Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
500/22.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL
INCÊNDIO
DEVER DE VIGILÂNCIA
PRESUNÇÃO DE CULPA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
RISCOS PRÓPRIOS DO VEÍCULO
PRESSUPOSTOS
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 483.º, N.º 2, 503.º, 505.º DO CÓDIGO CIVIL, 4.º, N.º 1, 6.º, N.º 1, E 11.º DO DECRETO-LEI N.º 291/2007, DE 21 DE AGOSTO
Sumário: I – Aquele que detém uma coisa – por exemplo, um veículo automóvel - com o dever de a vigiar, responde pelos danos que ela causar, excepto se provar que não teve culpa ou que os danos se teriam igualmente produzidos ainda que não houvesse culpa sua.
II – O fundamento material geral desta imputação subjetiva residirá aqui em que a comunidade tem de poder confiar em que quem exerce o poder de domínio sobre um bem determinado, acessível a outras pessoas, deve também dominar os riscos que para estas podem resultar do estado ou de situações perigosas.

III – Quem domina uma fonte de riscos determinável dentro de um âmbito de atuação objetivável, fica vinculado a deveres de cuidado e de prevenção – só determináveis em concreto – devendo actuar no sentido do afastamento ou da minimização dos perigos que daquela coisa resultam para terceiros, sob pena de responsabilidade.

IV – Se a coisa a vigiar não for em si mesma perigosa, aqueles deveres valerão no tocante a perigos especiais que dela partam.

V – O vinculado à vigilância, por exemplo, de um veículo automóvel, pode alijar a sua responsabilidade em dois casos: se provar que nenhuma culpa houve da sua parte; se demonstrar que os danos sempre se produziriam, ainda que não houvesse culpa sua, hipótese em que pode prevalecer-se da relevância negativa de causas virtuais.

VI – Para que esta imputação subjectiva de responsabilidade actue, é necessário que os danos tenham, objectivamente, sido causados, directamente, pela coisa que deve ser vigiada, que a coisa seja a causa ou a etiologia próxima desses mesmos danos.

VII – Na responsabilidade pelo risco não há sequer ilicitude ou mesmo um facto, no sentido de actuação livre e consciente do lesante, o que não pode deixar de se projectar na causalidade e no cálculo da indemnização que, por esse motivo, devem ser submetidas a regras diferenciadas, pelo que no caso de acidentes causados por veículos, a determinante é antes e só os riscos próprios do veículo e é o âmbito desses riscos que dá a medida da imputação.

VIII – A responsabilidade por acidentes causados por veículos, regulada pelo art.º 503, n.º 1, do Código Civil, só se constitui se o dano puder ser atribuído – imputado - aqueles riscos: estes hão-de ter sido causa do resultado danoso, estando, assim, a imputação dependente de um duplo factor: os riscos próprios do veículo; que esses riscos tenham conduzido, segundo um critério objectivo, à produção do resultado danoso, que foram esses riscos – numa perspectiva externo-objectiva – que se materializaram ou concretizaram naquele resultado.

IX – No seguro de responsabilidade civil o risco consiste na constituição no património do segurado de uma obrigação de indemnizar terceiros, ou, de modo mais perifrástico, na emergência inesperada para o segurado de uma obrigação de indemnizar proveniente de uma responsabilidade extracontratual, causada por um acto ilícito culposo – e nos casos em que tal seja admitido, também doloso – ou pelo risco juridicamente imputáveis ao segurado.

X – O risco é, neste tipo de seguro, o facto – ou conjunto de factos – determinante da obrigação de indemnizar que venha eventualmente a recair sobre o segurado, do que decorre que a obrigação do segurador só surge – mas surge sempre – se e quando estiverem verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil coberta pelo seguro, incluindo o facto danoso, o dano e a determinação do lesado.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: Henriques antunes
Adjuntos: Cristina Neves
Sílvia Pires

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

AA pediu ao Sr. Juiz de Direito do Juízo Central Cível de Leiria, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria a condenação da Companhia de Seguros A..., SA, e de B..., SA, a pagar-lhe a importância de 75.759,68€ proporcionalmente por todos os danos patrimoniais sofridos, quantia acrescida de juros à taxa legal em vigor desde 31.03.2021 e até integral pagamento, e a importância de 12.631,04€, proporcionalmente por todos os danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros à taxa legal em vigor desde 31.03.2021 e até integral pagamento, respectivamente.

Fundamentou esta pretensão no facto de ser proprietário do terreno localizado em ..., ..., ..., e do veículo automóvel ..-..-XM, terreno cedido à empresa de transportes C..., Lda., que nele faz o parqueamento dos seus veículos automóveis pesados de mercadorias, de no dia 30 de Dezembro de 2020, ter deflagrado, naquele parque, um incêndio que afectou as viaturas ..-TT-.. – cuja responsabilidade está transferida para a ré B... SA – ..-TQ-.. e ..-QB-.. e os reboques GD-...01, LE-...55, LE-...56 e L-...156 – cuja responsabilidade está transferida para a ré, Companhia de D..., SA – daquela empresa, e também o seu veículo automóvel, e que provocou a destruição completa do piso de betão do terreno e contaminou as terras circundantes, incêndio de causa desconhecida que lhe causou danos no valor global de € 88 390,72, pelos quais a primeira e a segunda rés são responsáveis na percentagem de 85,71% e de 12,29%, respectivamente.

Companhia de Seguros A..., SA, afirmou, em contestação, designadamente, que não foi possível apurar a concreta origem do incêndio, pelo que não pode ser responsabilizada pela eclosão do sinistro; por sua vez, a B... SA, defendeu-se alegando, nomeadamente, que o incêndio não teve origem nos veículos, mas no exterior, pelo que não é imputável ao veículo ..-TT-.. e teve causa estranha e exterior ao seu funcionamento.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, a sentença final da causa – com fundamento em que se deu como provado que o incêndio não teve causas mecânicas nem eléctricas que proviessem dos veículos seguros, pelo que tem-se por afastado o risco, que podemos com segurança concluir que o mesmo não teve origem no risco próprio dos veículos seguros – julgou a acção improcedente.

