime de arguição - afastada que sempre estaria uma nulidade absoluta – sempre o mesmo conduziria à afirmação da respetiva sanação (cf. artigo 121.º do CPP).

Com efeito, a oposição então manifestada pelo arguido à determinação do tribunal (despacho) não equivale à arguição de qualquer nulidade.

Não queremos, contudo, deixar de referir que o procedimento levado a cabo pelo tribunal a quo, não se insere na disciplina reservada à reabertura da audiência para determinação da sanção (artigo 371.º do CPP), tão pouco se encaixa no n.º 4 do artigo 360.º do CPP, enquanto, em casos excecionais, permite a suspensão das alegações para a produção de meios de prova supervenientes. Porém, encontra fundamento no n.º 1 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal, enquanto dispõe que “Encerrada a audiência final, o processo é concluso ao juiz, para ser proferida sentença (…); se não se julgar suficientemente esclarecido, o juiz pode ordenar a reabertura da audiência, ouvindo as pessoas que entender e ordenando as demais diligências necessárias”, norma que em nada colide com a previsão do n.º 4 do citado artigo 360.º e que se harmoniza o mais possível com os princípios do processo penal, concretamente com o dever de prosseguir a verdade material, como, em sede de “Princípios gerais”, concernentes à prova o evidencia o n.º 1 do artigo 340.º do Código de Processo Penal.

E percebe-se semelhante “válvula de segurança”.

De facto, não constituindo a regra, configurando mesmo a exceção, bem pode acontecer que por ocasião da elaboração da sentença, momento em que o julgador tem uma mais aprofundada visão dos diferentes meios de prova, ao proceder à sua leitura articulada adquira a consciência da necessidade, para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, de providenciar pela junção aos autos de certos meios de prova ou da imprescindibilidade de os fazer produzir. A ser este o caso – o qual enfatiza-se está muito longe de ser a regra -, não está o tribunal, com vista à realização do fim último do processo e com respeito pelo princípio do contraditório, de determinar as diligências de prova necessárias para prosseguir a verdade material.

Foi o que ocorreu, tendo assistido aos diferentes sujeitos processuais o direito de contraditar as provas em questão e de após produzir novas alegações.

Em suma, falece razão ao recorrente quanto à invocada nulidade.

§2. Da impugnação (lato sensu) da matéria de facto

1. Insurge-se o recorrente contra os factos dados por assentes (provados) sob os itens 4, 5, 6, 7, 8 e 16, defendendo deverem passar os primeiros a não provados e o último sofrer alteração de modo a que fique antes a constar “… condenado pela prática do crime de burla qualificada …” (cf. pontos 68 e 69 das conclusões).

O “tipo” de sindicância que requer a este tribunal mostra-se bem espelhado no ponto 63 das conclusões onde, em jeito de síntese conclusiva (cf. v.g. os pontos 19, 24, 28, 29, 30, 31, 32, 36, 38, 60 e 61), refere: “É inequívoca a insuficiência/inexistência probatória para a decisão da matéria de facto considerada provada, a contradição insanável entre a fundamentação e a prova, o erro notório na apreciação e valoração da prova, a existência de prova nula, a errada interpretação da lei, a violação do princípio in dúbio pro reo e da presunção de inocência”, sendo que nada de diferente se retira da respetiva motivação. Na verdade, quando o recorrente convoca o depoimento da testemunha (…) fá-lo com o propósito de evidenciar o estado de dúvida que se devia ter gerado – e não gerou – no espírito do julgador.

É, pois, manifesto, circunstância ilustrada pelas sucessivas interrogações levadas a cabo ao longo das conclusões, dirigir-se o recurso em sede de decisão de facto no essencial a vícios/patologias relativas à confeção técnica da sentença, a denunciar anomalias, apreensíveis a partir do seu texto, tais como o recurso indevido a presunções, bem assim – diz-se – a uma gritante violação do princípio da presunção de inocência na vertente do pro reo.

