Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
132/13.5T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
CRÉDITO FISCAL
HOMOLOGAÇÃO
INEFICÁCIA
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DO COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.17-A, 17-F, 215 CIRE, 30, 35, 36 LGT, DL Nº 411/91 DE 17/10
Sumário: 1 - Não tendo sido impugnados os créditos da Fazenda Nacional constantes da lista provisória de credores no prazo que a lei concede para tal, prazo esse que é peremptório, se conjugarmos o preceituado nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 17.º-D, decorrido o mesmo sem que a lista provisória de créditos haja sido impugnada, esta converte-se de imediato em lista definitiva.

2 - Existindo dois processos de execução fiscal, peticionados os respectivos valores, e não tendo a Apelada demonstrado que ambos se encontravam integralmente liquidados até à sentença que homologou o plano de revitalização, somente podia ali considerar-se, atento o preceituado no artigo 611.º do CPC, o pagamento das dívidas à Fazenda Nacional que foi efectuado no decurso da acção num dos processos, extinguindo-se, apenas nessa parte, o crédito do Estado, porquanto são factos jurídicos supervenientes a atender na sentença, mas mantendo-se os créditos peticionados no processo cujo pagamento não foi efectuado.

3 - Após as alterações introduzidas pela Lei 55-A/2010, de 31/12, ao artigo 30.º da LGT, em face das normas imperativas vigentes, deixou de ser legalmente possível homologar um plano de insolvência ou revitalização de empresa que contemple a redução, extinção ou mesmo a moratória de créditos de natureza tributária, sem que o Estado - a Fazenda Nacional e/ou a Segurança Social - tenha votado favoravelmente tal homologação.

4 - A homologação de plano de revitalização que inclua o pagamento em prestações de créditos por tributos, sem o acordo da Fazenda Nacional e/ou da Segurança Social, constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, caindo na previsão do artigo 215.º do CIRE e, por tal motivo, deve o juiz recusar oficiosamente a homologação do acordo na parte em que que viola regras legais imperativas.

5 - A única interpretação da lei que adequadamente sopesa todos os interesses a levar em conta: o da intangibilidade dos créditos fiscais e o da recuperação da empresa ainda viável, é a que, em casos como o dos autos, aplica à homologação do Plano o regime jurídico da ineficácia, em face do qual, o Plano de Recuperação de empresa aprovado pela maioria legal de credores, não é oponível aos créditos por tributos, quando estes credores se opuseram ou não anuíram à redução ou à modificação lato sensu dos seus créditos, mas mantém a sua eficácia quanto aos demais créditos não afectados por tal violação de norma legal, assim possibilitando a viabilização da empresa nos termos do plano acordado pela maioria dos credores.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I – RELATÓRIO

1. I (…), Ld.ª, apresentou-se em 18 de Janeiro de 2013 ao processo especial de revitalização no âmbito da redacção dos artigos 17.º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[2], introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril.

2. Seguindo o processo os seus termos, a lista provisória de créditos apresentada pelo Administrador Judicial Provisório foi publicada em 08-03-2013 (cfr- fls. 392), tendo a requerente impugnado alguns dos créditos daquela constantes, mas nada dizendo relativamente aos créditos do Estado - Fazenda Nacional e do Instituto da Segurança Social (cfr. fls. 403 a 408).

3. Nessa lista consta a existência de dois créditos do Estado: um cujo capital é de 5 638,51€ (IRS) e o outro cujo capital se cifra em 10 244,90€ (Custas sic), ambos acrescidos de juros e despesas, sendo aquele primeiro crédito com privilégio (mobiliário geral e imobiliário) e o segundo comum - cfr. fls. 385.

Mais consta um crédito do Instituto da Segurança Social, cujo capital é de 61 407,28€ (contribuições), acrescido de juros, também com privilégio (imobiliário e mobiliário geral) – cfr. fls. 386.

4. Por requerimento apresentado em 12 de Julho de 2013, o Senhor Administrador Judicial Provisório veio juntar aos autos o plano de recuperação da empresa (cfr. fls. 563 a 613) e o resultado da votação, tendo sido alcançado o quórum deliberativo, uma vez que foram emitidos votos correspondentes a 76,266% do montante de créditos totais, e foram alcançadas as maiorias positivas referidas no artigo 212.º, n.º1 do CIRE, com 66,964% do total dos votos emitidos e a mesma percentagem correspondente ao total de votos emitidos de créditos não subordinados.

Da contextualização da empresa consta (fls. 581):

«A I (..), Ld.ª:

É detentora de alvará de Empreiteiro de Obras Públicas e de Industrial de Construção Civil assegurado por um Engenheiro e restante grupo técnico, devidamente aprovado pelo IMOPPI, o que possibilita a execução de diversos trabalhos quer em obras públicas quer particulares, dentro dos limites da classe, podendo trabalhar sob a forma de empreiteiro e subempreiteiro;

Tem a atribuição da certificação PME e do título PME líder;

É uma empresa fornecedora e instaladora das caixilharias JANSEN;

Tem um rico portfólio de obras de referência efectuadas, tais como:

Remodelação da sede do Banco de Portugal – Lisboa;

Novo Museu dos Coches – Lisboa;

Escola EB e Secundária de Sever do Vouga;

Escola Secundária Mário Sacramento – 1.ª fase – Aveiro;

Parque P3 e P4 do Aeroporto Sá Carneiro;

Pavilhão Multiusos de Lamego;

Fundação Champalimaud “Center for the unknown” – Lisboa;

Estoril Sol Residence – Estoril.

Quanto ao Plano de Reembolso das dívidas refere-se:

«No presente plano assume-se o período de execução do plano de reembolsos entre Janeiro de 2013 e Dezembro de 2022, sendo que em seguida serão enunciados os planos de reembolso propostos

Grupo A – Estado – Fazenda Pública + Instituto de Segurança Social

Reembolso em 6 prestações mensais de capital postecipadas com data da primeira prestação a 31-01-2014

Taxa de juro legal de 7,75%» e ainda «juros de carência».

(...) Grupo  D – Créditos laborais

Reembolso de 100% do capital até 31-07-2013».

5. Oportunamente, a Administração Fiscal, pronunciando-se quanto aos termos do Plano de Revitalização, e atendendo ao regime legal aplicável à regularização dos créditos tributários, designadamente, artigos 36.º da LGT e 85.º, 196.º e 199.º do CPPT, manifestou que a sua posição era de votação desfavorável ao mesmo, pelos fundamentos que elencou a fls. 602 dos autos.

6. Na sequência, o Mm.º Juiz, por despacho proferido em 16-07-2013, determinou a notificação do Senhor Administrador Judicial para, além do mais, se pronunciar sobre o requerimento de oposição ao plano apresentado pela Fazenda Nacional, «visto que pode assumir relevância na questão da homologação do plano de recuperação».

7. A fls. 630, o Senhor Administrador Judicial informou que o quórum deliberativo e as maiorias positivas referidas no artigo 212.º do CIRE, foram alcançados, e pronunciou-se nos seguintes termos quanto à votação desfavorável da Fazenda Nacional:

«Relativamente ao requerimento de oposição ao plano apresentado pela Fazenda Nacional, a devedora informou que a Autoridade Tributária notificou os seus clientes por forma a liquidar a dívida através da compensação de créditos e que o montante em dívida é de actualmente 5.886,28€».

Juntou certidão emitida em 29 de Julho de 2013, pelo serviço de Finanças de Sever do Vouga, atestando ser aquele o montante então em dívida, sendo 5.638,51€  a quantia exequenta, 164,66€ os juros de mora, e 83,11€ as custas processuais – cfr. fls. 633.

  

8. Após diligências efectuadas com vista a determinar se a dívida fiscal em causa já estaria liquidada, foi solicitada nova informação à Autoridade Tributária, a qual foi prestada nos termos do ofício que faz fls. 668 a 671, do qual resulta a descrição das dívidas da requerente.

