Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
53/09.6IDVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JC GENÉRICA DE CINFÃES)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 55.º E 56.º, DO CP
Sumário: 1 - A revogação da suspensão da execução da pena por incumprimento de qualquer dever ou condição pelo condenado, só pode ocorrer se esse incumprimento se ficar a dever a culpa grosseira do mesmo.

2 - Não é legítimo concluir que o não pagamento parcial de qualquer montante [até ao montante que tinha capacidade para pagar] se traduz numa culpa grosseira do arguido no não cumprimento da condição.

3 - Tendo em conta a data da prolação da sentença e trânsito em julgado da mesma, o teor do acórdão [AUJ n.º 8/2012 do STJ, publicado no DR, 1ª Série de 24.10.2012] não tem aplicação direta no caso concreto.

Decisão Texto Integral:







 Acordam em conferência, na 4ª Secção (competência criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra.

I

1. Nos autos de processo comum supra referenciados, foi o arguido

A... , por sentença proferida nestes autos, transitada em julgado em 18.01.2012, condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6.º, 7.º, 105.º, n.ºs 1, 2 e 4 do R.G.I.T., na pena de 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, na condição de nesse período proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta e acréscimos legais, à taxa em vigor, iniciando-se a contagem desse prazo após trânsito da presente condenação, nos termos dos artigos 50.º, n.º 2 e 51.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e 14.º, n.º 1 do R.G.I.T.

2. Por despacho judicial de 23.2.2017, foi revogada esta suspensão de execução da pena.

3. Da decisão recorre o arguido, formulando as seguintes conclusões:

a - Vem o presente recurso interposto do douto despacho que determinou a revogação da condição de suspensão, determinando o cumprimento efectivo da pena de prisão, já aplicada ao recorrente na douta sentença, justificando tal decisão no facto de o recorrente nada ter pago por conta deste processo e nem sequer ter justificado ao tribunal as razões do não cumprimento, mostrando, portanto, “uma atitude particular censurabilidade, pelo menos de leviandade e desinteresse pela condição imposta”.

b - O recorrente não pode conformar-se com tal decisão, pois entende que o tribunal a quo não analisou devidamente todos os factos que se sucederam durante o período de duração da suspensão da pena de prisão, inconformando-se relativamente à aplicação do direito e recorrendo de tal matéria.

c - É inegável que o código penal português tem na sua génese e está orientado no sentido de um profundo pendor humanista, em que a sua intervenção é ordenada e orientada no sentido de recuperar e ressocializar o criminoso, na crença de que isso é sempre possível. tal orientação vem sendo, cada vez mais, notória a cada reforma que é efectuada ao código penal.

d - Nesta senda, a existência das penas de prisão comprometem todo este raciocínio do legislador, porquanto as mesmas, principalmente as penas de prisão de curta duração, podem trazer ao criminoso efeitos negativos, que o legislador pretende evitar e, como tal, só deverão ser aplicadas como uma medida de solução extrema, em ultima ratio.

e - Para assegurar o restabelecimento da paz social e a ressocialização do delinquente (duas finalidades da

legislação criminal), o legislador adoptou mecanismos adequados e proporcionais de substituição destas penas de prisão, tudo em obediência ao espírito legislativo e por forma a evitar os efeitos negativos que o cumprimento efectivo da pena de prisão poderá acarretar ao delinquente.

f - Como tal, os requisitos para que ocorra a revogação da condição de suspensão da pena de prisão são muito apertados.

Mais uma vez, a revogação da suspensão da pena de prisão deverá ser tida em linha de conta pelo julgador como um último recurso.

g - Para tanto, entende-se que o criminoso deverá ter um comportamento e uma actuação significativamente culposa, por forma a colocar em causa a esperança depositada de que o mesmo se pode recuperar.

h - Da conjugação dos artigos 55.0 e 56.0, do código penal resulta que o simples incumprimento, ainda que com culpa, pode não justificar a revogação da suspensão da pena de prisão - cfr. acórdão do tribunal da relação de Coimbra, datado de 27 de janeiro de 2016.

i - São dois os fundamentos da revogação da suspensão da pena de prisão - o incumprimento grosseiro ou repetido dos deveres ou regras impostos ou do plano de reinserção social e o cometimento de crime e a respectiva condenação.

j - Conforme vem sendo decidido pela doutrina e jurisprudência portuguesas, o incumprimento grosseiro é o que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade, aqui se incluindo a colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção. já o incumprimento repetido resulta da atitude do condenado de leviandade prolongada no tempo, revelando uma postura de desprezo pelas limitações resultantes da sentença de condenação.

l - Para as condutas infractoras que não relevam um grau de culpa e de indiferença tão elevado e em que o condenado se encontra já ressocializado (objectivo primordial do legislador penal), a lei prevê a obrigatoriedade de aplicação de outras medidas, previstas no artigo 55.°, do código penal.

m - Recorremos aqui aos ensinamentos dos autores Leal - Henriques e simas santos, in “Código Penal Anotado", 3.ª edição, volume I, Rei dos Livros, página 711 (anotação ao artigo 56.º), “as causas de revogação não devem, pois, ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período de suspensão, o arguido deve ter demonstrado com o seu comportamento que não se cumpriram as expectativas que motivaram a concessão da suspensão da pena”.

n - No entanto, entendeu o tribunal a quo, que o facto do arguido não ter pago qualquer valor monetário, por conta desta “dívida”, nem tendo comunicado o que quer que seja aos autos, justificando o seu não cumprimento demonstra que o recorrente desvaloriza o bem jurídico protegido pela norma que qualifica o tipo legal de crime, praticado nos presentes autos.

o - O arguido não pode conformar-se com tal decisão/justificação, que, entende com o devido respeito, que foi tomada de forma superficial.

p - Porquanto, temos de ter sempre em atenção que o agente de qualquer crime, como é o recorrente, o homem que o comete, mas não é apenas ele, é ele e a sua circunstância, e é a circunstância que acompanha o arguido/recorrente que merece ser vista e analisada mais de perto, o que não aconteceu, na opinião do recorrente, no caso em apreço.

q - Efectivamente o recorrente não pagou qualquer valor à autoridade tributária e aduaneira, por conta deste processo e, como tal, dúvidas não subsistem que o mesmo não cumpriu formalmente com a condição de suspensão da pena de prisão.

r - Ao contrário daquilo que é referido pelo tribunal a quo, o recorrente      não cumpriu a condição de suspensão devido a causas que lhe são          totalmente alheias e para as quais o arguido nem sequer contribuiu ou as agudizou.

s - Além disso, não existem factos nos autos que possam comprovar que o incumprimento do arguido se trata de um incumprimento grosseiro.

t - Porquanto, as condições económicas do arguido durante o período de suspensão da pena de prisão não foram as mais favoráveis, sem que o arguido tal o provocasse, pois não dissipou bens e sempre tentou encontrar um emprego fixo, que lhe proporcionasse rendimentos certos para que o mesmo conseguisse solucionar a sua vida financeira.

u - O recorrente afirmou, quando inquirido, que enquanto se encontrava em frança trabalhava períodos pequenos, muitos de 15 dias, auferindo, por isso, um vencimento que muitas vezes não se mostrava suficiente para satisfazer todas as suas despesas. como tal, vivia numa situação de incerteza, desconhecendo se, terminando aquele contrato, alimentos que estava            adstrito entre outras despesas, como é a do caso em apreço.

v - Exemplo disso são os rendimentos que o arguido auferiu em 2015, que, em média, se cifram nos 200 €/mês. é inimaginável uma pessoa sobreviver com 200 €/mês, sendo certo que nem tal quantia chegava para que o mesmo pudesse prover pelo pagamento da pensão de alimentos que dava e dá aos seus dois filhos.