2. Iniciemos, pois, por relembrar a fundamentação da convicção da decisão de facto, onde se mostra consignado:

A convicção do tribunal gizou-se quanto aos factos provados no conjunto e no confronto da prova produzida e examinada em audiência, apreciada segundo as regras da experiência, da lógica e do normal acontecer, à luz da livre convicção do tribunal (art.127º do Código de Processo Penal).

Como assim, no confronto da prova produzida e analisado o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em 30/06/2016, constatamos que o TRC confirmou a condenação do arguido e bem assim a do coarguido (…), em primeira instância - no âmbito do processo comum coletivo n.º (…), do 2.º Juízo de (...) - Comarca de (...) , confirmando a condenação daqueles (sendo a do arguido na coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º n.º 1 e 218.° n.ºs 1 e 2, alínea a), por referência ao artigo 202.°, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão).

Por seu turno, da análise do escrito remetido, designadamente, ao Tribunal da Relação de Coimbra (correio oficial), não podemos deixar de constatar que na identificação da origem do mesmo, é identificado o ora arguido (…) [e não já o coarguido (…)].  

O subscritor do mencionado documento, na parte final, apôs-lhe o nome de “(…)”.

Ora, o arguido nada disse a tal respeito. Remetendo-se ao silêncio, como é seu direito constitucional, não veio aos autos fornecer qualquer explicação ou versão que afastem a leitura lógica dos factos que apontam inevitável e manifestamente para a sua autoria.

Aliás o próprio escrito refere por mais do que uma vez ao “recurso que apresentei – sic.

O tom do mesmo escrito é de enorme (e grave) crítica pessoal e direta. 

Os interessados e diretamente afetados pelo Acórdão visado, eram os dois recorrentes e únicos arguidos no processo.

O nome do ora arguido surge como o subscritor de tal escrito.

Não foi alegado nem se vislumbrou que pudesse ter existido quem, tomando “as dores de um ou outro recorrente” por solidariedade ou – no plano oposto - por maldade, intriga ou vingança, quisesse ou tivesse interesse em subscrever tal escrito em nome do ora arguido.

Pelo que a conclusão lógica que atribui a autoria do escrito ao arguido impõe-se.

Finalmente, o conhecimento da ilicitude dos factos, a intenção e a voluntariedade da conduta resulta – igualmente – como consequência lógica e direta quer do grau ofensivo (objetiva e subjetivamente) das afirmações, quer da idade, e natural maturidade e percurso de vida do arguido (sem olvidar as suas condenações e a sua formação académica).

Mais ponderamos o teor dos depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa (ex-Mandatário, Colega e filho do arguido que não abalaram a leitura dos factos e a valoração da prova nos termos descritos, afirmando/confirmando essencialmente o estado de abalo e indignação da família do arguido e características da sua personalidade nos termos exarados).

Tivemos ainda em consideração o teor do relatório social solicitado e o CRC junto aos autos.

Finalmente, as testemunhas, (…), Juiz Desembargador no Tribunal da Relação de Coimbra e (…), Juiz Desembargador, no Tribunal da Relação de Coimbra, depuseram por escrito confirmando o conhecimento dos factos e o abalo sentido. 

Em face do texto reproduzido não se vê que assista razão ao recorrente quando alega carecer a sentença de fundamentação/análise crítica da prova. Na verdade, ainda que sintética, é a mesma suficientemente esclarecedora quanto ao processo mental seguido pelo julgador na formação da convicção. Assim: a posição processual do ora recorrente enquanto arguido nos autos ali identificados; o sentido do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, então composto pelos juízes desembargadores que no presente processo assumem a qualidade de queixosos; a análise detalhada do teor da mensagem eletrónica dirigida ao correio oficial do Tribunal da Relação de Coimbra, onde foi rececionado pelas 11h03m do dia 04.09.2016; a identificação do arguido A. na origem do e-mail; o facto de na qualidade de subscritor do documento/mensagem eletrónica figurar (…), constituíram “aspetos”, que lidos em articulação, conduziram o tribunal a adquirir a firme convicção de haver o arguido efetivamente praticado os factos descritos na acusação. Convicção essa que, como o julgador cuida de esclarecer, não resultou abalada pelo teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas de defesa (ex-mandatário; colega e filho do arguido), os quais, no essencial, teriam incidido sobre “o estado de abalo e indignação da família do arguido e características da sua personalidade …”.