9. De entre as dívidas descritas a fls. 670 dos autos, para além de dívidas por Coimas e Encargos de Processos de Contra-Ordenação, constam as seguintes dívidas por IRS: 7,82€, com vencimento em 20-11-2012, acrescida de 0,28€ de juros de mora; 5.626,03€, com vencimento em 20-12-2012, acrescida de 215,01€ de juros de mora; por Imposto de Selo: 4,66€, acrescida de 0,17€ de juros de mora; e 121,05€ de custas, perfazendo o montante de 5.975,02€.

10. Por seu turno, a requerente pronunciou-se nos termos de fls. 673, informando que a dívida fiscal à Autoridade Tributária se encontra liquidada.

11. Na sequência, pelo Senhor Juiz foi proferido o seguinte despacho:

«Considerando a oposição manifestada pela Fazenda Nacional ao plano de recuperação a fls. 602, que poderá determinar a não homologação deste, a informação da manutenção da dívida, nos termos do ofício de fls. 668ss (sendo o valor inferior ao reconhecido na lista provisória de créditos), notifique a requerente do processo, com cópia dos referidos elementos e deste despacho, para em cinco dias comprovar o pagamento da referida dívida fiscal, sem prejuízo da possibilidade de, nesse prazo, pronunciar-se nos termos que tiver por convenientes».

12. A requerente, por requerimento que faz fls. 687, veio afirmar que a quantia reclamada pela Fazenda Nacional neste processo, se encontra paga desde 18/06/2013. Informou ainda que, posteriormente, contraiu outras dívidas fiscais que tem vindo a pagar, e cujo saldo actualmente pendente não está em fase de execução, pelo que apenas deve ser considerada a dívida anteriormente reclamada pela Fazenda Nacional, que se encontra já paga, e as ulteriores não deverão condicionar a aprovação do plano.

Mais requereu, para a hipótese de não se entender deste modo, que lhe fosse concedido prazo para regularizar aquele saldo, ao abrigo ou não do plano de regularização de créditos anunciado pelo Governo; e ainda que, se assim não se entender, o plano seja homologado em relação aos credores comuns, ressalvando dos efeitos dessa homologação os créditos da Fazenda Nacional.

Juntou certidão (fls. 688 e 689), comprovativa de que o processo de execução fiscal n.º 0175201301001272, com o valor de instauração de 10.244,90€, ficou extinto por pagamento em 18/06/2013.

13. Por seu turno, o Ministério Público, requereu a junção de ofício da Autoridade Tributária para melhor esclarecimento da situação. Desse ofício, a fls. 679, decorre que o processo de execução fiscal n.º 0175201301001272 foi efectivamente extinto, por pagamento, sendo o último valor do processo executivo associado ao pedido de penhora, de 5.634,16€ (fls. 681). Mais resulta que, em 19-01-2013, foi instaurado outro processo executivo, sendo a quantia exequenda no valor de 5.630,69€, os juros de mora, de 215,18€ e as custas de 121,05€, no valor total de 5.966,92€, que se encontra em dívida (cfr. fls. 682).

14. Os autos prosseguiram, tendo sido proferida a sentença que homologou o plano de recuperação, da qual, para o que ora importa, consta o seguinte:

«[A]pós diligências de averiguação, verifica-se estar suficientemente comprovado o pagamento da quantia de € 10.244,90 (fls. 687ss), a qual, embora não represente a totalidade do valor reconhecido ao credor público (€ 16.127,85, segundo a lista provisória, fls. 374, ou € 12.497,22, conforme ofício de fls. 668ss), abrange totalmente o valor reconhecido do crédito por tributos.

Por isso, sendo o remanescente devido por coimas e encargos de contra-ordenação, a sua existência não convoca a aplicação do disposto nos arts. 125.º da L. nº55-A/2010, de 31-12, e 30.º/3 da LGT.

Assim sendo, e analisando o teor do plano de recuperação, consideramos estar conforme aos ditames legais».

15. Inconformados com a sentença que homologou o plano de recuperação, o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, e o Instituto de Segurança Social, I.P., interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:     

a) Fazenda Nacional:

«1. Por sentença proferida em 29.10.2013, foi homologado o Plano de Recuperação/Revitalização da devedora, que o Exmo. Senhor Juiz considerou estar conforme os ditames legais; mais considerou, em face da oposição manifestada pela Fazenda Nacional, que não estavam já em dívida créditos por tributos, mas o devido por coimas e encargos de contraordenação, cuja existência “ não convoca a aplicação do disposto nos artigos 125º da Lei nº 55-A/2010, de 31.12., e 30º, nº 3 da LGT.”.

2. Contudo, e salvo o devido respeito, partiu o Exmo. Senhor Juiz de um pressuposto errado, porquanto ainda se encontram em dívida valores relativos a Imposto de Selo e a IRS, reclamados no âmbito do presente Processo Especial de Revitalização, pelo que no que concerne aos créditos fiscais, a homologação do plano de recuperação/revitalização deveria ter sido negada, por este não estar conforme aos requisitos legais exigidos.

3. Com efeito, em 26.09.2013 a requerente tinha em dívida para com a Fazenda Nacional o montante global de € 12.497, 72, do qual o montante de € 7, 82 (quantia exequenda, vencida em 20.11.2012, processo de execução fiscal 0175201201011162) e o montante de € 5.626, 03 (quantia exequenda vencida em 20.12.2012, processo de execução fiscal nº 0175201301000578) respeitam a dívidas de IRS, enquanto o valor de € 4, 66 é proveniente de Imposto de Selo (quantia exequenda vencida em 20.12.2012, processo de execução fiscal nº 0175201301000578)-

4. Sendo que tais montantes correspondem a dívidas de tributos, como também consta da lista provisória de credores publicitada em 08.03.2013 e da certidão de dívidas que a fundamentou; não estando em causa, como se refere na douta sentença homologatória, “coimas e encargos de contraordenação”, que se reportam a outros valores e que não foram reclamados no Processo Especial de Revitalização.

5. Errou, assim, o Exmo. Juiz ao considerar não estarem em causa créditos por tributos e, por isso, não ser de convocar a aplicação do disposto nos artigos 125º da Lei 55-A/2010, de 31.12., e 30º, nº 3 da LGT; pelo que não deveria ter considerado que o Plano estava conforme os ditames legais e homologado o mesmo, que assim violou aquelas e outras normas da LGT e do CPPT.

6. Com efeito, nos termos do artigo 215º do CIRE, aplicável por força do disposto no artigo 17º-F, nº 5 do CIRE, deve ser recusada a homologação do plano de aprovado “ no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza…”.

7. Ora, o Plano de Recuperação/Revitalização na medida em que prevê uma moratória ilegal e um regime de pagamento prestacional ilegal - por prever o pagamento da primeira prestação em 31.01.2014, quando a mesma teria de ser paga no mês seguinte ao términus do prazo previsto no nº 5 do artigo 17º- D do CIRE - e não prevendo a constituição de garantias idóneas e suficientes, nem sequer aludindo à constituição de garantas, vai contra a vontade expressa da Fazenda Nacional, violando o disposto nos artigos 85º, nº3, 196º, 199º e 200º CPPT e 30º, nº 2 e nº 3, 35º, nº 2 e 3 e 36º da LGT.

8. Tais normas têm natureza imperativa, não podendo ser afastadas, nomeadamente em Plano de Recuperação/Revitalização, mesmo que aprovado com o quórum legal.

9. Por isso, a homologação do Plano de Recuperação da devedora “ I (...) – Transformação de Metais, Lda.”, é ilegal, nessa parte, quanto aos créditos fiscais, não podendo manter-se.

10. Acresce que a interpretação das normas do CIRE, designadamente dos artigos 192º, 1 e 196º, 1, no sentido de permitir o afastamento, através do plano de recuperação, de normas fiscais de natureza imperativa, nomeadamente das constantes do CPPT e da LGT supra citadas, conduz a que tais disposições legais sejam orgânica e materialmente inconstitucionais, violando o disposto nos artigos 103º, 2 e 3 e 165º, 1, i), da Constituição da República Portuguesa.

11. Não pode, pois, a homologação do plano de insolvência na parte em que afetou os créditos fiscais da Fazenda Nacional, sustentar-se em tal interpretação inconstitucional.