x - O arguido é um pai consciencioso, tal como referiu a testemunha inquirida, sua ex-mulher e mãe dos seus filhos e prefere ser ele a passar necessidades e ter problemas judiciais do que ver os seus filhos a passarem necessidades, pelo que nunca deixou de pagar a pensão de alimentos, para entregar o dinheiro ao estado, por conta deste processo, mas, tal não significa que o recorrente desvalorize o bem jurídico protegido pela norma que tipifica a sua conduta como crime, tal situação é, tão-somente, uma escolha que o recorrente se viu obrigado a fazer, em função dos seus rendimentos.

z - Relativamente aos anos de 2013 e 2014, em que o recorrente declarou rendimentos de 11.794,43€ e 19.284,16 €, respectivamente, como tal, numa análise superficial, poderíamos afirmar que o condenado/recorrente teria um rendimento estável, que o permitia ter pago, ainda que parcialmente, a condição de suspensão da pena de prisão, mas iria ter, de seguida, novo contrato de trabalho, que lhe permitisse pagar as suas despesas e suportar o pagamento da prestação de não nos podemos satisfazer com uma simples análise superficial, isto porque, conforme o próprio despacho refere, a maioria dos rendimentos declarados pelo recorrente são obtidos no estrangeiro (10.703,85€, em 2013 e 18.908,58€, em 2014), o que corrobora as declarações do recorrente ao afirmar que durante tais anos, trabalhou no estrangeiro, ainda que refira que os trabalhos apareciam, de forma esporádica e precária.

aa – O facto de o recorrente ter de estar no estrangeiro acarreta, para o mesmo, o aumento das suas despesas quotidianas, pois o nível de vida na frança é bastante mais elevado que em Portugal, a título de exemplo, o recorrente pagava 350 € pela renda de casa. tendo o recorrente um vencimento de, em média, 750 € e pagando 350 €, de renda de casa, 250 €, a título de pensão de alimentos, restava-lhe 150 €, para a sua alimentação e vestuário.

ab - Em suma, o recorrente não deixou de cumprir a condição de suspensão por sua culpa ou sequer por negligência, não cumpriu porque não tinha condições económicas e financeiras para o fazer, assim, a violação dos deveres inerentes à suspensão da pena de prisão, não deverá ser tida como fundamento para a revogação da pena de prisão aplicada ao arguido, pois o incumprimento por aquele não ê, de todo, um incumprimento grosseiro.

ac - Pois, conforme se escreve no sumário do acórdão deste venerando tribunal, datado de 17 de outubro de 2012, proferido no processo 91j07.3idcbr.c1, espelhando o entendimento doutrinal e jurisprudencial nesta matéria, “(....) a violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos de que se fala na al. a), do n.  1, do artigo 56.°, do código penal, há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada, nem desculpada; só a inconciabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respectiva revogação.

ad - E, concedendo uma segunda hipótese ao recorrente, ainda se poderá alcançar as finalidades da suspensão da pena, pois o mesmo é peremptório ao afirmar que pretende pagar a dívida em causa – cfr. depoimento do recorrente 20160621095028_1728793_2871951, entre os minutos 03:20 e 03:29 e entre os minutos 22:03 e 22:24.

ae - Assim, perante toda a prova, defendemos que a atitude global do recorrente demonstra respeito e interiorização das regras de convivência em sociedade e revela uma personalidade que pretende adaptar-se e reintegrar-se, não impondo a protecção dos bens jurídicos violados e a tutela do ordenamento jurídico a revogação da suspensão da pena.

af - A acrescer a tudo isso, temos de atentar sempre que o recorrente está bem integrado e inserido, quer a nível social, profissional e familiar e, após a condenação em causa, não cometeu qualquer outro crime, quer desta natureza, quer de outra natureza, pois o arguido já interiorizou o desvalor da sua acção/crime, tendo-se afastado da delinquência.

ag - Concluindo, deverá ser entendido por este venerando tribunal, perante todos os factos obtidos, que o recorrente oferece garantias que permitam formular um juízo de prognose favorável, de que no futuro, o mesmo irá cumprir com a condição de suspensão.

ah - Por tal motivo, somos da opinião que o tribunal a quo não deveria ter aplicado a revogação da suspensão da pena de prisão, que, dentro do espírito legislativo, deverá ser aplicada em última ratio, pelo que, o tribunal a quo deveria ter-se decidido pela prorrogação do período de suspensão da pena de prisão.

ai - O douto despacho do tribunal a quo violou o disposto nos artigos 55.° e  56.°, do Código Penal e artigos 13.°, 18.°, n.º 2, 27.°, 266.°, da Constituição da República Portuguesa.

Espera-se assim, no provimento do recurso, a modificação da decisão do douto despacho a quo e, consequente, prorrogação do período da condição de suspensão da pena de prisão aplicada ao recorrente, como é da mais inteira e salutar justiça.

           

            4. Respondeu o Ministério Público, dizendo, em síntese:

            1) Dispõe o artigo 56°, n. ° 1, 01. a), do Código Penal que a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a} Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ( ... ).

            2) A suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido foi condicionada ao pagamento das prestações tributárias em falta e acréscimos legais à taxa em vigor, no prazo da suspensão;

            3) Qualquer alteração à suspensão da execução da pena, por violação dos deveres ou das regras de conduta impostas na sentença, pressupõe a culpa no não cumprimento da obrigação. E no caso de revogação, a culpa há-de ser grosseira (Ac. do T.R.P. de 12/01/2011);

            4) No douto despacho sob recurso cuidou a Mma. Juiz a quo, antes de mais nada, de apurar se o condenado, agora recorrente, se encontra ou não em condições financeiras de cumprir a obrigação imposta aquando da suspensão da execução da pena de prisão;

            5) Essa apreciação foi feita nos termos adequados, concluindo a Mma. Juiz a quo, e bem, que o não cumprimento da obrigação à qual ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado lhe é culposamente imputável e que essa sua culpa foi grave;

            6) Neste longo período de tempo, o arguido não liquidou nem um único cêntimo à Autoridade Tributária para pagamento das prestações tributárias em falta, nem demonstrou qualquer esforço no sentido de satisfazer aquela condição;

            7) O arguido sempre desenvolveu actividade laboral, em Portugal e no estrangeiro, que lhe conferiam rendimentos suficientes para o cumprimento de, pelo menos parte, das suas dívidas.

            8) O arguido, no ano de 2015, declarou ter auferido o valor anual de 2.486,38€; no ano de 2014, o valor de 375,58€ relativo a rendimentos obtidos em Portugal e o valor de 18.908,58€ relativo a rendimentos obtidos no estrangeiro; no ano de 2013, o valor de 1.090,58€ relativo a rendimentos obtidos em Portugal e o valor de 10.703,85€ relativo a rendimentos obtidos no estrangeiro.

            9) O arguido também foi condenado pela prática do mesmo ilícito criminal no processo nº 72/07.7IDVIS na pena de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, ou seja de 13.06.2011 a 13.06.2016, na condição de nesse período proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta e acréscimos legais, bem como benefícios indevidamente obtidos e nada pagou.

            10) O arguido até 17.03.2015 (v. fls. 739/740) nada comunicou nos autos quanto à falta de cumprimento da condição à qual se encontrava subordinada a suspensão da pena de prisão em que foi condenado, tendo, aliás, manifestado, nessa ocasião, ter condições e intenção de cumprir.

            11) Tendo em conta o período de tempo já decorrido desde o trânsito em julgado da sentença, e atendendo aos referidos rendimentos do arguido, o mesmo poderia e deveria ter pago à Autoridade Tributária, pelo menos parcialmente, o montante referente às prestações tributárias em falta.

            12) Contudo, neste longo período de tempo, o arguido não liquidou um único cêntimo, não tendo demonstrado minimamente qualquer esforço no sentido de satisfazer integralmente aquela condição, demonstrando uma atitude de total desprezo para com o bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social e de indiferença para com a pena de prisão em que foi condenado.

