Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
214/14.6TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: FAVORECIMENTO DE CREDORES
TIPO OBJECTIVO
SOLVER DÍVIDAS DE MANEIRA DIFERENTE DO PAGAMENTO EM DINHEIRO OU VALORES USUAIS
Data do Acordão: 06/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE POMBAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 229.º E 229.º-A DO CP
Sumário: I – Quando numa situação de insolvência ou na sua iminência [decorrente das denominadas prestações incongruentes potenciadoras do perigo de insolvência], sendo já tal estado do seu conhecimento, o devedor dolosamente, com a intenção de favorecer certos credores no ressarcimento do seu crédito, intenção essa assessorada por uma subintenção reflexa ou derivada de prejudicar os outros:
(i) Solve dívidas ainda não vencidas;

(ii) Solve dívidas de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais, ou

(iii) Presta garantias para as suas dívidas a que não era obrigado,

incorre na prática do crime de favorecimento de credores p. e p. no artigo 229.º do CP, pelo qual, verificando-se a condição objetiva de punibilidade traduzida no reconhecimento judicial da insolvência, será responsabilizado.

II – Circunscrito à acção típica traduzida em “solver dívidas de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais”, o referido crime apenas se verifica quando se pagam dívidas vencidas através de objeto diferente do devido e de maior valor que este, assentando, assim, a punição não no meio escolhido, mas sim na diminuição do património líquido do devedor que a dita disposição patrimonial provoca.

III - Não estando concretizado, no acervo factual dado por provado na sentença recorrida – e também na própria acusação –, o valor dos bens vendidos pela devedora a credores seus, não é possível concluir haverem sido as dívidas satisfeitas através de prestações diferentes de dinheiro e de valor superior ao devido e, assim, que a diminuição do património líquido da insolvente tenha tido origem nessa diferença.

Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 214/14.6TAPBL da Comarca de Leiria, Pombal – Inst. Local – Secção Criminal – J2, mediante acusação pública, foram os arguidos A... e B... , ambos melhor identificados nos autos, submetidos a julgamento, sendo-lhes, então, imputada: ao primeiro a prática, em coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de favorecimento de credores agravado, p. e p. pelos artigos 229º, nº 1 e 229º - A em concurso real com um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º, nº 5, ex. vi do n.º 1 do mesmo artigo, todos do C. Penal; à segunda a prática, em coautoria material, sob a forma consumada, de um crime de favorecimento de credores agravado, p. e p. pelos artigos 229º, nº 1 e 229º - A em concurso real com um crime de abuso de confiança, p. e p. pelos artigos 205º, nº 5, ex. vi do n.º 1 do mesmo artigo e 28º, todos do C. Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento por sentença de 20.05.2016 o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]:

Nestes termos o Tribunal decide:

1. Absolver os arguidos B... e A... , da prática do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 205º, nº 1 e 5, do Código Penal, de que se encontravam acusados, e por falta de legitimidade do Ministério Público em promover a ação penal, relativamente ao n.º 1 do artigo 205º do Código Penal.

2. Condenar a arguida B... , pela prática de um crime de favorecimento de credores, previsto e punido pelo artigo 229º, nº 1 e 229º-A ambos do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz o montante total de € 1200 (mil e duzentos euros);

3. Condenar o arguido A... , pela prática de um crime de favorecimento de credores, previsto e punido pelo artigo 229º, nº 1 e 229º - A ambos do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz o montante total de € 1200 (mil e duzentos euros);

4. Julgar os pedidos de indemnização civis deduzidos nos autos por C... , D... e E... , parcialmente procedentes, e em consequência, absolver os demandados civis/arguidos dos danos patrimoniais peticionados, por não provados e, condenar os arguidos/demandados civis B... e A... a pagar solidariamente aos demandantes civis, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), a cada um, C... , D... e E... , acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde o trânsito em julgado da presente decisão até efetivo e integral pagamento.

5. Condenar os arguidos nas custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC`s, e demais encargos do processo.

6. Condenar nas custas cíveis demandantes e demandados civis, na proporção do decaimento – artigo 446º do Código de Processo Civil.

3. Inconformados com a decisão recorreram os arguidos, extraindo as seguintes conclusões:

1. Inconformados com a sentença proferida em 20.05.2016, vêm os Arguidos, ora Recorrentes, insurgir-se contra a mesma, no tocante à condenação de cada um dos Arguidos, pela prática do crime de favorecimento de credores, e à procedência (parcial) dos pedidos de indemnização civis, pugnando pela sua revogação e consequente substituição por decisão deste Colendo Tribunal em sentido inverso.

2. Com efeito, tal decisão assenta numa factualidade diferente da realidade e daquela que resultou demonstrada pela prova produzida nos autos.

I. RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO

A. MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA

3. Face à prova documental e testemunhal produzida, nenhum dos factos supra transcritos (11, 12, 13, 14, 15 (parcialmente), 20, 21 (parcialmente), 23 (parcialmente), 24 (parcialmente), 25, 28 (parcialmente), 29 (parcialmente), 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37 e 57) poderia ter sido dado como provado pela Mma. Juiz a quo.

4. Fundamenta a Mma. Juiz a quo a sua convicção essencialmente no depoimento prestado pela Sra. Perita O....

5. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, a sentença recorrida destaca apenas uma parte ínfima do depoimento da Sra. Perita que, ouvido por completo, jamais poderia conduzir aos factos provados acima transcritos.

6. Em primeiro lugar, a intervenção da Sra. Perita consistiu na realização de um relatório no âmbito do qual analisou a contabilidade da P..., Lda., até à declaração de insolvência.

7. Em segundo lugar, ficou bem patente do depoimento da Sra. Perita, que Q..., mãe da Arguida, ficou registada na contabilidade da P... como credora, ainda num valor de €4.874,03; que a Arguida, B... , fez efetivamente suprimentos à empresa, estando registado na contabilidade, ainda após o dito «encontro de contas» um valor de €7.037,39; e que, relativamente ao Arguido, A... , também constava da contabilidade que era credor da empresa.

8. Mais referiu a Sra. Perita que os valores objeto de dito acerto de contas «foram lançados em contrapartida dos créditos que o sócio teria a receber».

9. Forçoso é concluir que as referidas vendas geraram, sim, fluxo financeiro a favor da sociedade, que teve uma diminuição drástica do seu passivo, no que toca aos créditos dos credores B... , Q... e A... .

10. Isto porque, como consta das faturas juntas aos autos, todas as vendas foram feitas pelo valor real ou de mercado dos bens em causa, e nunca por um valor inferior ou meramente simbólico, valor esse que foi abatido nos créditos registados na contabilidade da empresa, a favor daqueles.

11. Por fim, a Perita esclareceu cabalmente em Audiência que o ativo da P... , anterior à venda dos bens aqui em causa, já não seria suficiente para honrar os compromissos assumidos pela empresa e que, citando: «o imobilizado valia ZERO».

12. Quanto às declarações do Arguido A... , ficou demonstrado à saciedade que os Arguidos não delinearam nenhum plano que visava obter o pagamento privilegiado dos mesmos, tal como não previram nem quiseram fazer seus os montantes em causa.

13. A Arguida B... nunca foi gerente da referida sociedade, nunca atuou em nome da mesma, nem nunca a vinculou perante terceiros.

14. Consequentemente, também não se encontra suporte probatório bastante para sustentar que a Arguida cedeu o veículo Saab ao seu filho G... e os veículos Nissan e Opel a seu filho H... .

15. Em suma, não existem indícios suficientes de que a Arguida tenha planeado, participado e executado qualquer uma das vendas em causa.

16. As ditas vendas foram realizadas pelo gerente da empresa, em nome da empresa, conforme o próprio reconheceu.

17. O depoimento prestado pelo antigo trabalhador da P... , C... não foi devidamente atendido pelo Tribunal a quo.

18. Com efeito, C... clarificou que o Arguido sempre foi um excelente «patrão» e que tinha acordado com aquele e com o antigo trabalhador E... , em julho de 2013 que, para desafogar a empresa sem precludir os direitos dos seus trabalhadores, iriam resolver seus contratos de trabalho com justa causa e que, logo que o Arguido encontrasse novamente trabalho, voltariam a trabalhar juntos.

19. Ficou à vista de todos que estes dois trabalhadores apenas pretenderam usar o instituto da insolvência para não perder o acesso ao Fundo de Garantia Salarial.

