Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
473/10.3TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: COMPRA E VENDA
RELAÇÃO DE COMISSÃO
COMITENTE
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU - 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 334, 500 CC
Sumário: I – No âmbito do artº 500º do CC, a responsabilidade do comitente emerge de qualquer ato, ilícito e prejudicial, do comissário, desde que: a)realizado por conta e/ou no seu interesse; b) exista uma relação de subordinação ou dependência deste para com aquele; c) a conexão entre o ato e as funções confiadas seja de molde a fazer prever, segundo as regras da causalidade adequada, a ocorrência do dano.

II –Deve assumir tal responsabilidade a sociedade que vende automóveis novos, se um seu vendedor, aceitou, numa venda, a retoma de carro usado do comprador para abater no preço, e o valor da retoma não foi depois abatido, com prejuízo para o comprador.

III - O abuso de direito pressupõe o seu exercício pelo respetivo titular de uma forma de tal modo arbitrária, exacerbada ou desmesurada, que, porque ofensivo da justiça, atentas as conceções ou o sentimento ético-jurídico dominante na coletividade e os juízos de valor positivamente consagrados na lei, se mostre inadmissível.

IV- Não estão preenchidos estes requisitos se nem sequer se prova, apesar de alegado pela sociedade, que desconhecia que o seu empregado incluiu a retoma no negócio e que o autor da ação/comprador sempre lha omitiu.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

L (…) instaurou contra  L (…) & Irmão SA, A (…), S (…), C (…) e N (…) ação declarativa, de condenação, com  processo sumário.

Pediu:

Sejam os réus solidariamente condenados a pagar ao autor as quantias de:

 - 4630€ relativos ao valor da retoma da viatura usada de matrícula 81-74-NL,

- 250€ entregues em papel moeda ao réu N (…) a título de sinal pela aquisição da viatura de matrícula 24-FJ-14,

- 70€ entregues pelo autor ao réu N (…) a título de pagamento das matrículas da viatura de matrícula 24-FJ-14,

- 700€ a título de juros cobrados pela Besleasing por falta de pagamento do montante da primeira prestação,

- os juros comerciais à taxa legal sobre aquelas importâncias.

Alegou:

Celebrou com a ré um negócio, em que  todos os réus  tiveram intervenção  de compra e venda de uma viatura automóvel pelo preço de 21 750€, com retoma de uma viatura usada pelo preço de 4630€, tendo esta última viatura sido entregue, com as chaves e uma declaração de venda em branco, nas instalações da sociedade ré, onde lhe foi entregue uma viatura de substituição para uso até à entrega da viatura nova.

Ficou acordado que a primeira prestação do crédito concedido pela Besleasing, no valor de 5991,74€ mais IVA no valor de 1258,26€ seria formado pelo valor do veículo usado e do desconto comercial pela compra de viatura nova (3250€).

A ré S (…) determinou que a viatura fosse facturada pelo preço de 25000 euros sem desconto, tendo sido passada uma nota de crédito ao cliente, que não lhe foi entregue, já que o preço acordado era de 21.750€, sendo que veio a ser notificado pelo Besleasing para pagar a primeira prestação, pelo que apresentou queixa crime.

O réu N (…) pediu- lhe 500€ de sinal, tendo-lhe entregado a quantia de 250 euros a título de sinal; que, com vista ao pedido de matrículas do veículo novo, aquele pediu mais 70€ que o autor pagou em numerário, encontrando-se a viatura da retoma em poder de terceiro, embora não tenha recebido o preço da mesma, e teve de pagar 700 euros de juros ao Besleasing pela não entrada da primeira prestação.

Contestaram os quatro primeiros réus.

Disseram:

O  funcionário N (…), como vendedor da sociedade ré, apenas vendeu, sem retoma, uma viatura de marca Opel Astra pelo preço de 25.000€, do qual foram descontados 3250€, sendo o veículo adquirido com recurso ao financiamento da Besleasing a quem foi facturado, transmitindo-lhe aquele desconto, sem que a sociedade tenha assumido o pagamento de qualquer prestação.