            13) E neste peculiar acompanhamos, integralmente, o douto despacho ora posto em crise, quando diz "se o arguido tivesse efectuado o pagamento de €10,00 (dez euros) por dia (montante que, relembre-se, fica muito aquém das possibilidades do arguido), em dois anos (designadamente nos anos de 2013 e 2014) já teria cumprido parcialmente a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão, em €7.200,OO (sete mil, duzentos euros)".

            14) Resulta assim dos autos, conforme bem entendeu a Mma. Juiz a quo, que esse não pagamento é culposamente imputável ao arguido ora recorrente, a título de culpa grave.

            15) Concluindo, como não poderia deixar de fazer, pela revogação da suspensão da execução da pena de prisão que lhe fora aplicada e ordenando, consequentemente, o cumprimento da pena de 3 (três) meses de prisão imposta na douta sentença proferida nos autos.

            16) O arguido demonstrou uma atitude de particular censurabilidade, de grande leviandade e desinteresse pela condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado.

            17) A não revogação da suspensão da pena de prisão em que o arguido foi condenado representaria uma total ineficácia da pena aplicada ao mesmo, colocando em causa as exigências de prevenção geral, traduzidas na própria validade contrafáctica do artigo 105.0 do Regime Geral das Infracções Tributárias, que incrimina o ilícito de abuso de confiança contra a Segurança Social.

            18) O douto despacho recorrido não violou qualquer norma legal, concluindo-se que, face às circunstâncias do caso concreto, o não cumprimento pelo arguido da condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ficou a dever-se a culpa grave da sua parte.

            19) Não violou, concretamente, o disposto nos artigos 55.° e 56.°, do Código Penal e artigos 13.°, 18.°, n.º 2,27.° e 266.° da Constituição da República Portuguesa, tendo a Mma. Juiz a quo feito uma correcta aplicação do direito aos factos e realizado as diligências de recolha de prova possíveis e adequadas à boa decisão da questão sob recurso.

            20) Pelo exposto, entendemos não merecer o despacho proferido pelo Tribunal a quo, agora posto em crise, qualquer censura.

            Termos em que deverá o recurso interposto pelo arguido ser julgado totalmente improcedente, assim fazendo v. exas., como sempre, justiça.  

            5. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, dizendo que o recurso não merece provimento.    

            6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II

            Questão a apreciar:

            1. A verificação ou não dos pressupostos para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.                                                          

III

A decisão recorrida tem o seguinte teor, no que para o efeito releva:

            A 17.03.2015 veio o arguido requerer seja autorizado a proceder ao pagamento da quantia em prestações mensais nunca inferiores a €100,00, uma vez que não tem condições económico-financeiras de o fazer de uma só vez, estando o mesmo na disposição de iniciar tais pagamentos de imediato, cfr. fls. 739-740.

*

            A 14.04.2015 foi proferido despacho onde se consignou a quantia em dívida, bem como se pronunciou quanto ao pagamento em prestações, cfr. fls. 747-748.

*

            A Autoridade Tributária informou os autos (cfr. fls. 778) que o arguido não efectuou qualquer entrega dos montantes a que está obrigado.

*

            Não existem veículo registados em nome do arguido, cfr. fls. 785.

            O arguido não tem bens móveis ou imóveis registados em seu nome, cfr. fls. 795.

Em Agosto de 2015 o arguido auferia valor mensal de €252,50.

            O arguido iniciou em 06.04.2016 trabalho na Noruega com duração de 6 meses, cfr. fls. 808-809.

*

            Procedeu-se à audição do arguido em 21.06.2016, bem como da ex-mulher do arguido (cfr. fls. 803).

            Assim, o arguido esclareceu que, desde 2012, tem trabalhado em períodos esporádicos no estrangeiro, encontrando-se, atualmente, desde Maio de 2016, na Noruega, auferindo um vencimento mensal de cerca de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros).

            Tem dois filhos menores, encontrando-se obrigado a pagar a quantia mensal de 125,00€ (cento e vinte e cinco euros) a título de prestação de alimentos.

            Trabalhou na França entre os anos de 2011 e 2015 e, pelo menos no início, auferia um vencimento de cerca de 1.400,00€ (mil e quatrocentos euros).

            Acrescentou que em meados do ano de 2015 trabalhou para uma empresa portuguesa, em Portugal e que na França, muitas vezes, só conseguia trabalhar 15 dias em cada mês, auferindo um vencimento que muitas vezes não se mostrava suficiente para suportar as despesas.

            Importa referir que quando questionado sobre o seu percurso profissional entre 2012 a 2016, no sentido de concretizar os períodos sem vencimento, os seus vencimentos, o arguido não foi capaz de esclarecer, mostrando-se as suas declarações muitíssimo vagas, repetindo sempre que tem dificuldades económicas, contudo, não foi capaz de as esclarecer e especificar.

            Acresce que, o arguido não foi capaz de esclarecer porque não requereu a alteração do montante referente às prestações de alimentos dos filhos, atentas as dificuldades económicas que alega ter tido.

            Por outro lado, o arguido referiu, mais uma vez de forma vaga, não sendo capaz de contextualizar no tempo, e admitindo não ter como provar o que declara, ou seja não tem qualquer documento, que pagou dívida a empresa, bem como não foi capaz de explicar a razão de ser desta dívida e o contexto do pagamento desta.

Em suma, o arguido pretendeu convencer este Tribunal, o que não logrou conseguir, que, nos anos de 2012 a Maio de 2016, teve dificuldades económicas, porquanto as suas declarações mostram-se muito vagas, e são contrariadas e descredibilizadas pelo teor das declarações de I.R.S. juntas aos presentes autos, das quais resulta os rendimentos do arguido.

*

            …

            Na factualidade dada como provada na sentença proferida a fls. 636-672 consta que o arguido desde Abril/Maio de 2011 e, pelo menos, até 05.12.2011, se encontra a trabalhar em França como servente, auferindo um vencimento mensal no valor de €1.400,00, cfr. fls. 646.

            Mais consta da factualidade dada como provada que o arguido é divorciado, e tem dois filhos menores, e que suporta mensalmente cerca de €175,00 a título de alimentos, com cada um dos seus filhos, que residem com a progenitora.

*

            Foram juntas aos autos declarações de I.R.S. do arguido, e por este foram declarados os seguintes rendimentos, cfr. fls. 811-827:

            - No ano de 2015, o valor de €2.486,38;

            - No ano de 2014, os valores de €375,58, relativo a rendimentos obtidos em Portugal e €18.908,58 relativo a rendimentos obtidos no estrangeiro.

            - No ano de 2013, os valores de €1.090,58, relativo a rendimentos obtidos em Portugal e €10.703,85 relativo a rendimentos obtidos no estrangeiro.

            Quanto ao ano de 2012 a A.T. informou os presentes autos que não consta na base de dados qualquer declaração de I.R.S. referente ao arguido do ano de 2012, cfr. fls. 833.

            Importa ainda referir que resulta das declarações de I.R.S. que o arguido, nos anos de 2013 a 2015, declarou, anualmente, o valor de €3.000,00 como dedução à coleta relativo às pensões de alimentos dos seus filhos menores, cfr. fls. 814, 818, 824.

*

            Foi junto aos autos o certificado de registo criminal atualizado do arguido, cfr. fls. 923-929, do qual se extrai, para além da condenação sofrida nos presentes autos, que:

            (1) Por sentença proferida em 08.11.2004, transitada em julgado em 23.11.2004, no Processo Comum Singular n.º 77/02.4IDVIS deste Tribunal, o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de €7,00, por factos praticados em 02.02.2000, a qual foi declarada extinta pelo cumprimento.

