Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/22.4PEFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
FACTOS GENÉRICOS
DIREITO DE DEFESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 02/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: RECURSO PROVIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 358.º, N.º 1 E 3, 359.º E 379.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – É nula a sentença que acolha factos derivados de uma alteração substancial, mesmo quando o tribunal os tenha comunicado como integrando alteração não substancial e o arguido não se tenha oposto à continuação do julgamento.

II – Porém, o tribunal não está legalmente impossibilitado de atender a factos ou circunstâncias que não foram objeto da acusação, desde que daí não resulte uma afectação insuportável para a defesa, como sucede quando os factos novos não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, desde que sejam, ainda assim, relevantes para a decisão.

III – A menor gravidade do crime não é factor decisivo para concluir que a alteração de factos é não substancial.

V – Os factos não concretizados no tempo e quanto às concretas circunstâncias em que ocorreram, não permitindo o exercício efectivo do direito de defesa, na vertente do exercício do contraditório, não podem ser considerados.

VI – A falta de clareza, a imprecisão, o recurso a conceitos vagos, genéricos e conclusivos, a indefinição do tempo, lugar e respetivas circunstâncias, dos factos descritos, por impedirem que o acusado dos mesmos se possa eficazmente defender, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.

VI – Tais formas de imputação têm que ser consideradas por não escritas.

Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria José Nogueira
1.ª Adjunta: Isabel Valongo
2.ª Adjunto: Jorge França


Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. … foi o arguido AA, submetido a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática, em autoria material, na forma consumada, como reincidente, de um crime de roubo, p. e p. no artigo 210.º, n.º 1 e 75.º, ambos do Código Penal.

2. Realizado o julgamento – no decurso do qual foi comunicada a alteração não substancial dos factos e, bem assim, da qualificação jurídica … - por sentença de 23.09.2022, o tribunal decidiu …

1) Absolver o arguido AA da prática de um crime de roubo p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal;

2) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de extorsão p. e p. pelo artigo 223.º n.º 1 do Código Penal, na pena de dois anos e um mês de prisão, rejeitando-se a condenação como reincidente.

3. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, extraindo as seguintes conclusões:

I. A decisão de que se recorre, salvo o devido respeito que muito é, violou as estatuições normativas contidas nos artigos 120.º, n.º 1, 121.º a contrario senso, 127.º, 129.º, 130.º, 199.º e ss, 255.º, 256.º, 356.º n.ºs 6 e 7, 358.º e 359.º, n.º 1 e 2, 374.º, n.º 2 in fine e 379.º, n.º1 b) do CPP, bem como os artigos 28.º, 29.º, 38.º, 39.º 40.º, n.º 1, n.º 2, 43.º, 58.º e 223.º do CP e 18.º, n.º 1 e n.º 2, 20.º, n.º 4, 27.º, n.ºs 1, 2, 3 a) e b), e n.º 5, 29.º, n.º 6, 32.º, n.ºs 1, 2 e 3 todos da CRP e artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa.

III. A título de questão prévia (1) a douta decisão de que se recorre contempla Alteração Substancial dos factos, que foi considerada na condenação … Esta alteração, contudo, a contrario do disposto nos artigos 358.º e 359.º do CPP, foi, erradamente comunicada ao Arguido como Alteração Não Substancial dos factos … Pelo que enferma a Sentença de nulidade nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1 b) do CPP.

IV. Na 2.ª Sessão de Audiência de Discussão e Julgamento … proferiu o MM.º Juiz do Tribunal a quo o seguinte despacho:

«Decorre da prova produzida e analisada em audiência de julgamento, que poderão resultar factos que, a serem dados como provados, constituem uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, a saber:

Logo que o arguido procurava o ofendido pelas ruas da ... e abordava-o com expressões sérias, designadamente “dá-me o dinheiro ou eu mato-te o gato.

Muitas vezes, o arguido limitava-se a dizer “dá-me o dinheiro” e o ofendido com receio pela sua integridade física, entregava-lhe a quantia que tivesse na sua posse.