Nestes termos e naqueles mais que Vªs Exªs, se dignarão suprir, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e, consequentemente, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que recuse a homologação do Plano de Recuperação/Revitalização da devedora, na parte relativa aos créditos fiscais da Fazenda Nacional».

b) Segurança Social

            «1. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença de fls. … e ss., proferido nos autos de Processo Especial de Revitalização supra identificados, que

homologou Plano de Revitalização apresentado nos autos.

2. Porém, o ora apelante entende que o plano ora em análise viola normas aplicáveis ao seu conteúdo, nomeadamente as condições de regularização da dívida à Segurança Social, regulada nos termos do art. 190.º e ss., do CRCSP, e do art. 81.º, do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 3 de Janeiro, pelo que nos termos do art. 215.º, do CIRE, deveria o ilustre tribunal a quo ter recusado oficiosamente a homologação do mesmo.

3. Isto porque, o pagamento dos créditos à Segurança Social enunciado no sobredito plano pressupõe a existência de moratória no pagamento da dívida,  violando o art. 190.º, n.º 1, do CRCSP, e art. 81.º, n.º 1 do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 3 de Janeiro, e o art. art. 30.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (LGT), ex vi alínea a), do art. 3.º, do CRCSP.

4. E ainda, o referido plano prevê a modificação dos créditos da Segurança Social sem que tal tenha sido autorizado por este credor.

5. Sucede que após as alterações legais introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011 – doravante LOE2011) não é possível, sem o acordo do Estado (i. é, da Fazenda Nacional ou da Segurança Social), homologar um plano de Recuperação que comporte redução, extinção ou moratória de créditos fiscais ou da segurança social.

6. Anteriormente à LOE2011 considerava-se que o Estado, um credor entre os demais, devia respeitar a deliberação tomada pela maioria dos credores,  alicerçando-se tal entendimento na especialidade do CIRE relativamente à LGT (lex specialis derrogar legi generali), no princípio da igualdade dos credores (par conditio creditorum) e da primazia da vontade dos credores na escolha da melhor forma de satisfação dos seus interesses no processo falimentar.

7. Com o aditamento do n.º 3, do art. 30.º, da LGT, pela LOE2011, ficou arredada a interpretação até então predominante que a lei especial – o CIRE – derroga a lei geral – a LGT – passando então a entender-se maioritariamente que o CIRE não pode arredar as normas tributárias em vigor relativas ao perdão e redução de créditos tributários.

8. Sendo o crédito do ora recorrente admitido, tanto na jurisprudência como na doutrina, como sendo de natureza tributária, é-lhes aplicável as normas tributárias, nomeadamente a natureza indisponível do crédito tributário, cuja redução ou extinção tem de respeitar os princípios de igualdade e legalidade tributárias.

9. Ora, conforme nos ensinam Carvalho Fernandes e João Labareda “são não negligenciáveis todas as violações imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza”.

10. Pelo Exposto, e inexistindo o acordo do ora recorrente, a homologação do plano de recuperação deve ser oficiosamente recusado, nos termos do art. 215° do CIRE, por o referido plano não se harmoniza com o grau de disponibilidade dos créditos públicos, violando, de forma não negligenciável, normas imperativas aplicáveis ao seu conteúdo. (...)

14. Nestes termos, e ao ter decidido como decidiu, a Douta Sentença recorrida fez uma incorrecta interpretação do art. 3.º, alínea a), 185.º, 190.º, art. 203.º, art. 211.º e 212.º, todos do CRCSP, o art. 81.º, do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 3 de Janeiro, o art. 3.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março, o art. 30.º, n.º 2 e 3, da LGT e art. 215° do CIRE.

Termos em que, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que recuse a homologação do plano apresentado, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA».

16. Pela Requerente do PER foram apresentadas contra-alegações, cuja minuta finalizou com as seguintes conclusões:

Quanto à Fazenda Nacional:

1ª. O prazo para interposição do presente recurso é de 15 dias, atento o disposto nos artigos 9.º e 17.º do CIRE e 638.º, n.º 1 do CPC, dado tratar-se de um processo urgente.

2ª. Tal prazo, contado desde o dia 30/10/2013, o dia em que a Ilustre Magistrada do Ministério Público foi notificada da decisão que homologou o plano de revitalização, terminou em 14/11/2013, tendo esta apresentado o requerimento de interposição de recurso, acompanhado da correspondente alegação, apenas em 15/11/2013, portanto, já fora de prazo.

3ª. Se o recurso não tiver, por essa razão, sido recusado em 1ª instância, deve sê-lo por esta Relação, assim se dando cumprimento ao preceituado na al. a) do n.º 2 do art. 641.º do CPC.

Ainda assim e sem prescindir,

4ª. No caso do presente plano, ao prever-se o pagamento integral de capital e juros, não há qualquer prejuízo para o recorrente, na medida em que o deferimento prestacional é compensado pelos juros igualmente previstos no mesmo plano, juros estes também pelo período de carência.

5ª. Ora, o plano de recuperação homologado não reduz nem extingue o crédito da Fazenda Nacional, razão pela qual não viola o art. 30.º, n.ºs 2 e 3 da LGT, nem o previsto no art. 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro.

6ª. Além do mais o pagamento em prestações nele previsto respeita o estabelecido nos artigos 196.º, n.º 4 e 85.º do CPPT e 36.º, n.º 3 e 42.º da LGT, e tal diferimento mostra-se, - nos termos que se intentou demonstrar -, idoneamente garantido.

7ª. O processo especial de revitalização foi criado em 20 de Abril de 2012, com a Lei 16/2012, e, por isso, depois da referida Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro, pelo que, se também no âmbito deste processo especial, o legislador tivesse tido intenção de salvaguardar em absoluto os créditos do Estado, poderia tê-lo feito expressamente, tal como fez, aliás, no n.º 2 do art. 196.º do CIRE, o que deliberadamente, - e bem – não fez.

8ª. E não o fez porque tal opção seria totalmente contraditória com o fim precípuo deste processo de revitalização, - permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização - pois seria o mesmo Estado que o criou a inviabilizá-lo, com o consequente sacrifício não só do devedor, como igualmente dos restantes credores.

9ª. A alteração destas regras, ditas imperativas, para determinados fins específicos não é, aliás, sequer novidade, pois, não raras vezes, se criam planos de regularização de dívidas fiscais para recuperar créditos em atraso, em que as condições de pagamento são modificadas e postergadas, como sucede com o recentíssimo regime criado pelo DL n.º 151-A/2013, de 31 de Outubro.

10ª. O que por maioria de razão deve suceder num processo judicial onde além do interesse creditício da Fazenda Nacional, está em causa a viabilidade de uma empresa, e, por arrasto, de muitas outras.

11ª. A homologação do plano de revitalização em nada bole com a criação e definição dos elementos essenciais dos impostos, deixando intocados a incidência, as taxas, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes, pelo que não se mostram violados os n.ºs 2 e 3 do art. 103.º nem a al. i) do n.º 1 do art. 165.º da CRP».

Quanto à Segurança Social:

«1ª. No caso do presente plano, ao prever-se o pagamento integral de capital e juros, não há qualquer prejuízo para o recorrente, na medida em que o deferimento prestacional é compensado pelos juros igualmente previstos no mesmo plano.

2ª. Ora, o plano de recuperação homologado não reduz nem extingue o crédito da segurança social, razão pela qual não viola o art. 30.º, n.ºs 2 e 3 da LGT, nem o previsto no art. 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro.

3ª. Além do mais o pagamento em prestações nele previsto respeita o estabelecido no art. 190.º, n.º 2, al. a) do C. Contributivo e bem assim o disposto no art. 81.º do Decreto-Regulamentar 1-A/2011, e tal diferimento mostra-se, - nos termos que se intentou demonstrar -, idoneamente garantido.

4ª. O processo especial de revitalização foi criado em 20 de Abril de 2012, com a Lei 16/2012, e, por isso, depois da referida Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro, pelo que, se também no âmbito deste processo especial, o legislador tivesse tido intenção de salvaguardar em absoluto os créditos do Estado, poderia tê-lo feito expressamente, o que deliberadamente, - e bem – não fez.