É esta sentença que o autor impugna no recurso – no qual pede a condenação das RR. nos termos do peticionado em função do número de veículos para os quais lhe foi transferida a responsabilidade civil, indemnizando o A. no valor de 2.112,12€ com IVA incluído para reparação da sua viatura, 17.100€ acrescidos de IVA para reparação do piso onde ocorreu o incêndio e ainda o valor de 32.000€ acrescidos de IVA para limpeza do terreno e descontaminação – tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:

A) O A. não pode concordar com a sentença que absolveu as RR.

B) O Recorrente concorda com os factos dados como provados.

C) A responsabilidade civil dos veículos envolvidos no incêndio estava transferida para as RR.

D) A sentença proferida baseia-se exclusivamente na teoria plasmada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.11.2014

E) No entanto, a matéria fáctica que consta deste Acórdão é totalmente diferente, o objeto e o pedido são diferentes, nesta decisão o que está em causa é a responsabilidade civil objetiva assente na responsabilidade pelo risco.

F) A sentença a quo esquece até que os Danos Próprios decorrentes do incêndio já haviam sido assumidos.

G) Quando no caso dos autos o que ficou provado é que não havia responsabilidade pelo risco próprio dos veículos.

H) Não pode a sentença a quo recorrer ao Princípio da Coincidência, precisamente porque esta não existe.

I) A sentença a quo aplicou mal o direito, pois não estamos no domínio dos riscos próprios dos veículos.

J) A responsabilidade das RR. não está excluída nos termos do artigo 505º CC porque não ficou provada a culpa do lesado ou de terceiro, nem tão pouco que estaríamos perante um caso de força maior.

K) O enquadramento jurídico é muito outro e que não consta da decisão aqui recorrida

L) Em concreto os factos dados como provados têm enquadramento no n.º 1 do artigo 493º CC.

M) Claramente foi violado o dever de vigiar os veículos pela sua proprietária.

N) Ao recorrente apenas cabe provar a existência do incêndio porque foi essa a causa dos seus danos e não provar as sub-causas para tais danos, artigo 342º, nº 1 do CC, conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.03.2023.

O) Para excluir a responsabilidade das RR e decidir pela sua absolvição, teriam que ter ilidido a presunção estabelecida e, assim, que foi cumprido o tal dever de vigia, mas o que ficou provado foi exatamente o contrário, pelo que são as RR responsáveis pelos danos, neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27.02.2023.

A apelada Companhia de Seguros A..., SA, concluiu, na resposta, pela improcedência do recurso. Por sua vez, a recorrida B... SA, na resposta – depois de observar que a recorrente veio invocar, em sede de recurso, que houve uma violação do dever de vigiar os veículos por parte do seu proprietário, sendo certo que tal nunca havia sido suscitado – concluiu também pela improcedência do recurso, mas requereu a ampliação do seu objecto, pedindo, com fundamento no erro na avaliação das provas testemunhal e documental, a exclusão dos factos provados dos factos 18.º e 19.º e a adição, a esses factos, deste outro: o incêndio teve início ao nível do solo, no exterior das viaturas.

O apelante não respondeu à matéria da ampliação do recurso.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nos seguintes termos:

2.1. Factos provados.

1- Em 30 de Dezembro de 2020, a sociedade C... Lda. tinha como sócios o A. e BB, dedicando-se a mesma ao transporte rodoviário de mercadorias, nacional e internacional por conta de outrem, actividade transitária, importação, exportação e aluguer de veículos automóveis.

2- Em Janeiro de 2018 entre a C... Lda. representada por BB e o A., foi celebrado e assinado o pelas partes designado “contrato de comodato” pelo qual o aqui A. cedeu gratuitamente àquela entidade, pelo prazo de três anos, para dele se servir exclusivamente, o prédio rústico sito em ..., inscrito na matriz rústica sob o artigo ...09.

3- O prédio indicado em 2 está descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...22, aí se dizendo que o mesmo constitui “estacionamento coberto” com a área total de 2890m2, sendo a área coberta de 400,5959m2 e descoberta de 2489,4041 m2, sendo que pela apresentação nº ...0 o mesmo está registado a favor do A. por compra à E... Lda.

4- Sob o prédio indicado em 3 incide uma hipoteca constante da apresentação nº ...5 de 1998/02/25 a favor da Banco 1... CRL, uma hipoteca legal registada sob a apresentação nº ...5 de 2006/08/28 a favor do Instituto de Segurança Social IP, uma penhora registada sob a apresentação nº ...95 de 2009/02/02 a favor do mesmo instituto, sendo sujeito passivo o A.

5- No dia 30 de Dezembro de 2020 no prédio acima identificado encontravam-se parqueados os veículos (tractores, galeras) propriedade da C... S.A. com as seguintes matrículas:

i- ..-QB-.. (pesado de mercadorias) e atrelado;

ii-..-TQ-.. (pesado de mercadorias) e atrelado;

iii-..-TT-.. (pesado de mercadorias) e atrelado;

iv- atrelado

6- Encontrava-se também aí parqueado o veículo do A. de matrícula ..-..-XM.

7- No dia referido em 5, a hora não concretamente apurada, mas já de noite, deflagrou um incêndio que consumiu parcialmente os veículos e atrelados indicados em 5 e bem assim o veículo referido em 6.

8- Não foi possível determinar o exacto local onde se terá iniciado a combustão assim como a causa para a origem da fonte de calor com capacidade para originar o foco de incêndio.