3. Contudo, na perspetiva do recorrente, as provas de que o tribunal se serviu para formar a convicção não seriam, pelo menos em parte, “provas” mas tão só “indícios” (cf. ponto 34 das conclusões). Esquece, porém, o relevante contributo das presunções judiciais, enquanto consentem, com recurso a juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, segundo as regras da experiência comum, assentar em determinado facto não diretamente provado, por ser a natural consequência, ou resultar com toda a probabilidade, para além da dúvida razoável, de um facto conhecido.

 Sucede que uma das linhas de força em que assenta o recurso é precisamente a violação da presunção de inocência, na vertente do in dubio pro reo, alegação que conjugada com o direito do arguido ao silêncio suscita o maior clamor contra a decisão proferida em primeira instância.

Afigura-se-nos, mais uma vez, não lhe assistir razão!

Dizendo respeito à matéria de facto, o princípio assume um papel primordial na apreciação e valoração da prova. Porém, inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação do arguido afastado fica o in dubio pro reo e a presunção de inocência.

Retomando o caso em apreço.

Se decorre com clareza da fundamentação da convicção não ter sido o julgador assolado pela dúvida – menos ainda razoável -, não funcionando neste domínio como tribunal de revista, a Relação pode sempre conhecer de facto (artigos 428.º e 431.º do CPP), para além dos vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

Ora, perscrutas as conclusões, bem assim a correspondente motivação, no âmbito da qual convoca o depoimento da testemunha (…) constata-se residir neste um dos principais fundamentos em que ancora a violação.

A tal propósito não nos havendo eximido à audição integral do registo de prova concernente ao testemunho em referência é óbvio o “empenho” demonstrado no sentido de tentar criar a dúvida sobre o autor do “escrito”. Não já enquanto deu conta da indignação e revolta dos familiares do arguido (seu pai) com o desfecho do processo identificado em 2 (factos provados), concretamente com o teor do acórdão da Relação (item 3 dos factos provados), mas antes sim quando referiu: “demos cópias do processo a toda a gente”, sem, contudo, concretizar quem era essa “toda a gente”, pois quando “convidado” a esclarecer esse “universo” respondeu: “é difícil explicar as pessoas”, para mais adiante aduzir que divulgaram “cópia integral do processo por toda a família”. Não deixou, porém, de acrescentar a vontade de uma tia em contactar uma estação televisiva, assim como a intenção manifestada por um tio de falar com um juiz, mas tudo isto à revelia do pai, o qual “só em tribunal queria resolver as questões”.

Compreendendo”, embora, a posição da testemunha, é de convir que, se encarada à luz das regras da experiência, semelhante depoimento se traduz na negação da lógica das coisas da vida, revelando-se destituído de verosimilhança. De facto, até se poderia perceber a entrega a um número restrito de familiares próximos de uma cópia do acórdão; já não se consegue entender a distribuição a “toda a gente” (ainda que familiares) de “cópia integral do processo”. Significa, pois, que tal como sucedeu com o julgador em primeira instância, também a este tribunal o sentido do declarado pela testemunha se revela incapaz de fazer criar a dúvida sustentada sobre o autor da mensagem eletrónica em questão. É que “a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade” - [cf. Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997, pág. 17].