5ª. E não o fez porque tal opção seria totalmente contraditória com o fim precípuo deste processo de revitalização, - permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização - pois seria o mesmo Estado que o criou a inviabilizá-lo, com o consequente sacrifício não só do devedor, como igualmente dos restantes credores.

6ª. A alteração destas regras, ditas imperativas, para determinados fins específicos não é, aliás, sequer novidade, pois, não raras vezes, se criam planos de regularização de dívidas fiscais e á Segurança Social, para recuperar créditos em atraso, em que as condições de pagamento são modificadas e postergadas, como sucede com o recentíssimo regime criado pelo DL n.º 151-A/2013, de 31 de Outubro.

7ª. O que por maioria de razão deve suceder num processo judicial onde além do interesse creditício do Instituto da Segurança Social, IP, - que, além do mais, no momento próprio não votou contra o referido plano -, está em causa a viabilidade de uma empresa, e, por arrasto, de muitas outras.

Termos em que, e nos demais de direito do douto suprimento, deve o recurso improceder, confirmando-se a sentença que homologou o Plano de Revitalização apresentado nos autos».

17. Dispensados os vistos, cumpre decidir.


*****


II. O objecto do recurso.

Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha.

Assim, as questões a decidir nos presentes recursos de apelação são as de saber se:

- A sentença recorrida enferma de um erro ao considerar que a Apelada já pagou à Apelante – Fazenda Nacional – o valor reconhecido do crédito por tributos, sendo o remanescente devido por coimas e encargos de contra-ordenação;

- A homologação do plano ocorreu com preterição de normas de natureza imperativa relativamente aos créditos da Fazenda Nacional e da Segurança Social;

- Em caso afirmativo, apreciar quais as consequências de tal preterição relativamente ao plano de revitalização.


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III.1. - O mérito do recurso

III.1.1. A factualidade que releva para apreciação das referidas questões é a que decorre do relatório supra

III.1.2. Considerações gerais

Conforme já havíamos expendido no processo n.º 6070/12.1TBLRA-A.C1, em acórdão proferido no dia 12 de Março de 2013, disponível in www.dgsi.pt, para um melhor enquadramento do tipo de processo aqui em causa, iremos reproduzir as considerações gerais ali tecidas. Assim:

O Processo Especial de Revitalização[4] foi introduzido com a 6.ª alteração ao Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março[5], cumprindo previamente determo-nos, ainda que brevemente, sobre esta nova figura e aquilatar das razões da sua introdução, com vista a uma melhor compreensão do regime.

Para o efeito, importa fazer uma incursão sobre o processo legislativo que culminou com esta alteração legislativa, julgada necessária mercê do exponencial aumento do número de insolvências em Portugal, resultantes da crise económica e financeira em que o país está mergulhado, e única solução que o denominado sistema de falência-liquidação previsto no CIRE permitia.

A primeira menção à necessidade de alteração deste sistema, encontramo-la no ponto 2.18 do “Memorando de Entendimento” celebrado entre o Estado português, a CE, o BCE e o FMI, que impunha a definição de “princípios gerais de reestruturação voluntária extra-judicial em conformidade com boas práticas internacionais”, após o que o Governo veio a aprovar a Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro, que definiu os seguintes “Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores”:

Primeiro princípio - o procedimento extrajudicial corresponde a um compromisso assumido entre o devedor e os credores envolvidos e (e não a um direito) e apenas deve ser iniciado quando as dificuldades financeiras do devedor possam ser ultrapassadas e haja uma forte probabilidade de este manter-se em actividade após a conclusão do acordo alcançado com os seus credores;

Segundo princípio - durante todo o procedimento, as partes devem actuar de boa fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos;

Terceiro princípio - deve ser garantida uma abordagem unificada por parte dos credores, que melhor sirva os interesses de todas as partes;

Quarto princípio - os credores envolvidos devem cooperar entre si e com o devedor de modo a concederem a este um período de tempo suficiente para obter e partilhar toda a informação relevante e para elaborar e apresentar propostas para resolver os seus problemas financeiros;

Quinto princípio - durante o período de suspensão, os credores envolvidos não devem agir contra o devedor, comprometendo-se a abster-se de intentar novas acções judiciais e a suspender as que se encontrem pendentes;

Sexto princípio - durante o período de suspensão, o devedor compromete-se a não praticar qualquer acto que prejudique os direitos e as garantias dos credores, ou que, de algum modo, afecte negativamente as perspectivas dos credores de verem pagos os seus créditos, em comparação com a sua situação no início do período de suspensão;

Sétimo princípio - o devedor deve adoptar uma postura de absoluta transparência durante o período de suspensão, partilhando toda a informação relevante sobre a sua situação, nomeadamente a respeitante aos seus activos, passivos, transacções comerciais e previsões da evolução do negócio;

Oitavo princípio - toda a informação partilhada pelo devedor, incluindo as propostas que efectue, deve ser transmitida a todos os credores envolvidos e reconhecida por estes como confidencial, não podendo ser usada para outros fins, excepto se estiver publicamente disponível;

Nono princípio - As propostas apresentadas e os acordos realizados durante o procedimento, incluindo aqueles que apenas envolvam os credores, devem reflectir a lei vigente e a posição relativa de cada credor;

Décimo princípio - As propostas de recuperação do devedor devem basear-se num plano de negócios viável e credível, que evidencie a capacidade do devedor de gerar fluxos de caixa necessários ao plano de reestruturação, que demonstre que o mesmo não é apenas um expediente para atrasar o processo judicial de insolvência, e que contenha informação respeitante aos passos a percorrer pelo devedor de modo a ultrapassar os seus problemas financeiros;

Décimo primeiro princípio - Se durante o período de suspensão ou no âmbito da reestruturação da dívida for concedido financiamento adicional ao devedor, o crédito resultante deve ser considerado pelas partes como garantido.”

E foi na sequência da definição destes princípios que veio a ser apresentada a proposta de lei n.º 39/XII da Presidência do Conselho de Ministros, assente na ideia fundamental de que “cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas”, e consequentemente privilegiando a manutenção do devedor no giro comercial e relegando para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação.

A atenuação da forma radical prevista no CIRE com a primazia do sistema de falência-liquidação, decorre logo da alteração introduzida ao seu artigo 1.º, n.º 1, que agora passou a dar primazia à recuperação das empresas em detrimento da liquidação do património do devedor, a não ser quando tal não se afigure possível, por isso que as alterações possam parecer mais de forma que de conteúdo[6].

Assim, mantendo-se a finalidade primeira do processo, a satisfação dos credores pela forma que vier a ser prevista num plano de insolvência ou de recuperação, permite-se no n.º 2 do artigo 1.º do CIRE, a opção pelo processo especial de revitalização ao devedor que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, permitindo-lhe por esta via estabelecer negociações com os credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização (artigo 17.º-A, n.º 1, in fine).

Portanto, pressuposto primeiro para a utilização deste novo mecanismo é que o devedor, que comprovadamente esteja numa das referidas situações, ainda seja susceptível de recuperação (artigo 17.º-A, n.º 1), definindo-se que se encontra numa situação económica difícil o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito (artigo 17.º-B), e considerando-se em insolvência iminente, o devedor que esteja na iminência de se encontrar impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artigo 3.º, n.ºs 1 e 4).

Ponto é que, em qualquer dos casos, ainda não se encontre numa situação de insolvência efectiva, ou seja, efectivamente impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artigo 3.º, n.º 1), uma vez que caso tal ocorra, por força do disposto no artigo 18.º, o devedor tem o dever de se apresentar à insolvência[7].

Por outras palavras, significa isto que se trata de um processo que visa possibilitar a revitalização rápida e eficaz dos devedores que se encontrem numa situação de “pré-insolvência”[8], não se tratando de “ressuscitar o já insolvente”, mas sim de “reanimar a que conserva ainda um sopro de vida, sendo necessário insuflar-lhe oxigénio indispensável para que se reactive e reerga”[9].