Outras vezes, o arguido apenas se aproximava do ofendido, exibindo uma expressão no rosto que o aterrorizava, levando-o a que este entregasse a quantia que tivesse na sua posse.

Em todas as ocasiões, com receio que o arguido o agredisse e fizesse mal ao animal de estimação, o arguido logo lhe entregou as quantias monetárias que possuía de esmolas de cidadãos que o auxiliam.

Como tal, comunicam-se os factos à defesa, nos termos e para efeitos do art. 358.º n.º 1 do CPP. Por outro lado, o arguido vem acusado de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210.º, n.º 1 do Código Penal. Entende-se, porém, da factualidade apurada descrita na acusação, que mais facilmente integrará a prática de um eventual crime de extorsão p. e p. pelo artigo 323.º, n.º 1 do Código Penal, o que configura uma alteração da qualificação jurídica que igualmente se comunica à defesa nos termos do art. 358.º n.ºs 1 e 3 do Código Penal».

V. … ao alterar a factualidade vertida na acusação, o Tribunal a quo fez consagrar nas imputações ao Arguido factos que não são subsumíveis ao tipo de crime de roubo p. e p. pelo artigo 210.º do Código Penal, crime pelo qual o Arguido vinha acusado.

É justamente por adquirir estes novos factos para as imputações a realizar ao Arguido que o Tribunal a quo conclui que a conduta do Arguido não é prevista e punida nos termos do artigo 210.º, n.º 1 do CP.

E, consequentemente por alteração e adição destes novos factos, a conduta, no entender do Tribunal a quo passa a subsumir-se no crime de extorsão, cf. artigo 223.º.

VI. … a alteração dos factos teve como consequência a imputação ao Arguido de um crime diverso daquele por que vinha acusado. Assim se tornou perfectivo o preenchimento da primeira parte da definição legal do artigo 1.º, f) do CPP.

VII. Estes novos factos, cf. artigo 359.º, n.º 2 do CPP, não podem ser considerados em condenação no processo em que a comunicação da alteração é comunicada.

Só assim não será se, nos termos do n.º 3 do artigo 359.º do CPP

VIII. … o Tribunal comunicou ao Arguido, expressamente, que se tratava de alteração Não substancial dos factos.

IX. Ora, porquanto o Tribunal não comunicou devidamente esta alteração, não manifestaram igualmente, de forma unânime, o Ministério Público e o Arguido a sua concordância a que o julgamento prosseguisse também por aqueles novos factos. Sendo claro que o Arguido se estivesse ciente daquela alteração não substancial não daria o seu consentimento a que o julgamento continuasse com os novos factos, nem que os mesmos fossem tidos em conta numa eventual condenação.

Conclui-se, pois, que a Sentença é nula por violação do disposto no artigo 359.º n.ºs 1, 2 e 3 do CPP, cf. artigo 379.º, n.º 1 b) e que tal nulidade é insanável, pelo que deve este Venerando Tribunal declarar aquela nulidade, ordenando a remessa ao Tribunal de I Instância, para que este reabra a Audiência de Julgamento, comunique ao Arguido (e ao Ministério Público) a alteração dos factos, nos termos do artigo 359.º do CPP, a fim de que estes possam tomar, conscientemente, posição processual.

4. O Ministério Público respondeu ao recurso, pronunciando-se a final no sentido de não merecer o mesmo provimento.

Também a Senhora Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal, emitiu parecer, defendendo a total improcedência do recurso.

*

II. Fundamentação

2. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões… no caso em apreço cabe, em princípio, decidir se

(i) ocorreu alteração substancial dos factos descritos na acusação;

 (ii) não foi respeitado o princípio da subsidiariedade do direito penal;

(iii) se incorreu o tribunal em erro de julgamento e/ou em violação do in dubio pro reo;

(iv) não se mostra perfetibilizado o crime de extorsão;

(v) o arguido agiu em erro, não censurável;

(vi) a pena aplicada se revela excessiva;

(vii) se deveria ter sido substituída por trabalho a favor da comunidade.

3. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]:

A) Factos Provados

Da prova produzida e analisada em audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1) No dia 3 de Fevereiro de 2022, pelas 19h30m, o ofendido BB, conhecido por “...”, uma figura popular nas ruas da ..., estava sentado num banco do Jardim Municipal, nesta cidade, quando se lhe acercou o arguido AA, conhecido por “...”, o qual, dirigindo-se-lhe, de imediato proferiu, em tom sério e ar convicto, a seguinte ordem: “… Dá-me o dinheiro!”;

2) Atemorizado, o ofendido abriu a sua carteira, de cor preta, logo retirando todo o dinheiro que aí guardava, entregando-o ao ofendido, no montante total de € 1,30 (um euro e trinta cêntimos);

3) Os factos foram presenciados por agente da PSP CC, que, de imediato, deu voz de detenção ao arguido;

4) Ao longo desse dia, o ofendido havia angariado cerca de € 20 (vinte euros) quantia essa que se viu obrigado a ir entregando ao arguido, sempre que abordado por este, sucessivamente ao longo do dia, com as mesmas palavras referidas acima referidas ou outras do mesmo teor;

5) O arguido há já cerca de um ano vem abordando frequentemente o ofendido, na via pública, exigindo-lhe a entrega de quantias em dinheiro que o mesmo vem angariando, junto de várias pessoas que o auxiliam;

6) Procurando o ofendido pelas ruas da ... e abordando-o sempre com expressões sérias, designadamente as seguintes:

“… dá-me dinheiro ou eu espanco-te”

“… dá-me dinheiro ou eu mato-te o gato”

7) Muitas vezes o arguido limitava-se a dizer “…dá-me o dinheiro” e o ofendido, com receio pela sua integridade física, entregava-lhe a quantia que tivesse na sua posse;

8) Outra vezes o arguido apenas se aproximava do ofendido, exibindo uma expressão de rosto que o atemorizava, levando a que este lhe entregasse a quantia que tivesse na sua posse;

9) Em todas essas ocasiões, com receio de que o arguido o agredisse e fizesse mal ao animal de estimação, o ofendido logo lhe entregou as quantias monetárias que detinha e que eram provenientes de esmolas de cidadãos que o auxiliam;

10) Sendo o ofendido pessoa muito conhecida e estimada na ..., trata-se também de pessoa fisicamente débil e com situação de vida muito precária, vivendo de uma pequena pensão e da “caridade pública”;

11) O arguido agiu com o intuito concretizado de se apoderar das quantias monetárias que o ofendido dispusesse em cada momento em que o abordava, – sendo o ofendido pessoa fisicamente débil, vivendo em condições de vida muito precária e dependente da “caridade pública”, sendo estes factos patentes e notórios –, bem sabendo que tais montantes não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade do ofendido, seu legítimo proprietário;

12) O arguido sabia que ao privar o ofendido dos seus parcos proventos (vivendo este de esmolas), o colocava em difícil situação económica, não se coibindo, contudo, de atuar conforme descrito;

13) O arguido agiu livre voluntária e conscientemente, em toda a sua conduta, sabendo que a mesma era proibida e punida por lei penal;

Mais se apurou que:

14) O arguido foi já anteriormente condenado:

17) O arguido sofreu os seguintes períodos de privação da liberdade:

*

B) Factos Não Provados

*

1.Motivação da Decisão de Facto

4. Apreciação

1. No dizer do recorrente ao ter alterado os factos constantes da acusação, os quais vieram a merecer acolhimento na sentença, embora os haja comunicado como integrando uma alteração não substancial, o tribunal teria procedido a uma alteração substancial, assim, violando os artigos 358.º e 359.º do CPP, circunstância que, à luz do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 379.º do mesmo diploma, acarretaria a nulidade da sentença.