20. Atendendo, essencialmente, aos depoimentos de C... e E... , jamais se poderia ter dado como facto provado que os Arguidos quiseram pagar privilegiadamente os próprios e Q... , quando, em boa verdade, o primeiro e único acordo que existiu e foi comprovado pela prova testemunhal referida, foi entre o Arguido e dois dos seus trabalhadores, C... e E... .

21. Ademais, foi expressamente referido pelo Arguido, em Audiência de Julgamento, que a venda da máquina Orladora, em 04.11.2013, foi feita com o objetivo de poder pagar os dois salários em atraso dos dois trabalhadores C... e E... .

22. Contudo, o Arguido foi surpreendido, dias depois, em 20.11.2013, com uma carta de citação no processo de insolvência requerido por quem se dizia «amigo», e por quem tinha vendido a máquina referida.

23. Quanto ao depósito do montante resultante da venda da Orladora (€3.690,00) em conta bancária de Q... , foi igualmente esclarecido pelo Arguido que tal se deveu ao facto de a P... ter contraído um empréstimo, a favor da Caixa de Crédito Agrícola de Pombal, que estava em incumprimento,

24. De modo que, caso o valor, destinado ao pagamento dos dois trabalhadores, fosse depositado em conta da P... , o mesmo teria sido imediatamente «sugado» pelo Banco,

25. O que é, aliás, confirmado pela relação de créditos reclamados e reconhecidos, realizada no âmbito da insolvência da empresa, e constante dos autos, na qual se encontra como credor da insolvência a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Pombal, com o crédito reconhecido no valor de €108.519,60, correspondente a 31% dos créditos da insolvência reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência.

26. Na verdade, resultou patente das declarações do Arguido e da inquirição de C... e E... , que aquele tudo fez para que os ditos DOIS SALÁRIOS em atraso fossem cumpridos, privilegiando estes dois trabalhadores face à terceira trabalhadora, B... , que nada auferiu desde Junho de 2011 até Outubro de 2013.

27. A sentença em crise incorreu num erro de princípio quando desconsidera duas notas essenciais para a descoberta da verdade material, que são as seguintes:

i «O património que fora vendido pelos arguidos em data anterior à sua declaração de insolvência voltou por inteiro à massa da insolvência, pois o Administrado da Insolvência resolveu, em benefício da massa insolvente, todos os negócios imputados aos arguidos na acusação»

ii «O pouco ativo existente foi objeto de liquidação e é insuficiente para pagar os referidos créditos laborais e outros reconhecidos».

28. Nas palavras da Perita O... : «em termos patrimoniais, sendo as vendas revertidas, não teve qualquer impacto».

29. O depoimento do Sr. Administrador da Insolvência – F... – foi notoriamente honesto, sincero e esclarecido e corroborado pela Perita O... , neste ponto essencial.

30. O Administrador da Insolvência afirmou, de forma segura, que o processo de resolução dos negócios em causa correu de modo «absolutamente linear», e que, de acordo com a sua experiência, não houve qualquer intuito ou má-fé por parte do Arguido, então Gerente da P... .

31. Apelando às palavras da testemunha, quando explicou que tudo se tratou de «um ato negligente decorrente de mau aconselhamento», jamais poderia ter sido dado como provado que os Arguidos sabiam que as condutas em causa eram proibidas e criminalmente punidas.

32. O depoimento realmente «leviano» foi o da Sra. Inspetora I... , que demonstrou, em Audiência de Julgamento, nada saber quanto ao processo de resolução dos negócios em benefício da massa insolvente e quantos aos trâmites processuais subsequentes.

33. Dos depoimentos dos Demandantes civis – C... , E... e D... – ficou bem claro que os mesmos nem tinham, sequer, consciência do valor do património da P... , logo da sua capacidade em satisfazer, com a insolvência, os seus créditos laborais.

34. Sabiam que a empresa estava a atravessar uma grande crise mas nada sabiam quanto aos negócios em causa.

35. Mais ficou provado que receberam do Fundo de Garantia Salarial: C... e E... receberam, cada um, a quantia de €8.334,35, e D... recebeu a totalidade dos créditos reclamado, isto é, o valor de €4.157,72.

36. Assim, não poderia concluir-se que a conduta dos Arguidos provocou medo e inquietação, causando carência económica nos três Demandantes Civis, visto que D... afirmou ter saído da empresa em 2010 porque foi imediatamente trabalhar para outro local; E... e C... mencionaram que só não foram trabalhar para outra empresa, quando ainda estavam ao serviço da P... , porque recusaram propostas que lhes foram dirigidas em 2012, sendo que receberam, logo em outubro de 2013, subsídio de desemprego.

37. Conjugada a prova produzida com as regras da experiência comum, não vislumbram os Recorrentes de que forma pode o Tribunal a quo ter dado como provados os factos elencados em 11, 12, 13, 14, 15 (parcialmente), 20, 21 (parcialmente), 23 (parcialmente), 24 (parcialmente), 25, 28 (parcialmente), 29 (parcialmente), 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37 e 57, da douta sentença em crise.

38. Por todo o supra exposto, deveriam, ainda, ter sido aditados e dados como provados os factos mencionados a páginas 38 e 39 do presente Recurso.

B. MATÉRIA DE FACTO DADA COMO NÃO PROVADA

39. Consta dos autos o requerimento do Administrador da Insolvência da P... , no qual juntou ao processo de insolvência «uma nova RELAÇÃO DOS CRÉDITOS RECLAMADOS E RECONHECIDOS», expondo que «a única alteração introduzida resulta do facto de o Instituto de Segurança Social ser titular de um Contrato de Penhor Mercantil e Depósito sobre o produto da venda das Verbas números 15 e 33 do novo Inventário de Bens (do qual constam os equipamentos cuja venda foi objeto de resolução), sendo o respetivo crédito de natureza garantida: Verba N.º 15 – Uma Moldadora Marca Mida mod. M220. e Verba N.º 33 – Uma Orladora EP-8 CHEISA».

40. Ora, como os trabalhadores identificados na lista, incluindo a Arguida, gozam de privilégio creditório mobiliário geral, a garantia real existente sobre as verbas n.º15 e n.º33, a favor da Segurança Social prevalece e consequentemente, os créditos assim garantidos são necessariamente graduados em primeiro lugar.

41. Pelo que deveria ter-se dado como provado os factos identificados nos pontos XI e XII da sentença ora em crise.

42. Impõe-se, pois, a alteração da matéria de facto, na sequência da fundamentação que se acima se desenvolveu, não podendo, corolariamente, condenar-se os Arguidos pela prática dos crimes pelo qual foram acusados.

43. A asserção inversa não seria isenta de dúvidas razoáveis, as quais, aliás, sempre aproveitariam aos Arguidas, por aplicação do princípio do in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência vertida no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa

II. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

A. Preenchimento do tipo objetivo do artigo 229.º do Código Penal

44. A sentença em crise entendeu que o tipo objetivo do crime de favorecimento de credores, estava, no caso concreto, preenchido pelo pagamento de dívidas ainda não vencidas e pela solvência de dívidas por modo diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais.

45. Porém, atento a factualidade vertente nos autos, verifica-se que não estão demonstrados os elementos objetivos do crime pelos quais os arguidos vêm condenados,

46. Para o preenchimento da conduta típica «pagamento de dívidas ainda não vencidas», a sentença limita-se a dizer «as dívidas da sociedade a Q... não estavam vencidas», sem qualquer outra fundamentação ou exame crítico das provas, o que é, por si só, insuficiente para o apuramento da verdade material.

47. Ou seja, nada mais foi provado, quando, para resultar preenchido este elemento objetivo do típico, é essencial resultar indiciado ou provado que a dívida não estava vencida.

48. Recorde-se que os empréstimos que Q... foi fazendo ao longo de vários anos à sociedade, por não terem tido estipulação de prazo para o pagamento, traduzem-se, logicamente, em obrigações puras (artigo 777.º do CC).

49. Isto é, o credor pode exigir o pagamento a todo o tempo, assim como o devedor se pode exonerar dela, mais do que não seja parcialmente, como sucedeu in casu.

50. Para o preenchimento da conduta típica «solver de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais», a sentença faz o seguinte juízo: «relativamente aos créditos em remunerações do arguido A... , como órgão social, através da venda dos veículos Ford Transit e Opel Monterey, tal não gerou qualquer fluxo financeiro na empresa (…).