9- Determinou-se que a área de início do incêndio se dá entre o camião nº 1 e nº 2 (por referência à fotografia com o nº 65 do relatório da Polícia Judiciária, junto com a contestação da R. B... S.A. – a fls. 17 e seguintes do pdf) particularmente entre as zonas traseiras dos dois tractores.

10- Não se observou qualquer anomalia no circuito eléctrico dos veículos pesados, nem foi encontrado qualquer objecto que de algum modo indiciasse o seu uso como meio de ignição.

11- Igualmente não se observou qualquer anomalia na parte mecânica dos veículos pesados onde deflagrou o incêndio, sendo os danos produzidos do exterior para o interior dos mesmos.

12- Por causa do incêndio acima aludido, ocorreram estragos nos veículos indicados em 5 sendo indemnizada a perda total dos veículos ..-TQ-.., ..-QB-.., ..-TT-.. e dos atrelados GD-...01, L-...156 e LE-...56, sendo também paga a reparação do atrelado LE-...55, tudo à entidade que reclamou os respectivos danos.

13- A viatura ..-QB-.. e ..-TQ-.. estavam à data do incêndio seguras na R. F... S.A.

14- A viatura ..-TT-.. estava à data do incêndio segura na R. B... S.A.

15- Por causa do incêndio acima aludido, o veículo de matrícula XM propriedade do A. sofreu estragos ao nível da carroçaria e pintura, foi alvo de avaliação, pelo qual se fixou o valor da reparação em € 2.112,12 com IVA.

16- Por causa do incêndio, o chão do local em betão onde estavam parqueadas as viaturas ficou destruído numa área de cerca de 380m2.

17- Para repará-lo e colocá-lo em estado de poder ser usado, é necessário despender o valor de € 45,00 por m2, o que perfaz um total de € 17.100,00 acrescido de IVA.

18- Por causa do incêndio, e dos produtos derramados com o mesmo, lixos advenientes da combustão e uso pelos bombeiros de produtos para apagar tal incêndio, houve escorrências de todos esses produtos para parte do restante terreno do A., o qual ficou parcialmente inutilizado, sem possibilidade de ser usado para cultivo com até aí o era.

19- Para remover aqueles produtos da parte do terreno cultivado e colocá-lo apto a ser de novo cultivado, o A. terá que despender o valor de € 150,00 por tonelada de produto, retirado, num total de 180 toneladas, o que perfaz o valor de € 27.000,00 a que acresce € 5.000,00 com uso de máquina e transporte desses produtos, tais valores acrescidos de IVA.

20- Correu inquérito crime por via do incêndio a que se vem aludindo nos autos, o qual foi arquivado em 13 de Setembro de 2021, por falta de indícios da prática por quem quer que fosse de factos penalmente relevantes.

2.2. Factos não provados.

Com interesse para a decisão não os há.

Os demais factos alegados na petição inicial e contestações, por matéria de direito, repetitivos, de mera impugnação ou sem interesse para a causa não foram tidos em consideração.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

Considerando os parâmetros da competência decisória deste Tribunal - tal como são recortados pelo objeto da acção, pelos casos julgados formados na instância recorrida, pela parte da decisão que desfavorece a apelante e pelas conclusões com que fechou a sua alegação - a questão concreta controversa colocada no recurso do autor, que importa resolver, é a de saber se a decisão impugnada deve ser revogada e substituída por outra que condene as apeladas no pedido (art.º 635.º, n.ºs 2 a 5, do CPC). Segundo o apelante, o Sr. Juiz de Direito incorreu num erro de direito, na modalidade de erro na qualificação, dado que escolheu a norma errada para enquadrar o caso concreto: no seu ver, ao caso não é aplicável a norma reguladora dos acidentes causados por veículos – o art.º 503.º do Código Civil – aplicada pela decisão impugnada - mas a que prevê a responsabilidade por danos causadas por coisas, animais ou actividades, contida no art.º 493.º do mesmo Código.

Mas a este objecto do recurso há que adicionar o que resulta da ampliação, pela apelada B..., SA, desse mesmo objecto.

A parte vencedora não tem legitimidade para recorrer, porque não é prejudicada, nem formal nem materialmente, pela decisão (art.º 631.º, n.º 1, do CPC). Os fundamentos da decisão são, em princípio, irrelevantes, seja qual for o critério da aferição da legitimidade para recorrer, pelo que, como regra, não é admissível um recurso sobre os fundamentos da decisão.

Porém, sempre que a acção ou a defesa comporte uma pluralidade de fundamentos, a parte vencedora pode requerer – mesmo a título subsidiário – a apreciação do fundamento em que decaiu na instância de que provém o recurso (art.º 636.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).  Portanto, se a acção comporta várias causas de pedir concorrentes ou a defesa se baseia numa multiplicidade de fundamentos e apenas uma daquelas causas de pedir ou um destes fundamentos foi considerado procedente a parte vencedora pode requerer ao tribunal ad quem a apreciação da causa de pedir ou do fundamento que não foi julgado procedente. O mesmo vale quanto à decisão sobre certas questões de facto: a parte vencedora, prevenindo a procedência do recurso do vencido, pode, a título subsidiário, impugnar a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (art.º 636.º, n.º 2, do CPC). Materialmente, trata-se de um recurso subsidiário, dado que a sua apreciação é condicionada pela parte vencedora à procedência do recurso interposto pela parte vencida, do que decorre que o tribunal ad quem só conhecerá do seu objecto, caso revogue a decisão que lhe é favorável (art.ºs 554.º, n.º 1, e 660.º, n.º 2, do CPC).

Julga-se, porém, que a determinação do exacto objecto do recurso exige uma análise mais detida e fina.

O apelante é terminante em assacar à sentença impugnada um erro de direito: no seu ver, as prestações indemnizatórias que as apeladas devem ser vinculadas emergem, não da responsabilidade pelos riscos próprios dos veículos – mas da violação, pelo seu proprietário do dever de as vigiar.