Para tal desiderato, a lei atribuiu natureza urgente ao processo (artigo 17.º-A, n.º 1), consagrou um regime de cariz voluntário já que o recurso ao PER depende da manifestação de vontade do devedor nesse sentido (artigos 17.º-A, n.ºs 1 e 2, e 17.º-C), e é optativo, uma vez que em situação de falência iminente o devedor pode optar logo pela imediata apresentação à insolvência (artigo 3.º, n.º 4)[10]; e de pendor marcadamente extrajudicial (artigos 17.º-D, 17.º-F e 17.º-I), mas fazendo observar nas negociações entre devedor e credores, uma actuação conforme aos aludidos princípios orientadores, por via da previsão expressa do n.º 10 do artigo 17º-D.

Visando ainda conferir credibilidade a este processo e evitar o seu uso abusivo, atentos os importantes efeitos que do mesmo decorrem sobre outros processos pendentes (artigo 17.º-E, n.ºs 1 e 6), o legislador consagra a possibilidade de o devedor e os seus administradores de direito ou de facto, serem civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos credores em virtude de falta ou incorrecção das informações prestadas e das comunicações efectuadas (artigo 17.º-D, n.º 11).

Tratando-se, como se afirmou, de um processo de pendor marcadamente extrajudicial, ao juiz está cometida neste PER a prática de escassos actos: o primeiro é a nomeação de administrador judicial provisório, na sequência da comunicação efectuada pelo devedor e da verificação do cumprimento das formalidades legalmente prescritas para o efeito [artigo 17.º-C, n.ºs, 1 a 3, alínea a)][11]; depois, a decisão de impugnações de reclamações de créditos (artigo 17.º-D; seguidamente, quando as negociações chegam à elaboração de um plano de recuperação, o juiz decide se deve homologar o referido plano ou recusar a sua homologação (artigo 17.º-F, n.ºs 3 e 5); e finalmente, quando no processo não se chegue à aprovação de um plano de recuperação, e o mesmo seja encerrado, cabe ao juiz a declaração de insolvência do devedor, quando seja o caso (artigo 17.º-G).

Sinteticamente traçadas as linhas orientadoras do PER e o campo de intervenção do juiz, somos chegados ao momento de apreciar as três questões recursórias à luz do que se deixa dito.


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III.1.3. Do crédito da Fazenda Nacional

Conforme decorre das respectivas conclusões recursórias, a Fazenda Nacional considera que, ao invés do afirmado na sentença recorrida, detém ainda sobre a Apelante um crédito proveniente do não pagamento de impostos – IRS e Imposto de Selo – pelo que, a homologação do plano não podia ter sido efectuada em face da sua expressa manifestação de vontade, no sentido de votar desfavoravelmente a homologação do plano de revitalização.

Vejamos, então, qual a tramitação processual efectuada nos autos.

De acordo com o disposto no artigo 17.º-D, n.º 3, do CIRE a Iista provisória de créditos é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis, e dispondo, em seguida, o juiz de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas.  

Porém, de acordo com a previsão ínsita no n.º 4 do indicado artigo, findo tal prazo sem que a lista de provisória de créditos haja sido impugnada, a mesma converte-se em definitiva, por força desta clara estatuição legal.

No caso em apreço, a devedora e ora Apelada, impugnou a lista provisória de créditos relativamente a alguns dos credores mas não se pronunciou relativamente aos créditos provisoriamente reconhecidos da Fazenda Nacional e da Segurança Social.

Nessa lista consta a existência de dois créditos do Estado: um cujo capital é de 5 638,51€ (IRS) e o outro cujo capital se cifra em 10 244,90€ (Custas sic), ambos acrescidos de juros e despesas, sendo aquele primeiro crédito com privilégio (mobiliário geral e imobiliário) e o segundo comum - cfr. fls. 385.

Mais consta um crédito do Instituto da Segurança Social, cujo capital é de 61 407,28€ (contribuições), acrescido de juros, também com privilégio (imobiliário e mobiliário geral) – cfr. fls. 386.

Acontece que, não tendo a ora Apelada impugnado esses créditos no prazo que a lei lhe concede para o fazer, prazo esse que é peremptório, se conjugarmos o preceituado nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 17.º-D, decorrido o mesmo sem que a lista provisória de créditos haja sido impugnada, esta converte-se de imediato em lista definitiva.

“Como é evidente a publicação de referida lista provisória de créditos destina-se a dar a necessária e pronta publicidade a todos os interessados (credores ou não) relativamente aos créditos que o Administrador Judicial Provisório tomou em consideração, no que respeita à identificação do credor, ao montante de crédito em capital e juros, data da sua constituição e do seu vencimento, natureza e proveniência do crédito, suas garantias, etc. a fim de poderem detectar uma qualquer indevida inclusão ou exclusão de créditos, uma eventual incorrecção do seu montante ou da sua qualidade, proveniência, ou outra, nos termos do n.º1 do art.º 130.º do CIRE.

Sendo certo que, detectada por qualquer interessado uma qualquer inclusão ou exclusão indevida de determinado crédito, uma incorrecção ou outro qualquer lapso, é seu ónus, no prazo de 5 dias, deduzir nos autos, querendo, a respectiva impugnação, cfr. n.º3 do art.º 17.º-D do CIRE. Na verdade, só esse meio é o próprio e adequado para que, depois de apreciada judicialmente tal impugnação, a lista provisória de créditos que se encontra publicada no Portal Citius possa sofrer uma qualquer alteração, por via da publicação de uma lista definitiva de créditos.

Pois é certo que depois da publicação no dito Portal da lista provisória de créditos, ela não pode mais ser alterada, por quem quer que seja, (incluindo o Administrador Judicial Provisório, o tribunal, etc) a não ser pela publicação de uma outra lista, então definitiva, e no caso se alguma das eventuais impugnações judiciais terem tido procedência.”[12].

Desta sorte, não colhe a posição defendida pela apelada de que o montante de 5 638,51€ se reportaria a dívidas contraídas posteriormente à entrada em juízo da presente acção, porquanto decorre dos autos que esse processo de execução fiscal já existia à data da elaboração da lista provisória de créditos e a mesma não o impugnou nem com este nem com qualquer outro fundamento.

Assente que existiam dois processos de execução fiscal, bem como os respectivos valores, vejamos, então, se os mesmos se mostravam ou não integralmente liquidados aquando da sentença que homologou o plano de revitalização, uma vez que, atento o preceituado no artigo 611.º do CPC, o pagamento das dívidas à Fazenda Nacional no decurso da acção extinguiria o crédito do Estado, tratando-se, consequentemente, de factos jurídicos supervenientes a atender na sentença.

Efectuadas as supra referidas diligências, o Mm.º Juiz entendeu que, à data de prolação da sentença, apenas se encontravam em dívida montantes decorrentes do não pagamento de coimas.

Fê-lo, porém, por mero lapso, conforme demonstraremos.

Na verdade, se apreciarmos a lista provisória de créditos, verificamos constarem da mesma, como estando em dívida, os valores supra indicados. E dizemos que se tratou de mero lapso na apreciação dos documentos, porquanto o Senhor Juiz sempre avançou nos seus despachos que a existência de dívida de imposto à Fazenda Nacional, poderia determinar a não homologação do plano.

Efectivamente, apreciados os documentos que foram sendo juntos aos autos com vista a determinar qual a situação em que se encontraria a devedora, mormente para aquilatar se o pagamento das quantias em dívida à Fazenda Nacional, havia ou não sido efectuado, constata-se que apenas foi paga a quantia referente ao processo de execução fiscal n.º 0175201301001272, conforme a própria devedora também juntou certidão, mantendo-se em dívida o valor dos processos n.º 0175201301000578 e 017520120101011162, decorrente do não pagamento de IRS e Imposto de Selo, conforme a certidão do serviço de Finanças de Sever do Vouga, claramente espelha – cfr. fls. 670 e 671 – e que é exactamente o montante que havia sido reclamado na lista provisória de créditos, a fls. 385 dos autos, para além do valor relativo ao outro supra identificado processo e que entretanto foi pago.

Desta sorte, cumpre concluir que, à data da sentença que homologou o Plano de Revitalização da apelada, esta ainda tinha uma dívida à Fazenda Nacional de 5.638,51€ decorrente do não pagamento de Impostos, a qual não se confunde com o valor de 6.522,70€ por coimas e encargos de contra-ordenação, que também consta do mesmo documento mas que não foi reclamado nestes autos.