Todos os demais factos imputados são da exclusiva responsabilidade do 5º réu, não tendo sido conhecidos ou consentidos pelos restantes réus.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual:

Julgou-se parcialmente procedente a acção e, em consequência:

- absolveu-se os réus A (…), S (…), C (…),do pedido contra eles formulados,

- condenou-se o réu N (…) e a sociedade ré, L (…) & Irmão SA, solidariamente, a pagarem ao autor a quantia de 3000€ (três mil euros) e respectivos juros legais desde a citação até integral pagamento, absolvendo esses réus da parte sobrante do pedido contra eles formulado.

3.

Inconformado recorreu a ré L (…) & Irmão SA.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1º - Os factos apontam para a conclusão de que a ré foi enganada pelo seu ex-vendedor e pelo A. que lhe omitiram ambos os termos reais do negócio que realizaram.

2º - Tendo o A. sabido que o negócio transmitido à ré era diferente do que fez com o seu vendedor e tendo optado por a não alertar para tal discrepância, antes efectuando o pagamento do preço que a ré estava convencida que lhe era devido, actua em abuso de direito ao pretender agora responsabilizá-la.

3º - A culpa do A. na produção do dano que diz ter sofrido conjugada com a inexistência de culpa pela ré e com o facto de esta ter concedido um desconto superior ao valor do carro entregue pelo A., devem levar a excluir qualquer indemnização ao A.

4º - Ao não tomar em devida conta a actuação do A. ante a ré e o seu contributo decisivo para o dano, violou o Tribunal recorrido o disposto nos arts. 334º, 570º/1 e 494º ex vi 499º todos do C. Civil.

Contra-alegou o autor pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

1.º - O réu N (…) era, à data dos factos, vendedor da recorrente, existindo o vínculo comitente/comissário.

2.º - Exercia aquele réu, vendedor da recorrente, uma actividade concorrencial com a da recorrente, tendo a recorrente consentido e permitido essa situação.

3.º - No âmbito das suas funções, o vendedor da recorrente, vendeu um automóvel novo ao recorrido,venda que, com o desconto e retoma, foi acordada pelo preço de €17.750,00 (dezassete mil setecentos e cinquenta euros).

4.º - Em virtude dessa retoma e entrega da viatura usada do recorrido nas instalações da recorrente foi entregue ao recorrido uma viatura alugada e paga pela recorrente até entrega da viatura nova.

5.º - O recorrido ficou sem a sua viatura usada e sem o dinheiro acordado pela retoma da mesma.

6.º - O recorrido teve que pagar ao BESLEASING, não só o acordado com o vendedor da recorrente como ainda, a importância respeitante ao valor da retoma da sua viatura usada.

7.º - O recorrido agiu sempre de boa fé, pensando ter realizado um negócio com desconto e retoma da sua viatura usada.

8.º - A recorrente responde pelos actos do seu vendedor, como comitente, por se verificarem, salvo melhor opinião, os requisitos de responsabilidade do comitente como o do vínculo entre comitente e comissário; o da prática de acto ilícito no exercício da função e o da responsabilidade do comissário.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-A do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Atuação do autor/lesado em abuso de direito, ou redução da indemnização por culpa sua na produção dos danos.

5.

Os factos dados como provados e que importa considerar são os seguintes:

1) A primeira ré é uma sociedade comercial que tem por objecto o comércio de automóveis, sendo representante em Viseu das marcas Opel, Saab e Isuzu - A.

2) A (…), S (…), C (…),exercem a sua actividade profissional na primeira ré como representantes legais e agentes da primeira ré –B.

3) N (…) foi empregado da primeira ré no período compreendido entre Maio de 2003 até 28 de Maio de 2008, exercendo funções de agente vendedor– C.

