Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
984/19.5T8SRE-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: DESPACHO SANEADOR
MÉRITO DA CAUSA
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 595º, Nº 1., AL. B) DO NCPC
Sumário: i) Só deve conhecer-se do mérito da causa no despacho saneador se o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação de alguma exceção perentória (art. 595º, nº 1, b), do NCPC);

ii) Se a embargante invoca a prescrição quinquenal, do art. 310º, e), do CC, com fundamento no último pagamento prestacional numa determinada data e a embargada impugna e riposta com alegação de outra data, sendo essencial apurar em que data esse último pagamento terá ocorrido, para verificação da dita prescrição, e é possível que a embargada, além da mera impugnação, junte documento, de apreciação livre, destinado a fazer contraprova ou mesmo prova do facto que alegou, o conhecimento da exceção no despacho saneador-sentença proferido é prematuro.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. G..., SA, com sede em .., intentou execução para pagamento de quantia certa, no montante de 10.989,93 €, acrescido de juros vencidos e vincendos e respectivo imposto do selo, até integral pagamento, assim como despesas e honorários do Agente de Execução, contra P..., Lda., com sede em... e M..., residente em Coimbra.

Alegou a subscrição de 2 livranças, uma no montante de 4.408,21€, a que acrescem juros de mora e imposto do selo, e outra no montante de 6.012,95€, mais juros de mora e imposto do selo, ambas datadas (em 21.5.2018) e já vencidas (em 31.5.2018) e não pagas.

A executada M... deduziu embargos de executado, alegando, em suma, que em 2012 foi celebrado acordo de assunção e regularização de dívida entre a 1ª executada e a exequente, emergente de contratos de empréstimo celebrados em Abril de 2009 com o B... e Janeiro de 2010 bom o B...  (Doc. 1); no âmbito desse acordo, e à data da sua celebração, a embargante assumiu ser garante (avalista) perante a exequente da dívida contraída pela P..., no montante de 10.743,32€; acordaram as partes, na altura, que o dito valor seria pago em 36 prestações mensais, de acordo com o plano de amortização apresentado pela exequente (Doc. 1); tendo-se a última dessas prestações vencido em 25.7.2015, acordaram que no caso de incumprimento do contrato pela 1ª executada a exequente poderia considerar vencida toda a dívida e exigir o imediato pagamento de tudo o que era devido, mas que tal não aconteceu; quanto mais se protelar a cobrança do valor em dívida, maiores serão os juros e, subsequentemente, o lucro; além dos juros moratórios, mais avultados quanto maior for o lapso temporal a que se reportam, a exequente aplica, ainda, uma cláusula penal de 2% ao ano (Doc. 1); a partir de Setembro de 2012, a 1ª executada não efetuou mais nenhum pagamento, o que resultou de, em 2012, a 1ª executada, de que a embargante era garante, ter cessado a sua atividade (Doc. 9); a exequente demorou mais de cinco anos para vir exigir a dívida, por isso, a mesma está prescrita, devendo este prazo ser contado da data do incumprimento (310º, d) e e) do C. Civil); a exequente age em abuso de direito (em supressio).

A exequente contestou, dizendo ter contratado com a 1ª executada a prestação de garantia à primeira solicitação a favor dos referidos bancos mutuantes B... e B..., tendo aquela executada entregue em garantia as correspondentes livranças em branco, avalizadas pela embargante, garantias autónomas que foram accionadas e pagas pela exequente, tendo dado o respectivo conhecimento à 1ª executada, que todavia nada pagou, apesar de solicitada para tal; o acordo invocado pela embargante visou regularizar a dívida pendente, nos termos do qual foram efectuados pagamentos por conta dessa dívida, o último dos quais efectuado pela executada em 2 de Outubro de 2015 (e não Setembro de 2012);  solicitou o pagamento dos montantes inscritos nas livranças à embargante e 1ª executada, em 21.5.2018, e informou-as dos termos de preenchimento daquelas; não se verificam as invocadas exceções, sendo que a prescrição do art. 310º do CC é inaplicável no caso concreto, pois a dívida emerge das garantias bancárias prestadas e pagas; tudo a conduzir à improcedência dos embargos.