Por outro lado, a análise levada a efeito pelo tribunal a quo do “escrito”, que lhe determinou o convencimento de ser o arguido o seu autor, pese embora o recorrente pretenda desvalorizá-la, nenhuma censura merece, não deixando ainda de ser curioso notar que ao longo do “texto” o seu autor esclarece o âmbito de atuação reservado à família, estabelecendo uma autêntica divisão de tarefas entre si e os familiares. Na verdade, a estes pertenciaPor uma questão de cidadania e por pugnar por uma sociedade mais justa” criar “um blogue que vai estar na Web (facebook, Instagram, Twitter, Linkedin, etc.) a partir de meados de setembro, com os acórdãos, recurso, queixa e um vídeo ao mesmo tempo a correr no youtube”, pois – diz -“Os meus familiares e são muitos já se encarregaram disso” e mais adiante: “Enquanto os meus familiares me virem a sangrar da ferida causada por estes dois juízes em Setembro de 2015, não hesitarão em continuar a denunciar esta falácia junto de todos os meios, incluindo a comunicação social que já foi contactada” e - acrescentamos nós - ao próprio cabia remeter o texto em questão ao correio oficial do Tribunal da Relação de Coimbra.

4. Ainda associado a esta matéria surge o alegado desrespeito pelo direito ao silêncio que assiste ao arguido. Contudo, sem fundamento!

A propósito refere a sentença: “Ora, o arguido nada disse a tal respeito. Remetendo-se ao silêncio, como é seu direito constitucional, não veio aos autos fornecer qualquer explicação ou versão que afastem a leitura lógica dos factos que apontam inevitável e manifestamente para a sua autoria”, tratando-se, pois, da pura constatação de que se o silêncio não pode prejudicar o arguido, ao ter optado por não prestar declarações não logrou o mesmo tirar benefício de eventuais explicações que tivesse para os factos. Neste sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça quando alerta para que a opção pelo silêncio pode ter consequências que não conduzem à sua valoração indevida, revelando-se elucidativo o acórdão de 20.10.2005 (proc. n.º 2939/05-5) enquanto refere: “Um arguido que mantém o silêncio em audiência, não pode ser prejudicado, pois não é obrigado a colaborar e goza da presunção de inocência, mas prescinde assim de dar a sua visão pessoal dos factos e eventualmente esclarecer determinados pontos de que tem conhecimento pessoal. Daí que quando tal suceda não possa pretender que foi prejudicado pelo seu silêncio” – [cf. no mesmo sentido v.g. os acórdãos do STJ de 14.06.2006 (proc. n.º 2175/06-5), 20.12.2007 (proc. n.º 06P775), 10.01.2008 (proc. n.º 3227/07-5.ª)]. De resto, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a respeito do silêncio do arguido e das presunções judiciais e tendo presente o artigo 6.º da CEDH no seu acórdão de 20.03.2001 (Caso Telfner c. Áustria), chega mesmo a considerar que “As presunções legais (de culpa) e o juízo que se faça do silêncio do arguido não são, em regra e só por si, incompatíveis com a presunção de inocência …”.

5. De todo irrazoável se apresenta a alegação no sentido da indemonstração de que o “escrito” em questão tenha chegado ao conhecimento efetivo de terceiros, bastando para tanto atentar no facto de que se assim não tivesse sido, tratando-se de mensagem eletrónica dirigida ao “correio oficial” do Tribunal da Relação de Coimbra, por desconhecimento do mesmo, não poderiam os ofendidos ter apresentado, como aprestaram, queixa-crime contra o arguido/recorrente, a qual se mostra na origem dos presentes autos.

6. Igualmente falho de sentido se apresenta o propósito de fazer crer, até com referência ao depoimento escrito de um dos queixosos, mostrar-se a mensagem eletrónica - identificada, no que ao assunto respeita, como “QUEIXA CONTRA JUÍZES DESEMBARGADORES” e encabeçada com o dizer “Meritíssimos juízes”, realçando o respetivo texto o total desrespeito “pelos seus pares que são honestos e que todos os dias trabalham e se esforçam para uma maior credibilização da justiça” - dirigida aos próprios (visados) quando o “escrito” não consente a mínima dúvida de que a intenção era levar ao conhecimento dos demais juízes o seu teor (contra os visados já o arguido havia apresentado queixa junto do CSM). Por outro lado, não passa de sofisma, o que invocado vem nos pontos 25 (in fine), 26 e 27, pois, no contexto, é evidente não só que a expressão “para conhecimento dos respetivos juízes” se reportava aos demais – que não os visados – juízes, como só o recorrente é capaz de pôr em dúvida que as declarações (prestadas por escrito) dos queixosos ao reportarem haverem-lhes sido “dirigidas” as expressões contidas na mensagem eletrónica equivalem a dizer que eram eles os “visados”!