A apelada B..., SA, na resposta ao recurso nota, com inteira razão, que a questão da violação pelo proprietário dos veículos do dever de os vigiar só no recurso foi suscitada.

Neste plano, há que ter em conta um princípio estruturante do processo civil: o da disponibilidade privada sobre o objecto do processo – da acção e do recurso. Por força deste princípio, são, em regra, as partes que livremente suscitam as questões e livremente articulam os factos em que o juiz se baseia para proferir a sentença, sendo-lhes lícito também restringir os fundamentos do recurso cujo conhecimento esteja dependente da sua vontade: o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação – embora, de harmonia com o princípio da limitação do conhecimento do tribunal ou da vinculação temática, mas não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, ressalvadas, evidentemente, as que forem de conhecimento oficioso (art.ºs 552.º, n.º 1, d), e 608.º, n.º 2, do CPC). São, portanto, as partes como corolário da liberdade e da responsabilidade em processo, que decidem sobre a delimitação da matéria a resolver, o que bem se entende, por uma razão prática: ninguém melhor que os titulares dos direitos e interesses pode saber como estes devem ser cuidados.

Depois, há que conjugar aquela liberdade e esta responsabilidade com a finalidade do recurso, considerando que a atribuição à Relação de poderes de julgamento deve, sempre, ser vista no enquadramento geral dos recursos: o que se visa não é criar uma nova instância de julgamento da causa – mas limitadamente instituir uma instância de controlo sobre o julgamento da causa da 1.ª instância. Do modo como se mostram construídas as suas competências, a Relação, no tocante a esse objecto, não é uma 2.ª 1.ª instância.

Na verdade, considerados a partir da finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida. No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa acção foi correctamente decidida, ou seja é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação[1].

No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, o que significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida, ou sobre pedidos que nela não hajam sido formulados ou sobre questões que não submeteram à atenção do tribunal a quo: os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas[2].

Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de questões novas na instância de recurso. Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[3].

Esta Relação, no que respeita ao direito, é livre e, portanto, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, goza de absoluta liberdade (art.º 5.º, n.º 3, do CPC). As partes fornecem os factos ao juiz – mas a sua qualificação jurídica, o seu enquadramento na norma ou princípio jurídico aplicável, é função própria, também desta Relação, no exercício do qual procede com a liberdade que a lei de processo lhe assinala.

Neste sentido, i.e., que o objecto do recurso – abstraindo da ampliação do seu objecto requerida pela apelada B... SA - é, simplesmente, um problema de direito, de qualificação, i.e., de escolha da norma substantiva aplicável, a questão constituiu objecto inteiramente admissível do recurso. Simplesmente, mesmo que os factos adquiridos para o processo devam merecer a qualificação proposta pelo recorrente, ainda assim o recurso deve improceder. É para o detalhe desta proposição que se dirigem as considerações seguintes.

3.2. Responsabilidade por danos causados por coisas e responsabilidade por acidentes causados por veículos.

A responsabilidade civil por danos causados por coisas é, nitidamente, uma responsabilidade subjectiva por factos ilícitos, dita também, responsabilidade delitual – descendente directa da lex aquilia - dado que assenta na violação ilícita e culposa de direitos subjectivos ou de normas destinadas a proteger interesses alheios (art.ºs  483.º, n.º 1, e 493.º, n.º 1, do Código Civil).

A generalidade da doutrina – e, correntemente, também a jurisprudência – individualiza como pressupostos da responsabilidade civil subjectiva, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e a causalidade.

A imputação delitual, quer dizer, o esquema pela qual é possível assacar a uma pessoa um dano para efeitos de indemnização, reclama, desde logo, uma conduta ilícita e culposa do infractor (art.º 483.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

Se o quadro dos elementos em que decompõe a responsabilidade delitual – ilicitude e culpa – é relativamente estável o mesmo não sucede, porém, com o conteúdo específico de cada um desses elementos.

A discussão gravita em torno da relação entre a ilicitude e o dolo ou a negligência e, consequentemente, à volta do conteúdo material e da função que deve ser assinalada à culpa.

Tradicionalmente, o dolo e a negligência são integrados na culpa. Nesta concepção, para que haja ilicitude, basta que o acto seja causa adequada de um resultado antijurídico; desde que da conduta decorra um resultado contrário ao direito, existe ilicitude; esta reclama apenas o desvalor do resultado, sendo-lhe indiferente as características intrínsecas da conduta. A doutrina mais moderna, sob o signo declarado da teoria finalista da acção, desloca o dolo e a negligência da culpa para a ilicitude, subjectivizando-a. Nesta concepção subjectiva da ilicitude não é, portanto, suficiente que o resultado da conduta seja contrário ao direito; para que haja licitude, a conduta deve ser dolosa ou negligente. Ao lado do desvalor do resultado exige-se o desvalor da própria acção.

O que daqui decorre para a caracterização da culpa é meramente consequencial: incluído o dolo e a negligência na ilicitude, não é possível continuar a valorar a culpa pela relação psicológica da conduta com o seu autor: a aferição da culpa passa a depender de critérios estritamente normativos, reconduzindo-se a um juízo de censura ético-jurídica da conduta. A culpa decorre de um juízo de censurabilidade ou de reprovação do comportamento do agente, um juízo de desvalor assente na constatação de que esse agente, nas circunstâncias específicas em que actuou poderia ter conformado a sua conduta – dolosa ou negligente e, portanto, ilícita - de modo a assegurar o dever cujo cumprimento, nessas mesmas condições, lhe era exigível. Resta dizer que a censurabilidade do comportamento do agente é um juízo feito pelo tribunal sobre a sua atitude ou motivação, tal como pode deduzir-se dos factos provados; na formulação desse juízo de reprovação, o tribunal socorre-se, naturalmente, de regras de experiência e critérios sociais.

