Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1255/22.5T9ACBE. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: GESTÃO DE RESÍDUOS
RESPONSABILIDADE PELA GESTÃO DE RESÍDUOS
EXPORTADOR NACIONAL DE RESÍDUOS
CONTRAORDENAÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA COIMA
Data do Acordão: 11/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 5.º, N.ºS 1, 4, 5 E 6, DO D.L. Nº 178/2006, DE 5 DE SETEMBRO/REGIME GERAL DA GESTÃO DE RESÍDUOS
ARTIGO 20.º-A DA LEI 50/2006, DE 29 DE AGOSTO/LEI QUADRO DAS CONTRA-ORDENAÇÕES AMBIENTAIS
Sumário:

I – O produtor nacional de resíduos que os exporta, seja para países comunitários, seja para países extracomunitários, continua responsável pela sua gestão, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do D.L. n.º 178/2006, de 5 de Setembro.

II – O n.º 4 do artigo 5.º não inclui a exportação de resíduos de proveniência interna.

III – A suspensão da execução da coima só é admissível nos casos em que tenha sido aplicada uma sanção acessória.

Decisão Texto Integral:


I–RELATÓRIO

…  foi, mediante sentença, julgada parcialmente procedente a impugnação judicial, sendo, em consequência decidido:

- Revogar a decisão administrativa na parte em que condenou a arguida pela prática da prática da contraordenação p. e p. pela al. b) do n.º 1 do artigo 3.º do Regulamento (CE) n.º 1013/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho, e alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.ºc45/2008, de 11 de março e, em consequência, absolve-la da mesma;

- Manter a decisão administrativa na parte em que condenou a recorrente pela prática da contraordenação, p. e p. pelo artigo 5º e alínea a) do n.º 2 do artigo 67º do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de setembro reduzindo a coima para €6.000,00 (seis mil euros);

- Manter a decisão administrativa na parte em que condenou a recorrente pela prática da contraordenação p. e p. pelos 49.º e alínea e) do n.º 3 do artigo 67º do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de setembro, alterando, porém, sanção para admoestação.

Inconformada, recorreu a arguida, apresentando as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«II) – CONCLUSÕES:

A) O Art.º 5.º do DL 178/2006 não é aplicável à situação dos autos (exportação de resíduos), mas apenas aos movimentos de resíduos que ocorram no território nacional, pelo que não se pode considerar tipificada a contraordenação p. e p. pelo citado Art.º 5.º e pelo Art.º 67.º, n.º 2, al. a) do mesmo diploma.

B) Ainda que assim não se entendesse, na medida em que a Arguida vendeu os resíduos exportados em 2017 e 2018 a duas empresas brokers (uma alemã e outra suíça), se se considerasse aplicável o Art.º 5.º citado, a transferência dos resíduos para esses comerciantes (brokers) transferiu também a responsabilidade pelo seu tratamento, como decorre dos n.ºs 5 e 6 (se a transferência for efectuada do produtor para um operador, cessa a responsabilidade. Se a transferência for efectuada do produtor para um comerciante, continua a haver responsabilidade pela gestão / tratamento, mas essa responsabilidade transfere-se para o novo detentor e deixa de ser exigível ao primitivo produtor, pois o preceito não prevê a responsabilidade conjunta, cumulativa ou solidária).

C) O Art.º 5.º, n.º 4, quando se trata da entrada de resíduos de proveniência externa em território nacional, atribuiu a responsabilidade pela sua gestão (tratamento) ao responsável pela sua introdução, pelo que não se preocupando o legislador em responsabilizar o expedidor (externo) dos resíduos, impondo a responsabilidade pela sua gestão ao destinatário nacional, mutatis mutandis, também o Art.º 5.º, não poderá ser interpretado, quando o circuito dos resíduos for o inverso, no sentido do exportador nacional continuar responsável pela gestão, quando os envia para empresas de países terceiros.