2. A assistir-lhe razão quanto à real natureza da alteração produzida nos factos, a circunstância de lhe haver sido comunicada como «não substancial» e de lhe ter sido concedido prazo para defesa, não se afigura decisiva. Com efeito, como resulta da fundamentação do acórdão do TC n.º 463/2004, de 23.06.2004 - o qual «julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 3 5, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do art.º 359.º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de, em situação em que o tribunal de julgamento comunica ao arguido estar-se prante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, quando a situação é de alteração substancial da acusação, pode o silêncio do arguido ser havido como acordo com a continuação de julgamento» -, «(…) a comunicação ao arguido de que a alteração temática do processo tem natureza de alteração não substancial quando, em boa verdade, ela tem natureza de substancial corresponde a dar-lhe conhecimento de um estatuto substantivo diferente relativo à sua posição processual de arguido e uma tal situação, estatuto esse que comporta, mesmo à face do direito infraconstitucional, uma diminuição dos seus direitos de defesa e, consequentemente, não pode deixar de considerar-se como violando o n.º 1 do art.º 32.º da CRP. Na verdade, o estatuto comunicado não exige que o julgamento apenas possa continuar se ele der o seu acordo com essa continuação e o mesmo fizerem o Ministério Público e o assistente. Por outro lado, são também diferentes as condições de que o arguido goza para poder preparar a sua defesa: enquanto no caso do art.º 358.º do CPP, ele apenas dispõe do tempo que o juiz considerar estritamente necessário, no caso do art.º 359.º do CPP, ele poderá reclamar um prazo até 10 dias.

(…)

Por outro lado, a comunicação feita pelo tribunal não poderá deixar de ser vista pelo prisma do princípio de processo penal de fair trial, ou seja, um processo leal, apanágio do processo penal de um Estado de direito (...). Assim sendo, não é de exigir que o arguido deva olhar, imediatamente, com desconfiança para a qualificação da alteração temática do processo, dado que a mesma é feita por um tribunal que deve agir com imparcialidade e independência e que está obrigado a respeitar o seu estatuto processual».

Isto para dizer que a consequência decorrente da comunicação de uma alteração não substancial, quando efetivamente se tratava de alteração substancial, ainda que o arguido não haja reagido, não a subtraí ao regime decorrente da alínea b), do n.º 1, do artigo 379.º do CPP.

3. A alteração substancial ou não substancial dos factos não deve ser confundida com a alteração da qualificação jurídica dos mesmos, nada impedindo que com base nos factos constantes da acusação/pronúncia, ou ainda dos resultantes de uma alteração não substancial, o tribunal venha a condenar por crime diverso – e mesmo mais grave -, posto que, com vista a assegurar um efetivo exercício do direito de defesa, máxime o contraditório, comunique a alteração da qualificação jurídica e, sendo o caso, a alteração não substancial dos factos, concedendo, se requerido, prazo para preparação da defesa – [cf. artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP].

3. Como é bom de ver, semelhante disciplina decorre da estrutura acusatória do processo penal, da relevância do direito de defesa, do contraditório, o que conduz a que o tribunal esteja vinculado pelo objeto do processo tal como definido na acusação/pronúncia. A vinculação temática é, pois, uma consequência do princípio da acusação. Reproduzindo as palavras do acórdão do TC n.º 226/2008, de 21.04.2008, «o problema da alteração, em fase de julgamento, dos factos descritos na acusação ou na pronúncia é um ponto de convergência e tensão entre os princípios do acusatório e do contraditório, por um lado, e os princípios da legalidade da ação penal, da verdade material e da celeridade processual, por outro. Mediante o novo regime, o legislador optou por conferir mais intensa realização ao princípio do acusatório, com possível sacrifício da verdade material e da legalidade. Factos que, se incluídos no objeto do processo, teriam como consequência a agravação da responsabilidade do arguido, mas que não constam da acusação ou da pronúncia, ficam definitivamente excluídos de perseguição penal, pelo menos quanto à sua relevância criminal específica de agravação abstrata dos limites da pena». Ao invés, o tribunal não está legalmente impossibilitado de atender a factos ou circunstâncias que não foram objeto da acusação, desde que daí não resulte uma afetação insuportável para a defesa. É o que sucede quando os factos novos não tenham como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas ainda assim sejam relevantes para a decisão.