Na imputação delitual, seja dolosa ou simplesmente negligente, o ónus da prova dos factos que fundamentam o juízo de censura ético-social do agente – e não do juízo de censurabilidade em si mesmo - onera o lesado; o não cumprimento desse ónus de prova comporta uma vantagem relevante para o lesante, uma vez que impõe ao tribunal que decida contra quem aquele ónus onera (art.ºs 342.º, n.º 1,  346.º, in fine, e 487.º, n.º 1, do Código Civil, e 414.º do CPC). A prova dos factos que fundamentam o juízo de reprovação da conduta do lesado, cabe ao lesante, mas este está dispensado de os invocar visto que incumbe ao tribunal conhecer deles oficiosamente (art.º 572.º do Código Civil).

A indagação da culpa do responsável revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Para facilitar o funcionamento da imputação delitual, a lei estabelece presunções, através das quais opera a distribuição do ónus da prova da culpa, i.e., o encargo de demonstrar os factos de que decorre a sua existência. Existindo uma presunção de culpa, é o autor do dano que fica onerado com encargo de demonstrar que não teve culpa na ocorrência (artº 350.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

Uma presunção de culpa[4] extraordinariamente relevante, ainda que ilidível, é a que vulnera aquele que detém uma coisa – por exemplo, um veículo automóvel - com o dever de a vigiar, que responde pelos danos que ela causar, excepto se provar que não teve culpa ou que os danos se teriam igualmente produzidos ainda que não houvesse culpa sua (art.º 493.º, n.º 1, do Código Civil).

O fundamento material geral desta imputação subjetiva residirá aqui em que a comunidade tem de poder confiar em que quem exerce o poder de domínio sobre um bem determinado, acessível a outras pessoas, deve também dominar os riscos que para estas podem resultar do estado ou de situações perigosas. Quem tem o dever de vigiar uma coisa – v.g., o proprietário dela - está obrigado a controlar os perigos que dela provêm e a impedir, em consequência, que se produzam danos em bens jurídicos alheios. Compreende-se e aceita-se o fundamento em que esta ideia repousa: quem domina uma fonte de riscos determinável dentro de um âmbito de atuação objetivável deve actuar no sentido do afastamento ou da minimização dos perigos que daquela coisa resultam para terceiros. E se a coisa não for em si mesma uma fonte de perigo, aquele princípio valerá no tocante a perigos especiais que dela partam. Mesmo nestes casos, deve afirmar-se a existência de um dever de vigilância e o consequente dever de actuação – cujo conteúdo só em concreto pode ser determinado - no sentido da eliminação ou da minimização do perigo da produção de danos. Deve, pois, ter ocorrido a violação de exigências de comportamento cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar danos. Mas também aqui é exigível um relacionamento ou uma conexão da coisa com o dano, para que este se possa atribuir àquele bem corpóreo.

Realmente, quem detém a coisa à sua guarda deve adoptar as medidas adequadas a evitar danos e, por virtude da sua relação com essa mesma coisa, e é, além disso, quem está em melhores condições, por comparação com o lesado, para fazer a prova da culpa, i.e., dos factos susceptíveis de a fundamentar[5]. A responsabilidade não assenta no perigo eminente à coisa, mas na violação do dever de controlo e de prevenção. Assim, não sendo um veículo automóvel perigoso em si mesmo, o que estará em causa é a prevenção do seu estado mecânico, dos seus órgãos e sistemas – v.g., do sistema eléctrico, dada a sua aptidão para causar ignições – uma vez que a degradação ou deterioração desse estado, é susceptível de criar um perigo especial de ocorrência de danos.

O vinculado à vigilância, por exemplo, de uma viatura automóvel, pode alijar a sua responsabilidade em dois casos: se provar que nenhuma culpa houve da sua parte; se demonstrar que os danos sempre se produziriam, ainda que não houvesse culpa sua, hipótese em que pode prevalecer-se da relevância negativa de causas virtuais. Esta solução obedece, nitidamente, a este duplo pensamento: estimular a que sejam tomadas as precauções devidas no caso; fazer correr pelo beneficiário do perigo – rectius, da coisa de que o perigo dimana – o risco da verificação dos danos. Em contrapartida, é-lhe conferida a possibilidade de demonstrar o cumprimento dos deveres de cuidado presentes no caso, i.e., de fazer a prova da ausência de culpa sua, e de se prevalecer da relevância negativa de causas virtuais.

O fundamento da responsabilidade – que é delitual e não pelo risco ou objectiva – consiste na violação, pelo obrigado à vigilância da coisa do dever de tomar as providências adequadas indispensáveis para prevenir a ocorrência de danos, como, por exemplo, o dever de manter em bom estado de conservação e funcionamento os sistemas mecânicos e elétricos de um veículo automóvel. Mas – note-se – que o que está em causa são os danos que a coisa causar e não os danos causados com ela: para que esta imputação subjectiva actue, é necessário que os danos tenham, objectivamente, sido causados, directamente, pela coisa que deve ser vigiada, que a coisa seja a causa ou a etiologia próxima dos danos.

Todavia, o evento causador do dano ocorreu numa área ou no desenvolvimento de uma actividade em que é admissível um esquema de imputação diferente: a responsabilidade pelo risco, também chamada imputação ou responsabilidade objectiva, em que, por razões político-sociais, o dano se transfere, da esfera de uma pessoa para a de outra, independentemente do carácter ilícito do comportamento desta última (art.ºs 483 nº 2, 503.º e 505.º do Código Civil).

Num claro fenómeno de identificação estrutural, à responsabilidade pelo risco – que se caracteriza pela atribuição do risco pela ocorrência de determinados danos a pessoa diferente daquele que originariamente os suportou – são aplicáveis as disposições relativas à responsabilidade por factos ilícitos (art.º 499.º do Código Civil).