            (2) Por sentença proferida em 17.07.2009, transitada em julgado em 16.09.2009, no Processo Comum Singular n.º 111/05.6TAMCN do Tribunal Judicial de Marco de Canaveses, o arguido foi condenado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €4,00, por factos praticados em 29.10.2004, a qual foi declarada extinta pelo cumprimento.

            (3) Por sentença proferida em 26.04.2011, transitada em julgado em 13.06.2011, no Processo Comum Singular n.º 72/07.7IDVIS deste Tribunal, o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, e de um crime de fraude fiscal, na pena de 160 dias de multa à taxa diária de €5,00, por factos praticados em Janeiro de 2004, a qual foi declarada extinta pelo cumprimento, bem como na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, na condição de nesse período proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta e acréscimos legais, bem como benefícios indevidamente obtidos.

            (4) A condenação dos presentes autos.

*

            Foi junta certidão da sentença, com nota de trânsito em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 72/07.7IDVIS, bem como informação que o período de suspensão já terminou e o arguido não procedeu ao pagamento de qualquer quantia, cfr. fls. 866-913.

*

            O Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da execução da pena de prisão fixada na sentença proferida nos presentes autos, porquanto o arguido violou grosseira e repetidas vezes as obrigações a que estava sujeito, cfr. fls. 834-838.

            Para tanto, invoca que o arguido não liquidou nenhum dos montantes em dívida à Segurança Social em causa nestes autos, apresar de desenvolver atividade profissional, em Portugal e no estrangeiro, que lhe conferia créditos suficientes para o cumprimento das suas dívidas.

*

            O arguido pronunciou-se no sentido da prorrogação do prazo de suspensão, ou, caso se entenda por conveniente, a extinção da pena, cfr. fls. 844-850.

*

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

            A suspensão da execução da pena de prisão é uma verdadeira pena - meio autónomo de reação jurídico-penal, assentando a sua aplicação, mormente, num juízo de prognose favorável face ao comportamento futuro do arguido.

            Assim, a aplicação de tal pena depende de, no momento em que é proferida a decisão condenatória, esta satisfazer de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a saber, a proteção de bens jurídicos e as necessidades de reintegração social do arguido.

            Nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1 do R.G.I.T. consagra-se que ‘A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.’

            E no n.º 2 estabelece-se que ‘Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:

            a) Exigir garantias de cumprimento;

            b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;

            c) Revogar a suspensão da pena de prisão.’

            Ora, atenta a informação junta os presentes autos, no decurso da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada nestes autos, não é conhecida qualquer condenação referente ao arguido pela prática de crimes.

            Acresce que, e no que respeita ao disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 14.º do R.G.I.T., importa a análise se o arguido infringiu grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos. Neste jaez, não podemos deixar de concordar com a posição assumida pelo Ministério Público.

            Isto porque, cingindo-nos ao período de suspensão da execução da pena de prisão já decorrido (de 18.01.2012 até 18.01.2016), sobressai uma atividade laboral regular do arguido, não obstante algumas alterações quanto à sua entidade patronal, seja analisando as declarações de I.R.S. referentes aos anos de 2013 a 2015, os factos dados como provados na sentença e referentes ao ano de 2011, e as próprias declarações do arguido.

            O arguido declarou rendimentos para efeitos de I.R.S., acima referidos, que evidenciam uma situação financeira estabilizada, pelo menos nos anos de 2013 e 2014, o arguido teve rendimentos mensais não inferiores a €500,00, pelo contrário teve rendimentos bem superiores a tal quantia.

            Por outro lado, importa referir que o arguido foi condenado no processo n.º 72/07.7IDVIS na pena de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, ou seja de 13.06.2011 a 13.06.2016, na condição de nesse período proceder ao pagamento das prestações tributárias em falta e acréscimos legais, bem como benefícios indevidamente obtidos, contudo, nada pagou.

            Neste conspecto, o arguido nada pagou no processo n.º 72/07.7IDVIS, nem nos presentes autos.

            Apesar disso, o arguido não cumpriu a condição a que se encontrava subordinada a suspensão da execução da pena de prisão, nem mesmo num único cêntimo do valor em dívida que ascende ao valor de €92.191,04 (noventa e dois mil, cento e noventa e um euros e quatro cêntimos), acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos.

            Até 17.03.2015 (cfr. fls. 739-740) o arguido nada comunicou/alegou nos autos quanto à falta de cumprimento, pelo contrário manifestou ter condições e intenção de cumprir.

            Acresce que, e conforme supra explanado, as declarações do arguido mostram-se muito vagas, e são contrariadas e descredibilizadas pelo teor das declarações de I.R.S. juntas aos presentes autos, das quais resulta os rendimentos do arguido.

            Por outro lado, as declarações prestadas pela ex-mulher do arguido, Maria de Fátima Corria da Silva, e conforme supra explanado, mostram-se igualmente muito vagas, são contrariadas e descredibilizadas pelo teor das declarações de I.R.S. juntas aos presentes autos, das quais resulta os rendimentos do arguido, bem como são contrárias às regras da experiência comum e comportamento racional de um homem médio.

            Assim, o comportamento que o arguido apresenta a este Tribunal, de não pagamento à Segurança Social, resulta que se deveu a este não ter meios económicos para o fazer, mas, sim, por ter optado não fazer qualquer tipo de sacrifício, o que inculca a ideia de que o arguido desvaloriza o bem jurídico protegido pelo crime em causa nestes autos, e pelo qual foi condenado, ou seja, a necessidade de financiamento de certas funções desenvolvidas pelo Estado e que lhe são constitucionalmente atribuídas, por serem essenciais à vida condigna dos cidadãos em comunidade, como é o caso da atribuição de subsídios de desemprego ou do pagamento de prestações alimentícias aos menores.

            A título de exemplo, apenas se dirá que se o arguido tivesse efetuado o pagamento de €10,00 (dez euros) por dia (montante que, relembre-se, fica muito aquém das possibilidades do arguido), em dois anos (designadamente nos anos de 2013 e 2014) já teria cumprido parcialmente a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão, em €7.200,00 (sete mil, duzentos euros).

            Mas, como se disse, o arguido não cumpriu a condição a que se encontrava subordinada a suspensão da execução da pena de prisão, nem mesmo num único cêntimo do valor em dívida, que ascende ao valor de €92.191,04 (noventa e dois mil, cento e noventa e um euros e quatro cêntimos).

            Tudo se reconduz a uma atitude de particular censurabilidade, pelo menos, de leviandade e desinteresse pela condição imposta, por parte do arguido, nestes autos.

            Em consequência, as necessidades de prevenção especial positiva sentidas no caso concreto, a que igualmente não são alheias também as de prevenção geral, impõem a revogação da suspensão, por infração grosseira dos deveres impostos, e o cumprimento pelo arguido da pena de prisão fixada na sentença proferida nestes autos.

            Pelo exposto, determino a revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido A... , nos termos do artigo 14.º, n.º 1 do R.G.I.T., bem como se determina o cumprimento pelo arguido da pena de 3 (três) meses de prisão em que foi condenado.

           

IV

Cumpre apreciar:

A verificação ou não dos pressupostos para a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

1. Dispõe o artigo 56º, nº 1, alínea a) do Código Penal que:

“ A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso o condenado infringir grosseira e repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social”.

Por sua vez, dispõe também o artigo 55º, nº 1, do mesmo diploma que:

“Se, durante o período de suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de readaptação, pode o tribunal…”.

Face ao teor destas duas disposições, é comummente aceite, de modo generalizado e pacífico, que a revogação da suspensão da execução da pena por incumprimento de qualquer dever ou condição pelo condenado, só pode ocorrer se esse incumprimento se ficar a dever a culpa grosseira do mesmo.