D) Acresce que, tratando-se de movimentos transfronteiriços de resíduos da lista verde (não perigosos) para valorização, como aqui sucede, as normas aplicáveis (Artigos 1.º, n.º 2, 3.º, n.º 2 e 18.º do Regulamento 1013/2006 e 9.º do DL 45/2008) não exigem a apresentação de quaisquer “licenças”, como parte integrante dos documentos de acompanhamento dos resíduos transferidos.

F) Ainda que, por mera hipótese, assim não se entenda e caso venha a ser confirmada a condenação ora impugnada, a coima deverá ser suspensa ao abrigo do Artigo 20.º-A da Lei 50/2006, …

Foi comunicado a este Tribunal de Recurso, o trânsito do despacho proferido em primeira instância que julgou prescrito o procedimento contraordenacional pela prática da contraordenação p. e p. pelos 49.º e alínea e) do n.º 3 do artigo 67º do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de setembro e, em consequência, declarou o mesmo extinto quanto ao aludido ilícito.

Âmbito do Recurso

No caso em apreço são questões a resolver:

- A aplicabilidade do disposto no n.º 1 do art.º 5.º do DL 178/2006 à situação dos autos;

- A suspensão da coima.


*

II. Sentença recorrida (Transcrita na parte ora relevante)





III. Apreciando e decidindo

Insurge-se a recorrente contra a aplicabilidade do disposto no n.º 1 do art.º 5.º do DL. n.º 178/2006 à situação dos autos, alegando, subsidiariamente, que a coima em que foi condenada deveria ter sido suspensa na sua execução.
Apreciemos.

1. Aplicabilidade do disposto no n.º 1 do art.º 5.º do DL. n.º 178/2006 à situação dos autos

No entender do recorrente, a conduta da arguida não preencheu a tipicidade objetiva da contraordenação grave pela qual foi condenada, uma vez que:

- O art.º 5.º do DL n.º 178/2006 não é aplicável à exportação de resíduos;

- O n.º 4 do referido art.º 5.º atribui a responsabilidade pela gestão de resíduos ao destinatário nacional, não permitindo, então, a interpretação de responsabilizar o exportador nacional;

- (Ainda que assim não se entendesse), a transferência dos resíduos para os comerciantes (brokers) transferiu a responsabilidade pelo seu tratamento, para novo detentor, como decorre dos n.ºs 5 e 6 do citado art.º 5.º.

- Tratando-se de movimentos transfronteiriços de resíduos da lista verde (não perigosos) para valorização, como aqui sucede, as normas aplicáveis (Artigos 1.º, n.º 2, 3.º, n.º 2 e 18.º do Regulamento 1013/2006 e 9.º do DL 45/2008) não exigem a apresentação de quaisquer «licenças», como parte integrante dos documentos de acompanhamento dos resíduos transferidos.

Conclui que a sentença recorrida, ao condenar a arguida na coima de 6.000,00 € pela prática da contraordenação ambiental grave p. e p. pelos Artigos 5.º e 67.º, n.º 2, al. a) do DL 178/2006, violou as normas legais atrás referidas, pelo que deve ser revogada.

Vejamos.

Dispõe o referido art.º 5.º do DL 178/2006 que:

«A responsabilidade pela gestão dos resíduos, incluindo os respectivos custos, cabe ao produtor inicial dos resíduos, sem prejuízo de poder ser imputada, na totalidade ou em parte, ao produtor do produto que deu origem aos resíduos e partilhada pelos distribuidores desse produto se tal decorrer de legislação específica aplicável.

(…)

4 - Quando os resíduos tenham proveniência externa, a sua gestão cabe ao responsável pela sua introdução em território nacional, salvo nos casos expressamente definidos na legislação referente à transferência de resíduos.

