Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1677/10.4TBPMS-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CREDORES
ADMINISTRADOR JUDICIAL
NOTIFICAÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 03/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.129, 130 CIRE, 205, 206, 207, 666 CPC
Sumário: 1. Se o juiz proferir uma decisão e antes dela tiver ocorrido uma nulidade processual, se esta estiver inserida na mesma cadeia de actos que conduziu à decisão tomada, sendo um seu antecedente lógico, então, neste caso, se um interessado vier depois arguir tal nulidade, o juiz já não pode tomar conhecimento dela, por se ter esgotado o seu poder jurisdicional quanto à matéria onde ocorreu a nulidade (n.º 1 do artigo 666.º do Código de Processo Civil), ou seja, a nulidade ficou coberta pelo despacho.

2. Se o administrador da insolvência não cumprir o prazo de 15 dias previsto no n.º 1 do artigo 129.º do CIRE, destinado a apresentar a lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos e, seguidamente, tiver sido proferida sentença de graduação de créditos, se a insolvente quiser arguir a nulidade que afirma ter ocorrido, por não ter sido avisada da apresentação da mencionada lista por parte do administrador, então deve recorrer da sentença de graduação de créditos, ao invés de arguir a nulidade que imputa àquela omissão ocorrida antes da sentença.

Decisão Texto Integral: I. Relatório.

a) O presente recurso insere-se no apenso de reclamação de créditos do processo de insolvência em que a recorrente é a insolvente.

A questão que o fez surgir prende-se com a ausência de notificação da insolvente quanto à apresentação, por parte do administrador, nos termos do n.º 1, do artigo 129.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março (doravante apenas designado por CIRE), da lista de todos os credores por si reconhecidos e dos não reconhecidos, relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação, como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento.

 A insolvente quando foi notificada da sentença de graduação de créditos arguiu a nulidade resultante da omissão de tal notificação, referindo que o termo do prazo para a entrega dessa lista ocorreu no dia 24 de Março de 2011, mas o administrador apenas a apresentou em 12 de Maio desse ano, não tendo a insolvente tido conhecimento dessa apresentação até ter sido notificada da sentença de graduação de créditos, desconhecimento este que a impediu de exercer o contraditório relativamente a esses créditos.

A arguição desta nulidade foi indeferida pelo tribunal com base em dois argumentos: em primeiro lugar, porque a insolvente devia ter suscitado a nulidade em causa através da interposição de recurso da sentença da graduação de créditos, ao invés de ter arguido a nulidade por simples requerimento, em segundo lugar, porque a lei não ordena a notificação da insolvente quanto a tal lista, mas apenas de alguns credores, nos termos dos artigos 129.º, n.º 4 e 130.º do CIRE.

b) É desta decisão que vem interposto o presente recurso, cujas alegações são as seguintes:

«I. Por via de decisão prolatada em 07 de Março de 2012, o Tribunal a quo julgou improcedente a pretensão da insolvente traduzida na declaração da nulidade de todo o processado subsequente à junção, aos autos, da lista definitiva de credores, com fundamento na ausência de notificação, à mesma insolvente e ora recorrente, de tal junção, atento o incumprimento, pelo Administrador da Insolvência, do prazo estabelecido no art.º 129º do CIRE.

II. No âmbito da prolação da referida decisão, aqui colocada em crise, entendeu o Tribunal a quo que, considerando a letra dos art.º 129º, n.º 4 e 130º do CIRE, a insolvente não tem de ser notificada da junção aos autos daquela listagem, ainda que, como in casu sucedeu, o Administrador da Insolvência não tenha observado o prazo constante do art.º 129º do referido diploma, cabendo-lhe, antes, um dever acrescido de diligência.

III. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou normativos legais imperativos, encontrando-se a decisão prolatada em clara desconformidade com o disposto nos art.º 201º, 205º, 265º e 265º - A do CPC e, bem assim, nos art.º 129º e 130º do CIRE adequadamente interpretados à luz do plasmado no nº 4 do art.º 20º da CRP.

IV. Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 129º do CIRE, o Administrador da Insolvência deve apresentar, na secretaria, no prazo de 15 dias subsequente ao termo do prazo das reclamações de créditos, “(...) uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, (...), relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação como àqueles cujos direitos constem dos elementos de contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento.” (itálico nosso)

V. No âmbito dos presentes autos, o prazo para apresentação, pelo Administrador da Insolvência, da relação definitiva de créditos elaborada nos termos do referido art.º 129º do CIRE terminou no dia 24 de Março de 2011, conquanto o prazo de 30 dias para efeito de reclamação de créditos, acrescido da dilação de 5 dias legalmente prevista, teve início no dia 01 de Fevereiro de 2011.