Entre muitos outros, v. ac. do TRG de 19.1.2009, proferido no processo nº 2555/08.1, onde se decidiu:

I – A revogação da suspensão da execução da pena de prisão por violação de deveres impostos só pode ser decretada se tiver havido infracção grosseira ou repetida dos deveres de conduta ou regras impostas ou do plano individual de readaptação social.

II – Há uma violação grosseira quando o arguido tem uma actuação indesculpável, em que o cidadão comum não incorre, não merecendo ser tolerada.

Neste sentido v. ainda ac. da mesma RG de 4.5.2009, proferido no processo nº 2625/05.9PBBRG-A.G1 e ac. do TRP de 9.12.2004, proferido no processo nº 0414646 – este citado pelo próprio recorrente -, tendo neste sido decidido o seguinte:

I - Dos artigos 55 e 56, n.1 al. a) do Cód. Penal, ressalta clara a ideia de que qualquer alteração à suspensão da execução da pena, por violação dos deveres ou regras de conduta impostas na sentença, pressupõe a culpa no não cumprimento da obrigação, sendo que tal culpa deve ser grosseira, para justificar a revogação.

            2. Resulta da decisão recorrida que, em síntese, foi decretada a revogação da suspensão pelo facto do recorrente não ter satisfeito a condição imposta para a suspensão, esclarecendo-se que “o arguido não cumpriu a condição a que se encontrava subordinada a suspensão da execução da pena de prisão, nem mesmo num único cêntimo do valor em dívida que ascende ao valor de €92.191,04 (noventa e dois mil, cento e noventa e um euros e quatro cêntimos), acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos”.

            Está assente nos autos que o arguido não efetuou o pagamento de qualquer quantia correspondente à condição imposta.

E é também claro que a revogação com o fundamento no não cumprimento da obrigação/condição deve ocorrer por culpa grosseira do incumpridor.

2.1. Começando pela obrigatoriedade legal de, no crime em causa e outros da mesma natureza, a suspensão da execução da pena ser sempre sujeita à obrigação de o condenado dever pagar em prazo a fixar até ao limite de cinco anos, a prestação tributária e legais acréscimos devidos correspondente aos benefícios indevidamente obtidos – v. artigo 14º do RGIT[1] – a verdade é que, no caso de incumprimento desta condição, a revogação da suspensão da execução da pena não é automática.

Desde logo porque o artigo 14º, nº 2, c), daquele diploma apenas prevê tal revogação como uma possibilidade. Por outro, são aplicáveis os princípios do Código Penal sobre esta matéria que são exatamente os artigos 55º e 56º, deste diploma.

2.2. Em segundo lugar, face àquela exigência legal de condicionar sempre a suspensão da execução da pena ao pagamento do imposto devido, retira ao julgador, na fase em que aplica tal pena, de poder ajustar a condição, ao montante que o condenado conseguirá efetivamente pagar. Esta possibilidade está prevista no regime geral, artigo 51º, nº 1, alínea a), do Código Penal, ao referir-se ao pagamento, dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível.

Consagrando mesmo no nº 2, deste preceito (51º), o princípio da razoabilidade quanto aos deveres impostos ao arguido[2]. É este o entendimento jurisprudencial, com tradução, entre outros[3], no ac. do STJ de 13.12.2006, proferido no processo nº 06P3116, onde se afirma:

“ IV - Consagra, também, no n.º 2 do art. 51.º do CP, o chamado princípio da razoabilidade, que, segundo vem entendendo este Supremo Tribunal, significa que a decisão de imposição do dever ali previsto deve ter na devida conta “as forças” do destinatário, de modo a não frustrar, à partida, o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, sem contudo se cair no extremo de tudo se reconduzir e submeter às possibilidades económicas e financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para desenvolver diligências que lhe permitam obter recursos indispensáveis à satisfação do dever ou condição”[4].

2.2. Afigura-se-nos que estamos perante uma destas situações.

 Se se reparar no montante da condição imposta ao arguido, verificamos que ao mesmo foi exigido o pagamento de 92 191,04 €, acrescido dos legais acréscimos que, remontando esta dívida entre o primeiro e o quarto trimestre de 2006 – v. sentença a fls. 639 -, traduzir-se-á neste momento, em alguns milhares de euros[5].

Todas estas quantias deveriam ser pagas no período da suspensão da decisão, que foi de 4 anos.

            No momento em que o julgador fixa esta condição, dá como provado na sentença que o arguido desde Abril/Maio de 2011 e, pelo menos, até 05.12.2011, se encontra a trabalhar em

França como servente, auferindo um vencimento mensal no valor de €1.400,00, cfr. fls. 646.

            Mais consta da factualidade dada como provada que o arguido é divorciado e tem dois

filhos menores, e que suporta mensalmente cerca de €175,00 a título de alimentos, com cada

um dos seus filhos, que residem com a progenitora.

            Se porventura esta situação se tivesse mantido – o que não aconteceu, como se verá -, durante o período dos 4 anos da suspensão, seria de todo impossível para o arguido cumprir com a condição, ainda que todo o seu vencimento fosse destinado para este efeito.

            Mas para além de o mesmo suportar o dever de alimentos aos filhos (175,00€x2) e as suas normais despesas próprias, a possibilidade de cumprir a condição do pagamento diminuiria substancialmente.

            2.3. Mas resulta ainda assente da decisão recorrida que:

            Foram juntas aos autos declarações de I.R.S. do arguido, e por este foram declarados os

seguintes rendimentos, cfr. fls. 811-827:

            - No ano de 2015, o valor de €2.486,38;

            - No ano de 2014, os valores de €375,58, relativo a rendimentos obtidos em Portugal e

€18.908,58 relativo a rendimentos obtidos no estrangeiro.

            - No ano de 2013, os valores de €1.090,58, relativo a rendimentos obtidos em Portugal e

€10.703,85 relativo a rendimentos obtidos no estrangeiro.

            Quanto ao ano de 2012 a A.T. informou os presentes autos que não consta na base de

dados qualquer declaração de I.R.S. referente ao arguido do ano de 2012, cfr. fls. 833.

            O arguido esclareceu que, atualmente, desde Maio de 2016, trabalha na Noruega, auferindo um

vencimento mensal de cerca de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros).

            Ora, o período da suspensão da decisão decorreu entre 18.01.2012 até 18.01.2016, pois não houve qualquer prorrogação do prazo.

Neste período de tempo, os rendimentos do arguido apurados são, segundo os elementos supra, de 11 794,43€ referentes ao ano de 2013, 19 284,16€ referentes ao ano de 2014 e de 2486,38€ referentes ao ano de 2015, num total de 33 564,97€.

Deste montante deve ser retirado o correspondente aos alimentos a pagar aos filhos que, segundo a normalidade se estimaria em 175,00€x2 filhosx36 meses, ou seja 12 600,00€.

E devem ser deduzidas as despesas básicas e elementares para a sobrevivência digna do arguido.

Deduzindo ao total de 33 564,97€ o montante dos alimentos no valor de 12 600,00€, restariam para o arguido 20 964,00€. Para um período de 36 meses ficamos com uma média de 582,36€ mensais.

Pode presumir-se que durante o ano de 2012 o arguido também teve rendimentos. Mas também teve, com certeza as correspondentes despesas. Pelo que esta média de rendimentos não se mostraria muito alterada.

Mais se sabe que o arguido não é titular de qualquer imóvel ou outros rendimentos. Tem como habilitações literárias, apenas a 4ª classe. Logo, a sua formação profissional, a não ser numa situação excepcional, não se propicia a obter rendimentos muito elevados do seu trabalho. E os números referenciados assim o confirmam.

Com uma média mensal de 582,36€ para viver - sendo o SMN neste momento no valor de 557,00€ -, admite-se que o arguido poderia ao fim do mês realizar uma ligeira poupança, com muito esforço, na ordem dos 100,00 mensais. Se tal tivesse ocorrido, num período de 4 anos (48 meses), obteria uma poupança de 4 800,00€.