4. Como escreve Oliveira Mendes, «A lei não fornece uma definição de alteração não substancial dos factos, no entanto, a alínea f) do artigo 1.º define o conceito de alteração substancial dos factos, estabelecendo que esta é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Assim, alteração não substancial dos factos é aquela que, consubstanciando embora uma modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» - [cf. Código de Processo Penal Comentado, 2016, Almedina, pág. 1081]. Concretizando, o que distingue a alteração substancial dos factos da alteração não substancial é que enquanto a primeira «pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», a segunda apenas «constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transforme o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para determinar a moldura penal» - [cf. o acórdão do TRC, de 10.11.2021 (proc. n.º 509/16.4GCVIS.C1)].

5. Aqui chegados urge responder: Os factos comunicados no decurso do julgamento consubstanciam uma alteração não substancial, ou, antes, substancial dos factos contantes da acusação? A acusação imputou ao recorrente um crime de roubo (p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do CP), vindo o mesmo condenado em primeira instância pela prática de um crime de extorsão (p. e p. pelo artigo 223.º, n.º 1 do CP), o qual, em função da moldura penal correspondente, se reveste de menor gravidade. Acontece que a menor gravidade do crime não é fator decisivo para contrariar uma eventual alteração substancial, pois é indispensável que, em consequência dessa alteração, não se assista a uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido.

6. Da análise comparativa entre os factos constantes da acusação pública e os que vieram a merecer acolhimento na sentença resulta a introdução (ex. novo) nesta dos segmentos que seguem: (i) «dá-me dinheiro ou eu mato-te o gato»; (ii) «Muitas vezes o arguido limitava-se a dizer “dá-me o dinheiro” e o ofendido, com receio pela sua integridade física, entregava-lhe a quantia que tivesse na sua posse»; (iii) «Outras vezes o arguido apenas se aproximava do ofendido, exibindo uma expressão de rosto que o atemorizava, levando a que este lhe entregasse a quantia que tivesse na sua posse»; (iv) «e fizesse mal ao animal de estimação», bem como a seguinte configuração do elemento subjetivo: «O arguido agiu com o intuito concretizado de se apoderar das quantias monetárias que o ofendido dispusesse em cada momento em que o abordava (…), bem sabendo que tais montantes não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade do ofendido, seu legítimo proprietário», em substituição de «O arguido ameaçou com perigo iminente para a integridade física o ofendido, de forma a colocá-lo na impossibilidade de resistir, com o intuito concretizado de se apoderar da quantia monetária que o ofendido dispunha, nesse momento (…)», como constava da acusação.

7. Exceção feita à configuração do tipo subjetivo, as demais alterações foram objeto de comunicação nos termos sobreditos (como traduzindo uma alteração não substancial dos factos).

8. Resulta, pois, que ao nível da descrição da materialidade objetiva a alteração significativa ocorreu em relação a um núcleo de factos - não referentes ao dia 3 de fevereiro de 2022 - genéricos, sem a necessária concretização no tempo e sobre as concretas circunstâncias em que ocorreram, não permitindo o exercício pleno do contraditório e, assim, um efetivo direito de defesa, não podendo, como tal, ser considerados. Neste sentido se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça, entendendo que a falta de clareza, imprecisão, o recurso a conceitos vagos, genéricos e conclusivos, a indefinição do tempo, lugar e respetivas circunstâncias, por impedirem que o acusado dos mesmos se possa eficazmente defender, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente, havendo tais formas de imputação de ser consideradas por não escritas – [cf., entre muitos outros, os acórdãos STJ, de 06.05.2004 (proc. n.º 908/04-5.ª), 06.07.2006 (proc. n.º 1924/06-5.ª), 15.12.2011 (proc. n.º 17/09.0TELSB.L1.S1), 21.02.2007 (proc. n.º 06P4341), 20.02.2019 (proc. n.º 25/17.7GEEVR.S1), 02.04.2008 (proc. n.º 07P4197)].