51. Neste ponto, apela-se ao supra discutido acerca da decisão sobre a matéria de facto, mormente no que diz respeito aos fluxos financeiros que as vendas, efetivamente, geraram na contabilidade da empresa.

52. Com efeito, conforme foi realçado em (I), o encontro de contas realizado na contabilidade da P... , pelas vendas em causa, diminuiu o passivo existente a favor dos credores da sociedade: Q... , B... e A... .

53. Pelo que, torna-se inegável que as vendas em causa geraram fluxo financeiro na empresa.

54. A ratio do segmento típico em análise, sustentada no Comentário Conimbricense do Código Penal (p. 452, §15-16), passa pelo seguinte: «a ameaça penal só atinge as disposições que causem (no caso de insolvência iminente) ou agravem (no caso de insolvência existente) o défice patrimonial».

55. Neste sentido, pronuncia-se o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 29.06.2011, processo n.º 127/07.8TAALJ.P1, relatado por Olga Maurício De igual forma concluiu o Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão de 22.02.2010, processo n.º 669/05.0TABCL.G1, relatado por Fernando Monterroso.

56. De notar que o «acerto de contas» em termos jurídicos, não é mais do que a figura jurídico-civil da compensação, prevista no artigo 847.º do Código Civil.

57.In casu, os Arguidos não deixaram de fazer o registo a débito na contabilidade da sociedade nas contas «outros credores (253232)»; «outros credores (278410)»; e «Remunerações dos Órgãos Sociais – conta 2311».

58. E com o «encontro de contas» diminuíram o passivo da sociedade em relação aos correspondentes montantes registados.

B. Preenchimento do tipo subjetivo do artigo 229.º do Código Penal

59.Mais flagrante é a ausência de prova e de direito suscetível de preencher o tipo subjetivo no que diz respeito às condutas típicas «solver dívidas não vencidas» e «solver de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais».

60. Não há referências ao dolo daquelas condutas típicas imputadas, pelo que ficamos sem saber se os Arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, tendo consciência de que era proibido e punido por lei solver dívidas não vencidas ou solver de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais.

61. Corolariamente a todo o supra exposto neste enquadramento jurídico-penal, importa sublinhar que, ainda que se entendesse ter havido um pagamento privilegiado dos Arguidos e de Q... , sem proceder a qualquer alteração da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, nunca estaria preenchido o tipo objetivo e subjetivo de favorecimento de credores.

C. Preenchimento do artigo 229.º- A do Código Penal 

62.Ignorou a sentença o facto de o Administrador da Insolvência da P... ter resolvido em benefício da massa insolvente todas as vendas que haviam sido feitas pelos ora Arguidos em nome da sociedade.

63.Como resultou bem patente nos autos, foi restituído o status quo ante e sendo assim, as vendas em causa não frustraram quaisquer créditos de natureza laboral no processo de insolvência.

iii. Apreciação do pedido de indemnização civil

64.Em face dos elementos probatórios produzidos em sede de Audiência de Julgamento, ter-se-á de concluir que os Arguidos, ora Recorrentes, não praticaram os factos integrantes do tipo de ilícito pelos quais foram condenados, não tendo, corolariamente, causado os danos não patrimoniais que lhes são assacados.

65.Sem prejuízo, a determinação de uma compensação por danos não patrimoniais exige, conforme estatui o artigo 496.º, n.º1 do Código Civil, que a gravidade dos mesmos mereça a tutela do Direito.

66.Ora, do desenvolvido supra, facilmente se depreende que não se verificaram, nos presentes autos, quaisquer danos morais de tal modo graves que justifiquem a concessão de uma quantia pecuniária a cada um dos Demandantes cíveis.

67.Ficou patente das declarações dos três demandantes civis que nada sabiam quanto às vendas dos bens da empresa; que D... começou a trabalhar para outra empresa logo no mês após a sua saída da P... ; que C... e E... receberam subsídio de desemprego logo em outubro de 2013, e que recusaram, intencionalmente, outras propostas de trabalho feitas em 2012.

68. Por fim, não foram juntos documentos comprovativos da realização dos ditos empréstimos que a sentença considera factos não provados mas que utiliza para justificar o nexo causal entre o facto e o dano moral.

69. Razões pelas quais, deverá o Venerando Tribunal ad quem revogar, também no que esta parte diz respeito, a douta decisão recorrida.

70. Fez o Tribunal a quo, quer uma deficiente apreciação da prova, quer uma incorreta interpretação do direito aplicável ao caso sub judice.

Nestes termos e nos melhores de direito,

Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em conformidade, revogar-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra que absolva os Arguidos da prática dos crimes pelo qual foram condenadas, e, bem assim, do pagamento da indemnização civil reclamada.

4. O recurso foi admitido, tendo-lhe sido atribuído efeito suspensivo.

5. Ao recurso respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público, concluindo:

1 - B... e marido, A... , interpuseram recurso da decisão parcialmente condenatória que, na parte que aqui interessa, os condenou pela prática de um crime de favorecimento de credores agravado, p. e p. pelos artigos 229º, n.º 1 e 229º-A, ambos do Código Penal, nas penas de 200 dias de multa, à taxa diária de 6€, o que perfaz, para cada, o montante de 1200€ de multa.

2 - Como decorre claramente dos factos dados como provados e restante prova produzida, o esquema arquitetando pelos arguidos era simples e foi confessado pelo próprio arguido A... (prestando declarações a final do julgamento) e confirmado/detetado pelo Sr. Administrador de Insolvência.

3 - E o esquema era este: sabendo há muito da péssima situação financeira da empresa (já pelo menos 2011, como o próprio confirmou, não havia dinheiro) foi decidido, antes do processo formal e iminente de insolvência (os trabalhadores inquiridos, por exemplo, já tinha dado indicação que, por não receberem, iriam tomar ações) colocar a salvo alguns bens da empresa, passando-os para nome, principalmente, dos filhos e sogra.

4 - Filhos que não consta em lado algum que fossem credores e sogra que, note-se, nunca tendo nada que ver com a empresa ou com o seu objeto social, ficaria com máquinas e os filhos com automóveis, demonstrando a sua inquirição em sede de audiência que pouco ou nada sabia dos factos em causa, estando completamente alheada do que se passava na empresa, sendo instrumentalizada para os aludidos efeitos e conveniências da empresa P... .

5 – Nessa sequência, e quando descobriu o que se passava, o Sr. Administrador de Insolvência tomou ações concretas no sentido de quase a totalidade dos bens “vendidos” regressarem à massa falida.

6 – Face à prova existe e produzida, não se percebe como podem os arguidos afirmar, depois da análise financeira e patrimonial/relatório pericial e confissão do próprio arguido, que nada apoia a conclusão retirada pelo Tribunal de que os familiares atuaram em conluio, visando a preservação do património na esfera patrimonial da família, prejudicando principalmente os trabalhadores da empresa, sendo indiferente saber se esses bens e valor gerado pelas vendas era ou não suficiente para honrar os compromissos totais da empresa.            

7 – Certo, sabido e provado é que as vendas efetuadas pelos arguidos não geraram qualquer entrada de valor nas contas da P... (cf. conclusões escritas do relatório pericial e declarações da Sra. Perita ouvida em audiência), isto é, esse dinheiro não entrou efetivamente na empresa, demonstrando-se assim que as vendas tinham objetivos muito concretos de salvaguardar património e prejudicar credores.

  8 - Sendo espantoso negar em recurso as evidências e afirmar, com a situação da empresa que já se verificava há muito de falta de dinheiro e falência técnica, que a insolvência foi uma surpresa.

9 – Contradizendo esse ponto de vista, até contrário às regras da experiência comum, estão as declarações dos trabalhadores ouvidos em audiência, que explicaram, na prática, aquilo que foi o encerramento ilegal da empresa e que iriam tomar ações concretas face à falta de pagamento de salários, explicando que a empresa, nos últimos tempos não tinha trabalho para dar e que tudo estava mal cerca de um anos antes das respetivas desvinculações (cf. por exemplo, as declarações da testemunha E... , parcialmente transcritas a fls. 22 e seguintes do recurso).

10 - Daí que a insolvência nunca pudesse ser uma surpresa e já estivesse a ser equacionada pelos arguidos e daí o esquema montado para fazer face a esse mais que provável destino da empresa, havendo há muito dívidas à AT e Segurança Social e limitando-se o Tribunal a tirar consequências de tudo isto.