5 - O produtor inicial dos resíduos ou o detentor devem, em conformidade com os princípios da hierarquia de gestão de resíduos e da protecção da saúde humana e do ambiente, assegurar o tratamento dos resíduos, podendo para o efeito recorrer:

a) A um comerciante ou a uma entidade que execute operações de recolha de resíduos;

b) A uma entidade licenciada que execute operações de tratamento de resíduos;

c) A uma entidade licenciada responsável por sistemas de gestão de fluxos específicos de resíduos.

6 - A responsabilidade pela gestão dos resíduos, conforme definido nos n.os 1 e 3 do presente artigo, extingue-se pela transferência para uma das entidades referidas nas alíneas b) e c) do número anterior

(…)».

Arguida é produtora dos resíduos movimentados (p. 4 da factualidade provada) sendo responsável pela sua gestão, nos termos do n.º 1 do referido art.º 5.º.

Não nos encontramos perante um caso de resíduos de proveniência externa, cuja gestão caiba ao responsável pela sua introdução em território nacional (n.º 4 do art.º 5.º).

A letra do n.º 4 do art.º 5.º não inclui a exportação de resíduos de proveniência interna.

Aliás, o DL n.º 178/2006, de 05 de setembro aprovou o regime geral da gestão de resíduos, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/12/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril, e a Diretiva n.º 91/689/CEE, do Conselho, de 12 de dezembro.

Ora, pode ler-se nos Considerandos da Diretiva n.º 2006/12/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril que:

« (…)

(2)Qualquer regulamentação em matéria de gestão dos resíduos deverá ter como objectivo essencial a protecção da saúde humana e do ambiente contra os efeitos nocivos da recolha, transporte, tratamento, armazenamento e depósito dos resíduos.

(…)

 (4) Sem prejuízo de excepções determinadas, deverá ser aplicada uma regulamentação eficaz e coerente da eliminação e da valorização dos resíduos aos bens móveis de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer».

E, no (33) Considerando do Regulamento (CE) nº 1013/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, pode ler-se que:

«Deverão ser tomadas as medidas necessárias para assegurar que, nos termos da Directiva 2006/12/CE e de outra legislação comunitária em matéria de resíduos, os resíduos transferidos dentro da Comunidade e para ela importados sejam geridos durante todo o período de transferência, incluindo a valorização ou eliminação no país de destino, sem perigo para a saúde humana e sem a utilização de processos ou métodos que possam prejudicar o ambiente. No que diz respeito às exportações para fora da Comunidade que não sejam proibidas, é necessário desenvolver esforços para assegurar que os resíduos sejam geridos de uma forma ambientalmente racional durante todo o período de transferência, incluindo a sua valorização ou eliminação no país terceiro de destino. A instalação que recebe os resíduos deverá funcionar segundo normas de protecção da saúde humana e de protecção ambiental amplamente comparáveis às estabelecidas na legislação comunitária».

Tal como se escreve no parecer do Digno Procurador Geral Adjunto:

«é intenção do legislador comunitário, e consequentemente o legislador nacional, que a legislação atinente cubra todo o processo de transferência dos resíduos, mesmo no caso de exportações de resíduos para fora da Comunidade, sendo obrigatório assegurar que os resíduos sejam geridos de uma forma ambientalmente racional durante todo o período de transferência, incluindo a sua valorização ou eliminação no país terceiro de destino».

Tudo ponderado, entendemos que, nem a letra da lei abrange, nem os elementos histórico e sistemático permitem a interpretação do recorrente no sentido de o exportador nacional deixar de ser responsável pela gestão de resíduos, quando os envia para empresas de países terceiros.

E que, esta responsabilidade, decorrente do n.º 1 do art.º 5.º, impõe-se mesmo havendo exportação de resíduos para países extracomunitários, como é a situação dos autos.

Ora, no caso que nos ocupa, os resíduos foram entregues a entidades que executam operações de recolha de resíduos (alínea a) do nº 5 do dito artigo 5º).

A arguida não apresentou licenças das empresas de destino.

