Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7681/21.0T8LSB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: RELEVÂNCIA PROBATÓRIA DAS DECLARAÇÕES PRESTADAS PERANTE JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL GRAVADAS EM PROCESSO CÍVEL
EFICÁCIA PROBATÓRIA DAS MESMAS
REPRODUÇÃO NA AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 368.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 421.º; 466.º E 604.º, 3, B), DO CPC
Sumário:
I - As declarações de arguido perante o juiz de instrução criminal, gravadas, apresentadas agora no processo civil, não perdem a sua natureza.

II - Apesar da gravação, legalmente não questionada, ser prova plena de que tais declarações foram feitas, aquelas declarações não são prova plena dos factos que abordam.

III - Admitida a junção da gravação, para serem valoradas as declarações, em momento oportuno, na conjugação com a restante prova, considerando que a produção da prova se faz na audiência de julgamento, impõe-se a sua reprodução naquela.

Decisão Texto Integral:
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Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:

Ref. 2311133 de 2023/12/06 do p.e.: O autor vem requerer a reprodução do CD das declarações prestadas por si prestadas, na qualidade de arguido, perante JIC, no processo crime que deu origem aos presentes autos.

Devidamente cumprido o necessário contraditório, a ré nada disse nos autos, no prazo que lhe fora concedido.

Apreciando e decidindo:

Estabelece o art.º 421º do Código de Processo Civil, que - Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.

2 - O disposto no número anterior não tem aplicação quando o primeiro processo

tiver sido anulado, na parte relativa à produção da prova que se pretende invocar.

Do citado diploma legal, resulta que a prova testemunhal produzida num processo só releva para outro processo se ocorrerem quatro fundamentos cumulativos:

- Em primeiro lugar, que seja a mesma, em ambos os processos, a parte contra quem foram produzidos os ditos meios de prova;

- Em segundo lugar, que a parte tenha tido a possibilidade no primeiro processo de exercer o contraditório quanto à admissão e produção daquele meio de prova;

- Em terceiro lugar, que o regime de produção dessas provas no primeiro processo

ofereça às partes garantias pelo menos iguais às do segundo; e

- Em quarto lugar, ainda, que não tenha sido anulada a parte do processo relativa à produção da prova que se pretende invocar.

Se faltar o terceiro requisito, ou seja, se as garantias oferecidas no primeiro processo forem inferiores às oferecidas no segundo, a prova produzida no primeiro processo pode ser aproveitada e ser feita valer em termos probatórios apenas como princípio de prova, como decorre do n.º 1 do citado artigo 421º. Se falhar algum dos outros requisitos (nomeadamente, a identidade das partes em ambos os processos), não podem tais provas ser objeto de qualquer aproveitamento.

O depoimento que o autor pretende aproveitar nestes autos foi produzido no processo crime pelo aqui autor, na qualidade de arguido, perante JIC.

Como consabido, no nosso sistema processual penal autonomiza a prova que tem como fonte o arguido relativamente à prova testemunhal em sentido amplo.

No estatuto do arguido como fonte de prova processual ressaltam duas marcas distintivas. Por um lado, a proteção do arguido contra a autoincriminação, ainda que voluntária, e, por outro lado, a responsabilização do juiz pela estratégia e interrogatório do arguido.

A inquisitória do processo em que, por definição, falha o contraditório, não podem ser valoradas no julgamento, carecendo de ser renovadas ou produzidas de novo nesta fase perante o juiz, que deve poder formar a sua convicção independentemente da investigação criminal, e perante a acusação e a defesa, que devem estar em situação de igualdade de armas. Este princípio, que se aplica aos depoimentos das testemunhas, às acareações e aos reconhecimentos, deve igualmente valer para as declarações do arguido, aliás por maioria de razão, se considerarmos que este goza do direito ao silêncio e pode não querer produzir quaisquer declarações em audiência. Em suma, as declarações do arguido só devem poder ser valoradas como prova se forem produzidas em audiência.