11 - Confundindo os recorrentes o crime e a sua perfeição com o remédio posterior de reposição (não total) da situação anterior.

12 - No que diz respeito à arguida, a verdade é que esta era sócia da empresa, trabalhava efetivamente na P... , dando ordens e tendo um papel relevante numa distribuição de tarefas para gestão da empresa, pelo que nunca poderia a mesma estar à margem dos factos nem ser desresponsabilizada pelo crime em questão. As regras da experiência comum indicam que caso nada ali fizesse e fosse apenas mais uma trabalhadora, isso seria prontamente referido pelos restantes trabalhadores, nem tendo a defesa colocado em causa no julgamento o papel daquela na P... . 

13 - Como exemplo desse conhecimento e papel, veja-se a instrumentalização da sua mãe Q... e conta desta na CGD para depósito de um cheque com valores da P... por venda de património da empresa, conta aberta, ao que tudo indica e como se pode retirar da inquirição dessa testemunha, por intervenção direta da arguida, o que funda a conclusão de quem tinha o domínio dessa conta, utilizada para fins da empresa, era de facto a arguida e o marido.

14 - Acrescendo a tudo isto que foi a arguida quem vendeu três veículos (Saab, Nissan e Opel) aos próprios filhos, recebendo ainda valores indevidamente/pagamentos privilegiados enquanto trabalhadora da empresa, o que demonstra bem o conluio, ações e conhecimento dos factos por parte daquela.

15 - Escudando-se a defesa no papel artificial da pessoa coletiva - o facto de os negócios terem sido feitos pela empresa - como se esta funcionasse sem vontade dos seus sócios e gerentes, atuando ambos para um objetivo comum, mesmo que fosse o arguido a encabeçar alguns desses atos, refugiando-se assim na pessoa coletiva para se eximirem às suas mais que evidentes responsabilidades criminais pessoais.

16 - Por fim, a este respeito, é elucidativo o papel da arguida, sendo referida nas declarações de C... como “a minha patroa” e falando no plural (referindo-se aos dois arguidos) quando se refere à assinatura da carta de despedimento (cf. fls. 20 do recurso). Também E... considera a arguida patroa (cf. fls. 24 do recurso).

17 - São descabidas e bem demonstradoras da confusão em que laboram os arguidos, a seleção de respostas dadas pela testemunha C... , em parte desmentidas pelos restantes trabalhadores, misturando-se, mais uma vez, os factos com questões pessoais entre ambos, como se amizade e consideração dessa testemunha pelo arguido tivesse algo que ver com os factos em causa.

18 - Sendo espantoso o lastro de culpa imputada aos trabalhadores por requererem a insolvência da empresa - que não lhes pagava salários e abandonou a empresa - como se a amizade e a consideração tudo resolvesse e colocasse pão em cima da mesa daqueles e como se fosse um problema ou um facto grave da sua parte requererem subsídio de desemprego ou recorrerem ao Fundo de Garantia Salarial, pretendendo apenas receber o salário pelo trabalho prestado e o cumprimento dos seus contratos de trabalho.

19 - Na verdade, se realmente o objetivo fosse, como é alegado pela defesa, vender bens para pagar a trabalhadores, não se entende por que motivo nada disso foi feito e parte do produto dessas vendas entrou em conta titulada pela mãe da arguida!

20 - Sendo falso e contrariado pelos factos (cf. encontros de contas e análise contabilística, que demonstram que os arguidos se pagaram privilegiadamente em detrimento de outros trabalhadores) ter privilegiado o pagamento de salários aos trabalhadores em detrimento do da arguida, ou que tenha havido qualquer acordo posteriormente incumprido pelos trabalhadores, acordo esse nunca mostrado ou sequer demonstrado.

21 - A iniciativa de regresso de parte dos bens à massa, pelo mecanismo da resolução, não partiu dos arguidos, mas da descoberta do esquema por parte do Sr. Administrador de insolvência, não obstante eventual colaboração posterior a esse respeito.

22 - Daí entender o Ministério Público que se está a lançar a confusão entre a perfeição do crime e o seu remédio, nada disso configurando qualquer tipo de desistência ou tentativa.

23 - Quanto ao depoimento do Sr. Administrador de Insolvência, basta ouvir as respostas e a forma como se apresentou no Tribunal, sem documentação de apoio e afirmando nunca ter falado com os arguidos, para concluir que houve uma impreparação total para o julgamento, falando de forma leve e leviana dos factos, afirmando uma coisa e o seu contrário, baseando tudo numa colaboração posterior à descoberta das vendas.

24 - Referindo, de forma esquisita (como sublinha a sentença) que todo o processo de insolvência foi linear quando se está perante um esquema ostensivamente criminoso e com objetivos bem claros de favorecer credores e prejudicial à massa, ficando por se entender por que motivo o processo de insolvência não teve outros desenvolvimentos, nomeadamente ao nível de incidente de qualificação de insolvência, beneficiando os arguidos e empresa daquela interpretação extensiva e positiva dos factos e intenções da parte do Sr. Administrador de Insolvência.

25 - Os arguidos não podem ser tidos como irresponsáveis, sabiam o que estavam a fazer, quiseram fazê-lo de forma livre, deliberada e consciente, mesmo que isso tenha partido de aconselhamento de terceiros, nunca podendo esse facto eximir as responsabilidades criminais dos arguidos, sabendo que a insolvência estava iminente, que havia dívidas a várias entidades (incluindo AT e Segurança Social) e vendendo bens a familiares para frustrar pagamentos a terceiros.

26 - Frustrando inclusive os créditos da Segurança Social (cf. fls. 264), sendo que o valor da venda dessa máquina foi depositado em conta da mãe da arguida e não nas contas da empresa (vendedora), conta essa que era dominada pelos arguidos e desconhecendo a Q... qualquer situação relativa à situação da empresa, não tendo feito qualquer interpelação para pagamento dos empréstimos que porventura tinha feito à filha e genro.

27 - É caso para perguntar: como se tem o descaramento de dizer que não sabiam que tal configurava atos ilegais e criminosos, colocando toda a culpa na advogada anterior?!

28 - Linear, assim, foi o esquema desenhado pelos arguidos, que não tem dificuldades de apreensão para quem lê os factos dados como provados, pecando os factos por defeito naquilo que poderia a ser a prática de outros crimes, previstos no Código Penal e Código do Trabalho, retirando o Tribunal, como decorre das regras da experiência comum e das declarações dos trabalhadores ouvidos em audiência, apesar de os arguidos o tentarem contrariar, que a falta de pagamento pontual de retribuição pelo trabalho causa a qualquer pessoa, como efetivamente causou, medo e inquietação pelo futuro e ainda carência económica, sendo básicas essas conclusões independentemente de terem ou não a sorte de encontrar trabalho posteriormente.

29 - Insistindo os arguidos em negar as evidências e confundido mais uma vez as coisas, como se o facto de não receber salário gerasse riqueza em quem fica desprovido de ordenado….

30 - Não havendo, para além de convicções pessoais sobre os factos, qualquer apoio factual/documental que suporte os factos que a defesa quer dar como provados e não provados, sendo totalmente desprovida de sentido a alusão ao princípio in dubio pro reo, porquanto não se vislumbra, em qualquer segmento da decisão, uma dúvida que seja sobre a convicção do Tribunal no que diz respeito aos factos e à culpabilidade dos arguidos.

31 - Ao contrário do decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22 de Fevereiro de 2010 é que no nosso caso, segundo a perícia, as vendas efetuadas não geraram, na sua esmagadora maioria, quaisquer ativos, não tendo sido creditados a favor da empresa os valores respetivos e gerados com as vendas.

32 - E para comprovar que os arguidos sabiam já da iminência da insolvência estava a situação de falência técnica que se verificava há muito antes daquela insolvência formal, as dívidas a trabalhadores, Bancos e Segurança Social, por exemplo, bem como a falta de trabalho, comprovada pelos trabalhadores, o que levava a concluir facilmente de que os ativos nunca dariam para pagamento do passivo, pois eram infinitamente inferiores. Como o comprova também o esquema delineado para salvaguardar e privilegiar credores (a arguida e sogra, por exemplo) de vendas de bens a familiares (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Junho de 2011.

