Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10/17.9T9SPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO DO ASSISTENTE
Data do Acordão: 11/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JI CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º E 287.º DO CPP
Sumário: I - O requerimento para abertura da instrução do assistente deve estruturar-se como uma acusação, dele tendo que constar, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido e as normas legais aplicáveis.

II - Quando o requerimento não contém o quis, o quid, o ubi, o quibus auxiliis, o quomodo e o quando, definidores da indispensável narração – estando, consequentemente, ferido de nulidade –, a instrução carece de objecto, o que – independentemente de determinar ou não, a sua inexistência jurídica conduz à inadmissibilidade legal desta fase do processo.

Decisão Texto Integral:










Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO

No processo nº 10/17.9T9SPS que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Instrução Criminal de Viseu – Juiz 1, em que é ofendido A... e denunciado, B... , a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu, em 16 de Fevereiro de 2017, despacho de arquivamento dos autos por ter entendido estar decorrido o prazo de prescrição do procedimento criminal e ser, este, em consequência, legalmente inadmissível.

Em 15 de Março de 2017 o ofendido requereu a constituição como assistente e a abertura da instrução.

Por despacho 20 de Março de 2017 foi o ofendido admitido a intervir nos autos como assistente.

Por despacho de 31 de Março de 2017 a Mma. Juíza de instrução proferiu despacho de rejeição do requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, por inadmissibilidade legal da referida fase processual.

                                                                       *

Inconformado com a decisão, recorreu o assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

I – O recorrente no RAI faz uma narração sintética dos factos (indicando o tempo, o modo e o lugar). Inclusivamente o recorrente nos artigos 3.º a 20.º do RAI faz uma descrição fáctica equivalente a uma acusação, com a indicação dos factos que o mesmo considera indiciados, integradores tanto dos elementos objectivos como dos elementos subjectivos do crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º do CP.

II – O Tribunal a quo, fez uma incorrecta interpretação dos artºs 287º nº 1, nº 2 e nº 3 e artº 283° nº 3, todos do Código de Processo Penal. Violando duplamente os artºs 287º nº 1, nº 2 e nº 3 artº 283º nº 3, todos do Código de Processo Penal e o artº nº 20 nº 1 da Constituição da República Portuguesa, o que determina a invalidade daquela decisão e a sua substituição por outra que admita o requerimento de abertura de instrução e declare aberta a instrução.

III – No artigo 9.º do RAI, alega-se, que o assistente tinha parcos conhecimentos contabilísticos e financeiros, e, como é do conhecimento geral, facilmente o poderia enganar nas contas correntes das vendas, bem como nos elementos contabilísticos, ou seja, aproveitou-se da sua formação profissional, para assim buscar benefícios à custa de quem nada percebia de contabilidade. Sendo certo que o recorrente descreveu as datas dos factos, e montantes, todos os factos constam no RAI ou nos elementos de prova, sendo certo que existem valores que só poderão ser apurados em sede de inquérito ou julgamento, após ser o arguido e as testemunhas arrolas confrontadas com os documentos junto ao processo, concretamente os documentos assinados pelo arguido e os extractos de conta junto aos autos. Resultando ainda, do artigo 3.º do RAI que os factos delituosos situam-se entre os anos 1994 a 2007, prolongando-se o facto delituoso até 31/07/2009, conforme é aludido nos artigos 18.º e 22.º do RAI.

IV – Mais considera o recorrente, a matéria objecto do requerimento, era e só podia ser referente ao crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º do CP, colocando-se o problema se é um acto continuado, ou não, e por força disso, se considera o prazo de prescrição do procedimento criminal ultrapassado, logo, nunca poderia o Tribunal a quo alargar o âmbito do objecto.

V – A matéria objecto do requerimento, era e só podia ser referente ao crime de burla qualificada p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º do CP, colocando-se o problema se é um acto continuado, ou não, e por força disso, se considera o prazo de prescrição do procedimento criminal ultrapassado, logo, nunca poderia o Tribunal a quo alargar o âmbito do objecto.