4) No exercício das respectivas actividades, o autor e os réus S (…) N (…) intervieram, nas instalações da primeira ré, num negócio de compra e venda de uma viatura nova, marca Opel Astra, matrícula 24-FJ-14 –D e resp. aos ques. 25º e 26º.

5) O preço acordado da viatura nova foi de 21.750€–E.

6) No decurso da formalização do contrato o réu N (…) pediu ao autor a importância de € 500,00 , tendo – lhe este entregue apenas € 250,00 em numerário – F e resp. ao ques. 23º.

7) Passados alguns dias, o réu N (…) pediu mais ao A . a quantia € 70,00, paga pelo A . em numerário– G e resp. ao ques. 24º.

8) A viatura de marca Opel Corsa, matrícula 81 – 74 – NL encontrava – se em 6-10-2008 na posse de (…), residente na Rua Direita, n.º 45, no lugar de Póvoa de Cervães, 3530 - 320 Mangualde, o qual refere tê – la adquirido no Stand AutoClassic em Mangualde– H.

9) Stand AutoClassic diz ter adquirido tal viatura por compra realizada ao empregado/ vendedor da empresa L(…)& Irmão, aqui réu N (…) I.

10) O co-Réu N (…) apresentou à contestante sociedade a nota de encomenda nº 208 de 12/03/2008 reproduzida a fls. 58 do PP – J e resp. aos ques. 14º e 15º.

11) Enquanto vendedor da Ré L (…)& Irmão, o réu N (…) negociou com o A. a compra por parte deste de uma viatura Opel Astra, cujo preço era de € 25.000,00, pelo preço de € 21.750,00; ou seja com desconto de € 3.250,00 – K.

12) Aquando das negociações e celebração do negócio referido em 4), N (…) recebeu do autor a viatura usada de marca Opel Corsa matrícula 81-74-NL, propriedade do autor, tendo ficado acordado entre o autor e N (…) que o preço atribuído à dita viatura usada seria para abater ao preço da viatura referida em 11) – resp. ao ques. 2.

13) O autor e N (…) atribuíram à viatura usada referida em 12º valor não inferior a 3000 (três mil) euros – resp. ao ques. 3º.

14) Conforme acordado com N (…), o autor deixou a viatura usada de marca Opel Corsa matrícula 81-74-NL e respectivas chaves aos cuidados de N (…) nas instalações da primeira ré – resp. aos ques. 4º e 5º.

15) Aquando do referido em 14), N (…) entregou ao autor uma viatura alugada a outra empresa, para uso do autor até que lhe fosse entregue a viatura nova – resp. ao ques. 6º.

16) Ficou acordado entre o autor e o Besleasing, no âmbito do contrato de locação financeira mobiliária entre estes celebrado tendo por objecto a viatura referida em 11), que a primeira prestação seria no valor de 5991,74€ (cinco mil novecentos e noventa e um euros e setenta e quatro cêntimos) – resp. ao ques. 9º.

17) A viatura referida em 11) foi facturada pela importância de 25.000€ (vinte e cinco mil euros), tendo sido determinada, pela primeira ré, a dedução de 3.250€ ao referido valor de 25.000€ (vinte e cinco mil euros), tendo em vista a concretização do negócio referido em 4) e 11) – resp. aos ques. 10, 11 e 12.

18) O autor recebeu uma carta de Besleasing e Factoring, datada de 30-09-2008, tendo por assunto o incumprimento do contrato de locação financeira nº 2042329 e na qual se dava conta da falta de pagamento, pelo autor, de uma renda referente ao contrato referido em 16) - resp. aos ques. 16º, 17º e 18º.