Aparentemente, a divergência entre e uma outra responsabilidade situar-se-ia apenas no plano delicado da problemática da culpa: o distinguo entre uma e outra fonte de responsabilidade assentaria simplesmente na culpa de cuja presença se prescindiria na responsabilidade objectiva. Mas a verdade é que na responsabilidade pelo risco nem sequer há ilicitude ou mesmo um facto, no sentido de actuação livre e consciente do lesante, o que não pode deixar de se projectar na causalidade e no cálculo da indemnização que, por esse motivo, devem ser submetidas a regras diferenciadas. Neste domínio não há espaço para se falar, por exemplo, de adequação ou de fim de protecção da norma, etc. A determinante é antes e só os riscos próprios do veículo e é o âmbito desses riscos que dá a medida da imputação.

A responsabilidade só se constitui se o dano puder ser atribuído – imputado - aqueles riscos: estes hão-de ter sido causa do resultado danoso. A imputação está assim dependente de um duplo factor: os riscos próprios do veículo; que esses riscos tenham conduzido, segundo um critério objectivo, à produção do resultado danoso, que foram esses riscos – numa perspectiva externo-objectiva – que se materializaram ou concretizaram naquele resultado.

É, portanto, imprescindível que os danos traduzam, de algum modo, a especificidade dos riscos induzidos pelo veículo, o perigo típico ou específico, que este envolve. Mas tanto se compreendem os danos provocados por veículos em circulação na via pública, como num recinto privado ou mesmo fora de qualquer via. Abrangidos estão, também, os acidentes provocados por veículos rebocados ou empurrados, por veículos estacionados ou parados, não importando que o acidente esteja ligado ao maquinismo – v.g. o capot que se abre – ao condutor – que, por exemplo, sofre uma síncope cardíaca, um ataque epilético ou um acesso de febre alta – ou à própria via de circulação – óleo derramado na via que provoca uma derrapagem, piso escorregadio por se encontrar molhado e com barro espalhado por outros veículos, buraco no pavimento que causa o rebentamento de um pneu – ou ainda a qualquer factor, como o encadeamento do condutor pelo sol. Excluídos estão apenas os danos sem qualquer conexão com os riscos específicos do veículo e com a sua circulação, como por exemplo, o arrastamento do veículo por uma vaga marítima, que causa o afogamento de um dos ocupantes. A jurisprudência adopta, em geral, um entendimento latitudinário dos riscos próprios do veículo e, correspondentemente, interpreta de modo restritivo, a causa de exclusão da responsabilidade representada pela causa de força maior, estranha ao funcionamento do veículo (art.º 505.º do Código Civil). É indubitável, assim, que os danos abrangidos por esta responsabilidade, compreendem os causados pelo veículo quando esteja imobilizado, como, por exemplo, a colocação do veículo em andamento por avaria do travão de estacionamento - ou o incêndio por curto-circuito do sistema eléctrico.

A responsabilidade pelos riscos próprios dos veículos de circulação terrestre recai sobre aquele que tenha a sua direcção e efectiva e o utilize no seu próprio interesse, ainda que através de comissário (art.º 503.º, n.º 1, do Código Civil). São, portanto, dois os requisitos desta autónoma modalidade de responsabilidade objectiva: a direcção efectiva do veículo; a utilização dele no seu próprio interesse.

A direcção efectiva equivale ao controlo material do veículo, a título de posse ou detenção: é responsável quem tenha o domínio de facto sobre a viatura; a utilização no seu próprio interesse visa evitar a imputação objectiva ao comissário, que utiliza o veículo não no seu próprio interesse, mas em proveito ou sob as ordens de terceiro – o comitente. Portanto, direcção efectiva não é simples sinónimo de ter o volante nas mãos no momento do acidente.

O beneficiário da responsabilidade é, em regra, qualquer terceiro (art.º 504.º do Código Civil).

Sempre que a responsabilidade pelo risco recaia sobre várias pessoas, a sua responsabilidade é solidária, não obstando a essa solidariedade a culpa de alguma ou algumas delas (art.º 507.º, n.º 1, do Código Civil). É patente a ideia do legislador: o máximo esforço para que os danos resultantes de acidentes de viação sejam, efectivamente, ressarcidos, fazendo-se correr pelos corresponsáveis o risco da insolvência ou da recusa de qualquer deles. Tudo isto faz, depois, sentido, em consequência do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Lê-se nos fundamentos de facto da sentença impugnada que a viatura ..-QB-.. e ..-TQ-.. estavam à data do incêndio seguras na R. F... S.A., e a viatura ..-TT-.. estava à data do incêndio segura na R. B... S.A. É incontroversa a contracção de três contratos de seguro. Mas contratos de seguro obrigatórios ou facultativos? Contratos de seguro reais ou de coisas corpóreas ou de responsabilidade civil? Patentemente, a formulação daqueles enunciados, em face da alegação as apeladas e das apólices adquiridas para o processo que documentam a contracção daqueles contratos de risco é deficiente.

Diz-se contrato de seguro o contrato pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco de verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração. A pessoa que transfere o risco diz-se tomador ou subscritor do seguro, a que assume esse risco e percebe a remuneração – prémio – diz-se segurador; o dano eventual é o sinistro; a pessoa cuja esfera jurídica é protegida é o segurado – que pode ou não coincidir com o tomador do seguro (artºs 1.º, 16.º, n.º 1, e 24.º n.º 1, da LCS, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril).

Enquanto o segurador e o tomador do seguro assumem, por definição, a posição de partes num contrato de seguro, outras pessoas podem ocupar a posição de parte ou de terceiro nesse mesmo contrato. Entre estas avulta, evidentemente, a figura do segurado – o sujeito que se situa dentro da esfera de protecção directa e não meramente reflexa do seguro, de quem pode afirmar-se que está coberto pelo seguro. O segurado é, portanto, aquele por conta de quem o tomador celebra o seguro. Nos casos subjectivamente mais simples, o segurado será o próprio tomador do seguro, o tomador-segurado; nos demais casos, estar-se-á face a um ou mais terceiros-segurados. Numa palavra: o segurado não é, necessariamente, quem contrata o seguro, mas sim quem por ele fica coberto.