VI. Considerando a articulação supra descrita, no último dia do prazo para apresentação da referida listagem e, bem assim, no dia imediatamente subsequente, a ora recorrente compulsou, presencialmente, os autos, constatando que tal listagem não se encontrava ainda junta aos mesmos, vindo a ser apresentada, apenas e tão-somente, em 12 de Maio de 2011, ou seja, cerca de 49 dias após o terminus do prazo legalmente estabelecido para o efeito.

VII. No período que mediou entre o termo do referido prazo e a prolação da Sentença de verificação e graduação de créditos, a insolvente apenas foi notificada, em Julho de 2011, para efeito de pronúncia acerca do Plano de Insolvência apresentado, tendo oportunamente prestado toda a sua colaboração ao Tribunal como, aliás, se lhe impõe.

VIII. Em tal intervenção nos autos, efectuada mediante requerimento de pronúncia acerca do Plano de Insolvência que lhe havia sido remetido, não teve a insolvente qualquer possibilidade ou meio ao seu dispor que lhe permitisse tomar conhecimento de que a lista definitiva de credores já havia sido apresentada e, consequentemente, do concreto conteúdo da mesma listagem.

IX. Nos termos do n.º 1 do art.º 130º do CIRE, “Nos 10 dias subsequentes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.” (itálico nosso)

X. Não obstante a legitimidade que lhe assiste, enquanto interessada, não se incluindo a insolvente e aqui recorrente entre os “credores avisados por carta registada”, para efeito de dedução de qualquer impugnação, sempre a mesma se encontrava vinculada à observância dos requisitos estipulados pelo n.º 1 daquele normativo, designadamente no que respeita à contagem do prazo para o efeito.

XI. Não tendo o Administrador da Insolvência observado, escrupulosamente, o estipulado pelo art.º 129º do diploma em referência, tornou-se de extrema dificuldade, para a ora recorrente, a determinação do momento exacto de início da contagem do referido prazo de 10 dias, atenta a inexistência de qualquer outro arrimo legal e objectivamente exacto facilitador, aos interessados para os efeitos do art.º 130º do CIRE, de um juízo de prognose quanto ao início de tal contagem.

XII. O entendimento, plasmado na decisão recorrida, de que, mesmo em tais circunstâncias de claro incumprimento de um dever não imputável à insolvente, sobre esta impende, ainda assim, um amplo dever de diligência traduzido, designadamente, na consulta presencial e diária dos autos, na perspectiva de, em algum momento de determinação incerta, poder concluir pelo termo da situação de incumprimento é inaceitável, particularmente considerando que, por motivos ligados à configuração da própria plataforma CITIUS e a que a recorrente é alheia, os actos dos Administradores da Insolvência não só não podem ser remetidos por esta via como nem sequer aí se encontram disponíveis para consulta, atenta a sistemática ausência de digitalização e conversão para o formato exigido para o efeito.

XIII. Em face das particulares circunstâncias do caso em apreço, surge, a todos os níveis e, mormente, à luz dos princípios da proporcionalidade e do direito a um processo equitativo plasmado no n.º 4 do art.º 20º da CRP, como excessiva a exigência, à insolvente, de cumprimento de um dever de diligência com uma tal amplitude, particularmente considerando o a propósito prescrito para os restantes interessados.

XIV. O facto de o não cumprimento, pelo Administrador da Insolvência, do prazo estipulado no art.º 129º do CIRE não se encontrar, face à redacção do mesmo, sujeito a qualquer cominação directa – sem prejuízo de poder revelar-se indiciador da medida do zelo dispensado ao exercício das respectivas funções – não pode, de modo nenhum, ser interpretado no sentido de transferir, em exclusivo, para a insolvente, a obrigação de controlo do cumprimento do desiderato aí previsto, atento o manifesto desequilíbrio que daí decorreria no que respeita à posição dos diversos intervenientes processuais, mesmo em sede de insolvência.

XV. O processo da insolvência, enquanto processo de execução universal destinado, primariamente, à satisfação possível dos credores, não pode, a bem do princípio da unidade do sistema jurídico, ser interpretado, em exclusivo, em função da protecção dos interesses dos credores, descurando, consequentemente, a posição processual e, mesmo, substantiva, do próprio insolvente.