19) O autor dirigiu uma carta ao Besleasing, datada de 6-10-2008, na qual solicitou que o valor da primeira renda vencida em 2-04-2008, no valor de 4000 euros, fosse integrada no contrato celebrado, “uma vez que este valor era para uma entrada inicial, que não se verificou até à presente data”. Referiu também que “Ao fazer a compra da viatura relativa a este contrato, dei a minha antiga viatura para dedução no valor total. O vendedor comprometeu-se a dar o valor da viatura, só que nunca veio a acontecer. Ele dizia que o stand ao qual tinha vendido o carro não tinha dinheiro, arranjava sempre desculpas. Como até à data ele não me deu o dinheiro, nem me atende o telemóvel para resolver esta situação, venho por este meio pedir a V. as Ex. as que aceitem esta solução para a resolução do problema” – resp. ao ques. 19º.

20) Quando recebeu a viatura nova referida em 11), o autor devolveu ao réu N (…), nas instalações da primeira ré, a viatura alugada referida em 15) – resp. ao ques. 20º.

21) O autor não recebeu o valor referido em 13º - resp. ao ques. 22º.

22) N (…) geria uma sociedade comercial (…)Lda, a qual tinha por objecto o comércio de automóveis novos e usados, a prestação de serviços-comissões, acessórios auto e lavagem auto – resp. ao ques. 28º.

5.

Apreciando.

5.1.

A Sra Juíza, perante os factos apurados entendeu responsabilizar a 1ª ré ao abrigo do disposto no artº 500º do CC.

Estatui este preceito:

1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.

3. O comitente que satisfizer a indemnização tem o direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso será aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 497.º

Consagra esta norma um caso de responsabilidade objetiva para o comitente.

Mas este só responde se o comissário agir com culpa.

A sua ratio radica no velho aforismo ubi commodum, ibi incommodum, ie. aquele que recorre a outrem para a realização de certo ato ou execução de alguma tarefa, colhendo as vantagens daí advenientes, deve, ab initio e  tendencialmente, outrossim, arcar com as consequências prejudiciais daí resultantes.

E dizemos que apenas em princípio e por tendência assim é, porque, em certas situações, máxime quando inexistir culpa da parte do comitente, este tem o direito de regresso contra o comissário – nº3.

Como é generalizadamente aceite, a relação de comissão não deve ser entendida em sentido técnico-jurídico estrito - tal como vem definida no artº 266º do C. Com.-  mas antes em sentido informal/ lato/amplo, ie., como qualquer ato isolado, serviço ou atividade duradoura, de carácter material ou jurídico, gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, dimanante de contrato, nominado ou não, ou de uma situação jurídica mais complexa, desde que  realizado por conta e/ou no interesse de outrem – cfr. P.Lima e A. Varela, CC Anotado, 2ª ed. p.440 e sgs. e Acs. do STJ de  05.11.2009, p. 4087/03.6TBPRD.S1, de 07.04.2011, p. 5606/03.3TVLSB.L1.S1., de 19.04.2012, p. 2455/06.0TBSTS.P1.S1 e de 15.07.2012, p. 1032/04.5TBVNO.C1.S1, todos in dgsi.pt.

Já quanto à natureza da relação pessoal entre comitente e comissário há algumas divergências.

Para uns, minoritários, não é necessário que exista uma relação de subordinação ou dependência deste  para com aquele – Cfr. Menezes Leitão Direito das Obrigações, I, 362 e Acs. do STJ de 15.3.2005, p. 04A4808 e de 23.05.2006, p.  06A1084.

Para outros, maioritários, tal relação deve existir autorizando ela que o comitente possa dar ordens ou instruções ao comissário, pois que só esta possibilidade de direção é capaz de justificar a responsabilidade daquele pelos atos deste – P. Lima e A. Varela, ob. e loc. cits., bem como os arestos de seguida referidos.

Comungamos desta posição ex vi deste seu nuclear argumento.

Na verdade, sendo a responsabilidade objetiva de cariz excecional, a sua atribuição ao comitente deve dimanar de um fundamento relevante. E este fundamento radica precisamente  no seu poder de direção que lhe permite dar ordens e instruções, por via das quais o risco de responsabilização é aligeirado ou mitigado.