Pelo que poderá questionar-se como aliás foi feito na decisão recorrida, que o arguido poderia ter pago, ainda que parcialmente, parte do montante em dívida.

Admite-se que sim. Mas ainda que o tivesse feito, considerar-se-ia cumprida a condição?

Decididamente, não.

E sempre seria um montante irrisório, face ao montante total.

Por outro lado, a condição imposta foi o pagamento total do imposto e acréscimos, no prazo de 4 anos. Não foi imposto nem o pagamento parcial nem em prestações, segundo as possibilidades económicas do arguido.

Importa dizer que o arguido a dado momento veio aos autos requerer precisamente o pagamento em prestações na ordem dos 100,00€ mensais – v. fls. 739 e 740 – o que foi indeferido por despacho de fls. 747 e 748, datado de 14.4.2015, com o fundamento de que a sentença apenas estipula o pagamento total no período da suspensão, sem prejuízo de o arguido proceder a pagamentos parciais e diretos à Autoridade Tributária.

Esta conclusão é óbvia. Mas tais pagamentos apenas poderiam ser deduzidos na dívida total à Autoridade Tributária mas não satisfariam o cumprimento da condição.

Deverá retirar-se desta omissão do arguido, de não ter efetuado alguns pagamentos de algumas centenas ou mesmo alguns 3 ou 4 milhares de euros, de que não cumpriu a condição com culpa grosseira?

Entendemos que não.

            Esta situação e outras análogas, são recorrentes neste tipo de crimes de natureza fiscal (abuso de confiança fiscal e fraude fiscal), tendo o próprio arguido outro processo, supra referenciado com o n.º 72/07.7IDVIS, onde também foi condenado em pena de 1 ano e 2 meses prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, ou seja de 13.06.2011 a 13.06.2016, na condição de nesse período proceder ao pagamento das prestações tributárias num total de 97 616,21€ mais todos os acréscimos legais, que atingem com certeza mais uns milhares de euros.

            E, claro, como se refere na decisão recorrida, o arguido nada pagou no processo n.º 72/07.7IDVIS, nem nos presentes autos.

            Admite-se que o arguido poderia/deveria ter pago algumas quantias, ou nestes autos ou no processo 72/07.7IDVIS. Mas como já se afirmou, perante os rendimentos efetivos do mesmo, perante a sua capacidade económica, sempre se estará perante montantes irrisórios face ao montante total da dívida dos dois processos.

            Se para eventualmente satisfazer a condição num dos processos seria muito difícil, para a satisfazer em ambos, seria impossível, a não ser que existisse uma alteração substancialmente positiva na sua situação económica. O que não ocorreu.

            E não é legítimo concluir que o não pagamento parcial de qualquer montante se traduz numa culpa grosseira do arguido no não cumprimento da condição.

3. Trazendo de novo à colação o ac. do STJ de 13.12.2006, proferido no processo nº 06P3116, supra referenciado a propósito do chamado princípio da razoabilidade consagrado no n.º 2 do art. 51.º do CP, afirma-se ainda no mesmo aresto:

"Não podendo o julgador “controlar” a aplicação deste princípio no momento em que fixa a condição ao condenado, porque não pode fixar o pagamento parcial ou na medida das possibilidades reais do mesmo, não está o mesmo julgador, a posteriori, no momento de averiguar os fundamentos do incumprimento, de aplicar esse mesmo princípio, nomeadamente para ajuizar da culpa ou culpa grosseira no incumprimento da obrigação”.

            Acontece que, se era assim quando foi proferida a sentença dos presentes autos, em 5.12.2011, o mesmo não acontece agora à luz do AUJ nº 8/2012 do STJ, publicado no DR, 1ª Série de 24.10.2012, na perspectiva da formulação do juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura.

            Diz estre AUJ nº 8/2102:

            «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.»

            Como facilmente se deduz deste conteúdo, a aplicação desta jurisprudência refere-se à fase da sentença.

            Estando esta fase claramente ultrapassada - a sentença transitou em julgado há já bastante tempo -, com certeza que o teor deste acórdão não tem aplicação direta no caso concreto, pois o objecto do recurso não é o teor da sentença mas o despacho de revogação da suspensão da execução da pena fixada em tal sentença.

            O que não quer dizer que, à luz daqueles princípios jurisprudenciais, a presente situação não devesse ter sido ponderada no sentido de ter sido feito o designado juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição que veio a ser imposta ao arguido condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e previsivelmente futura. E que, não tendo sido feito esse juízo, a decisão (sentença), não estivesse ferida, com esse fundamento, do vício de nulidade da sentença por omissão de pronúncia

            O que também não significa, todavia, que os elementares princípios e argumentos ou fundamentos que estão na base que ditou a fixação daquela jurisprudência, não tenham, ainda que por outra via, aplicação para a solução da questão deste recurso.

            O acórdão referido (nº 8/2012), tem o mérito de fazer um estudo aprofundado e bastante exaustivo de toda a problemática que envolve a suspensão da execução de uma pena de prisão num crime de natureza fiscal que, por obrigatoriedade legal, terá que ser sempre sujeita à condição do pagamento do montante devido, acréscimos legais e ainda outros. Em situações que, segundo os elementos revelados pelos autos logo no momento da sentença, é manifestamente impossível de cumprir (tal condição).

            E faz a análise do regime geral do Código Penal onde o princípio da razoabilidade da aplicação da condição de pagamento está expressamente previsto, com a omissão desta previsibilidade no regime especial dos crimes tributários.

            2.1. É assim que a propósito do regime geral, se afirma[6]:

            “ De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal, os deveres impostos para a suspensão não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.

            …

            Consagra -se no n.º 2 o princípio da razoabilidade, a que tem de obedecer a imposição dos deveres.

            Ao impor a condição de pagamento de quantia ou outra, o juiz deve averiguar da possibilidade de cumprimento dos deveres impostos, ainda que, posteriormente, no caso de incumprimento, deva apreciar da alteração das circunstâncias que determinaram a impossibilidade, para o efeito de decidir sobre a revogação da suspensão.

            Não devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente o de indemnizar, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desses deveres.

           

            2.2. Sobre a natureza e especificidade dos crimes fiscais, por sua vez, afirma-se[7]:

            A nível de responsabilidade emergente/subsequente a prática de infracção tributária, há que distinguir três vectores.
           
Uma coisa é a responsabilidade tributária[8], originada pela dívida de imposto. Pelo imposto evadido é responsável o sujeito passivo do imposto ou o seu substituto: o sujeito passivo da relação tributária de imposto.
           
Outra, é a responsabilidade criminal, emergente do incumprimento dos deveres tributários, tratando-se de responsabilidade do devedor originário do tributo ou do substituto.
           
E outra ainda, no plano da responsabilidade civil, ou seja, a responsabilidade emergente do crime, consequência civil resultante da prática do crime, causador de dano à administração tributária, geradora de direito a indemnização, aqui apenas possível no quadro de responsabilidade por dívida própria (do devedor originário ou de substituto) e afastada em sede de responsabilidade por dívida de outrem.

            …

            Em vez de se deixar ao critério do julgador a aplicabilidade caso a caso do cumprimento do dever de pagamento das quantias em dívida como condição da suspensão da execução da pena, a lei estabelece a obrigatoriedade da imposição desse dever, ou seja, aparentemente, sem se possibilitar a aplicação do artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal.


            A norma estabelece uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, sem possibilidade de graduação, tendo de ser a totalidade do devido sem possibilidade de uma qualquer redução.