A coerência do sistema processual penal só poderá ser reconstruída se assumirmos que as declarações dirigidas a pessoas diferentes dos agentes da perseguição penal com vista aos fins do processo não estão abrangidas pela prerrogativa da não autoincriminação.

Como acima assinalamos, no caso sub judice, as declarações cujo aproveitamento o autor pretende foram prestadas, por si, na qualidade de arguido, perante JIC, no âmbito do processo penal, pelo que as mesmas estão legalmente protegidas pelo direito do arguido à não autoincriminação e, por isso, não estão sujeitas à prestação de juramento.

Assim, se o arguido tiver faltado à verdade não poderá ser sancionado com a prática de um crime de falsas declarações, o que, desde logo, poderá comprometer a igualdade de armas entre as partes e as garantias de defesa da aqui ré.

Sucede que devidamente notificada, a ré nada disse nos autos a tal propósito, não se tendo oposto à utilização das declarações em causa, pelo que, inexiste fundamento legal para o Tribunal não admitir tal meio probatório e relegar para momento próprio e oportuno a sua valoração, positiva ou negativa, na conjugação com a demais prova produzida. Mas, constituindo, como constituem, prova documental, no âmbito destes autos, as declarações em causa não carecem de ser reproduzidas na audiência final, como sucede no processo penal.

Para além disso, importa reter que, nos presentes autos, estão admitidas as declarações de parte do aqui autor, o qual poderá esclarecer o que tiver por pertinente acerca da matéria em causa neste processo.

Assim sendo, atentos os considerandos expendidos, cremos ser despiciendo, reproduzir em audiência o CD contendo as declarações prestadas pelo aqui autor, perante JIC, no âmbito do processo penal.

Termos em que, pelos fundamentos expostos, o Tribunal indefere a reprodução em audiência final do CD que contém as declarações prestadas pelo aqui autor, perante JIC, no processo crime, sem prejuízo de as considerar como principio de prova e as valorar, em momento oportuno, na conjugação com a demais prova produzida.” (Fim da citação.)


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            Inconformado, o Autor recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso em matéria de direito, interposto do despacho proferido pelo Tribunal a quo, referência citius 30981229, que indeferiu o requerimento do autor de reprodução do CD na audiência de julgamento, nos presentes autos.

2. O CD que o autor pretende ver reproduzido/ouvido em audiência de julgamento (prova já admitida nos autos), contém o interrogatório efetuado pelo JIC ao arguido (ora autor nestes autos), realizado em sede de Instrução no âmbito do processo crime nº. 267/14...., que correu termos no Tribunal Criminal da Comarca da Guarda, onde este vinha acusado da prática de um crime de insolvência dolosa, p.p. pelo artigo 227 nº. 3 do Código Penal.

3. A questão central a decidir neste recurso para o TRC, é a de saber: se na presente ação declarativa de condenação de responsabilidade civil extracontratual do Estado, intentada com base nos erros judiciários praticados pelo MP e JIC, o CD já admitido nestes autos, que contém o interrogatório do arguido (ora Autor), prestado perante o Juiz de Instrução Criminal, pode ser reproduzido/ouvido nesta audiência de julgamento. E se, é valorado como prova plena, ou como refere o Juiz a quo, principio de prova.

4. O Recorrente entende que, o Tribunal a quo, deveria ter-lhe deferido a reprodução do CD em audiência de julgamento, ao assim não ter decidido, o despacho impugnado deve ser revogado e substituído por outro que defira a aludida reprodução do CD na audiência de julgamento, e considerado como prova plena uma vez que não foi impugnada a sua exatidão, o que se requer ao Tribunal ad quem.

5. Síntese da tramitação processual conforme certidões que instruem o presente recurso, para melhor compreensão:

6. O Autor propôs esta ação declarativa de responsabilidade civil extracontratual contra o Réu Estado Português, peticionando a condenação do Réu por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, devido aos erros judiciários praticados pelo Magistrado do Ministério Público e pelo Juiz de Instrução Criminal, no exercício das suas funções enquanto titulares do processo-crime nº. 267/14...., que correu termos no Tribunal da Comarca da Guarda.