VI – O requerimento de instrução elaborado pela recorrente cumpre todas as exigências legais. O requerimento de abertura de instrução não obedece a formalidades especiais. O requerimento de instrução, contém, por força do artigo 287.º, n.º 2, do CPP: as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação; a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o Mmo Juiz leve a cabo; a indicação dos meios de prova; a indicação dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar. Apesar de tal não ser legalmente exigível, o referido requerimento apresentou uma descrição clara, ordenada e cabal dos factos imputados ao arguido. Apresenta provas e requer a realização de actos instrutórios de forma a comprovar-se os factos nanados. Constam assim do RAI todos os elementos necessários, quer os factos quer os fundamentos para que aos arguidos possa vir a ser aplicada uma pena (artº 283º nº 2 al. b), dele resultando bem claro o objecto da Instrução, bem como a delimitação das concretas diligências de prova a levar a cabo. O Tribunal a quo, fez uma incorrecta interpretação dos artºs 287º nº 1 nº 2 e nº 3 e artº 283º nº 3, todos de Código de Processo Penal. Violando duplamente os artºs 287º nº 1 nº 2 e nº 3 e artº 283º nº 3, todos de Código de Processo Penal e o artº 20º nº 1 da Constituição da Republica Portuguesa.

Em suma, o Tribunal a quo, fez uma incorrecta interpretação dos artºs 287º nº 1 nº 2 e nº 3 e artº 283º nº 3, todos de Código de Processo Penal. Violando duplamente os artºs 287º nº 1 nº 2 e nº 3 e artº 283º nº 3, todos de Código de Processo Penal e o artº 20º nº 1 da Constituição da Republica Portuguesa. O que determina a invalidade daquela decisão e a sua substituição por outra que admita o requerimento de abertura de instrução e declare aberta a instrução.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, SENDO ADMITIDO O REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO DO RECORRENTE E DECLARADA ABERTA A INSTRUÇÃO, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA.

                                                                         *

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

             1 – O assistente teria necessariamente que narrar factos integradores tanto dos elementos objectivos do crime, como dos seus elementos subjectivos e que justificariam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, imputando-os directamente ao agente do crime.

2 – Não constando do requerimento de abertura de instrução factos que, por preencherem os elementos objectivos e subjectivos dos ilícitos criminais, pudessem fundamentar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança ao arguido, aquele requerimento só poderia ter sido desde logo rejeitado, como o foi, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287º, nº 3, posto que não poderia a Sr.ª Juíza de instrução suprir a omissão da imputação dos factos tipificadores dos aludidos ilícitos, sendo certo que também não havia lugar ao convite ao aperfeiçoamento, conforme foi bem decidido.

Assim, mantendo-se a douta decisão que rejeitou liminarmente o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente, farão, Vossas Excelências, como sempre, e mais uma vez, JUSTIÇA.


*

            Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto acompanhou a resposta do Ministério Público realçando que a instrução não é um segundo inquérito, sendo indispensável a descrição de um crime no requerimento de abertura da instrução, não bastando a mera notícia do mesmo ou a sua imputação em abstracto pelo que, se nenhum crime é descrito, não é possível comprovar a decisão de acusar ou arquivar, o que determina a inadmissibilidade legal da instrução, e concluiu pelo não provimento do recurso.

*

            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

 

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


*

            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o requerimento para abertura da instrução padece ou não, de deficiência que determine a sua rejeição, como foi decidido. 


*

Para a resolução da questão importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

“ (…).

O tribunal é competente.


***

Há uma questão que cumpre apreciar:

Veio o assistente requerer a abertura de instrução, por discordar do despacho de arquivamento proferido pela Digna Procurador Adjunta, pretendendo que a final seja proferido despacho de pronúncia do arguido por um crime de burla qualificada, p.p. artigo 30, 217 e 218 do CP e um crime de fraude fiscal, p.p. artigo 103, nº1, al.a) do RGIT.

Ora, de acordo com o art.º 287º, n.º 2 do CPP:

“ (...)

2 – O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação

(...), sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º.

Por seu turno, o art.º 283º, nº 3 do mesmo diploma diz-nos, sob pena de nulidade, quais os elementos que uma acusação deve conter, onde consta, na al. b) que a acusação deve narrar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

A alínea c) do citado artigo 283º, n.º1 refere que a acusação deve conter as disposições legais aplicáveis.

Finalmente há, ainda, que ter em conta o artigo 303º do mesmo diploma, que vincula o Juiz aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, estipulando o n.º 3 desse artigo que uma alteração substancial do requerimento de abertura de instrução não pode ser tomada em conta pelo Tribunal para o efeito de pronúncia.