Já quanto ao grau de conexão exigível entre os atos ilícitos danosos do comissário e o exercício da função que lhe foi confiada entende-se, maioritariamente, que o comitente não deve, apenas e restritivamente, responder quando a lesão advém de um cumprimento rigoroso das instruções dadas – o que é, aliás, afastado pela previsão do nº2 do artº 500º -, nem, ao invés, e com efeitos demasiado amplos, responder por todos os atos do comissário que tenham qualquer ligação – ocasional, incidental ou extrínseca - com as funções.

 Mas antes, comedida e racionalmente, deve responder quando o ato ilícito e as suas consequências danosas são ou podem ser previsíveis, segundo  as regras  da experiência comum, quer por virtude da natureza das funções confiadas ao comissário, quer pelos instrumentos ou objetos que lhe foram facultados, o que, tudo ponderado, clame a conclusão que ele se encontrava numa posição especialmente adequada à prática de tal facto.

 Ou seja, quando os factos ilícitos tenham com as funções uma conexão adequada, segundo a teoria geral da causalidade adequada.

5.2.

No caso vertente, a Sra. Juíza, comungando, na sua essencialidade relevante, as das considerações teóricas supra expostas, subsumiu os factos provados e prolatou a sua decisão final, nos seguintes termos:

«No caso dos autos, resulta que, no âmbito das suas funções de vendedor ao serviço da sociedade ré e por aquisição da venda, ao serviço desta, de uma viatura de marca Opel Astra, o 5º réu celebrou um contrato de compra e venda referente à viatura usada do autor, sendo que tal viatura foi recebida por esse réu…

…o quinto réu utilizou as instalações da sociedade ré para receber essa viatura …tendo aquele réu relacionado essa transacção com o acordo de compra e venda do veículo Opel Astra na medida em que afirmou que seria abatido ao preço da Opel Astra o valor do Opel Corsa.

Entende-se que, embora a sociedade ré não tenha determinado tal transacção (de compra da viatura usada do autor e de abatimento do respectivo preço no preço do Opel Astra) ou, sequer, intervindo na mesma, a mesma deve assumir perante o autor lesado a posição de garante subjacente à previsão do art. 500º do CPC.

Na verdade… constata-se que o facto foi praticado no exercício da função confiada ao comissário, o qual, pela natureza dos actos de que foi incumbido, se encontra numa posição especialmente adequada à prática de tal facto.

Destarte, perante o olhar do público consumidor e de acordo com regras de normalidade do acontecer, o quinto réu, pela natureza das suas funções e pelo objecto social da sociedade ré, encontrava-se numa posição através era natural celebrar acordos de compra e venda de viaturas, com ou sem retoma.

De acordo com a teoria da causalidade adequada, o dano (não recebimento de 3000 euros) decorre directamente das funções de vendedor do quinto réu, muito embora possa ter actuado sem o conhecimento/consentimento da sociedade ré naquele negócio em concreto.»

(sublinhado nosso)

E, na verdade, nada há a censurar a esta subsunção.

Efetivamente o ato de permuta parcial, com entrega de uma viatura usada na compra de uma nova, é uma atuação comum, quase corriqueira, passe o plebeísmo, no negócio de compra e venda de automóveis, pelo que a mesma se insere, nitidamente, no âmbito das funções de um funcionário ou trabalhador de uma firma que se dedica a tal atividade.

E sendo as decorrências negativas da atuação ilícita do dito funcionário, por reporte ou com fundamento num ato de permuta ou recebimento de viatura usada para levar em conta no preço da viatura nova, perfeitamente congemináveis, previsíveis ou perspetiváveis, atento tal desempenho funcional.

Sendo caso para dizer que se a entidade empregadora não quiser arcar com consequências nocivas, melhor terá de andar na seleção e fiscalização dos seus colaboradores, pelo que, se neste caso, como pelos vistos aconteceu, neste particular a recorrente menos bem andou, sibi imputat.