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III.1.4. Da preterição de normas imperativas

Assente que o plano de revitalização da empresa foi aprovado com voto desfavorável da Fazenda Nacional e sem o voto favorável da Segurança Social, quando existiam dívidas a estas duas entidades, importa apreciar se tal aprovação pode ou não manter-se.

Antes de avançarmos, permita-se-nos um parêntesis para afirmar que, ao contrário do que a Apelada parece entender, no caso em apreço, não decorre qualquer consequência preclusiva do facto de o Instituto da Segurança Social não ter oportunamente votado contra o Plano de recuperação, porquanto o Recorrente dissente da sentença com o fundamento de que o Senhor Juiz, ao contrário do previsto no artigo 215.º, não recusou oficiosamente a homologação do plano, apesar de resultar do mesmo a violação de normas imperativas. Movemo-nos, pois, e apenas, no domínio deste preceito - não homologação oficiosa -, e não da previsão legal vertida no artigo 216.º do CIRE, respeitante à não homologação por solicitação dos interessados, essa sim, dependente dos prazos e requisitos ali definidos.

Prosseguindo, cabe então apreciar se o sobredito plano podia ter sido homologado ou, ao invés, tal homologação devia ter sido recusada oficiosamente pelo juiz. Para o efeito, e em face da remissão constante do artigo 17.ºF, n.º 5, do CIRE, há que convocar o preceituado no artigo 215.º da mesma codificação, em conformidade com o qual, o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência/revitalização aprovado pelos credores, no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza.

Com vista a densificar aquilo que deve ser entendido como violação não negligenciável podemos colher o ensinamento de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, que consideram “não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza”[13].

Vejamos, pois, se a homologação do plano, por ter sido acordado pela maioria legalmente exigida dos credores, pode vincular os credores Fazenda Nacional e Instituto da Segurança Social. Para o efeito, debrucemo-nos sobre os preceitos legais aplicáveis a estes créditos.

De acordo com o preceituado no artigo 85.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), os prazos de pagamento voluntário dos tributos são regulados nas leis tributárias, sendo que, nos casos em que estas não estabeleçam prazo de pagamento, este será de 30 dias após a notificação para pagamento efectuada pelos serviços competentes.

Por seu turno, decorre do disposto no artigo 196.º, n.º 1, do CPPT, que as dívidas exigíveis em processo executivo podem ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, até à marcação da venda, ao órgão da execução fiscal. Excepcionalmente, por força do preceituado nas alíneas a) e b) do n.º 3, do indicado artigo, é admitida a possibilidade de pagamento em prestações das dívidas de recursos próprios comunitários e dívidas resultantes da falta de entrega, dentro dos respectivos prazos legais, de imposto retido na fonte ou legalmente repercutido a terceiros - quando esteja em aplicação plano de recuperação económica legalmente previsto de que decorra a imprescindibilidade da medida, podendo neste caso, se tal for tido como adequado pela entidade competente para autorizar o plano, haver lugar a dispensa da obrigação de substituição dos administradores ou gerentes ou se demonstre a dificuldade financeira excepcional e previsíveis consequências económicas gravosas. Acresce que, nos termos do n.º 6 do preceito, quando no âmbito de plano de recuperação económica legalmente previsto se demonstre a indispensabilidade da medida e, ainda, quando os riscos inerentes à recuperação dos créditos o tornem recomendável, a administração tributária pode estabelecer que o regime prestacional seja alargado até ao limite máximo de 150 prestações, sendo que a importância a dividir em prestações não compreende os juros de mora, que continuam a vencer-se em relação à dívida exequenda incluída em cada prestação e até integral pagamento, por força do n.º 7 do mesmo artigo.

Por seu turno, o regime jurídico das dívidas à Segurança Social mostra-se regulado no DL n.º 411/91, de 17 de Outubro, cujo artigo 1.º estabelece que «[n]ão é permitido autorizar ou acordar extrajudicialmente o pagamento prestacional de contribuições em dívida à segurança social, nem isentar ou reduzir, extrajudicialmente, os respectivos juros vencidos ou a vencer», salvo o disposto no artigo 2.º, o qual prevê a regularização da dívida às instituições de previdência ou de segurança social pode ser autorizada se tal se revelar indispensável para assegurar a viabilidade da empresa devedora e se esta se encontrar numa das situações ali referidas, das quais avulta, para o que ora importa, a previsão ali contida por referência a legislação anterior que menciona tal possibilidade quando a empresa for objecto de processo especial de recuperação de empresas e de protecção dos credores. Em qualquer um dos casos previstos, por força do n.º 2 do mesmo artigo, a autorização para o pagamento em prestações deve ser dada por despacho do membro do governo que tiver a seu cargo a área da segurança social.

Visto o quadro legal aplicável, e considerando ainda o disposto na parte final do n.º 2 do artigo 3.º da Lei Geral Tributária, em face do qual, as dívidas ao Instituto da Segurança Social, são tributos, fácil é concluir que a possibilidade de pagamento da dívida tributária em prestações obedece a exigências legais diversas das previstas para os credores comuns, impondo-se que exista requerimento para o efeito e autorização da entidade competente, a qual depende, como é evidente, da verificação por esta do cumprimento dos requisitos legais.

Ora, apesar de no plano de revitalização da empresa requerente as prestações previstas estarem de acordo quanto ao respectivo número com aquilo que a lei possibilita seja concedido ao devedor, e tenha sido acautelado o pagamento dos juros moratórios, o certo é que, de acordo com o artigo 36.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, a administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos e nos termos expressamente previstos na lei, sendo que o Senhor Administrador Judicial provisório, não curou de obter a autorização da Fazenda Nacional nem do Instituto de Segurança Social para que tal pagamento pudesse ser deferido, cumprindo os requisitos que a lei impõe para que o pagamento em prestações dos créditos por tributos possa ser concedido.

Será que este incumprimento configura violação negligenciável das normas aplicáveis? Entendemos que não.

De facto, conforme é consabido, o artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31/12, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2011, alterou o artigo 30.º da LGT, designadamente com o aditamento do seu n.º 3 e, em consequência, com a absoluta clareza do seu teor, veio afastar a interpretação que vinha sendo seguida pela jurisprudência, no sentido de que, tratando-se o CIRE de lei especial, os créditos fiscais e os créditos da segurança social, para efeitos de homologação do plano de insolvência, se encontravam em plano de igualdade com os restantes créditos. E fê-lo mesmo para os processos de insolvência que já se mostrassem pendentes à data da sua entrada em vigor, em claro sentido impositivo de uma interpretação da lei que não deixasse margem para dúvidas quanto ao pretendido pelo legislador.

A publicação desta norma do Orçamento de Estado determinou inclusivamente a alteração do entendimento vertido em alguns acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, sendo hoje pacífico que «tendo a Lei n.º 55.º-A/2010, de 31-12, determinado expressamente a aplicação do n.º 3 do art. 30.º da LGT aos processos de insolvência pendentes e com planos não homologados, é por demais evidente que não podem os tribunais deixar de cumprir este comando legal, posto que nos termos do art. 3.º da Lei n.º 52/2008, de 28-08 (LOFTJ) incumbe-lhes assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, sendo certo que, nos termos do art. 8.º, n.º 2, do CC o tribunal está vinculado ao dever de obediência à lei, não podendo tal dever ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo»[14].

Por isso, a jurisprudência tem vindo a entender que em face da evolução legislativa do regime insolvencial, a única conclusão a tirar com a introdução pela Lei do Orçamento, do referido segmento normativo, é a de que foi vontade do legislador afastar, de forma inequívoca e expressa, qualquer interpretação que pudesse continuar a efectuar-se, no sentido anteriormente defendido de que o regime especial do CIRE  derroga o regime geral da LGT.    