Foi proferido despacho a considerar que o processo já dispunha dos elementos necessários à prolação de decisão final e para as partes, querendo se pronunciarem. Ambas as partes ofereceram alegações. Nas suas alegações a recorrida requereu a junção aos autos, pela recorrente/exequente, do documento comprovativo do pagamento que a mesma alegava ter tido lugar em Outubro de 2015.

*

Foi, depois, proferida sentença que julgou procedente os embargos (por verificação da exceção de prescrição), determinando-se a extinção da execução quanto à embargante M...

2. A exequente/embargada recorreu, concluindo que:

...

NESTES TERMOS:

E nos melhores de Direito requer-se a V. Exas se dignem revogar a Sentença recorrida, substituindo-a por outra que, fazendo correta aplicação do Direito decida que a instância executiva deve prosseguir ulteriores termos.

Caso seja outro o entendimento deste Veneranda Relação, e considere que devia ser a Recorrente a demonstrar os pagamentos feitos pela Embargante - o que se admite por mero dever se cautela e patrocínio mas sem conceder - devem os mesmos ser considerados provados através dos documentos ora juntos ou deve ser dada a oportunidade à Recorrente de demonstrar que foram, de facto, realizados.

3. A embargante/executada contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

...

II - Factos Provados

...

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Junção de documentos.

- Alteração da matéria de facto.

- Decisão surpresa.

- Prescrição do capital e juros, de harmonia com o art. 310º do CC.

- Não preenchimento abusivo das livranças.

- Em caso de inexistência de prescrição e de preenchimento abusivo das livranças, abuso de direito da exequente.

2. A recorrente nas suas alegações requereu a junção aos autos de 2 docs., nos termos do arts. 425º e 651º, nº 1, do NCPC, por tal apresentação se ter revelado necessária, dado a sentença proferida, que julgou procedente a prescrição invocada pela embargante, tendo inviabilizado a realização das diligências probatórias para apuramento dos factos. Esses 2 docs. demonstrarão que a embargante lhe fez pagamentos até 2.10.2015, e afastarão a verificação da prescrição.

Também, perante tais docs., a impugnação de facto que deduz contra o único facto não provado deverá ser procedente, passando tal facto a provado e, assim, obviando à dita verificação da prescrição.

Por fim, invoca que há decisão surpresa, “Porquanto a falta de junção de documento deve determinar a prolação de despacho de convite (art. 591º, nº 3, do CPC). Não tendo sido proferido este despacho e mantendo-se a falta em causa, esta poderá ser suprida mediante intervenção oficiosa do tribunal, ao abrigo do princípio do inquisitório (arts. 411º e 436º do CPC).

A sentença proferida sem que tal notificação tivesse sido efectuada constitui uma decisão surpresa, por violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, geradora da nulidade processual prevista no artigo 195.º, n.º 1, do CPC.”.

Estas 3 primeiras questões, acima enunciadas, não serão conhecidas, por inutilidade, face ao que vai ser explicitado infra (no ponto 3.) e à decisão que vai ser tomada. 

3. Acerca da prescrição invocada pela embargante, a sentença referida explanou, em síntese, que havia prescrição do capital e dos juros, nos termos do art. 310º, d) e e) do CC, porquanto o reembolso da dívida à exequente foi objeto de um ACORDO de assunção e regularização, celebrado em 13 de julho de 2012, contendo um plano de amortização no ANEXO I, composto por 36 prestações mensais e sucessivas, incluindo amortização de capital, juros moratórios e imposto de selo, ACORDO que envolveu embargante e embargada, logo situando-se no plano das relações imediatas, sujeito ao aludido prazo de prescrição de cinco anos. Que à data da instauração da ação executiva em 9.8.2019 já tinham decorrido mais de 5 anos contados desde o incumprimento do ACORDO, uma vez que o incumprimento ainda surge em 2012, tendo sido feito um último único pagamento pela sociedade executada em 25.3.2013 (de 304€). Que a própria carta enviada pela exequente às executadas a 21.5.2018 a solicitar o pagamento dos valores em dívida e a informar dos termos de preenchimento das livranças, já foi expedida com a dívida prescrita pelo decurso dos 5 anos (que se iniciou em 25.3.2013).