7. Relativamente à matéria inscrita sob o item 16 dos factos provados, que o recorrente pretende ver alterada, não tendo cumprido, nem em sede de conclusões, nem na correspondente motivação, os ónus de impugnação contemplados nas diferentes alíneas do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, não pode a mesma sofrer modificação.

8. Em síntese, não se assistindo a “erro de julgamento”; não resultando da sentença qualquer lacuna relevante que comprometa uma decisão jurídica criteriosa; não se alcançando que haja a mesma incorrido em contradição insanável entre os factos ou entre estes e a fundamentação; não se detetando juízos ilógicos, extraídos ao arrepio das regras da experiência comum; não tendo ocorrido violação do princípio da presunção de inocência e do in dúbio pro reo, posto que nenhuma dúvida se suscitou ao julgador, como igualmente não se coloca a este tribunal quanto ao facto de ter sido (i) o arguido/recorrente o autor do “escrito” (ii) o mesmo, por si ou por interposta pessoa, a remeter ao “correio oficial” do Tribunal da Relação de Coimbra a mensagem eletrónica (iii) a qual, com vista ao conhecimento dos demais (que não já os “visados”) juízes desembargadores foi ali rececionada por terceiro que não os “visados”, terceiro esse que obviamente da mesma tomou conhecimento; refletindo, ao invés a decisão recorrida uma aplicação adequada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do CPP), sendo que neste domínio não está vedado ao tribunal o recurso aos juízos de inferência, traduzidos nas presunções naturais, tem-se por definitivamente fixada, tal como se mostra assente na sentença em crise, a matéria de facto e concretamente a matéria inscrita nos itens que mereceram a reação do recorrente.

§3. Da qualificação jurídica-penal dos factos

Não obstante o extenso introito (cf. pontos 5 a 15 das conclusões) sobre os aspetos relacionados com os elementos típicos do crime pelo qual sofreu condenação, o certo é que não se descortina entre o tratamento jurídico levado a efeito na sentença e o que a tal propósito vem invocado pelo recorrente momentos de discordância. Efetivamente, toda a construção gizada no recurso assenta no pressuposto da alteração da matéria de facto, o que não ocorreu.

Perante o acervo factual que apurado vem, agora definitivamente assente, não merece censura a sentença recorrida enquanto teve por verificados, em qualquer dos segmentos que o estruturam, os elementos típicos do crime em questão, ou seja no “segmento da ofensa propriamente dita”, no caso, essencialmente, concretizado por meio da formulação de juízos ofensivos da honra e consideração dos queixosos e no “segmento do rodeio ou do enviesamento”, traduzido na circunstância de tais juízos haverem sido, pelo arguido, dirigidos a terceiros, os quais dos mesmos (enfatiza-se) não puderam deixar de tomar conhecimento aspeto que resulta inequívoco do procedimento utilizado para fazer chegar a mensagem eletrónica (por si subscrita) ao Tribunal da Relação de Coimbra, remetida para o respetivo “correio oficial”, com vista ao conhecimento dos respetivos juízes, que não naturalmente os visados pela conduta lesiva, tanto mais se conjugada com o exercício do direito de queixa por parte dos ofendidos, o que só se tornou possível pela transmissão, levada a efeito por terceiro, aos visados do “escrito” ou do respetivo teor.

A natureza ofensiva dos juízos formulados é assunto que o recorrente – sensatamente, diga-se – não ousou contrariar.

Também a verificação do elemento subjetivo, que se satisfaz com qualquer modalidade de dolo, não oferece no caso qualquer reserva.

Em suma, é de manter integralmente a sentença em crise.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Custas, com taxa de justiça, que se fixa em 4 (quatro) UCs a cargo do recorrente – cf. artigos 513.º/514.º do CPP e 8.º do RCP (tabela III).

Coimbra,  8 de Maio de 2019

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Isabel Valongo (adjunta)