Da conjugação destes citados artigos conclui-se que o requerimento do assistente para a abertura de instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, devendo constar do mesmo a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (ou seja os elementos objetivos e subjetivos do tipo) e a indicação das disposições legais aplicáveis (art.º 283º, nº 3, al. b) ex vi do art.º 287º, nº 2 do mesmo diploma).

Logo, a falta de narração, por parte do assistente, requerente da instrução, dos factos integradores do crime imputado, constituiu uma nulidade (artigo 283, nº3 do CPP), o que é facilmente compreensível, uma vez que o requerimento de abertura de instrução, pelo assistente, no caso de arquivamento por parte do Ministério Público, fixa o objeto do processo ( art.º 303º e 309 do CPP).

Tal mais não é de que uma decorrência do princípio do acusatório consagrado no art.º 32º, nº 5 da CRP.

Quando os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não integram, só por si, qualquer tipo de ilícito, a inclusão de outros no despacho de pronúncia que integram um tipo de ilícito não pode deixar de ser vista como uma alteração substancial dos factos (art.º 1º, al. f) do CPP).

Já o ac. da RC de 2/11/99 estipulava que:

“ No requerimento para abertura de instrução, caso não tenha sido deduzida acusação, devem constar os factos concretos a averiguar através dos quais se possam retirar os elementos objectivos e subjectivos do crime”.

E no ac. da RL de 11 de Outubro de 2001, in CJ , t. IV, pág. 141, escrevia-se: “(...), estando em causa , como se disse, uma peça processual equiparável à acusação, um convite por

parte do Juiz, à sua reformulação ( por forma a descrever com suficiência e clareza factos que consubstanciam acusação), para além de exorbitar a comprovação judicial objecto da instrução referido no art. 286º do CPP – e bem assim os correspondentes poderes do Juiz – envolveria de alguma forma “orientação” judicial que, em certa medida, poderia reconduzir-se a procedimento próprio de um processo de tipo inquisitório, banido desde há muito da nossa legislação”.

E mais recentemente escreveu-se no ac. da RC de 10.7.2014 (disponível na base de dados

do IGFEJ): “Os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa do arguido impõem ao assistente que requeira a abertura da instrução determinados deveres, entre eles, o de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico-penal lesado pela descrita conduta proibida”.

Escrevendo-se mais à frente no mesmo acórdão : “pois que é essencial que o arguido tenha um correcto conhecimento do que realmente lhe vem imputado, o que passa pela concretização precisa e concisa quer dos factos – objectivos e subjectivos conformadores do ilícito típico em causa – quer do direito, o que o requerimento, manifestamente, não satisfaz, sendo omisso, designadamente no que concerne à imputação dos elementos intelectual e volitivo do dolo, traduzidos, respectivamente na representação ou previsão pelo agente do facto ilícito típico com todos os seus elementos integrantes, bem como na consciência de que esse facto é censurável e na vontade de realização do mesmo. É que não existem presunções de dolo e, assim sendo, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir de circunstâncias externas da acção concreta. Os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa impõem ao assistente que requeira a abertura da instrução, entre outros, o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico – penal lesado pela conduta proibida”.

E no ac. de 25.6.2014, da mesma relação disponível igualmente na base de dados do IGFEJ escreve-se que:

“A exigência legal de o requerimento para abertura da instrução conter a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se tanto aos elementos objectivos como subjectivos do crime imputado, porquanto não existe crime/responsabilidade penal sem que uns e outros se mostrem preenchidos”.

De todo o exposto temos de concluir que quando o requerimento do assistente para a abertura de instrução não narra os factos, nomeadamente os elementos objetivos e subjetivos do tipo que integram um crime, não pode haver pronúncia, sob pena de violação dos artigos 303º, 283º, nº 3 do CPP e 32 da CRP, ou seja, sob pena de violação dos direitos de defesa do arguido. De facto, a pronunciar-se o arguido por factos que não constam do requerimento de abertura de instrução e que importam uma alteração substancial dos mesmos, tal configuraria uma nulidade, prevista no art.º 309º, nº1 do CPP.