33 - Quanto aos conceitos de solvência de dívidas não vencidas e a solvência de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais veja-se a explicação dada na fundamentação (cf. fls. 21 a 26 da sentença), sendo ainda certo que o pagamento à mãe e sogra dos arguidos ( Q... ) pelos empréstimos efetuados foi, não em dinheiro mas com máquinas, logo, preenchendo-se também por aqui o elemento típico, ficando essas máquinas afastadas da massa e pagando-se privilegiadamente em detrimento de outros credores. Sendo certo que essas vendas não geraram fluxos financeiros a favor da insolvente, como decorre claramente da análise financeira efetuada e junta aos autos.

33 - Não estando, de todo o modo, a dívida à testemunha Q... ainda vencida à data dos factos criminosos porquanto ainda não tinha havido qualquer interpelação ou exigência de pagamento da dívida, pela natureza do empréstimo e regras de experiência comum, sendo para pagar quando se pudesse (se alguma vez seria para pagar…) – cf.- artigo 1148º, n.º 1 do CC).

34 - Apenas se compreendendo esse pagamento de dívida inserido no esquema criminoso engendrado e não no âmbito de um normal pagamento de dívida como pretendem os arguidos fazer crer, não se podendo separar artificialmente aquilo que se encontra incindivelmente ligado nos propósitos e ações.

35 - Sendo ainda a arguida paga privilegiadamente também naquilo que foi definido contabilisticamente como encontro de contas (cf. pontos 23 e seguintes da acusação, dados como provados), o que sucedeu ainda e também com o arguido no que diz respeito às vendas dos veículos Ford Transit e Opel Monterey.

36 - Extraindo-se facilmente os elementos subjetivos de todos os factos dados como provados (cf. ainda declarações do arguido a final sobre os objetivos concretos do esquema levado a cabo) e regras da experiência comum.

37 - No que diz respeito à agravação prevista no artigo 229º-A do Código Penal, parece relativamente claro que os créditos laborais ficaram frustrados no âmbito do processo de insolvência, conforme consta dos autos, não sendo possível o seu pagamento total, mas apenas parcial, sendo indiferente para a incriminação (e não poderia deixar de ser assim, como é óbvio, sob pena de esvaziamento praticamente total deste artigo), que tenha havido intervenção do Fundo de Garantia Salarial, já que é uma intervenção à margem daqueles processos executivo ou especial de insolvência, não impedindo nem tendo nada que ver com a agravação em causa, que é simples nos seus pressupostos - Ou resultaram frustrados ou não com os factos praticados pelos arguidos, total ou parcialmente. Como a resposta é positiva, a agravação da incriminação está preenchida.

38 - Bem vistas as coisas, os arguidos pretendem apenas substituir a decisão do Tribunal pela sua própria visão, não nos parecendo que a decisão em causa seja censurável, a qual deve ser mantida na íntegra.

Contudo, V. Exas. farão JUSTIÇA.

6. Remetidos os autos à Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, louvando-se na resposta apresentada em 1.ª instância, se pronunciou no sentido de dever o recurso improceder.

7. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP nenhum dos intervenientes processuais reagiu.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Mostrando-se os poderes cognitivos deste tribunal, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso, limitados em função das conclusões de recurso as questões colocadas traduzem-se em saber se: (i) ocorreu erro de julgamento; (ii) foi violado o princípio in dúbio pro reo e, finalmente, (iii) os factos apurados não integram o crime de favorecimento de credores.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença recorrida [transcrição parcial]:

II - Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. “ P... , Lda.”, era uma sociedade comercial por quotas, com sede em (...) , Pombal, com o capital social de € 29.927,87, com o número de pessoa coletiva (...) .

2. Tinha como objeto social a carpintaria, caixilharia de alumínio, móveis e estores.

3. Eram sócios o arguido A... , com uma quota de € 16.460,33 e a arguida B... , com uma quota de € 13.467,54.

4. Os quais são casados entre si.

5. Era gerente da sociedade o arguido A... .

6. No dia 12 de Dezembro de 2013 (às 20h), no âmbito dos autos de Insolvência de Pessoa Coletiva nº 1915/13.1TBPBL, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, a referida sociedade foi declarada insolvente.

7. No âmbito da referida insolvência, foram reconhecidos créditos no valor de € 236.347,43.

8. Foram reconhecidos créditos aos trabalhadores E... , no valor de € 21.883,27, D... , no valor de € 4.157,72, C... , no valor de € 29.445,07 e de B... , no valor de € 43.277,93.

9. O pouco ativo existente foi objeto de liquidação e insuficiente para pagar os referidos créditos laborais e outros reconhecidos.

10. A referida sociedade comercial apresentava, desde o ano de 2011, perda de autonomia financeira, ano em que se verifica situação de falência técnica, agravando-se anualmente por via de resultados transitados, com os valores de resultado líquido de € -36.366,75 no ano de 2011 e € -33.659,32 no ano de 2012.

11. Ambos os arguidos conheciam o referido estado económico-financeiro da sociedade comercial.

12. De comum acordo, no início do ano de 2013, delinearam um plano que visava obterem o pagamento privilegiado de suprimentos que, quer eles, quer Q... , haviam efetuado à sociedade.

13. E ao mesmo tempo assegurarem a posse e o título dos bens em causa.

14. Bem como obterem vantagem patrimonial ilegítima com a venda de uma Orladora.

15. De acordo com um plano comum de arguidos, no dia 04.11.2013 a sociedade insolvente vendeu (e foi emitida a fatura nº 20130018) uma máquina orladora, marca Cehisa EP- 8 usada, no valor de € 3.000, acrescido de IVA no valor de € 690, no valor global de € 3.690, a favor de N... .

16. Em pagamento, o arguido, na sua qualidade de gerente, recebeu o cheque nº (...) , no referido valor.

17. Cheque esse que entregou à arguida, a qual no dia 27.01.2014 procedeu ao depósito do mesmo na conta da sua mãe com o nº (...) da Caixa Geral de Depósitos, fazendo assim os arguidos sua a referida quantia.

18. Não tendo o referido saldo na sociedade insolvente sido liquidado.

19. Em 31.12.2012 Q... apresentava um crédito da conta cliente 2111320, com um saldo a crédito de € 11.331,53 decorrente de empréstimos efetuados à sociedade insolvente.

20. Os arguidos, conhecendo a situação de falência técnica da sociedade comercial e querendo que aquela, mãe da arguida, fosse paga privilegiadamente face a outros credores, emitiram a favor desta a fatura nº 20130020, com data de 04.11.2013, por venda de topia com alimentador, máquina de corte de alumínio, prensa de alumínio, fresadora de alumínio, respigadeira de alumínio, radial para madeira e lixadeira de cintas pelo valor global de € 5.250, acrescido de € 1.207,50, no valor global de € 6.457,60.

21. A referida venda não gerou qualquer fluxo financeiro a favor da insolvente, tendo o referido montante apenas sido registado a débito da conta “outros credores” (278410), pagando-se privilegiadamente Q... face aos demais credores.

22. Entre Janeiro e Abril de 2013 a arguida B... efetuou entregas a favor da sociedade insolvente, tendo a dívida desta para com a sócia o valor de € 15.790,77, registado na contabilidade da insolvente na conta 253232.

23. Os arguidos, conhecendo a situação de falência técnica e querendo que a arguida fosse paga privilegiadamente face a outros credores e simultaneamente manterem a posse dos veículos, atuando o arguido na qualidade de gerente de sociedade insolvente, procederam às seguintes vendas:

- através da fatura nº 20130010, datada de 27.03.2013, a sociedade insolvente vendeu a viatura de marca Saab, com a matrícula (...) UM, a favor de G... , filho dos arguidos, pelo preço de € 4.000;

- através da fatura nº 20130014, datada de 30.07.2013, a sociedade insolvente vendeu a viatura de marca Nissan, modelo Urvan, matrícula (...) DH, pelo preço de € 1.000 a favor de H... , filho dos arguidos;

- através da fatura nº 20130017, datada de 30.07.2013, a sociedade insolvente vendeu a viatura de marca Opel, 2.5.D, matrícula (...) QS, a favor de H... , pelo preço de € 2.100,23.