XVI. Em concreto, é aquele mesmo princípio, conjugado com o já invocado princípio constitucional do direito a um processo equitativo, que impõe, mesmo em sede de insolvência, a obrigação de interpretação do conjunto normativo do CIRE no sentido da garantia, a todos os intervenientes processuais, do direito a igualdade de tratamento.

XVII. O princípio constitucional do direito a um processo equitativo é, na expressão do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 434/2011, “(...)densificado por vários subprincípios, entre os quais se conta o direito de defesa e direito ao contraditório, traduzido na possibilidade de cada uma das partes apresentar a sua versão e os seus argumentos, de facto e de direito, oferecer provas e pronunciar-se sobre os argumentos e material probatório carreado pela parte contrária, antes da prolação da decisão sobre o litígio.” (itálico nosso)

XVIII. Do mesmo princípio decorre, ainda, que, tal como plasmado pelo referido aresto, “Não obstante a ampla liberdade reconhecida ao legislador, no âmbito da definição da tramitação processual, é inegável que a garantia do contraditório, de que decorre a proibição da indefesa, constitui um limite vinculativo incontornável.”

(itálico nosso)

XIX. O Processo Civil – aplicável em sede de processo de Insolvência ex vi art.º 17º CIRE com a necessária ressalva –, enquanto instrumento ao serviço da realização transparente do direito material, tem evoluído no sentido da maior valorização dos princípios do contraditório, da igualdade substancial de armas, do equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, da cooperação e da lealdade entre todos os intervenientes processuais.

XX. Tendo a ora recorrente sido notificada da Sentença de verificação e graduação de créditos sem lhe ter sido dada a possibilidade de pronúncia acerca de tal listagem, apresentada, pelo Administrador da Insolvência, fora do prazo previsto no 129º do CIRE, verificou-se uma clara violação dos princípios do contraditório e do direito a um processo equitativo.

XXI. Atento o não cumprimento, pelo Administrador da Insolvência, do prazo constante do art.º 129º CIRE, uma vez entregue a lista definitiva de credores, deveria ter sido prolatado despacho no sentido da manutenção dos autos na secretaria judicial para exame e consulta dos interessados (Cf. art.º 130º, n.º 1; 133º; 134º, n.º 5 do CIRE)

XXII. Mais deveria ter sido prolatado despacho no sentido da notificação da devedora insolvente e de todos os credores relacionados do teor da relação de créditos, com as advertências do n.º 1 do art.º 130º e do n.º 2 do art.º 25º (aplicável ex vi do art.º 134º, n.º 1) do diploma em referência, considerando, uma vez mais, o incumprimento do prazo estipulado pelo art.º 129º.

XXIII. Considerando o disposto no n.º 2 do art.º 265º e no art.º 265º - A do CPC, indiscutivelmente aplicáveis in casu atentas as respectivas especificidades, impunha-se ao Tribunal a quo actuação em conformidade.

XXIV. A não observância do prazo previsto no art.º 129º do CIRE e, nessa decorrência, o incumprimento do disposto no art.º 130º do mesmo diploma determinado pelo respectivo não suprimento através da notificação dos credores, requerentes e requerida insolvente, constitui, claramente, uma nulidade, nos termos do disposto no art.º 201º do C.P.C., sendo por demais evidente que se encontra preterido um prazo que a Lei prescreve e, consequentemente, precludido um direito e um prazo que a Lei prescreve.

XXV. A nulidade assim verificada influi, sobremaneira, no exame e decisão da causa, particularmente considerando que, na ausência de impugnações – determinada pelos motivos expostos –, a Sentença de verificação e graduação prolatada limitou-se a homologar a lista apresentada pelo Administrador da Insolvência, sem aquilatar, em concreto, dos prazos e das diligências que, in casu, curavam de ser efectuadas no sentido da estrita observância do princípio do contraditório, como se impunha.

XXVI. São inconstitucionais, por violação do direito a um processo equitativo, estabelecido no artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República, os n.ºs 1 e 4 do artigo 129º e dos n.ºs 1 e 2 do art.º 130º do CIRE, na interpretação segundo a qual, em caso de incumprimento, pelo Administrador da Insolvência, do prazo estatuído no n.º 1 do art.º 129º do referido diploma, não deve a insolvente ser notificada aquando da junção, pelo mesmo Administrador, da listagem definitiva de credores reconhecidos.