Assim, e inexistindo qualquer causa interruptiva ou suspensiva, o prazo prescricional de 5 anos foi atingido em 25.3.2018, pelo que se concluiu que a obrigação exequenda já se mostra prescrita, quer no momento em que a embargante tem conhecimento da carta de 21.5.2018, quer no momento em que o processo executivo foi intentado (em Agosto de 2019). Certo que, a embargada alegou, mas não demonstrou (nem tem como o fazer), que o último pagamento da executada é de 2.10.2015.

Ora, é aqui, nesta última parte sublinhada, que reside a incorreção da decisão apelada, e que tem consequências no andamento dos autos, como agora vamos explicar.

A embargante invocou, a seu favor, a prescrição. Como facto extintivo cabe-lhe a ela o ónus de prova, designadamente dos factos subjacentes que a integram (art. 342º, nº 2, do CC). A embargante tinha alegado que o último pagamento tinha ocorrido em Setembro de 2012, tendo, por isso ó ónus de o provar, para a partir de aí começar a contagem do prazo quinquenal da prescrição que invocou. Só que a embargada impugnou tal facto, avançando que a os pagamentos da dívida foram efectuados até Outubro de 2015.

A embargada podia ter-se ficado pela simples impugnação, que o ónus de prova desse ultimo pagamento de Setembro de 2012 continuaria a caber à embargante. E a embargada, querendo, podia, sempre, ir além da simples impugnação e efectuar contraprova, pois a contraprova pode ser oposta a uma prova livre ou prova legal não plena (art. 346º do CC) – certo que a embargante não apresentou até ao momento qualquer comprovativo legal pleno.

De modo que a embargada, podia, e pode apresentar qualquer meio de prova, nomeadamente documental, que gere dúvida sobre aquele facto alegado pela embargante.

Mas à embargada até lhe é permitido ir mais além, isto é, invocar uma contra-excepção à excepção alegada pela embargante, por exemplo, a interrupção da prescrição, através de pagamentos prestacionais da dívida – como decorre do art. 325º do CC -, de modo a impedir a consumação da prescrição, alegada pela embargante, cabendo-lhe, então o ónus de prova dessa contra-excepção. O que a embargada fez, alegando que houve pagamentos prestacionais da dívida até Outubro de 2015. Cabe aqui um parêntesis para fazer notar que, ao contrário do defendido pela embargada tal facto por ela alegada, não pode ser considerado provado, pois a embargante não tinha articulado legal para responder e a audiência preliminar ou audiência final não foram realizadas (art. 3º, nº 4, do NCPC).

Desta maneira, ficou em aberto se o último pagamento se deu em Setembro de 2012, como alegou a embargante, ou se deu em Outubro de 2015, como alega a embargada. Esta incerteza é determinante, pois dela depende a verificação ou não da prescrição.

O que é seguro é que qualquer das partes pode fazer a respectiva prova, e nenhuma dessas datas se pode dar por adquirida, nesta fase do processo, pois não há nenhuma prova legal plena produzida até ao momento, e ambas as datas podem ser provadas livremente – como se disse, nesta fase processual a data invocada pela embargante está impugnada e a data alegada pela embargada não está admitida pela embargante.