24. As referidas vendas não geraram qualquer fluxo financeiro a favor da insolvente, tendo os referidos montantes sido objeto de encontro de contas e registados a débito da conta da insolvente “outros credores (253232)”, em nome da arguida, que assim se pagou privilegiadamente face aos demais credores, nos seguintes termos:

- recibo nº 20130007, por referência a fatura nº 20130010, no valor de € 4.000, com a notação manuscrita “para pagamento de empréstimo de arguida”;

- recibo nº 220130010, por referência a fatura nº 20130014, datado de 30.07.2013, no valor de € 1.000, que embora tenha manuscrito “para pagamento de salários” foi contabilisticamente registado na referida conta;

- recibo nº 20130011, por referência à fatura nº 20130017, datado de 30.07.2013, no valor de € 2.100,23, que embora tenha manuscrito “para pagamento de salários” foi contabilisticamente registado na referida conta.

25. A arguida cedeu o veículo Saab ao seu filho G... e os veículos Nissan e Opel a seu filho H... .

26. A referida viatura (...) UM já se encontrava registada a favor de G... a 16.07.2013.

27. O arguido era igualmente trabalhador da sociedade insolvente, com crédito referente por vencimentos de Agosto de 2010 a Maio de 2011 (remunerações dos órgãos sociais – conta 2311).

28. No início de 2013, conhecendo os arguidos que estavam em situação de falência técnica e querendo que aquele fosse pago privilegiadamente face a outros credores, nomeadamente demais trabalhadores, o arguido, atuando na qualidade de gerente de sociedade insolvente:

- através de fatura nº 20130016, datada de 30.07.2013, vendeu a viatura de marca Ford, modelo Transit, de matrícula 82-71-RC, pelo preço de € 1.000 a favor de G... ;

- através de fatura nº 20130011, datada de 24.07.2013, vendeu a viatura de marca Opel, modelo Monterey, de matrícula (...) EP, pelo preço de € 1.000, a favor de G... .

29. As referidas vendas não geraram qualquer fluxo financeiro a favor da sociedade insolvente, tendo os referidos montantes sido objeto de encontro de contas na conta 2311 “Remunerações dos Órgãos Sociais”, em nome do arguido, que assim se pagou privilegiadamente face aos demais trabalhadores, nos seguintes termos:

- recibo nº 20130009, por referência a fatura nº 201300016, datado de 30.07.2013, no valor de € 2.500,59, com nota manuscrita “para pagamento de salários”;

- recibo nº 20130008, por referência a fatura nº 201300011, datado de 30.07.2013, no valor de € 1.000, com nota manuscrita “para pagamento de salários”.

30. Com os referidos encontros de contas e transmissão de propriedade, ocorreu uma redução da rubrica “Ativos Fixos Tangíveis” de sociedade insolvente em 50%.  

31. Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, em comunhão de esforços e intentos.

32. Sabiam e quiseram usar a qualidade de gerente em que atuava o arguido.

33. Previram e quiseram fazer seus a quantia acima referida de € 3.690, bem sabendo que o arguido havia recebido aquela quantia na qualidade de gerente da sociedade insolvente e que deveria ter revertido a favor da sociedade insolvente, obtendo vantagem patrimonial ilegítima.

34. Previram e quiseram que B... , A... e Q... fossem pagos privilegiadamente face aos demais credores e trabalhadores, por encontro de conta, transmitindo máquinas e veículos automóveis acima referidos.

35. Agindo do referido modo, os arguidos tinham perfeito conhecimento que as condutas por si assumidas lesavam os legítimos interesses dos credores da insolvente.

36. Previram e quiseram que os demais trabalhadores da insolvente ficassem impossibilitados de obterem os seus créditos.

37. Sabiam também que tais condutas eram proibidas e criminalmente punidas.

38. Os arguidos são primários, face aos Certificados de Registo Criminais juntos aos autos.

39. O arguido A... tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade; em Janeiro de 1987 constituiu a empresa “ P... ” em sociedade com a mulher, onde desenvolveu toda a sua atividade profissional, como sócio-gerente até 2013; o arguido foi considerado como possuidor de hábitos de trabalho e responsabilidade profissional, bem como experiente na sua área de trabalho. 

40. O arguido constituiu a sua própria família em 1989, tendo dois filhos, estando o mais velho já autónomo. O agregado familiar mantém residência na localidade de origem da mulher, onde habitam, numa moradia T3, propriedade da sogra, já viúva, que lhes proporciona boas condições de habitabilidade.

41. Ao nível económico e profissional ambos os arguidos se encontram inativos desde 2013, data da insolvência da empresa, estando a mulher do arguido a receber subsídio de desemprego, no valor de €427, com o qual faz face às despesas de manutenção do agregado e ao pagamento de algumas dívidas a antigos fornecedores. A situação económica da família é muito precária, sendo a sogra do arguido, com cerca de 72 anos, reformada com o valor de € 480, que suporta a quase totalidade das necessidades básicas dos três elementos do agregado.

42. O arguido A... tem vindo a ocupar-se no cultivo das terras propriedade da sogra, onde passa a maior parte do seu tempo. Apresenta algumas dificuldades em projetar o seu futuro profissional e a retoma de atividade, não só pela idade, como também pelas baixas habilitações literárias.

43. O arguido A... socialmente é pessoa bem referenciada e com fortes laços de pertença à sua comunidade, encontrando-se socialmente bem inserido.

44. A arguida B... tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade, vindo a concluir o 9º ano de escolaridade, em idade adulta, em regime de RVCC. 

45. Ao longo dos anos a arguida tem vindo a apoiar a família nas atividades agrícolas, que desenvolviam intensamente. Paralelamente entre os 20 e os 24 anos exerceu funções no posto médico de (...) , como empregada de limpeza. Em Julho de 1989 iniciou participação na empresa do marido “ P... ”, onde viria a exercer funções como empregada de escritório, até 2013. Entre 2007 e 2013 também desenvolveu atividade comercial, explorando um pronto-a-vestir no (...) . Ao nível profissional a arguida é bem considerada e tida como pessoa responsável, empenhada e com hábitos de trabalho.

46. A arguida B... encontra-se de baixa médica desde Novembro de 2015.

47. A arguida B... socialmente é pessoa bem referenciada e com laços de pertença à sua comunidade, encontrando-se socialmente bem inserida. Contudo, manifesta alguns constrangimentos no relacionamento social, com tendência ao isolamento social decorrente do seu estado emocional, desde logo porque lhe foi diagnosticada doença psiquiátrica (depressão), fazendo regularmente terapêutica psicofarmacológica e acompanhamento periódico em consultas de psiquiatria, tendo já efetuado três tentativas de suicídio desde 2013, coincidentes com fases problemáticas do presente processo. Outro dos impactos assinalados refere-se à mudança no estatuto socioeconómico e consequente perda de poder económico que determinou o abandono precoce dos estudos do filho mais novo, por falta de meios para continuar a custeá-los ao nível superior, gerando grande revolta e incompreensão. Ao nível do relacionamento conjugal também são referidas alterações significativas, encontrando-se a relação muito fragilizada. 

48. O demandante civil C... exerceu funções na P... até 11 de Julho de 2013, tendo recebido o seu salário até Abril de 2013, e resolvido com justa causa o seu contrato de trabalho em 11.07.2013, com aceitação da empresa.

49. C... teve necessidade de pedir um empréstimo de dinheiro ao seu pai.

50. A insolvente “ P... ” não pagou até ao momento os créditos laborais, tendo sido reclamado o crédito laboral na insolvência no montante de € 40.575,99, acrescido de juros de mora, perfaz o montante de € 41.523,11.

51. Foi reconhecido o montante de € 29.445,07 pelo Administrador da Insolvência.

52. O demandante civil D... trabalhou na “ P... ” desde 1997 até Outubro de 2010, tendo rescindido o contrato de trabalho em Novembro de 2010.

53. D... intentou ação judicial junto do Tribunal de Trabalho de Coimbra (1223/11.2CBR do 2º Juízo), no âmbito da qual foi celebrada transação e acordo de pagamento, homologado por sentença, tendo a P... apenas pago três das prestações acordadas no valor de € 200.

54. Tendo reclamado tal crédito na insolvência foi reconhecido pelo Administrador da Insolvência o valor de € 4.157,72.

55. O demandante civil E... trabalhou na “ P... ” desde 1994 até 11 de Julho de 2013, data na qual cessou o seu contrato de trabalho.

56. Tendo reclamado tal crédito na insolvência e pelo Sr. Administrador o mesmo foi reconhecido pelo valor de € 21.863,27.