XXVII. Tendo "em conta a unidade do sistema jurídico" e presumindo que "o legislador consagrou as soluções mais acertadas", como impõem os n.ºs 1 e 3 do artigo 9.º do Código Civil, as referidas normas devem, portanto, ser interpretadas, em consonância com aquele preceito constitucional, no sentido de que em caso de incumprimento, pelo Administrador da Insolvência, do prazo estatuído no n.º 1 do art.º 129º do referido diploma, deve a insolvente ser notificada aquando da  junção, pelo mesmo Administrador, da listagem definitiva de credores reconhecidos, de modo a permitir-lhe a dedução, no prazo fixado no n.º 1 do art.º 130º do CIRE, contado desde a data da efectiva junção, e na qualidade de interessada, de impugnação daquela listagem, caso assim o entenda.

Termos em que, de acordo com as conclusões acima expostas, deve a decisão recorrida ser revogada por violação das disposições legais contidas nos art.º 201º, 205º, 265º e 265º - a do CPC e, bem assim, nos art.º 129º e 130º do CIRE adequadamente interpretados à luz do plasmado no nº 4 do art.º 20º da CRP, e, em sua substituição, ser proferida decisão que determine a anulação de todo o processado posteriormente à junção aos autos, pelo Administrador da insolvência, da lista definitiva de credores reconhecidos e, bem assim, a notificação da insolvente de tal junção para efeitos de cumprimento do teor do art.º 130º do mesmo diploma, como é legal e de JUSTIÇA!».

c) Não foram apresentadas contra-alegações.

 II. Objecto do recurso.

Em primeiro lugar, coloca-se uma questão que a recorrente não refere nas alegações, mas consta da sentença sob recurso como principal fundamento da decisão. Consiste em saber se a recorrente devia ter suscitado ou não a nulidade em causa através da interposição de recurso da sentença da graduação de créditos, o que não fez, ao invés de ter arguido a nulidade e de ter interposto recurso do despacho que a desatendeu.

Em segundo lugar, caso a primeira questão seja resolvida a favor da recorrente, cumpre então averiguar se, antes de ser proferida sentença de graduação de créditos, o administrador ou o tribunal deveriam ter notificado a insolvente da apresentação nos autos da lista de todos os credores reconhecidos e não reconhecidos pelo administrador, nos termos prescritos no n.º 1 do artigo 129.º, do CIRE, isto apenas no caso dessa lista não ter sido apresentada no prazo de 15 dias previsto nesta norma.

III. Fundamentação.

a) Matéria de facto (processual).

O prazo de 15 dias a que alude o n.º 1 do artigo 129.º, do CIRE para o administrador da insolvência apresentar a lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos terminou no dia 24 de Março de 2011.

A lista foi apresentada no dia 12 de Maio de 2011.

A insolvente não foi avisada pelo administrador ou notificada pelo tribunal da junção desta lista aos autos.

Em 3 de Outubro de 2011 foi proferida sentença de graduação de créditos.

Esta sentença foi notificada por via electrónica aos credores e insolvente no dia 4 de Outubro de 2011.

No dia 14 de Outubro, a insolvente arguiu a nulidade que identificou como resultante do facto de não ter sido avisada pelo administrador, ou notificada pelo tribunal, da junção da mencionada lista aos autos e pediu que fossem anulados todos os termos do processo que se achassem feridos pela indicada nulidade, nomeadamente a sentença de verificação e graduação de créditos.

Por despacho de 7 de Março de 2012 o juiz decidiu não julgar a arguição da nulidade procedente, argumentando-se que a nulidade deveria ter sido suscitada em sede de recurso e não perante o tribunal que proferiu a sentença, porque, quanto a este, se ter esgotado o seu poder jurisdicional quanto à matéria da nulidade.

Por requerimento de 26 de Março de 2012, a insolvente interpôs recurso desta decisão.

b) Apreciação da questão objecto do recurso.

1 – Vejamos então a primeira questão.

a) A recorrente arguiu a nulidade relativamente ao facto de não ter sido avisada pelo administrador da junção ao processo da lista de todos os credores reconhecidos e não reconhecidos por este, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 129.º, do CIRE.

Isto porque, muito embora a lei não preveja tal aviso em relação à insolvente, tal omissão de aviso só é válida se a lista der entrada no processo no prazo de 15 dias previsto naquela norma, pois, neste caso, a insolvente sabe que pode consultar a lista no processo no termo desse prazo e se a mesma estiver no processo consulta-a.