5.2.

Clama porém a insurgente que deve ter-se por verificada a atuação do autor em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, já que:

Os factos apontam para a conclusão de que a ré foi enganada pelo seu ex-vendedor e pelo A. que lhe omitiram ambos os termos reais do negócio que realizaram.

Tendo o A. sabido que o negócio transmitido à ré era diferente do que fez com o seu vendedor e tendo optado por a não alertar para tal discrepância, antes efetuando o pagamento do preço que a ré estava convencida que lhe era devido, atua em abuso de direito ao pretender agora responsabilizá-la.

5.2.1.

Nos termos do artigo 334º do Código Civil:

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

A conceção adotada neste conceito é a objetiva, não sendo, assim, necessária a consciência de que com a sua atuação se estão a exceder os apontados limites.

Importa é que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça atentas as conceções ou o sentimento ético-jurídico dominante na coletividade e os juízos de valor positivamente consagrados na lei- cfr.”- Vaz serra “in” Abuso de Direito no BMJ 85º/253 e Pires de Lima e Antunes Varela “in” CC Anotado, anotação ao artigo 334º

O abuso de direito é um limite normativo ou interno dos direitos subjetivos – pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativo – jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados – cfr. Castanheira Neves in Questão de facto e Questão de Direito, 526 e nota 46.

«O abuso de direito representa a fórmula mais geral de concretização do princípio da boa fé, constituindo um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e as habilidades das partes, mas com aplicação subsidiária, desde que não haja solução adequada de Direito estrito que se imponha ao intérprete aplicar» -. Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo 1, p, 241 e sgs.

Em suma, o direito não pode ser exercido arbitrária e exacerbada ou desmesuradamente, mas antes exercício de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional.

Para certos autores o efeito jurídico do instituto só se desencadeia quando se verificam três pressupostos:

«1. Uma situação objectiva de confiança; uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;

 2. Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições o organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a ser frustrada;

3. Boa fé da contraparte que confiou: a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé e tenha agido com cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico» - Baptista Machado, in Obra dispersa, vol. I, pgs. 415 a 418.

A figura do abuso de direito pode apresentar-se, na prática, em quatro formas-padrão ou modalidades de violação do princípio da boa fé, traduzidas: 1. na proibição de tomar, dolosamente, posições processuais ou exceptio doli; 2. a proibição de venire contra factum propprium; 3. a proibição de abuso de poderes processuais; 4. a dupla formada pela surrectio e pela suppresio.

O venire acontece, por exemplo, quando uma situação de aparência jurídica é criada, em termos tais, que cria nas pessoas a legítima confiança ou expectativa de que a posição jurídica contrária não será atuada.

A surrectio ou surgimento, como oposto que é da suppresio ou neutralização, verifica-se quando uma pessoa, por força da boa-fé da outra parte, vê surgir na sua esfera jurídica uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria,

A suppresio consiste na situação em que uma pessoa incorre quando, tendo suscitado noutra, por força de um não exercício prolongado, a confiança de que a posição em causa não seria atuada, não pode mais fazê-lo, por imposição da boa fé, implicando a demonstração, ainda que mínima, que da inatividade do lesado resultou uma expetativa fundada de que o direito não seria exercido - cfr. Menezes Cordeiro, in obra citada, pág. 241 e segs.

5.2.2.

In casu.

A recorrente funda a sua preensão no facto de desconhecer que o negócio incluiu a retoma, o que o autor sempre lhe omitiu, apenas tendo lançado mão desta ação quando percebeu que o N (…) não ia cumprir com o que os dois tinham combinado.

Mas dos factos apurados não se pode retirar tal conclusão.

Antes pelo contrário, indicia-se que a ré tinha conhecimento da retoma, ou, pelo menos, era-lhe exigível que tivesse.