Ora, uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido, sem que lhe fossem acrescentados os elementos do tipo é uma instrução que a lei não pode admitir o mesmo acontecendo com uma instrução que não dispõe da indicação das normas legais violadas. Assim, não faz qualquer sentido admitir uma instrução que, desde o início, está condenada ao insucesso, nem o Tribunal o pode fazer sob pena de violação grosseira dos direitos dos arguidos.

De acordo com a lei, nomeadamente de acordo com os já citados artigos 287º, 283º e 303º do CPP, uma instrução que não contém factos através dos quais se possam retirar os elementos objetivos e subjetivos do crime é legalmente inadmissível e como tal deve ser rejeitada, e isto, nos termos do art.º 287º, nº3 do CPP, além de constituir uma nulidade prevista no art.º 283, nº 3 ex vi do art.º 287, nº 2 do CPP.

Sendo o requerimento para a abertura de instrução nulo por falta de objeto e legalmente inadmissível, nos termos por nós apreciados, o mesmo tem de ser obrigatoriamente rejeitado, não sendo admissível a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento, sob pena de violação dos citados artigos 287, nº 3 e 283º, nº 3 do CPP.

No caso dos autos, o assistente, no requerimento de abertura de instrução limita-se a alegar os motivos pelos quais diz discordar do despacho do Ministério Público, acrescentando alguns factos tais como:

- Que o denunciado convenceu o assistente a tratar da sua contabilidade com o argumento de que tinha larga experiência (não vislumbrando o Tribunal qualquer astúcia nesta descrição;

- Que o mesmo teve a intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo;

- O denunciado apropriou-se de valores de vendas de veículos (não descrevendo quais valores), sonegou elementos contabilísticos, fez transferências para contas suas (não descrevendo nem datas nem montantes), dispondo das mesmas como se fossem suas.

Ora, tais factos manifestamente são insuficientes para permitir a pronúncia do arguido pelo crime em causa, faltando, inclusive parte dos elementos do tipo objetivo e subjetivo do tipo de burla.

A factualidade alegada é conclusiva e insuficiente para que alguém possa ser condenado.

O assistente não descreve o modo de atuação do suspeito, não concretiza os factos, não esclarecendo o contexto em que os mesmos ocorreram, nomeadamente tal requerimento é completamente omisso no que tange a valores, desconhecendo o Tribunal o motivo da qualificação da burla, nomeadamente se é qualificada pelo valor, o qual se desconhece.

Já no que tange ao crime de fraude fiscal o RAI é completamente omisso no que tange aos elementos do tipo.

O requerimento de abertura de instrução não contém os factos integradores dos crimes em causa.

Tal requerimento não constituiu substancialmente uma verdadeira acusação. O mesmo não imputa factos concretos ao arguido que sejam suscetíveis de constituir crime, nomeadamente não descreve os elementos do tipo.

A matéria factual constante do requerimento de abertura de instrução é manifestamente insuficiente para que o denunciado possa ser pronunciado, não podendo este Tribunal, como já vimos – mesmo que durante as diligências de instrução concluísse pela existência de indícios da prática dos factos denunciados-pronunciar o arguido por esses factos, na medida em que tal consubstanciaria uma nulidade.

Assim sendo, temos de concluir que o requerimento da assistente, ao não conter todos os elementos dos tipos pelos quais se pretende a pronúncia do suspeito é legalmente inadmissível e, como tal, só pode conduzir à rejeição do respetivo requerimento.

Pelo exposto, nos termos do art.º 287º, nº 3 do CPP rejeita-se o requerimento de abertura de instrução.

Custas pelo assistente, requerente da instrução, fixando-se a taxa de justiça no mínimo.

Notifique.

(…)”.


*

            Por sua vez, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo recorrente tem o seguinte teor:

            “ (…).

            II – DA ABERTURA DE INSTRUÇÃO

            2º Os presentes autos foram arquivados, porquanto os factos denunciados são susceptíveis de consubstanciar, em abstracto, a prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º, n.º 1 do Código Penal e um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º, n.º 1 do RGIT.

            3º Uma vez que a queixa foi apresentada em 09/02/2017, sendo que, do teor da mesma, os factos delituosos situam-se entre os anos 1994 e 2006 no que concerne a alegada fraude fiscal e entre os anos 2006 e 2007 no que concerne a eventual abuso de confiança.