Porém, se a lista não for apresentada no processo naquele prazo de 15 dias, como foi o caso, a insolvente ou outro interessado em relação ao qual a lei preveja que não é avisado dessa junção, não têm conhecimento da sua junção, não lhes sendo exigível que se desloque diariamente ao tribunal e verifique, porventura ao longo de um, dois ou mais meses, se a lista foi junta aos autos.

Como se disse no relatório, a arguição desta nulidade foi indeferida com fundamento no facto de, proferida a sentença de reclamação de créditos, se ter esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à matéria da causa, nos termos do artigo 666.º do Código de Processo Civil, aplicável, ex vi, artigos 14.º e 140.º do CIRE, pelo que a insolvente devia ter recorrido da sentença que graduou os créditos, ao invés de ter arguido a nulidade em requerimento ad hoc.

O recurso vem interposto desta decisão, muito embora se argumente ao longo do mesmo no sentido da insolvente dever ter sido avisada da junção aos autos da lista, sob pena de se cometer uma nulidade, o que aconteceu.

b) Cumpre, pois, esclarecer, que a argumentação do recurso, no que respeita à substanciação processual da nulidade, só se coloca se se concluir que a arguição da nulidade era o meio idóneo para reagir contra a falta de aviso relativamente à junção da mencionada lista.

Se se concluir que a recorrente devia ter recorrido da sentença de graduação de créditos, então tem de se concluir pela improcedência do presente recurso, porque a questão da nulidade já não podia ser colocada perante o tribunal onde tinha ocorrido.

c) Vejamos então qual o meio processual adequado a reagir contra a verificação da nulidade identificada pela recorrente.

Na sequência dos ensinamentos de Alberto dos Reis, a que abaixo se fará referência, Manuel de Andrade referia que estando a nulidade «…coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se» ([1]).

No mesmo sentido, Anselmo de Castro escreveu: «Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (art.º 677.º, n.º 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional (art. 666.º)» ([2]).

No mesmo sentido, ainda, os autores Antunes Varela, L. Miguel Bezerra e Sampaio Nora pronunciaram-se nestes termos: «As nulidades, para cuja apreciação é competente o tribunal onde o processo se encontre ao tempo da reclamação (cfr. arts. 205.º, 3 e 204.º, 2), serão julgadas logo que apresentada a reclamação (art. 206.º, 2). Se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão» ([3]).

Bem como Lebre de Freitas, quando escreve: «…se for praticado um acto que a lei não admita, mas que esteja coberto por decisão judicial nesse sentido, mesmo que implícita, já não estaremos perante a prática de um acto nulo, mas sim perante a prática de um acto judicial errado, sujeito a impugnação, por meio de recurso» ([4])

Na jurisprudência, a título de exemplo, pode consultar-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 30 de Novembro de 1995, onde se ponderou que «…se a nulidade está coberta por despacho judicial que a tenha sancionado, ainda que de modo implícito, o meio próprio para a arguir não é a reclamação, mas o recurso, não sendo mesmo necessário qualquer indicação mais ou menos concludente no sentido de o juiz ter considerado o ponto a que se refere a nulidade» ([5]).

Neste acórdão estava em causa a nulidade resultante de uma notificação feita pela secretaria do tribunal relativamente à penhora do saldo de uma conta bancária, nos termos do artigo 856.º do Código de Processo Civil, mas quanto à qual já tinha havido um despacho posterior do juiz a mandar notificar o banco antes notificado para «…proceder ao depósito da quantia necessária para garantir a quantia exequenda e as custas».

Esta orientação, como referiu Alberto dos Reis, é de fácil justificação, pois «Desde que um despacho tenha mandado praticar determinado acto, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática dêsse acto é fora de dúvida que a infracção cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo. Portanto a reacção contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (artt. 667.º).

Se, em vez de se recorrer do despacho, se reclamasse contra a nulidade, ir-se-ia pedir ao juiz que alterasse ou revogasse o seu próprio despacho, o que é contrário ao princípio de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional de quem decidiu (art. 666.º)» ([6]).

Tendo em consideração a doutrina que fica exposta, a questão que se coloca consiste, então, em saber quando é que uma nulidade está coberta por um despacho.

Por exemplo, se o juiz profere um despacho e não se apercebe de uma nulidade anterior que poderia ter levado a um despacho diverso, se tivesse atentado nela e ainda a pudesse corrigir, poderá afirmar-se que a nulidade está coberta por esse despacho?