Portanto, para o tratamento de resíduos a arguida não recorreu:

- A uma entidade licenciada que execute operações de tratamento de resíduos (al. b) do n.º 5 do art.º 5.º);

- A uma entidade licenciada responsável por sistemas de gestão de fluxos específicos de resíduos (al. c) do n.º 5 do art.º 5.º).

Como assim é, a responsabilidade pela gestão dos resíduos, conforme definido no n.º 1 do art.º 5.º não se extinguiu pela transferência para uma das entidades referidas nas alíneas b) e c) do n.º 5 do mesmo artigo (cf. n.º 6 do art.º 5).

Alega o recorrente que «tratando-se de movimentos transfronteiriços de resíduos da lista verde (não perigosos) para valorização, como aqui sucede, as normas aplicáveis (Artigos 1.º, n.º 2, 3.º, n.º 2 e 18.º do Regulamento 1013/2006 e 9.º do DL 45/2008) não exigem a apresentação de quaisquer «licenças», como parte integrante dos documentos de acompanhamento dos resíduos transferidos».

Não é o que está em causa nos autos, mas sim, a não apresentação de licenças pelas empresas de destino.

Logo, não merece censura a sentença recorrida na parte em que considera verificada a factualidade integradora da contraordenação prevista no art.º 67º, nº 2, al. a) do DL nº 178/2006, de 5 de setembro.

Concluímos pela improcedência da primeira das questões a decidir.


2. Suspensão da coima

No entender da recorrente, a coima deverá ser suspensa ao abrigo do Artigo 20.º-A da Lei 50/2006, pelo prazo de um ano, «já que a desnecessidade de aplicação e cumprimento de qualquer sanção acessória não é um factor impeditivo da suspensão da coima, sendo, ao invés, uma razão adicional para que se lance mão desse mecanismo, ao contrário do que foi entendido na douta sentença».

Vejamos.

Dispõe o referido art.º 20.º, no seu n.º 1 que:

«1 - Na decisão do processo de contraordenação, a autoridade administrativa pode suspender, total ou parcialmente, a aplicação da coima, quando se verifiquem as seguintes condições cumulativas:

a) Seja aplicada uma sanção acessória que imponha medidas adequadas à prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infração e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma;

b) O cumprimento da sanção acessória seja indispensável à eliminação de riscos para a saúde, segurança das pessoas e bens ou ambiente».

No caso vertente não foi aplicada à recorrente qualquer sanção acessória e como resulta da lei, a suspensão da coima só é admissível nos casos em que tenha sido aplicada à recorrente uma sanção acessória.

É certo que, como pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 22.02.2023, no processo 1422/22.1T8GRD,C1 (rel. Des. Alice Santos, e disponível in ww.dgsi.pt):

«Não obstante, o facto de a autoridade administrativa não ter aplicado à arguida qualquer sanção acessória, tal não pode ser impeditivo de, no âmbito da impugnação judicial deduzida pela arguida, o Tribunal possa e deva equacionar a aplicação de tal sanção, enquanto condição necessária para suspender a execução da coima.

».

No entanto, tal como se pode ler na sentença recorrida (aliás, nesta parte não impugnada):

«Na situação em apreço não foi aplicada qualquer sanção acessória à recorrente, nem se vislumbra, atenta a natureza da infracção em causa que existe uma sanção acessória adequada à mesma».

Como assim é, carece de fundamento legal, a pretendida suspensão da coima, improcedendo a segunda das questões a resolver, e, portanto, na sua totalidade o recurso.


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IV. DISPOSITIVO

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Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.

Custas pela arguida, fixando a taxa de justiça em 3 UC´s (art.º 57.º n.º 2 da LQCA, 513.º do CPP e tabela III anexa ao RCP).


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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra, 22.11.2023

Alexandra Guiné (relatora)

Paulo Guerra (adjunto)

Cristina Branco (adjunta)