O risco é, evidentemente, o elemento nuclear do seguro: não há seguro sem risco. O sinistro, por seu lado, corresponde à verificação, no todo ou em parte, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador. O universo de factos possíveis, previstos no contrato de seguro, cuja verificação determinará a realização da prestação por parte do segurador, representa a cobertura-objecto do contrato; o estado de vinculação do segurador, durante o período convencionado no contrato, conducente à constituição de uma obrigação de prestar, em caso de ocorrência daqueles factos, representa a cobertura-garantia.

A delimitação daquele universo de factos – que compõem a cobertura-objecto – é feita, em regra, segundo a técnica da definição primária da chamada cobertura de base e da subsequente descrição de sucessivos níveis de exclusões. No caso por exemplo, dos seguros de responsabilidade civil, pode delimitar-se o âmbito de cobertura a partir de uma pessoa – v.g., responsabilidade civil geral – de uma coisa – v.g., um automóvel. Mas essa delimitação pode não se ficar por aí: após a fixação da pessoa ou da coisa que servirá de ponto de referência ao seguro, bem como os interesses que se cobrem, podem seguir-se outros níveis, sucessivamente mais precisos, de delimitação. Assim pode, por exemplo, descrever-se as circunstâncias em que poderá ocorrer o dano, v.g., a actividade profissional desenvolvida pelo segurado.

Estas exclusões não são, em princípio, cláusulas de exclusão da responsabilidade – mas regras que definem o âmbito de cobertura do seguro. Essa delimitação pode ser feita positiva e negativamente, e dentro da delimitação negativa, através de exclusões objectivas – v.g., guerra – ou subjectivas, como por exemplo, o sinistro deliberadamente provocado. O que não é lícito é, através das exclusões, desvirtuar o objecto do contrato, i.e., modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado[6].

O Código Comercial falava em seguros contra riscos. Mas esta expressão devia ser entendida no sentido actual de danos: seguros contra danos. Em sentido amplo e próprio, o risco assumido, pelo contrato de seguro, pelo segurador, é o de qualquer evento futuro, aleatório na sua verificação ou no momento da sua verificação e que obrigue aquele a satisfazer determinada prestação. Verificado o sinistro, o segurador deve pagar ao segurado o capital seguro, até ao limite do dano, ou para usar a linguagem corrente, juridicamente pouco rigorosa, a indemnização.

Descritivamente, o contrato de seguro é oneroso, sinalagmático e aleatório, visto que implica um esforço económico de ambas as partes, a remuneração paga por uma delas liga-se à vantagem proporcionada pela outra e a atribuição dessa vantagem depende de um facto alheio à vontade de qualquer delas.

De harmonia com o critério da sua obrigatoriedade, os seguros dizem-se facultativos ou obrigatórios, consoante são celebrados livremente pelo tomador do seguro ou por imposição legal. De acordo com o critério do objecto da prestação do segurador, distinguem-se os seguros de prestações indemnizatórias ou convencionadas, consoante o segurador se obriga a prestar o valor correspondente aos danos resultantes do sinistro ou um valor previamente fixado no contrato.

No caso, extrai-se das apólices dos seguros juntas pelas apeladas com os respectivos articulados de contestação – e em harmonia com as alegações que produziram nesses articulados  - que  os contratos de seguro susceptíveis de fundamentar o dever das recorridas de indemnizar o apelante dos danos que alegou ter suportado, são contratos de seguro obrigatório de responsabilidade civil por danos causados a terceiros com os veículos automóveis, propriedade de C..., Lda., que nesses contratos figura desde logo na posição jurídica de tomador, e que têm por objecto prestações indemnizatórias (art.ºs 4.º, n.º 1, 6.º, n.º 1, e 11.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto).

Neste seguro, o risco consiste na constituição no património do segurado de uma obrigação de indemnizar terceiros, ou, de modo mais perifrástico, na emergência inesperada para o segurado de uma obrigação de indemnizar proveniente de uma responsabilidade extracontratual, causada por um acto ilícito culposo – e nos casos em que tal seja admitido, também doloso – ou pelo risco, juridicamente imputáveis ao segurado (art.º 127.º da LCS).

O risco é aqui, portanto, em geral, o facto – ou conjunto de factos - determinante da obrigação de indemnizar que venha eventualmente a recair sobre o tomador do seguro e segurado. O que significa que a obrigação do segurador só surge – mas surge sempre – se e quando estiverem verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil coberta pelo seguro, incluindo o facto danoso, o dano e a determinação do lesado. A resposta positiva sobre se o sinistro consiste no facto danoso ou se verificou o dano não exclui, evidentemente, a necessidade de apurar se em concreto o tomador do seguro e segurado é responsável, requisito necessário, embora possa não ser suficiente para o que o segurador tenha a obrigação de prestar.

Munidos deste viaticum, estamos em condições de resolver a questão concreta controversa objecto do recurso – e de o julgar improcedente.

3.4 Concretização.

Em face dos factos adquiridos para o processo – que neste particular não são objecto de controversão – os danos de que o apelante pretende ser ressarcido pelas apeladas resultaram da combustão dos veículos automóveis, e dos atrelados, relativamente aos quais as últimas assumiram, por força dos contratos de seguro, a responsabilidade civil por danos causados com eles a terceiros. Simplesmente, ainda de harmonia com aqueles factos, não foi possível determinar o exacto local onde se terá iniciado a combustão assim como a causa para a origem da fonte de calor com capacidade para originar o foco de incêndio, não se observou qualquer anomalia no circuito eléctrico dos veículos pesados, nem foi encontrado qualquer objecto que de algum modo indiciasse o seu uso como meio de ignição, nem qualquer anomalia na parte mecânica dos veículos pesados onde deflagrou o incêndio, sendo os danos produzidos do exterior para o interior dos mesmos.