4º Pelo que a Senhora Procuradora, considerou que os crimes já se encontravam prescritos, uma vez que, o prazo de prescrição do procedimento criminal, dos referidos crimes, é de 5 anos, tendo o último dos crimes prescrito em 10/09/2012.

5º Salvo o devido respeito discordamos em absoluto de tal decisão, uma vez que o denunciante considera que os factos denunciados são susceptíveis de consubstanciar, em abstrato, a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º e 218º do C.P.

III – DO PREENCHIMENTO DOS ELEMENTOS DO CRIME DE BURLA

6.º Os elementos do crime de burla, previstos no artigo 217º, do CP, são:

a) o uso de erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocado;

b) para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiros, prejuízo patrimonial;

c) intenção de obter para si ou para terceiros um enriquecimento ilegítimo, LEALHENRIQUES/SIMAS SANTOS in "Código Penal", 2.ª edição, volume II, Rei dos Livros, 1997, p. 537.

7º Tal engenho astucioso está inequivocamente demonstrado nos presentes autos.

8º Não podem restar dúvidas que o denunciado, ao convencer o assistente, que teria que ser ele a tratar de toda a contabilidade, bem como receber e movimentar todos os dinheiros provenientes das vendas de automóveis, com o argumento, de possuir um gabinete de contabilidade, e, por isso tinha larga experiência em lidar com documentos contabilísticos, bem como, movimentos monetários, agiu com intenção de enganar o assistente.

9º De facto, com esta conduta o arguido sabia que estava a frustrar, astuciosamente, o crédito do assistente, na medida em que sabendo que este tinha parcos conhecimentos contabilísticos e financeiros, facilmente o poderia enganar nas contas correntes das vendas, bem como nos elementos contabilísticos.

10º Na verdade, o arguido com destreza pretendeu enganar e surpreender a boa fé do denunciante, praticando actos que causaram prejuízo no património do assistente.

11º Sendo certo, que o arguido ao praticar astuciosamente os referidos actos, teve a intenção de obter, para si, enriquecimento ilegítimo.

12º O comportamento do arguido revela uma conduta desleal inadmissível no comércio jurídico, nomeadamente nas relações entre os sócios, diminuindo o património do assistente, violadora dos ditames da boa fé e que consubstancia "o desvalor característico do ilícito de burla, integrando nessa medida, a expressão acabada do conteúdo de previsão do artigo 217º", Almeida Costa in "Comentários Conimbricense do Código Penal", Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pag. 300.

13º Pelo exposto não restam dúvidas que o arguido praticou o crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º e 218º do C.P.,

Aliás,

            14º Conforme resulta desde logo, dos elementos probatórios que constam dos autos. Com efeito, o arguido, aproveitando a relação de confiança e amizade que tinha com o denunciante, apropriou-se indevidamente de valores de vendas de veículos, sonegou documentos contabilísticos, fez transferências bancárias para contas do arguido, ou de sociedades do arguido e empréstimos bancários em nome da sociedade, sem conhecimento do assistente, fazendo suas as quantias referidas e integrou-as no seu património, delas dispondo como se fosse dono das mesmas.

IV – DO CRIME CONTINUADO

15º Entende o assistente, que o crime, a existir, é um crime continuado e por isso não deverá ser declarado prescrito.

16º O conceito legal de crime continuado vem previsto no n.º 2 do art. 30º do Código Penal que dispõe então o seguinte:         

«Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente.»

17º Para existir crime continuado, temos de estar perante «realizações plúrimas» que por sua vez assentam em várias resoluções criminosas.

18º Não restam quaisquer dúvidas que o arguido ao não levar as viaturas vendidas às contas da empresa e à respectiva contabilidade, bem como sonegar elementos contabilísticos, bem como ainda fazer transferências bancárias para contas existentes em seu nome e contraído empréstimos, pelo menos até 31/07/2009, retira-se desses actos, que há uma fragmentação resultante, quer da pluralidade de resoluções quer das diversas condutas criminosas, admitindo-se a unificação dessas diversas condutas, originando um crime típico individual.