9. Mas, ainda que outro fosse o entendimento – e não é -, afigura-se-nos inequívoco que sem a alteração produzida dos factos constantes da acusação não seria sequer possível ponderar a, igualmente, comunicada alteração da qualificação jurídica, de modo a integrarem os mesmos o crime de extorsão, p. e p. no artigo 223.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual o ora recorrente foi condenado em primeira instância. Efetivamente o que ressuma dos factos narrados na acusação é a apropriação imediata por parte do arguido das quantias em dinheiro detidas pela vítima, e que por este lhe foram entregues em consequência de ameaças com perigo eminente para a integridade física, não lhe deixando outra escolha senão a de entregar o que foi obrigada; já não, assim, um conjunto de atos de disposição patrimonial diferidos no tempo nos quais o comportamento da vítima é indispensável para a obtenção da vantagem (do enriquecimento indevido). Nesta medida, só a feição imprimida na sentença aos factos, poderia conduzir à ponderação de uma diferente ilicitude. Elucidativo de semelhante desígnio é a introdução da ameaça dirigida ao gato (animal de estimação), o intuito de apropriação «das quantias monetárias que o ofendido dispusesse em cada momento em que o abordava» (versus, «com o intuito concretizado de se apoderar da quantia monetária que o ofendido dispunha nesse momento», nas palavras da acusação), a supressão da ameaça «com perigo iminente para a integridade física, de forma a colocá-lo na impossibilidade de resistir», conforme descrito na acusação.

10. Por conseguinte, a identidade do facto naturalístico, objeto do processo, a imagem social do acontecimento, por via das alterações introduzidas aos factos, na perspetiva deste tribunal, não poderia ser afirmada. Como escreve Frederico Isasca, in Alteração dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, pág. 143-145, «Sempre que ao pedaço individualizado de vida, trazido pela acusação, se juntem novos factos e dessa alteração resulte uma imagem ou uma valoração não idêntica àquela criada pelo acontecimento descrito na acusação, ou que ponha em causa a defesa, estamos perante alteração substancial dos factos». Significa, pois, que caso não fosse de considerar não escrito o núcleo de factos acima referido, as alterações introduzidas (aos factos) cairiam na alçada do artigo 359.º do CPP, conduzindo à nulidade da sentença, prevenida na alínea b), do n.º 1, do artigo 379.º do CPP.

11. Contudo, abstraindo do núcleo de factos, pelas razões já expostas, tidos por não escritos, atentando nos demais acolhidos na sentença, não merece, a mesma, crítica enquanto considerou não integrarem estes o crime de roubo, desde logo por não ter o arguido usado de violência, nem haver colocado a vítima na impossibilidade de resistir, tão pouco recorrido à ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física. Por outro lado, o acervo factual (na parte não prejudicada) dado por assente, não é suscetível de perfetibilizar o crime de extorsão, pois comprometido resulta o constrangimento por meio de violência (contra uma pessoa ou diretamente contra uma coisa) ou de ameaça com mal importante (traduzida na cominação de um mal futuro). Caso tivesse ocorrido violência contra a pessoa do visado – sendo a ordem, «em tom sério e ar convicto», traduzida em «Dá-me o dinheiro!» manifestamente insuficiente para a consubstanciar –, a entrega imediata, no caso, do dinheiro faria incorrer o arguido no crime de roubo e não no de extorsão por não se verificar a disposição patrimonial, elemento típico do artigo 223.º do Código Penal.

12. Face ao que se deixa exposto, só resta decidir no sentido da absolvição do arguido/recorrente, resultando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal, na procedência do recurso, em absolver o arguido AA da prática de um crime de extorsão, p. e p. no artigo 223.º, n.º 1, do Código Penal.

Sem custas.

Encontrando-se o arguido AA, além do mais, sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação mediante vigilância eletrónica, determina-se a comunicação aos serviços competentes da DGRSSP, da extinção da medida de coação (artigo 214.º, n.º 1, alínea d) do CPP), com vista à imediata cessação da sua execução.

Texto processado e revisto pela relatora.