Nestas condições, é seguro que não está demonstrado que os danos foram causados pelos riscos próprios, específicos, dos veículos no tocante aos quais as apeladas se vincularam, pelos contratos de seguro, a reparar, é claro e cristalino, que, comprovadamente, não se mostra estabelecida qualquer conexão entre aqueles riscos ou perigos e os danos, que não há a mínima conexão causal o risco específico dos veículos automóveis e o dano reparável, pelo que o direito de indemnização objecto do pedido do apelante se não pode, de todo, fundar na responsabilidade – objectiva – do comitente, in casu, a proprietária daquelas mesmas viaturas automóveis (art.º 503.º, n.º 1, do Código Civil).

Direito que, porém, também se não pode fundamentar – como o apelante sustenta no recurso – na cláusula de responsabilidade – subjectiva - pelos danos causados por coisas, pelos quais é responsável o vinculado ao dever de vigiar os veículos automóveis, na espécie sujeita, a sociedade comercial, proprietária deles, de quem o apelante é sócio. É que se não provou que os danos foram causados pelos veículos, como linearmente decorre da circunstância de se não ter apurado a causa concreta do incêndio que os atingiu, quer dizer, de não se te provado que foram aqueles veículos a fonte de ignição de que resultou o incêndio. E não se provou, desde logo, por esta razão evidente: é que o autor nem sequer alegou que os veículos ou qualquer componente seu, elétrico ou mecânico, tenham constituído a origem e a causa primeira ou primária do incêndio que os consumiu parcialmente. Recorde-se que o que o apelante alegou foi que o incêndio tinha causa desconhecida, pelo que, face à alegação mesma do apelante, sempre estaria excluída a responsabilidade do proprietário deles, quer por força de se mostrar investido na sua direcção efectiva, quer por virtude do dever de os vigiar, pelo que o prosseguimento da causa para além do despacho saneador foi feito em pura perda. Os veículos automóveis foram consumidos em parte pelo incêndio, mas, patentemente, não se demonstrou – nem, como se disse, isso foi alegado pelo apelante, parte onerada com a respectiva prova – que tenham, eles mesmos, sido a causa de ignição, que o incêndio teve origem neles. O que, aliás, é corroborado pela circunstância de não ter sido detectada qualquer anomalia, tanto no sistema eléctrico como nos órgãos mecânicos dos veículos automóveis que pudesse ter sido causa da ignição, e de os danos que para eles resultou do incêndio tenham sido produzidos do exterior para o interior, o que inculca, indelevelmente, que a fonte de ignição do fogo lhes é exterior ou extrínseca. Circunstância que, de resto, sempre permitiria ilidir a presunção de culpa do proprietário dos veículos: como se notou a responsabilidade assenta, aqui, na ideia de que não foram tomadas as medidas de precaução necessárias para evitar o dano, na espécie, que o proprietário dos veículos não cumpriu os deveres de manter e bom estado de conservação e de funcionamento os órgãos eléctricos e mecânicos dos veículos, de modo a evitar, v.g., o risco de ignição e o seu incêndio, e o que a matéria de facto inequivocamente documenta é a inexistência de qualquer anomalia, mecânica ou eléctrica, susceptível de causar aquela ignição e este incêndio e, portanto, o cumprimento pelo obrigado à sua vigilância dos deveres de prevenção e controlo que, no caso concreto, se lhe impunham (art.º 350.º, n.º 2, do Código Civil).

Dado que não estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil, quer do titular da direcção efectiva dos veículos quer do vinculado à sua vigilância – qualidades que, no caso, se reúnem numa mesma pessoa jurídica – coberta pelo seguro, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que os seguradores não se constituíram no dever de realizar as prestações indemnizatórias a que se vincularam através dos vários contratos de seguro.

O recurso não dispõe, pois, de bom fundamento. Cumpre desampará-lo.

E como o recurso deve improceder fica, evidentemente, prejudicado o conhecimento do objecto relativo à ampliação do seu objecto, consistente na impugnação da decisão da matéria de facto, pedida pela apelada B..., SA, dado que, como se observou, essa ampliação foi pedida a título puramente subsidiário, para a pura eventualidade da procedência do recurso do autor.

Do percurso argumentativo percorrido extraem-se, como proposições conclusivas mais salientes, as seguintes:

(…).

O apelante sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-o objectivamente responsável pelo pagamento das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelo apelante.

                                                                                                                                              2024.02.20


[1] Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, Lisboa, 1994, págs. 138 e ss., e Freitas do Amaral, Conceito e natureza do recurso hierárquico, Coimbra, 1981, pág. 227 e ss.
[2] A afirmação de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova constitui jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. do STJ de 14.05.1993, CJ, STJ, 93, II, pág. 62, e de 29.09.2020 (909/18) e da RL de 02.11.1995, CJ, 95, V, pág. 98.
[3] Ac. do STJ de 23.03.1996, CJ, 96, II, pág. 86.
[4] Se se tiver presente que a culpa se resolve um juízo de censurabilidade ou de reprovação de um comportamento do agente que só existe se tiver ocorrido a prévia violação de normas – i.e. a ilicitude – esta presunção de culpa é, no fundo, uma presunção de ilicitude, dado que, havendo dano provocado por uma coisa, se postula ter havido violação do dever de a vigiar. Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina Coimbra, 2010, pág. 584.
[5] Vaz Serra, BMJ n.º 85, pág. 365.
[6] Os casos de exclusão da cobertura são factos impeditivos do direito do segurado à indemnização, competindo, por isso, ao segurador, o ónus da sua alegação e da sua prova (art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil): Ac. do STJ de 13.10.2013, www.dgsi.pt.