Com efeito, se o juiz nada diz na decisão acerca desse acto nulo, parece que não se poderá afirmar que o juiz sufragou a nulidade.

Além disso, se não for assim, então toda a intervenção do juiz posterior ao cometimento do acto nulo terá sufragado tal acto e a única forma de reagir é através do recurso e não da arguição da nulidade.

Dir-se-á que a forma processual prevista para reagir contra as nulidades é a sua arguição perante o próprio tribunal onde foi cometida, o qual terá oportunidade de a sanar, nos termos previstos nos artigos 205.º, n.º 1, 206.º, n.º 1 e 207.º, todos do Código de Processo Civil, sendo esta a forma processualmente mais rápida e menos dispendiosas de corrigir o desvio processual. 

Por conseguinte, se o juiz não valida expressa ou tacitamente o acto nulo, não se poderá concluir que há uma decisão judicial que faz sua a nulidade antes cometida e, por isso, a parte interessada deve poder arguir a nulidade perante o próprio tribunal, ao invés de ter de recorrer da decisão proferida após ter sido cometida essa nulidade.

Esta argumentação, sendo procedente, sancionaria a actuação da ora recorrente, pois poderia afirmar-se que na sentença de graduação de créditos o juiz não se pronunciou sobre aquela «omissão de aviso», pelo que tal sentença não tutelou, ou seja, não cobriu a apontada nulidade.

Apesar desta argumentação parecer convincente não pode ser seguida.

Com efeito, como esclareceu Alberto dos Reis, «a decisão não vale somente pela vontade declarada que nele se contém, vale também pelos pressupostos tacitamente resolvidos. Quando o juiz recebe um papel, deve presumir-se que, antes de o receber, se certificou de que se verificavam todos os requisitos exigidos por lei para o seu recebimento» ([7]).

Afigura-se ser este o critério adequado face à norma do n.º 1 do artigo 666.º do Código de Processo Civil, onde se determina que «Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa».

Ou seja, se o juiz pudesse conhecer ainda da nulidade anterior ao despacho que se seguiu à mesma, estaria a infringir esta norma, pois estava a conhecer de uma matéria acerca da qual, em termos processuais, já tinha tido a oportunidade de se ter pronunciado.

Por conseguinte, se o juiz proferir uma decisão e não se apercebeu sequer de uma nulidade cometida anteriormente, se o acto pretensamente nulo estiver inserido na mesma cadeia de actos que conduziu à decisão tomada, sendo um seu antecedente lógico, então, neste caso, tal nulidade está coberta por esse despacho, tenha ou não o juiz, repete-se, vislumbrado a nulidade.

Se o acto pretensamente nulo não estiver inserido na mesma cadeia de actos que conduziu à decisão tomada, então o despacho proferido é alheio ao encadeamento de actos processuais onde se situa o acto nulo e, neste caso, já não se pode afirmar que se esgotou o poder jurisdicional do juiz acerca da matéria que estiver em causa, pois tal poder não foi exercido quanto a essa matéria.

Ora, no caso concreto, a omissão por parte do administrador, ou do tribunal, que consistiu em não terem avisado a insolvente de que a lista de credores tinha sido junta aos autos, é um acto (por omissão) que se insere, sem qualquer dúvida, na mesma cadeia de actos processuais que conduziu e culminou na sentença de graduação de créditos.

Concluindo-se assim, então tem de se concluir também que o meio processual utilizado pela recorrente não foi o apropriado.

Daí que seja de manter o despacho recorrido, pois efectivamente a insolvente devia ter recorrido da sentença de graduação de créditos e arguir no respectivo recurso a nulidade que detectou.

2 – Face ao que fica exposto, a análise da segunda questão colocada ficou prejudicada e nada se dirá quanto a ela.

Cumpre, por conseguinte, julgar o recurso improcedente.

IV. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se o despacho recorrido.

Custas pela insolvente.


*

Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

Maria Inês Carvalho Brasil de Moura



[1] Noções Elementares de processo Civil (Nova edição revista e actualizada). Coimbra Editora, 1979, pág. 193.
[2] Direito processual Civil Declaratório, Vol. III. Coimbra: Livraria Almedina, 1982, pág. 134.
[3] Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada. Coimbra Editora, 1985, pág. 393.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª ed., nota 7 ao referido artigo 201º, pág. 373.
[5] Colectânea de Jurisprudência, ano XX, Tomo 5, pág. 129.
[6] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º. Coimbra Editora, 1945, pág. 507-508.
[7] Ob. cit., (nota 6), pág. 510.