19º Segundo o entendimento de «CAVALEIRO DA FERREIRA, afirma que o crime continuado é condicionado na estatuição actual, não só através da exigência de uma violação plúrima, mas principalmente pela necessidade de uma violação plúrima do «mesmo» tipo de crime ou de «vários» tipos de crime, que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico, ou na expressão utilizada pelo ilustre autor que possuam «relações de parentesco», não restando, salvo melhor opinião, que o arguido cometeu o crime de burla, violando assim o património do assistente, factos que foram praticados de forma homogénea.

20º A conduta do arguido teve como base a inexperiência do assistente, quer em termos financeiros, quer em termos contabilísticos, tendo por isso, o arguido uma oportunidade favorável à prática do crime, circunstâncias essas que o levou a praticar continuamente o crime de burla.

V – PRAZO DE PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL

21º Sendo o crime consumado de burla qualificada em questão nos autos punível, nos termos do art.º 218º, n.º 1, C.P., com pena de prisão até cinco anos, o prazo normal da prescrição do respectivo procedimento penal é de dez anos, a contar desde o dia da prática do último acto, nos termos dos artigos 118º, n.º 1. al. b) e 119º, n.º 2, al. b).

22º Considerando o assistente, com o devido respeito, que estamos perante um crime continuado de burla qualificada, nos termos dos artigos 30º/2, 217º e 218º, todos do C.P., e, atendendo que nos termos do artigo 119º, n.º 2, al. b) do C.P., o prazo de prescrição só corre desde o dia da prática do último acto, considerando que o último acto praticado pelo arguido, foi em 31/07/2009, data em que entregou o modelo de IES referente ao ano de 2008, conforme Doc. 5 que se encontra junto aos autos, e, sendo o prazo de prescrição do procedimento criminal de dez anos, nos termos do artigo 118º, n.º 1, al. b), o prazo de prescrição do procedimento criminal só termina em 31/07/2019, pelo que o assistente ainda estava em tempo de quando da queixa crime.

23º Pelo exposto tudo indica que o arguido terá cometido um crime continuado de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 30º/2, 217º e 218º todos o C.P., encontrando-se o assistente em tempo para prosseguir com o procedimento criminal, nos termos dos artigos 118º, n.º 1, al. b) e 119º, n.º 2, al. b) do C.P.

Termos em que e nos demais de direito requer a V. Exa:

(…)

II – Seja declarada a abertura de Instrução e, em consequência, proferido despacho de pronúncia do participado pela prática do crime de burla qualificado.

(…)”.


*

1. A instrução é uma fase intermédia e facultativa do processo comum, que tem como único objecto a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1, do C. Processo Penal). In casu, tendo sido requerida pelo assistente, visaria a comprovação judicial da decisão que ordenou o arquivamento do inquérito [por procedimento não dependente de acusação particular].

Esta comprovação judicial é feita por intermédio da conjugação e ponderação dos meios de prova produzidos – em sede de inquérito e decurso da própria instrução – em ordem a ajuizar-se da existência ou não, de indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança sendo, a final, formalmente explicitada na decisão instrutória. Nesta decorrência, dispõe o art. 308º, nº 1 do C. Processo Penal – código a que pertencem todas as disposições legais citadas sem menção de origem – que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. E consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do art. 283º, aplicável ex vi, nº 2 do art. 308º).

O presente recurso não tem, no entanto, por objecto, a questão da suficiência ou insuficiência dos indícios mas uma outra, que lhe é prévia, que é a de saber quais os requisitos essenciais que deve observar o requerimento para abertura de instrução e as consequências da sua inobservância.

2. Dispõe o art. 287º do C. Processo Penal, no seu nº 2:

O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º. Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.

Embora não esteja sujeito a forma específica, o requerimento para abertura da instrução deve conter sempre, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância quanto à acusação ou não acusação. E no que especialmente respeita ao requerimento apresentado pelo assistente, a lei impõe ainda que dele constem as especificações previstas nas als. b) e c) do nº 2 do art. 283º.

Assim, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente – que se destina, como vimos, a obter a comprovação judicial da decisão do Ministério Público em se abster de acusar em procedimento por crime público ou semi-público – deve obrigatoriamente conter, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e ainda, a indicação das disposições legais aplicáveis

Vale isto dizer que nos segmentos da narração dos factos e da indicação das disposições legais aplicáveis, o requerimento de abertura de instrução do assistente deve estruturar-se, substancialmente, como uma verdadeira acusação, como uma acusação alternativa à que, na perspectiva do requerente, foi, mas não devia ter sido, omitida pelo Ministério Público.