            É evidente a particularidade, a especial configuração que o regime tributário assume em relação ao conteúdo do artigo 51.º do Código Penal, divergindo em relação a vários pontos. No que toca ao conteúdo da condição, enquanto à face do artigo 51.º, as hipóteses de configuração do complexo de deveres têm a amplitude que é concedida pela utilização do advérbio «nomeadamente» da parte final do n.º 1, sendo meramente exemplificativo, no domínio tributário há uma, apenas uma espécie pré-definida de dever, de sentido e expressão única, circunscrita apenas ao dever económico, mas com uma dimensão económica pré-definida, exacta, intocável, incontornável, sem possibilidade de configuração parcial, de qualquer redução, corte, desconto, configurando-se como pena fixa.

           

            2.3. Ainda sobre a fundamentação que determinou a fixação da jurisprudência deste acórdão, afirma-se no mesmo[9]:

            Com a aposição da condição a que fica subordinada a suspensão pretende-se a reparação integral do prejuízo causado, mas não só.

A razoabilidade da condição tem, a nosso ver, de ser necessariamente avaliada e ponderada a montante, isto é, antes da declaração de imposição.

Pelos montantes em dívida, por vezes exorbitantes, devidos muitas das vezes à não actuação tempestiva da autoridade tributária, à adopção de uma postura de «laissez faire, laissez passer»… muitas das vezes fácil será antecipar o desfecho da imposição de uma «missão impossível», em que o agente, por muita boa vontade que tenha e empenho que demonstre, não consegue cumprir o guião, desempenhar o papel de cumpridor, do bom aluno, que consegue levar a carta a Garcia.

De pouco valerá impor um dever económico de forma cega só porque a lei a impõe de forma automática, dir-se-ia, num posicionamento que roça a total e completa alienidade em relação ao concreto ser julgado e condenado, quando não só pelo exagero do montante, não arbitrado, mas imposto, pelo muito curto prazo assinado para o cumprimento e sobretudo pela já consabida sua deficiente capacidade de solvência, de cumprir o imposto, seria dentro de um juízo de normalidade das coisas da vida do cidadão comum, de um juízo de verosimilhança, de antever o inevitável incumprimento, a menos que lhe sorrisse em sorte a «sorte grande», ou mesmo uma média, com que pudesse recompor a sua vida e cumprir a injunção condicionante da suspensão.

            Na avaliação da opção pela suspensão não podem ser olvidados os condicionalismos inerentes ao agente e se é certo que a impossibilidade de cumprimento não integra os elementos constitutivos do tipo, tal avaliação tem de estar presente no juízo de opção pela substituição.

           

            2.4. E finaliza esta temática nos seguintes termos:

            Perguntar-se-á qual o sentido pedagógico/reeducativo da aplicada pena de substituição quando ao condenado é exigida reparação total, condicionante da suspensão, quando não tenha capacidade económica e financeira de resposta adequada, capacidade de resposta num domínio onde já foram dadas provas de que não é possível cumprir o programa traçado, pois se não o foi, enquanto ainda receptor de receitas, indevidamente desviadas, é certo, como esperar que o seja depois da falência, após o termo da actividade económica, sem possibilidades de soluções paliativas, tipo lei Catroga ou lei Mateus, restando ficar à espera da tão ventilada hipótese de possível melhor fortuna. É que por vezes a crença, só por si, não basta! Necessário é que se diga que no plano das coisas práticas, do dia-a-dia do cidadão comum deste País, do pequeno empresário,…

            …
            A jusante, como facilmente se antevê, a culpa morrerá, uma vez mais, solteira, porque o incumprimento da condição necessariamente culposo, como não deixam de assinalar todos os arestos do TC e STJ, face aos cenários catastróficos, de rotura com o mercado, de incumprimento em incumprimento, de insolvência em insolvência, ditará a ausência de culpa, o que conduzirá a que, em linha recta, a condição, obviamente, não se cumpra e que, por força do enredo, nada acontecerá, isto é, a revogação tout court será sempre uma miragem situada do outro lado da margem, in casu, da,
a priori, bem intencionada condenação condicional[10].

            Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confecção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o artigo 339.º, n.º 4, do CPP.

            A suspensão em si mesma não deixa de ser uma faculdade, como se acentua no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 242/2009, de 12 de Maio de 2009, processo n.º 250/09, da 2.ª Secção, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 75.º vol., p. 209, onde se afirma: «a norma do artigo 14.º do RGIT, ao estabelecer, de forma geral e abstracta, uma condição à faculdade de o tribunal decretar a suspensão da execução da pena de prisão, em todas as situações em que essa faculdade se lhe depare, assume claramente natureza de acto legislativo».

            A escolha da pena de substituição é um prius em relação à imposição da condição.

Prevendo a penalidade a alternativa prisão/multa, incidindo a opção sobre a pena de prisão, de duas, uma: ou é eleita a pena de prisão efectiva ou a pena de substituição, a pena suspensa. Mas porque no caso a suspensão ficará subordinada a condição com contornos pré-definidos, a opção não pode ser cega, tem que ser ponderada, avaliada, porque senão deixa de ser um poder dever, o exercício de um poder vinculado, sem necessidade de específica fundamentação.

            A conformidade constitucional da norma do artigo 14.º, n.º 1, do RGIT sempre foi apreciada na óptica dos interesses do arguido, na perspectiva da violação dos princípios da igualdade, adequação e proporcionalidade e nunca analisada na perspectiva de limitação da liberdade de julgar.

            Por outro lado, todas as decisões incidem sobre a primeira parte do n.º 1, sendo certo que a composição da condição pode abranger, para além do pagamento da prestação tributária evadida e legais acréscimos (1.ª parte do n.º 1), o pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa (parte final do mesmo n.º 1).

            O argumento usado pelo Tribunal Constitucional e no acórdão recorrido da possibilidade de ingresso de melhor fortuna pode certamente parecer aliciante, mas só pode ser entendido como mero exercício de fé em dias melhores, de esperança no anúncio de uma inesperada herança e de perseverança (no caso de aposta, jogo de fortuna e azar).


            A margem de liberdade do julgador situa-se no justo ponto e momento em que pode optar pela substituição, mas para o fazer tem de estar de posse do pleno das informações possíveis, de modo a bem fundamentar a opção.             Feita a escolha, a adopção da medida de substituição, cessa a liberdade de punição, porque imposta é a subordinação à condição; o juiz fica subordinado, amarrado, ao incontornável passo seguinte, que é a impor a subordinação ao pagamento.

            Mas porque assim é, será nesse primeiro momento, em que é possível o exercício de liberdade, que poderá avaliar do sucesso da medida e mesmo cogitar sobre o regresso ao estádio anterior e pensar sobre a escolha de pena que temporariamente, como mero exercício de raciocínio, não foi tida então em consideração e tomada como boa solução.          

VI

            1. Como começámos por afirmar, a natureza desta jurisprudência poderia (deveria) ter sido aplicada no momento da elaboração da sentença e, concretamente, na escolha da espécie da pena. E segundo os elementos fornecidos pelos autos, não temos a menor dúvida que a suspensão da execução da pena de prisão condicionada ao cumprimento da obrigação de o arguido pagar em quatro anos um montante tão elevado, quando o mesmo não tinha património nem rendimentos para o efeito, como resulta dos elementos supra analisados, tratou-se da fixação de uma condição “impossível” de cumprir, previsibilidade esta conhecida logo no momento da fixação.

            Se se tivesse procedido ao referido juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, teria porventura o julgador optado pela aplicação de uma pena de multa em vez da pena de prisão suspensa, a não ser que se justificasse a aplicação de uma pena de prisão efetiva[11].

            Mas a esta conclusão/necessidade não se chega, de modo algum, com a medida da própria pena de prisão fixada, de apenas três meses. Medida curta, sabendo-se que o legislador pretende evitar, até ao limite, o seu cumprimento efetivo.

           

            2. Na atual fase processual, a questão essencial reside na apreciação da efetiva culpa ou não culpa da satisfação da condição pelo recorrente.