Na verdade provou-se que aquando das negociações uma das suas gerentes, S (…) esteve presente – ponto 4 dos factos assentes.

E que aquando destas negociações e celebração do negócio o réu,  o réu N (…) recebeu do autor a viatura usada, tendo ficado acordado entre o autor e o N (…) que o preço atribuído à dita viatura usada seria para abater ao preço da viatura  vendida  - ponto 12.

E tendo o autor deixado  a sua viatura usada e respetivas chaves, posto que aos  cuidados do réu  Nuno, nas instalações da primeira ré – ponto 14.

Ora perante estes factos, devidamente interpretados segundo as regras do normal decurso das coisas  e da experiencia comum, não se concebe que a ré não tivesse conhecimento da retoma, quer porque uma das suas gerentes esteve presente nas negociações onde a permuta foi anuída, quer porque a viatura usada foi deixada nas suas instalações.

 Não se alcançando que este facto não tenha sido detetado pela recorrente, e, se não tivesse conhecimento do motivo de ali se encontrar, não diligenciasse pelo apuramento do mesmo, obviamente, desde logo perante os seus vendedores.

Aliás e conforme adrede emerge da sentença condenatória da ação crime instaurada pela recorrente contra o réu N (…), que se encontra junta  a fls. 110 e sgs  entre a recorrente e o réu N (…) foi anuído que este: «poderia negociar com os clientes a retoma de viaturas… usadas, para a ofendida (recorrente) viaturas essas que eram por si avaliadas…sendo da sua responsabilidade pessoal a guarda e revenda…das viaturas retomadas…e quando ocorresse a revenda…deveria entregar à ofendida, pelo menos o valor pelo qual a viatura havia sido avaliada, valor esse que era creditado na conta do cliente que adquirira a viatura nova».

Tal factualidade pode aqui ser atendível atento o disposto no artº 674º-A do CPC pois que a presunção dele dimanante não foi ilidida.

Na verdade, perguntado no quesito 27º se: «os réus contestantes desconheciam eventuais acordos celebrados entre o autor e o réu N (…)?», a resposta foi negativa.

Nesta conformidade, e dando-se estes factos como verificados, é caso para dizer que quem está a atuar em venire contra factum proprium, ou, pelo menos, temerariamente, é a recorrente.

Ademais e inexistindo outrossim acervo factual que permita imputar culpa ao autor no despoletar de facto genética, ou ulteriormente, causal do prejuízo que sofreu, impossível se torna o chamamento do disposto dos artºs 570ºnº1 e 494º  aplicáveis ex vi 499º todos do C.C, como a recorrente impetra.

Improcede o recurso.

6.

Sumariando.

I – No âmbito do artº 500º do CC, a responsabilidade do comitente  emerge de qualquer ato, ilícito e prejudicial, do comissário, desde que:  a)realizado por conta e/ou no  seu interesse; b) exista uma relação de subordinação ou dependência deste para com  aquele; c) a conexão entre o ato e as funções confiadas seja de molde a fazer prever, segundo as regras da causalidade adequada, a ocorrência do dano.

II –Deve assumir tal responsabilidade a sociedade que vende automóveis novos, se um seu vendedor, aceitou, numa venda, a retoma de carro usado do comprador para abater no preço, e o valor da retoma não foi depois abatido, com prejuízo para o comprador.

III - O abuso de direito pressupõe o seu exercício pelo respetivo titular  de uma forma  de tal modo arbitrária, exacerbada ou desmesurada,  que, porque ofensivo da justiça, atentas as conceções ou o sentimento ético-jurídico dominante na coletividade e os juízos de valor positivamente consagrados na lei,  se mostre inadmissível.

IV- Não estão preenchidos estes requisitos se  nem sequer se prova, apesar de alegado pela sociedade, que desconhecia que o seu empregado incluiu a retoma  no negócio e  que o  autor da ação/comprador sempre lha omitiu.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Alberto Ruço