7. Na petição inicial o Autor juntou aos autos um CD sob o documento nº. 7, que contem a gravação áudio do interrogatório do arguido, efetuado pelo Juiz de Instrução Criminal em sede de instrução no citado processo-crime.

8. Na contestação o Réu Estado Português, no exercício do seu direito ao contraditório, não se opôs à junção do CD, nem o impugnou.

9. Na audiência prévia em 06 de setembro de 2022, o Tribunal a quo, proferiu o despacho saneador, admitiu os meios de prova, definiu o objeto do litígio e os temas da prova.

10. Em sede de audiência de julgamento foram ouvidas na qualidade de testemunhas arroladas pelo Autor, a Magistrada do Ministério Publico e o Juiz de Instrução Criminal titulares do inquérito e da instrução no citado processo-crime.

11. No dia 06.12.2023 o Autor mediante requerimento com a Refª. citius 2311133

requereu ao Tribunal a quo, a reprodução do dito CD na audiência em julgamento.

12. O Réu foi notificado deste requerimento do Autor, para o exercício do contraditório, mas nada disse nos autos no prazo que lhe fora concedido.

13. Contudo, a M. Juiz a quo, proferiu despacho de indeferimento, com Ref. Citius 30981229, com os fundamentos espelhados no mesmo, do qual se recorre.

14. Andou mal o Tribunal a quo, no enquadramento jurídico da questão em torno do artigo 421º do CPC, somente sob o prisma do depoimento do autor prestado naquele processo-crime na qualidade de arguido, perante o Juiz de Instrução Criminal,

15. Quando o que se pretende nesta ação, é apreciar e valorar da factualidade atinente às circunstâncias de tempo, modo e lugar em que terá ocorrido o erro (conforme consta dos temas da prova), os atos e as decisões praticados pelo MP e JIC, no apuramento dos erros judiciários praticados, pretendida com a requerida reprodução do CD em audiência de julgamento.

16. O Tribunal a quo, no seu despacho, refere que se trata de uma prova documental, então, a questão não teria o enquadramento no artigo 421º do CPC e não o seria como princípio (ou começo) de prova a valorar em momento oportuno (como refere), mas sim, uma prova documental, que atendendo à sua caraterística (áudio), impõe que seja ouvida em audiência de julgamento.

17. O artigo 421º do CPC dita o princípio da eficácia extraprocessual das provas,

mas o valor das provas não fica confinado ao processo onde foram produzidas, poderão ser invocadas noutro, mas não é qualquer meio de prova, pois parece resultar, que este artigo 421º CPC, se refere aos depoimentos e arbitramentos, ficando excluída a prova documental.

18. O registo fonográfico sendo enquadrado legalmente na seção de prova documental, parece que estaria excluído daquele preceito, no sentido da valoração extraprocessual dessa prova, o que não impede que essa prova documental seja ouvida em audiência de julgamento noutro processo judicial, e aí se aprecie e se valore em função do objeto do litígio e dos temas da prova.

19. No que diz respeito ao direito ao contraditório, constatamos que se encontra assegurado em plenitude, já que, ao Réu foram concedidas todas as garantias essenciais à sua defesa: o Réu contestou a ação, teve possibilidade de impugnar essa prova (Documento nº. 7 CD), optando por nada dizer; nem se opôs ao requerimento do autor de reprodução do CD em audiência de julgamento.

20. Denota-se que, na definição legal de documento cabem não só os documentos

escritos, como os não escritos, designadamente os registos fonográficos, bem como são valorados como prova plena dos factos que representam.

21. Que para ser valorado, atendendo à sua natureza, deverá ser reproduzido em

audiência de julgamento.

22. Pelo que tendo sido já admitido nos autos, e sem oposição da Ré, o Tribunal

a quo, deveria ter deferido a sua reprodução/audição em audiência de julgamento, como foi requerido pelo Recorrente.