            Da resenha à situação económica do arguido desde o momento da sentença até ao momento em que foi proferido o despacho recorrido bem como a toda a conduta processual do mesmo nomeadamente tendo em vista o seu empenho e vontade em efetuar depósitos em prestações compatíveis com a sua situação económica concreta (sendo certo que, mesmo a ocorrerem de modo algum satisfariam a condição imposta), decididamente, entende-se que não existe culpa[12] por parte do recorrente muito menos culpa grosseira[13] em tal incumprimento.

Acontece que o raciocínio do despacho recorrido está viciado. Desde logo, porque o tribunal não impôs ao arguido pagamentos de prestações reduzidas ou simbólicas, que justifique a afirmação de que o mesmo não pagou nem mesmo um único cêntimo do valor em dívida. Se o tivesse feito e o arguido mesmo assim nada pagasse ou cumprisse, seria legítima a crítica ou censura.

            Mais se afirma na decisão recorrida:

            “A título de exemplo, apenas se dirá que se o arguido tivesse efetuado o pagamento de

€10,00 (dez euros) por dia (montante que, relembre-se, fica muito aquém das possibilidades

do arguido), em dois anos (designadamente nos anos de 2013 e 2014) já teria cumprido

parcialmente a condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão,

em €7.200,00 (sete mil, duzentos euros)”.

            Reafirma-se que ao arguido não foi imposta esta obrigação nestes termos. Tendo-lhe sido mesmo negado o pagamento em prestações de 100€ mensais.

            Por sua vez, da situação económica do arguido não lhe teria sido possível efetuar o depósito da quantia exemplificada no despacho recorrido, de dez euros diários, ou seja, 300€ mensais, de modo a que o mesmo mantivesse o limiar mínimo das suas necessidades básicas de sobrevivência.

            Se porventura o arguido até tivesse feito alguns depósitos esporádicos ou regulares, de algum montante, seria com certeza um gesto de boa vontade em pagar parte da dívida. Mas não passaria de uma gota  ou pingos em toda a dívida. Um gesto simbólico.

            Acontece que não se está a apreciar qualquer gesto simbólico do arguido mas uma realidade bem diferente, como já se assinalou.

            E, para que o Tribunal recorrido pudesse relevar qualquer “gesto simbólico”, deveria ter informado ou sensibilizado o arguido desta possibilidade. Ou seja, perante as dificuldades visíveis e notórias do arguido em cumprir a condição nos termos impostos, o tribunal deveria ter-lhe dado um sinal quanto ao esforço que efetivamente esperava dele com vista à não revogação da suspensão da pena. Não o fez.

            Pelo que a análise da eventual culpa grosseira do não cumprimento deve ser visto na relação ou conjugação do montante total exigido, do prazo e da situação económica concreta do arguido.

E a síntese final é manifestamente a da inexistência de qualquer culpa muito menos grosseira deste incumprimento. Como se afirma no ac. do TRP de 9.12.2004, supra citado, para se imputar, a título de culpa, a falta de pagamento das quantias a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena, é necessário, antes de mais, demonstrar que o arguido tinha condições económicas para efectuar o pagamento, ou, então, que voluntariamente se colocou na situação de não poder pagar, nomeadamente não usando a sua força de trabalho.

Não é o caso. O arguido trabalha. Tem apenas os rendimentos mencionados nos autos. Não lhe são conhecidos outros bens nem qualquer tipo de enriquecimento. Não beneficiou de qualquer jogo de fortuna ou azar.

Logo, não pode o Tribunal recorrido, com os elementos dos autos, concluir que o arguido podia efetivamente cumprir a condição nos exatos termos impostos e não o fez, por culpa grosseira deste.

            Como também não pode concluir que “tudo se reconduz a uma atitude de particular censurabilidade, pelo menos, de leviandade e desinteresse pela condição imposta, por parte do arguido, nestes autos.

            E que “… as necessidades de prevenção especial positiva sentidas no caso

concreto, a que igualmente não são alheias também as de prevenção geral, impõem a

revogação da suspensão, por infração grosseira dos deveres impostos, e o cumprimento pelo

arguido da pena de prisão fixada na sentença”.

            3. Os elementos dos autos apontam, em nosso entender, para uma manifesta impossibilidade legal de cumprimento da obrigação imposta na condição de suspensão da execução da pena a qual não se deve a qualquer culpa do arguido.

            Todavia, o recorrente, no seu recurso, formula a pretensão de, em vez da revogação da suspensão da pena de prisão - que só deve ser aplicada como ultima ratio - lhe deve ser, outrossim, prorrogado o período da condição da suspensão da pena.

            Perante esta pretensão do arguido recorrente, caberá ao Tribunal recorrido apreciar tal pretensão nessa exata perspetiva, ou seja, se se justificará ou não tal prorrogação tendo em vista o cumprimento da obrigação imposta ou se deverá desde já “queimar” essa fase e julgar extinta a pena pelo decurso do prazo da suspensão, uma vez que o incumprimento da condição não se deve a qualquer tipo de culpa grosseira, sempre no pressuposto de inexistir outra causa ou razão que impeça tal decisão – v. por exemplo o disposto no artigo 56º, nº1, alínea b), do Código Penal (cometimento de outro crime).

V

Decisão

Por todo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do recorrente A... e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida que, por sua vez, lhe revogou a suspensão da execução da pena de três meses de prisão em que foi condenado, procedendo o Tribunal recorrido segundo os critérios processuais analisados e apontados no item anterior.

Sem tributação.

Coimbra, 11 de Novembro de 2017

(Luís Teixeira – relator)

(Vasques Osório – adjunto)

[1] Não se mostrando inconstitucional tal exigência conforme jurisprudência do TC.

[2] Dizendo o seguinte:

“Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”.
[3] V. também o ac. deste TRC de 12.10.2011, proferido no processo nº 488/07.9GCACB.C1, onde se decide:

Os deveres condicionadores da suspensão da execução da pena terão de obedecer a um princípio de razoabilidade (cfr. n.º 2, do art.º 51.º, do C. Penal), ou seja, deverão poder ser satisfeitos pelo condenado de acordo com as suas normais possibilidades, devendo, porém, traduzir um sacrifício para o visado, de modo a fazer-lhe sentir a natureza punitiva de um tal dever.
Será na conjugação destes dois vectores - reforço das finalidades da punição e normal possibilidade de cumprimento - que se hão-de definir os
deveres condicionadores da suspensão da execução da pena.
Assim, em caso algum devem ser impostos ao arguido
deveres, sem que seja viável a possibilidade do seu cumprimento.
[4] Negrito nosso.
[5] Até ao momento não se mostra apurado o valor exato.
[6] No referenciado acórdão.
[7] Como resulta do processo e subjacente a esta análise, está o disposto no artigo 14º do RGIT que tem o seguinte teor:

            " 1- A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao

pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação

tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o

entenda, ao pagamento da quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

            2. Na falta de pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:

            a) Exigir garantias de cumprimento;

            b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem

exceder o prazo máximo de suspensão admissível;

            c) Revogar a suspensão da pena de prisão."
[8] Negrito da nossa autoria.
[9] Com contundência pragmática e realista, acrescentamos nós.
[10] Negrito da nossa autoria.

[11] Como se afirma no acórdão de fixação de jurisprudência, citando Germano Marques da Silva, suspender a pena de prisão mediante a imposição de uma condição impossível de cumprir, trata-se de um simples adiar do cumprimento da pena de prisão.

[12] Pressuposto exigido pelo artigo 55º, do Código Penal, que diz o seguinte:

“Se, durante o período de suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de readaptação, pode o tribunal…”.

[13] Exigência do disposto no artigo 56º, do Código Penal, que refere o seguinte:

“ A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso o condenado infringir grosseira e repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social”.