57. A conduta dos arguidos provocou nos demandantes civis medo, receio e inquietação, temendo nunca vir a recuperar os seus créditos e causaram-lhe situação de carência económica, sendo raros os dias em que não se sentem instáveis emocionalmente e tristes, o que lhes tem causado grande sofrimento e aos seus familiares e amigos.

58. O património que fora vendido pelos arguidos em data anterior à sua declaração de insolvência voltou por inteiro à massa da insolvência, pois o Administrador da Insolvência resolveu, em benefício da massa insolvente, todos os negócios imputados aos arguidos na acusação.

59. Do auto de arrolamento e apreensão de bens móveis resultou o valor total de € 12.970, sendo os créditos reclamados de trabalhadores, reconhecidos e qualificados como privilegiados, no valor de € 98.763,99.

60. Por despacho judicial de 10.11.2015, proferido nos autos de insolvência, o Fundo de Garantia Salarial ficou sub-rogado nos direitos de créditos salariais, garantias e privilégios creditórios dos ex-trabalhadores da insolvente: E... , C... e B... , pelo pagamento respetivo das seguintes quantias: € 8.334,35, € 8.357,23 e € 7.899,70.

61. O único trabalhador excluído do âmbito de atuação do Fundo de Garantia Salarial foi D... , por ter cessado o seu contrato de trabalho em data muito anterior à declaração de insolvência da P... .

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III – Factos não provados

Resultaram não provados os seguintes factos:

I - A conduta dos arguidos causaram graves prejuízos aos trabalhadores, impedidos que ficaram de cobrar os seus créditos.

II - O demandante civil C... auferia um vencimento líquido de € 800, nestes se incluindo subsídio de alimentação e prémio de produção.

III - O demandante civil C... viu-se na impossibilidade de cumprir com as suas obrigações para com a sua família, a qual foi privada do mínimo de subsistência, tendo tido necessidade de recorrer ao crédito de quem lhes foi fornecendo os alimentos e outros bens essenciais, ficando devedor de amigos e familiares que lhe foi acorrendo nas horas em que não tinha dinheiro sequer para comer.

IV – A conduta dos arguidos provocou no demandante civil C... perturbações de sono.

V - O demandante civil D... sempre desempenhou as suas funções com zelo, assiduidade e de forma competente, auferindo um vencimento que, acrescido do montante referente a subsídio de alimentação e prémio de produção cuja regularidade e montantes devem ser tidos como retribuição, a qual ascendia em Setembro de 2010 a € 682,91, tendo deixado de auferir o vencimento a partir do mês de Junho de 2010.

VI – Os atos praticados pelos arguidos provocaram-lhe medo, receio e inquietação, teme nunca vir a recuperar o seu crédito. A conduta dos arguidos provocou no demandante civil D... perturbações de sono.

VII – O demandante civil E... auferia de salário mensal líquido o montante de € 725, nestes se incluindo subsídio de alimentação e prémio de produção cuja regularidade e montantes devem ser tidos para todos os efeitos legais, tendo recebido o último vencimento em Abril de 2013.

VIII – Ao ver-se privado do salário viu-se na impossibilidade de cumprir com as suas obrigações para com a sua família, a qual foi privada do mínimo de subsistência, tendo tido mesmo a dado momento, necessidade de recorrer ao crédito de quem lhes foi fornecendo os alimentos e outros bens essenciais.

IX - Ficou o demandante civil prejudicado a nível patrimonial pois ficou a ser devedor de amigos e familiares que lhe foram acorrendo nas horas em que não tinha dinheiro sequer para comer. A conduta dos arguidos provocou no demandante civil E... perturbações de sono.

X – Os demandantes civis raros são os dias em que não repensam no sucedido e como um filme que passa em frente das suas memórias revêm todos os momentos em que humilhantemente foram desfavorecidos com os atos dos arguidos que manifestamente abusaram da confiança que lhes tinha sido depositada na gerência e guarda do património da sociedade agora declarada insolvida e em proveito próprio desapareceram e venderam de forma simulada o património da mesma com o intuito de se enriquecerem à custa do empobrecimento dos credores da mesma sociedade incluindo os aqui demandantes.

XI - Na sentença de reconhecimento e graduação de créditos reclamados na insolvência da P... , o crédito do Instituto da Segurança Social, IP, no montante de € 10.000, foi graduado em primeiro lugar, relativamente ao produto da venda da verba nº 33, porque garantido em penhor mercantil.

XII – Também pelo produto da venda da verba nº 15, moldadora marca MIDA, o crédito do Instituto da Segurança Social, IP, no montante de € 25.000, garantido por penhor, foi graduado em primeiro lugar, apenas cabendo, em segundo lugar, os créditos dos quatro trabalhadores, incluindo a ora arguida.

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IV - Motivação da decisão de facto

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente:

O arguido A... , após toda a produção de prova, quis prestar esclarecimentos; confirmou que se apercebeu da situação económica difícil da empresa, até porque desde meados de 2011 que deixou de receber salário da empresa, sendo que a arguida, sua esposa, desde Junho/Julho de 2011 que também deixou de auferir qualquer salário; também fez um empréstimo de € 80.000, que injetou na empresa, dando como garantia dois terrenos da sogra ( Q... ); claro que tinha conhecimento de dívidas da empresa, sendo que também devia à Segurança Social (aliás, o empréstimo foi para esse pagamento); já em relação ao cheque da venda da orladora, diz que não o colocou nas contas da empresa, mas na conta da sogra (resulta portanto destas declarações e do teor dos documentos juntos aos autos da conta bancária, que o cheque foi depositado na conta da sogra e mãe dos arguidos, tendo-se procedido a tal alteração dos factos provados, permitido porque se trata de facto trazido pelo próprio arguido), porque a empresa tinha a conta a descoberto, ficando logo cativo aquele montante, e precisava do dinheiro para gastos próprios. Já em relação à venda da máquina à sogra refere que o fez porque desta forma podia continuar a trabalhar, o que também não é plausível, face ao relatório social junto aos autos, que esclarece que o arguido já não se dedica a este tipo de trabalhos. Por outro lado, refere que a venda dos bens da empresa resultaram de um mau aconselhamento jurídico – ora, tal não faz sentido, porque o arguido, se é certo que pode desconhecer o direito, não podia desconhecer que a empresa tinha dívidas, nomeadamente, com os seus trabalhadores, e se a empresa não tinha liquidez para efetuar os pagamentos, apenas restaria o património da empresa para solver a tais dívidas. Como tal, não podia desconhecer que era do património da empresa que os credores se podiam fazer valer para cobrar os seus créditos.

A arguida B... não prestou declarações.

O administrador de insolvência F... prestou um depoimento vago, pouco preciso, digamos até leviano sobre estes factos, face à gravidade dos mesmos e às funções que exerce enquanto administrador de insolvência; referiu que não teve qualquer contacto com os arguidos, porque são os seus funcionários que o fazem, mas referindo que os arguidos sempre foram colaborantes; relativamente aos bens que foram vendidos, falou com o contabilista da empresa, e foram resolvidos todos os contratos de compra e venda, por acordo das partes, e apreendidos os bens para a massa insolvente, tendo como fundamento a venda a familiares diretos dos sócios da insolvente, revertendo todos os bens para a massa insolvente; esquisito foi ter dito que este processo decorreu de forma absolutamente linear, mas não só – referiu que a colaboração foi total por parte dos sócios, tendo concluído que foi um ato negligente de mau aconselhamento, porque quando teve reunião com a atual advogada o problema foi logo resolvido – claro que nesse momento os arguidos já não podiam dizer o contrário – sabiam bem que tinham vendido os bens aos seus familiares e o motivo pelo qual o fizeram: o património da empresa passar para os familiares a fim de não pagarem as dívidas que tinham, nomeadamente, aos trabalhadores, sendo o único objetivo ocultar património da sociedade. Se existiu algum mau aconselhamento jurídico, daí se pode dizer apenas e tão só que talvez pudesse existir outro arguido neste processo.

Quanto ao elemento subjetivo do tipo de crime, tal resultou não só das declarações do arguido, mas de todo o circunstancialismo destes factos, pois os arguidos bem sabiam da difícil situação económica da empresa e da falta de pagamento de salários e demais prestações aos trabalhadores, resultando da experiência comum que a dissipação do património de uma empresa em situação económica difícil não é permitida.