Daí dever concluir-se, como tem vindo a ser feito pela jurisprudência maioritária, que após as alterações introduzidas pela Lei 55-A/2010, de 31/12, ao artigo 30.º da LGT, em face das normas imperativas vigentes, deixou de ser legalmente possível homologar um plano de insolvência ou revitalização de empresa que contemple a redução, extinção ou mesmo a moratória de créditos de natureza tributária, sem que o Estado - a Fazenda Nacional e/ou a Segurança Social - tenha votado favoravelmente tal homologação.

De facto, em face do preceituado no citado artigo 125º, em conjugação com os artigos 30.º, nºs 2 e 3, 20.º e 36.º da LGT, e os artigos 85.º, n.º3, 196.º, 197.º e 199.º, do CPTT e atendendo à natureza indisponível dos referidos créditos, a simples vontade qualificada dos demais credores que votaram favoravelmente o plano de revitalização, na percentagem dos votos supra indicada em face de cuja verificação o aprovaram, não é bastante para que do plano aprovado possa decorrer a redução, extinção ou moratória no seu pagamento, no âmbito e ao abrigo desse plano, como no caso dos autos sucede, sem que os credores Fazenda Nacional/Instituto de Segurança Social tenham votado favoravelmente a aprovação do plano.

Como assim, a homologação de plano de revitalização que inclua o pagamento em prestações de créditos por tributos, sem o acordo da Fazenda Nacional e/ou da Segurança Social, constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, caindo na previsão do artigo 215.º do CIRE e, por tal motivo, deve o juiz recusar oficiosamente a homologação do acordo na parte em que viola regras legais imperativas.

Efectivamente, visto o disposto no citado preceito referente à não homologação oficiosa, verifica-se que este preceito visa conferir ao tribunal o “papel de guardião da legalidade, cabendo-lhe, em consequência, sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano[15]”.

Mas, qual deve ser a extensão desta recusa de homologação oficiosa?

Esta constitui a última questão a decidir e vamos apreciá-la em seguida, uma vez que a mesma não tem merecido idêntica resposta.


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III.1.5. Consequência da violação de normas imperativas

Verificada a existência de violação não negligenciável das regras legais decorrentes da LGT num plano de revitalização de empresa, as consequências de tal violação não têm obtido resposta uniforme, podendo constatar-se a existência de acórdãos nos seguintes sentidos:

- uma maioria, que tem considerado que um plano em que se verifique tal violação, não pode, pura e simplesmente, ser homologado por existir nulidade causada pela afectação da indisponibilidade dos créditos, quer da Segurança Social, quer da Fazenda Nacional[16];

- uma minoria, que defendeu que as alterações introduzidas ao CIRE com a consagração do processo de revitalização afastavam o disposto na LGT, concluindo que o plano deve ser integralmente homologado[17];

- finalmente, algumas decisões no sentido que já havia sido avançado pelo citado Acórdão do STJ, de 10-05-2012, e que foi defendido também nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 18-06-2013 e 15-10-2013, de acordo com os quais, a homologação  de um plano de insolvência aprovado pela assembleia de credores, com o voto contra do Estado por o mesmo não respeitar o regime previsto no citado DL nº  411/91 e na LGT relativamente aos créditos tributários, é ineficaz em relação à Fazenda Nacional e ao Instituto de Segurança Social, IP, não produzindo quaisquer efeitos relativamente a tais credores. 

            Em face desta constatada divergência, foi recentemente interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento em oposição de Acórdãos sustentando-se ali que a decisão recorrida – o Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 1-10-2013, que revogou a decisão de primeira instância recusando a homologação do plano de recuperação aprovado com voto adverso do Estado -,  está em contradição com o sentenciado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18-06-2013 – que considerou que o plano de recuperação, apesar de ter sido aprovado com votos adversos da Segurança Social, pode ser homologado, apenas se devendo considerar que é ineficaz em relação àquela entidade.

            Por ter sido entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça que existe oposição entre os dois Acórdãos, no que respeita às consequências para o Plano de Recuperação, quando foram alterados créditos daquelas entidades, apesar dos seus votos contra, o recurso foi admitido ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, e foi decidido no recente Acórdão de 18-02-2014, proferido no processo n.º 1786/12.5TBTNV.C2.S1, disponível em www.dgsi.pt.

            Pela habitual e reconhecida clareza do seu Relator, e pela síntese da evolução sofrida pelo direito falimentar não podemos deixar de transcrever parcialmente o sumário do referido acórdão, na parte em que, na nossa perspectiva, constam todos os pontos relevantes para a decisão:

1. O Direito falimentar português tem sido objecto de reformas, sempre oscilando entre dois paradigmas (...) um dando primazia à recuperação, outro privilegiando a liquidação de empresas em estado de insolvência iminente.

2. A Lei nº16/2012, de 20 de Abril, reformou aspectos do CIRE, em consequência das obrigações assumidas pelo Estado por imposição do Memorando da troika (...) [pontos 2.17, 2.18, e 2.19] (...)

3. Daqui decorre que o Estado, num quadro de forte constrangimento económico e financeiro, assumiu o compromisso de legislar no sentido de introduzir um quadro legal de cooperação e flexibilização dos seus créditos quando estiver em causa a aceitação de reestruturação de créditos de outros credores, ou seja, o Estado Português, aceitou adoptar legislativamente, procedimentos flexíveis quanto aos seus créditos, que no direito português como é consabido, se apresentam exornados de fortes garantias (v.g. privilégios creditórios), em ordem à salvaguarda das empresas em comunhão de esforços com os credores particulares, dando primazia à recuperação.

4. Esse foi o caminho trilhado pela Jurisprudência dos Tribunais Superiores, antes mesmo da Reforma de 2012, ao considerar que o Estado, no contexto do processo insolvencial, poderia ver os seus créditos afectados por decisão dos credores, porquanto as prerrogativas dos seus créditos, no contexto da relação tributária não seriam, sem mais, transponíveis para o processo universal que a insolvência é, e por isso, não estavam os créditos da Autoridade Tributária numa posição de intangiblidade (...).

            5. O legislador, alterou a Lei Geral Tributária blindando os créditos fiscais. (...)

           6. Reafirmando com indiscutível clareza a indisponibilidade dos créditos tributários, proibindo a sua redução ou extinção e tendo em conta a amplitude do conceito de “relação tributária” e o que a constitui – cfr. art. 30º, nº1, als. a) a e) – o direito insolvencial, após a reforma de 2012, quando conjugado com aqueles preceitos da LGT é dificilmente harmonizável.

           7. Como é notório, quer os créditos do Estado, quer os de outras entidades, como a Segurança Social, representam em grande número de casos, avultadas somas, daí que, a manterem-se intocados, todo o esforço de recuperação da insolvente ficará a cargo dos credores comuns ou preferenciais da insolvência, que terão de arcar com a modificabilidade e mesmo a supressão dos seus créditos e garantias, ante o Estado que nada cedendo, se coloca numa posição de jus imperii, num processo em que só, excepcionalmente, deveria ter tratamento diferenciado.

8. Numa perspectiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam, pode violar o princípio da proporcionalidade admitir que o processo de insolvência seja colocado em pé de igualdade com a execução fiscal, servindo apenas para a Fazenda Nacional actuar na mera posição de reclamante dos seus créditos, sem atender à particular condição dos demais credores do insolvente ou pré-insolvente, que contribuem para a recuperação da empresa, abdicando dos seus créditos e garantias, permanecendo o Estado alheio a esse esforço, escudado em leis que contrariam o seu Compromisso de contribuir para a recuperação das empresas, como resulta do Memorandum assinado com a troika e até das normas que, no contexto do PER, o legislador fez introduzir no CIRE.

9. O que dissemos, numa perspectiva de mais lato enquadramento da questão decidenda, terá que ter em conta o que constitui a pretensão recursiva da recorrente; com efeito, apenas pede que se considere ineficaz, em relação à Fazenda Nacional e ao Instituto de Segurança Social, I.P. a eficácia do Plano que foi homologado, ou seja, que não produza quaisquer efeitos relativamente a tais credores, por não respeitar quanto a estes credores o regime previsto no DL. n°411/91 (recuperação de contribuições em dívida da Segurança Social), e na LGT relativamente aos créditos tributários, solução esta adoptada no acórdão-fundamento, que foi confirmado pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Maio de 2012 – Proc. 368/10.0TBPVL-D.G1.S1 – in www.dgsi.pt.