A justificação desta exigência é fácil de fazer. O objecto do processo é definido, brevitatis causa, pela acusação que nele tenha sido deduzida e portanto, pelos concretos factos imputados ao arguido (cfr. art. 339º, nº 4). A estrutura acusatória do processo penal e a salvaguarda das garantias de defesa do arguido impõem a definição do thema decidendum e a sua tendencial imutabilidade.

Se o Ministério Público se absteve de acusar por crime público ou semi-público e o assistente pretende, ao requerer a instrução, que o arguido seja levado a julgamento, será o respectivo requerimento a definir o objecto da instrução e portanto, a balizar não só o âmbito da investigação a levar a efeito pelo juiz de instrução como o da própria decisão instrutória. E tanto o juiz de instrução está subordinado à vinculação temática definida pelo requerimento de abertura de instrução, enquanto acusação alternativa, que a lei do processo determina a nulidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento (art. 309º, nº 1).

Em suma, temos como inquestionável que o requerimento para abertura da instrução do assistente se deve estruturar como uma acusação, dele tendo que constar, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido e as normas legais aplicáveis.

3. Quais as consequências de o requerimento para abertura da instrução do assistente não constituir, substancialmente, uma acusação, por nele ter sido omitida, além do mais, a narração dos factos?

Quando o requerimento não contém o quis, o quid, o ubi, o quibus auxiliis, o quomodo e o quando, definidores da indispensável narração – estando, consequentemente, ferido de nulidade –, a instrução carece de objecto, o que – independentemente de determinar ou não, a sua inexistência jurídica (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Verbo, 2000, pág. 151) – conduz à inadmissibilidade legal desta fase do processo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 737).

Ora, a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento (art. 287º, nº 3).

4. Revertendo para a questão sub judice, da leitura do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e ora recorrente resulta que nada há a censurar ao despacho recorrido. Explicando.

Os parágrafos 2º a 5º do dito requerimento são irrelevantes para a problemática de que cuidamos, e o parágrafo 6º limita-se à enunciação do que o recorrente entende serem os elementos típicos do crime de burla.

No parágrafo 7º o recorrente afirma, conclusivamente, que o engenho astucioso está inequivocamente demonstrado nos autos e, ao que parece, pretende concretizá-lo nos parágrafos 8º a 11º onde consta que o denunciado o convenceu que teria que ser ele a tratar de toda a contabilidade e a receber e movimentar todos os dinheiros provenientes das vendas de automóveis, por possuir um gabinete de contabilidade e estar habituado a lidar com documentos e com dinheiro, tudo com intenção de o enganar, frustrando astuciosamente o seu crédito, enganando-o nas contas correntes e nos elementos contabilísticos, causando-lhe prejuízo e visando obter um enriquecimento ilegítimo.

Vejamos então.

São elementos constitutivos do crime de burla (art. 217º, nº 1 do C. Penal):

[Tipo objectivo]

- Que o agente determine outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a terceiro, prejuízo patrimonial;

- Que esta determinação seja causada por erro ou engano sobre factos que o agente, astuciosamente, provocou;

[Tipo subjectivo]

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade do agente actuar de forma fraudulenta, com consciência da sua censurabilidade;

- O dolo específico, a intenção de o agente obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, o animus lucri faciendi

Assim, a burla, que tutela o bem jurídico património – entendido numa concepção jurídico-económica – é um crime comum – pode ter por agente qualquer pessoa – um crime de dano – a sua consumação só se verifica com a ocorrência de um prejuízo – e um crime de execução vinculada – a lesão do bem jurídico que tutela tem que ocorrer em consequência da específica forma de actuar prevista no tipo ou seja, a utilização pelo agente de um meio enganoso, com vista é indução em erro do ofendido, erro que, por sua vez, o determina à prática do acto danoso.

O preenchimento do tipo objectivo depende, além do mais, da verificação de um duplo nexo de causalidade: a conduta enganatória tem que ser a causa do erro de outrem; e este erro tem que ser a causa da disposição patrimonial causadora do prejuízo (cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, Scientia Juridica, Ano 1970, pág. 301 e A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1999, Coimbra Editora, pág. 293 e Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, Volume III, 4ª Edição, 2016, Rei dos Livros, pág. 930).