Também não se pode chamar à colação o art. 590º, nº 3, do NCPC (a embargada refere o 591º, mas só é compreensível por lapso), porque tal normativo se reporta a documento essencial para prova de pressuposto da situação jurídica necessariamente precedente daquela se quer fazer valer (vide ex. em Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, 3ª Ed., págs. 162/163) e não quando o documento se destina provar facto constitutivo da própria situação jurídica para a qual se pede a tutela jurisdicional, ou seja, a causa de pedir ou facto em que a excepção (ou contra-excepção) se baseia. Nestas hipóteses a parte pode apresentar o documento até 20 dias antes da audiência final de julgamento (art. 423º, nº 2, do NCPC).

Não estamos, pois, perante um articulado irregular, sujeito a despacho vinculado, e, por conseguinte, perante qualquer nulidade processual, como propugna a embargada (aliás se assim fosse, a nulidade processual devia ser arguida perante o tribunal que a teria cometido, o tribunal a quo, e não perante o tribunal ad quem, atento o que se dispõe nos arts. 195º e segs. do NCPC).  

Quer isto significar, no caso concreto, que a embargada pode apresentar documento até à data limite indicada, destinada a fazer contraprova do indicado facto alegado pela embargante (data do último pagamento) como do próprio facto por si alegado (referido a esse último pagamento) – sendo, portanto, errónea a fundamentação do único facto não provado, já que não podendo, em princípio, a embargada provar o facto que alegou, por meio de testemunhas, o poderá fazer por documento suficiente de apreciação livre (ou, eventual,  documento de prova legal plena).      

Adicionalmente se salientando que igualmente não estamos defronte a hipótese prevista no nº 2, c), do mencionado art. 590º, visto que eventual documento comprovativo que a embargada apresente, para prova do facto que alegou (data de pagamento), não será nunca prova legal tarifada, documento ad substantiam ou ad probationem (ou aparente documento formalmente convencionado pelas partes), nem há indício de existir, até ao momento, documento em poder da embargada que faça prova legal plena – na espécie em apreço os 2 docs. que a embargada/recorrente juntou com as suas alegações não fazem prova legal plena, antes são de apreciação livre (vide, mais uma vez L. Freitas, ob. cit., pág. 166). Se fosse esse o caso, que não é, note-se que, curiosamente, a embargante até requereu nas suas alegações pré saneador-sentença que o tribunal determinasse a junção de documento comprovativo da alegação da embargada da data do último pagamento e o tribunal ou não atentou ou desconsiderou …..!? 

Perante estes dados, duas conclusões se impõem.

Uma é a de que o despacho saneador-sentença proferido foi prematuro, pois o estado do processo não permite, sem necessidade/possibilidade de mais provas, a apreciação do mérito dos embargos, designadamente da excepção peremptória de prescrição deduzida pela embargante (art. 595º, nº 1, b), do NCPC). Havendo, por conseguinte, o processo que seguir os seus termos.

Outra, é que face ao expendido, torna-se neste momento perceptível e justificada a nossa afirmação de que as 3 questões primeiramente elencadas (vide ponto 2.) não careciam de conhecimento e análise útil nesta apelação.                

4. Tendo em conta o que explicou no ponto 3., e ao que se vai decidir, fica prejudicado o conhecimento das duas remanescentes questões.

5. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Só deve conhecer-se do mérito da causa no despacho saneador se o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação de alguma excepção peremptória (art. 595º, nº 1, b), do NCPC);

ii) Se a embargante invoca a prescrição quinquenal, do art. 310º, e), do CC, com fundamento no último pagamento prestacional numa determinada data e a embargada impugna e riposta com alegação de outra data, sendo essencial apurar em que data esse último pagamento terá ocorrido, para verificação da dita prescrição, e é possível que a embargada, além da mera impugnação, junte documento, de apreciação livre, destinado a fazer contraprova ou mesmo prova do facto que alegou, o conhecimento da excepção no despacho saneador-sentença proferido é prematuro. 

IV - Decisão

Pelo exposto, revoga-se o saneador-sentença e ordena-se a prossecução dos autos. 

Custas a cargo da parte vencida a final.

                                                                Coimbra, 9.3.2021

                                                                Moreira do Carmo