23. Este documento é um meio de prova que serve para demonstrar a realidade de um determinado facto, no conjunto com a restante prova produzida no processo judicial, como se prevê no artigo 341º, 342.º e 368.º, do CC.

24. Do anteriormente exposto, ao Autor assiste-lhe o direito de poder exibir ou reproduzir o registo fonográfico em sede de audiência de julgamento, nos termos do disposto no art.º 428.º e 411.º ambos do CPC, o que se requereu ao Tribunal ad quem.

25. O CD contem o registo fonográfico do interrogatório do arguido, e como tal enquadra-se como prova documental, licita, e que deve ser valorada a sua exatidão como prova plena nos termos do disposto no art.º 368.º do CC.

26. O CD é um documento, já admitido nos autos e sem oposição da Ré, mas que atendendo à sua natureza, legalmente impõe-se ser reproduzido em audiência de julgamento, pelo que o Tribunal a quo, deveria ter deferido a sua reprodução/audição em audiência de julgamento, nos termos do disposto nos artigos 428.º e 411.º ambos do CPC, e 368.º do Código Civil, o que se requer ao Tribunal ad quem.

27. Por tudo o que se deixou exposto, requer-se ao TRC a revogação do despacho

recorrido, devendo ser substituído por outro que, determine a reprodução/audição do mencionado registo da gravação-CD em audiência de julgamento, e seja considerado como meio de prova plena e não como principio de prova.

28. Ao decidir deste modo, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 341º, 342º, 362.º, 368º, todos do Código Civil, artigo 3º, 421º, 428º e 411.º todos do C.P.C e artigo 20º da C.R.P.


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            O Ministério Público contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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            As questões a decidir são as seguintes:

A qualificação da prova em questão;

A sua força probatória;

A necessidade da sua reprodução em audiência.


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            Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas.

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O CD em questão contém o registo do interrogatório do arguido, perante o juiz de instrução.

O ali arguido é agora, aqui, Autor.

O CD foi admitido nos autos, sem oposição do Estado Réu.

As declarações de arguido perante o juiz de instrução, registadas em CD, apresentadas agora no processo civil, não perdem a sua natureza especial, que não importa aqui desenvolver.

Essas declarações não são um depoimento apresentado por uma parte ou solicitado pelo tribunal, feitas em audiência contraditória, para que se possa aplicar o disposto no art.421 do Código de Processo Civil (CPC).

As declarações em si não são um documento.

Apesar da gravação, onde aquelas estão contidas, legalmente não questionada, ser prova plena de que tais declarações foram feitas, aquelas declarações não são uma prova plena dos factos que abordam. Como declarações de arguido não lhe é aplicável o disposto no art.368 do Código Civil (CC).

O seu estatuto processual, em confronto com o das declarações de parte (art.466 do CPC), só pode admitir o uso da livre convicção do julgador.

Quanto à necessidade da sua reprodução em audiência:

A regra é a da produção de prova ou reprodução da já obtida, nomeadamente para esclarecimentos, fazer-se na audiência (cfr. art.604, 3, b), do CPC).

O Tribunal esclareceu que as declarações seriam valoradas em momento oportuno, na conjugação com a restante prova.

Para o tribunal as valorar vai ter que as ouvir e deverá fazê-lo perante todos os intervenientes, para que todos as possam valorar. Ouvi-las até para eventual confronto com diferentes declarações de parte do Autor e possíveis esclarecimentos.

O requerimento do Autor, para a reprodução, não sofreu oposição.

Neste contexto, deverá deferir-se este pedido.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso parcialmente procedente, para que a referida prova, sujeita à livre convicção do julgador, seja reproduzida em audiência.

            Custas pelo Autor, parcialmente vencido, em 50%, por estar isento delas o Réu.

            2024-04-09


(Fernando Monteiro)

(Moreira do Carmo)

(Fonte Ramos)