Sendo a burla é um crime de execução vinculada que só se verifica quando o agente faz incorrer o burlado em erro sobre factos que astuciosamente provocou, e quando é este erro que, por sua vez, faz o burlado praticar actos que lhe causam, ou causam a terceiro, prejuízo patrimonial, não basta a alegação em abstracto, do erro ou engano astuciosamente provocado, nem a alegação conclusiva da causação de prejuízo patrimonial, para que se tenha por factualmente preenchido o respectivo tipo objectivo. E, no entanto, foi isto o que o assistente fez no requerimento para abertura da instrução.

Note-se que o recorrente parte do princípio de que os factos que denunciou e por cuja pronúncia requereu a abertura da instrução, devem ser qualificados como burla qualificada e não, como abuso de confiança e fraude fiscal, como consta do despacho de arquivamento do inquérito.

Sucede que o recorrente, no requerimento, não alegou um único facto, um único acontecimento da vida susceptível de prova, demonstrativo de ter praticado um qualquer acto lesivo do seu património, por erro ou engano manhosamente provocado pelo denunciado. Dizer que este o convenceu a ser ele a tratar da contabilidade e da movimentação do dinheiro proveniente do negócio dos automóveis – sem referir no requerimento, o que mencionou na denúncia isto é, que ambos tinham constituído uma sociedade com esse objecto social – porque possuía um gabinete de contabilidade e tinha larga experiência nestas operações, não preenche, sem mais, aquele elemento do tipo, tanto mais que se depreende, da denúncia e do requerimento, que o denunciado tem o dito gabinete e possui conhecimentos de contabilidade.

Na verdade, o que perpassa do teor do requerimento e da sua conjugação com a denúncia é algo diferente e que tem a ver com as diferentes tarefas que cabiam a cada sócio no âmbito da actividade da sociedade – também apenas incidentalmente abordadas na denúncia e não mencionadas no requerimento, ao assistente o sector comercial, ao denunciado, o sector contabilístico e financeiro – o denunciado, até 2007 – circunstância temporal que pode relevar-se, atento o teor do 3º parágrafo do requerimento –, aproveitando tal tarefa, desviou o dinheiro proveniente dos negócios efectuados no âmbito da actividade da sociedade.

Em tese, esta factualidade é susceptível de causar prejuízos patrimoniais mas, com esta configuração, não só o lesado não é o assistente mas a própria sociedade, como a inexistência de artifício fraudulento afasta inexoravelmente a burla e convoca o abuso de confiança

 

De qualquer modo, no requerimento para abertura da instrução o recorrente não indicou um único facto, situado no espaço, no tempo, tendo por objecto um determinado veículo e uma determinada importância, entregue ao denunciado e por este, apropriada, apto ao preenchimento do tipo do abuso de confiança.

É verdade que fez constar da denúncia uma lista de viaturas que, nos anos de 1994 a 1999 e 2001 a 2006, terão sido vendidas e cujas vendas não terão sido registadas na contabilidade da sociedade, mas nem sequer esta lista consta do requerimento para abertura da instrução.  

            6. Em conclusão do que antecede:

            - No requerimento para a abertura da instrução, o assistente estava obrigado, nos termos do disposto no art. 287º, nº 2 do C. Processo Penal, a dele fazer constar, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;   

- O assistente não observou esta imposição legal, limitando-se a alegação em termos meramente conclusivos, de que o denunciado astuciosamente o enganou, devido aos seus escassos conhecimentos contabilísticos, causando-lhe prejuízo no património e por isso, praticou um crime de burla;

- A omissão apontada significa que a instrução carece de objecto e determina a sua inadmissibilidade legal que é uma das causas de rejeição do requerimento (art. 287º, nº 3).

7. Assim, fica prejudicado o conhecimento da continuação criminosa e da não verificação da prescrição.

Por outro lado, apesar de o recorrente afirmar – conclusões II e VI – que o despacho recorrido violou o disposto no art. 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, nada mais adiantou para demonstrar o alegado, sendo certo que não vemos que o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, que a norma consagra, possa ter sido violado ou, sequer comprimido, quando o assistente recorreu aos tribunais para defesa dos seus direitos.   


*

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. (arts. 515º, nº 1, b) do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


*

Coimbra, 29 de Novembro de 2017


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)