10. O plano de insolvência, assente numa ampla liberdade de estipulação pelos credores do insolvente, constitui um negócio atípico, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da ineficácia, por isso o Plano de Recuperação da empresa que for aprovado, não é oponível ao credor ou credores que não anuíram à redução ou à modificação lato sensu dos seus créditos.

            Não podemos deixar de concordar com as judiciosas considerações tecidas, parecendo-nos indiscutível - atentas as finalidades e os princípios subjacentes ao PER, supra referidos nas considerações gerais deste acórdão -, por um lado, que a Lei Geral Tributária, na redacção vigente desde 1-1-2011 claramente afasta a possibilidade de homologação pura e simples do Plano de revitalização acordado, com o voto contra ou sem a anuência da Fazenda Nacional e da Segurança Social; e, por outro lado, que tais finalidades e princípios seriam completamente postergados com o primeiro dos elencados entendimentos, inviabilizando-se totalmente qualquer possibilidade de recuperação de uma empresa  se prevalecesse a interpretação que defende a recusa total de homologação do Plano sempre que existam dívidas ao Estado ou à Segurança Nacional, o que ocorrerá, com grande probabilidade, na maioria das situações em que uma empresa entre em incumprimento para com os seus credores comuns.

Por isso, consideramos que, em casos como o que o presente processo espelha, a única interpretação da lei que adequadamente sopesa todos os interesses a levar em conta: o da intangibilidade dos créditos fiscais e o da recuperação da empresa ainda viável, é a que, em casos como o dos autos, aplica à homologação do Plano o regime jurídico da ineficácia, em face do qual, o Plano de Recuperação de empresa aprovado pela maioria legal de credores, não é oponível aos créditos por tributos, quando estes credores se opuseram ou não anuíram à redução ou à modificação lato sensu dos seus créditos, incluindo-se aqui a moratória, mas mantém a sua eficácia quanto aos demais créditos não afectados por tal violação de norma legal, assim possibilitando a viabilização da empresa nos termos do plano acordado pela maioria dos credores.

  Na verdade, solução diversa chocaria o mais elementar senso de justiça quando estamos, como os factos supra descritos espelham, perante empresa que deu boas provas no mercado em que se insere, e tem, de acordo com a avaliação da maioria dos credores e do Senhor Administrador judicial provisório, possibilidde de recuperação.

  Pelo exposto, conclui-se ser de conceder provimento ao recurso do Estado-Fazenda Nacional que peticionou a ineficácia do Plano quanto aos seus créditos; e parcial provimento ao recurso do Instituto de Segurança Social que pugnou pela recusa de homoloção do Plano[18], devendo revogar-se parcialmente a sentença recorrida.


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III.2. - Síntese conclusiva:

I - Não tendo sido impugnados os créditos da Fazenda Nacional constantes da lista provisória de credores no prazo que a lei concede para tal, prazo esse que é peremptório, se conjugarmos o preceituado nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 17.º-D, decorrido o mesmo sem que a lista provisória de créditos haja sido impugnada, esta converte-se de imediato em lista definitiva.

II - Existindo dois processos de execução fiscal, peticionados os respectivos valores, e não tendo a Apelada demonstrado que ambos se encontravam integralmente liquidados até à sentença que homologou o plano de revitalização, somente podia ali considerar-se, atento o preceituado no artigo 611.º do CPC, o pagamento das dívidas à Fazenda Nacional que foi efectuado no decurso da acção num dos processos, extinguindo-se,  apenas nessa parte, o crédito do Estado, porquanto são factos jurídicos supervenientes a atender na sentença, mas mantendo-se os créditos peticionados no processo cujo pagamento não foi efectuado.

III - Após as alterações introduzidas pela Lei 55-A/2010, de 31/12, ao artigo 30.º da LGT, em face das normas imperativas vigentes, deixou de ser legalmente possível homologar um plano de insolvência ou revitalização de empresa que contemple a redução, extinção ou mesmo a moratória de créditos de natureza tributária, sem que o Estado - a Fazenda Nacional e/ou a Segurança Social - tenha votado favoravelmente tal homologação.

IV - A homologação de plano de revitalização que inclua o pagamento em prestações de créditos por tributos, sem o acordo da Fazenda Nacional e/ou da Segurança Social, constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, caindo na previsão do artigo 215.º do CIRE e, por tal motivo, deve o juiz recusar oficiosamente a homologação do acordo na parte em que que viola regras legais imperativas.

V - A única interpretação da lei que adequadamente sopesa todos os interesses a levar em conta: o da intangibilidade dos créditos fiscais e o da recuperação da empresa ainda viável, é a que, em casos como o dos autos, aplica à homologação do Plano o regime jurídico da ineficácia, em face do qual, o Plano de Recuperação de empresa aprovado pela maioria legal de credores, não é oponível aos créditos por tributos, quando estes credores se opuseram ou não anuíram à redução ou à modificação lato sensu dos seus créditos, mas mantém a sua eficácia quanto aos demais créditos não afectados por tal violação de norma legal, assim possibilitando a viabilização da empresa nos termos do plano acordado pela maioria dos credores.


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III - Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação do Estado – Fazenda Nacional e parcialmente procedente a apelação do Instituto de Segurança Social, revogando-se parcialmente a decisão recorrida, e decidindo-se que o plano homologado é ineficaz relativamente aos créditos reclamados pelos recorrentes, não produzindo quaisquer efeitos quanto a tais créditos.

Em tudo o mais mantém-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da massa insolvente.


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Coimbra, 25 de Março de 2014

Albertina Pedroso  ( Relatora )

Carvalho Martins

Carlos Moreira

[1] Relatora: Albertina Pedroso;

1.º Adjunto: Carvalho Martins;

2.º Adjunto: Carlos Moreira.
[2] Doravante abreviadamente designado CIRE.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC, sendo aplicável aos termos do presente recurso o texto decorrente do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, por estar em causa decisão recorrida posterior a 1 de Setembro de 2013 – cfr. artigos 5.º, 7.º, n.º 1 e 8.º.
[4] Doravante abreviadamente designado PER.
[5] Alterado pelos DL n.º 200/2004, de 18/09, n.º 76-A/2006, de 29 de Março, n.º 282/2007, de 7 de Agosto,  n.º116/2008, de 4 de Julho, e n.º 185/2009, de 12 de Agosto
[6] Cfr. Luís Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, Almedina 2012, 4.ª edição, pág. 76.
[7] Cfr. neste sentido, autor e obra citada, pág. 309.
[8] Cfr. Ac. TRG de 18-12-2012, processo n.º 2155/12.2TBGMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Cfr. Ac. TRP de 15-11-2012, processo n.º 1457/12.2TJPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Cfr., neste sentido, autor, obra e local citado.
[11] Na verdade, tendemos a concordar com a posição assumida no citado acórdão do TRP, em sentido diferente ao referido no também indicado acórdão do TRG, ao considerar que “o juiz, ao proferir o despacho a que se refere a segunda parte da alínea a) do n.º 3 do art.º 17.º-C do CIRE, não tem que verificar a existência dos requisitos materiais de que depende o recurso a tal procedimento, nem o seu eventual abuso”.
[12] Cfr. Ac. TRP de 04-02-2014, processo n.º 622/13.0TBCHV-A.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[13] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 2.ª edição, reimpressão, Quid Juris, Lisboa 2009, página 713.

[14] Cfr. Acórdão STJ de 10-05-2012, processo n.º  368/10.0TBPVL-D.G1.S1, disponível em www.stj.pt.
[15] Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa 2009, Reimpressão, pág. 712.
[16] Cfr. por todos, e a título meramente exemplificativo, o Ac. TRG de 25-11-2013, disponível em www.dgsi.pt.
[17] Cfr. Acórdão do TRG de 11/07/2013 e TRE de 06/06/2013.
[18] Entende-se, porém, que a parcial procedência não tem efeitos quanto a custas porquanto o fim pretendido pelo Recorrente – a não inclusão do seu crédito no Plano, é totalmente obtido com a ineficácia do Plano homologado quanto ao seu crédito.