A perita O... , especialista na Unidade de Perícia Financeira e Contabilística da Polícia Judiciária, que elaborou relatório pericial junto aos autos; depôs de forma clara, explicando que da análise que efetuou à contabilidade da empresa as vendas em causa não geraram qualquer entrada de dinheiro para a empresa, ou seja, o imobilizado da empresa foi desviado do património desta e salvaguardado no património de familiares próximos dos arguidos. Referiu também que a empresa se encontrava em situação de falência técnica desde 2011, pois o ativo já não era suficiente para cumprir os compromissos.

A testemunha Inspetora da Polícia Judiciária I... , elaborou o relatório final do processo, junto aos autos; reproduz o seu teor, referindo que os bens foram vendidos a familiares próximos dos arguidos (sogra e filhos), além de outros, mas os valores da venda nunca chegaram a entrar na empresa. Relativamente à máquina vendida a Q... , mãe e sogra dos arguidos, apurou que esta não tinha qualquer atividade ligada à área da empresa, nem mesmo pela sua idade tal era possível.

A testemunha N... , comprador da máquina orladora à T... e Coroa, de Leiria; não teve contacto direto com os arguidos, mas sim com o Sr. T... , que já conhece há bastante tempo, tendo este lhe dito que sabia de uma máquina para compra; esteve em negociação cerca de um mês; emitiu um cheque em nome de uma empresa que entregou ao Sr. T... , e passado um mês de ter a máquina na sua posse foi contactado pelo Sr. T... que lhe disse para devolver a máquina, pois a empresa estava em insolvência, o que fez; o montante do cheque entregue foi descontado da sua conta. Referiu ainda que a máquina deveria valer um pouco mais do que o valor pela qual a comprou, tendo sido um bom negócio para si, não fosse a devolução.

A testemunha Q... , mãe da arguida e sogra do arguido, quis prestar declarações, mas revelaram-se totalmente parciais, não se dando qualquer credibilidade, porque contraditórias com a realidade, e quando confrontada com os factos, nomeadamente, sobre a conta bancária, acabou por dizer que foi a filha que a mandou ir ao banco assinar a papelada para abrir a conta, acabou por se sentir mal, desmaiando, tendo sido socorrida em audiência de julgamento pelos Bombeiros, após o que foi prescindido o seu depoimento pelos intervenientes processuais, atenta até a sua avançada idade. 

As testemunhas G... e H... , filhos dos arguidos, não prestaram declarações.

A testemunha U.... nada contribuiu para a descoberta da verdade, pois trabalhou na empresa há mais de 10 anos, e por pouco tempo. Atualmente nada sabe da empresa.

C... demandante civil e testemunha; foi funcionário da empresa de 1989 até Julho de 2013, altura em cessou o contrato de trabalho, por falta de pagamento de salários; depôs de forma convincente, esclarecendo que a empresa já tinha ficado sem trabalho um ano antes de sair de lá (ano de 2012), tendo começado a ficar por pagar os subsídios e depois os salários; chegou a falar com a arguida sobre este assunto, tendo obtido de resposta que a situação estava difícil se não conseguissem arranjar trabalho. O primeiro mês que não recebeu o salário foi em Maio de 2013, sabendo que os seus colegas também nada receberam. Em Julho de 2013 falou com o arguido para entregar a carta no Fundo de Garantia Salarial, tendo este dito que pagava o que devia até ao final de Agosto – como não houve qualquer pagamento avançaram com a insolvência. Relativamente aos bens e destino deles nada sabe em concreto. A testemunha referiu que recebeu do Fundo de Garantia cerca de € 8.000, mas do processo de insolvência não recebeu nada. Durante aquele período teve de pedir dinheiro emprestado ao pai para se sustentar, e ainda hoje tem dificuldade em falar neste assunto.

E... demandante civil e funcionário da empresa de 1994 a 2013; depôs de forma convincente, esclarecendo que o trabalho escasseou por completo, tendo estado cerca de 20 dias na fábrica sem o patrão ali aparecer; na rescisão do contrato o patrão disse que ia pagar os valores em atraso, mas não recebeu nada; refere ainda que no dia 9 de Novembro viu sair da fábrica a máquina orladora, sendo que também iam outras máquinas, mas que não reconheceu; tem salários e subsídios em dívida; durante aquele período de falta de pagamento, teve bastantes dificuldades financeiras, até porque estava a pagar a casa, vivendo com a sua mãe, das poupanças, e tendo chegado a pedir dinheiro emprestado a um cunhado. Continua desempregado a receber subsídio.

D... demandante civil e funcionário da empresa de 1997 até 2010; referiu que não havia muito trabalho na empresa e tinha ordenados em atraso; chegou a acordo no Tribunal de Trabalho em Coimbra, tendo ficado acordado o pagamento de prestações mensais de € 200, mas apenas recebeu três prestações. Na altura, tinha um filho, e teve de pedir dinheiro ao pai para suportar as despesas. Recebeu do Fundo cerca de € 4.000. Saiu em Outubro de 2010 desta firma, e iniciou trabalho em Novembro de 2010 noutra empresa.

A testemunha M... , pai do demandante civil D... , conhecendo os arguidos porque são vizinhos; refere que teve de emprestar duas vezes € 200 ao filho D... , para que ele pudesse pagar a prestação da casa ao banco. 

A testemunha R..., que trabalhou para os arguidos de 1991 a 2007, e amiga do D... ; referiu que a empresa sempre foi razoável nos pagamentos dos salários, mas que a dada altura, tanto o Lino, como o D... se queixavam da falta de pagamento dos salários, dizendo que iam sair da empresa. O D... dizia que não tinha dinheiro, andava desanimado e triste com a situação. A testemunha S... , que trabalhou na empresa de 2001 a 2008; depôs de forma sincera, referindo que nunca teve salários em atraso, apenas lhe ficaram a dever o subsídio de férias e Natal de 2008.

A testemunha de defesa V... , que conhece os arguidos porque foi Presidente da Câmara de Pombal durante 20 anos, e trabalhou numa empresa que tinha contactos com os arguidos, conhecendo-os desde sempre; depôs acerca da personalidade e modo de vida dos arguidos, em consonância aliás com os relatórios sociais juntos aos autos, nada mais acrescentando.

O Tribunal formou a sua convicção com base no relatório pericial de fls. 210-243 dos autos, bem como a prova documental dos autos, nomeadamente, fls. 1 e ss., 133 e ss., fls. 1 a 79 do apenso I, cópia de cheque de fls. 261-262, assentos de nascimento de fls. 444-446, documentos de fls. 282-297, 315-325, 331-354, 359-362, 408-411, documentação bancária de fls. 363, 368, 375-377, 404-406 e documentos de fls. 572-576.

Ajudou, ainda, a formar a convicção do Tribunal os documentos juntos aos autos, o Certificado de Registo Criminal de fls. 578579 e relatório social de fls. 584-585 e 588-591.

Quanto ao facto não provado no ponto I. dir-se-á apenas que não foi com a conduta descrita nestes autos que os arguidos causaram prejuízos aos trabalhadores, mas sim com o facto de a empresa atravessar uma situação económica difícil, o que impediu de pagar os salários. Aliás, os bens vendidos voltaram à massa da insolvência para pagamento aos credores, estando incluídos os trabalhadores.

Quanto aos mais por ausência de prova em relação aos mesmos, nomeadamente, em relação aos vencimentos mensais dos demandantes civis, nenhum recibo de vencimento foi junto. 

 

3. Apreciação

a.

Questão prévia

Vem o recurso interposto por ambos os arguidos e, simultaneamente, demandados quer da parte criminal, quer da parte que, debruçando-se sobre os pedidos de indemnização civil deduzidos por C... , E... e D... , os condenou no pagamento, solidário, a cada um destes, a título de danos não patrimoniais, na quantia de € 500,00 [quinhentos euros].

Ora, considerando o disposto no n.º 2 do artigo 400º do CPP, a alçada do tribunal [€ 5.000,00] – cf. artigo 44º da Lei de Organização do Sistema Judiciário - e, bem assim, o valor da sucumbência [inferior a metade da dita alçada], constata-se não se mostrarem reunidos os requisitos cumulativos, condição de admissão do recurso da parte da sentença relativa aos pedidos de indemnização civil, motivo pelo qual, nesta parte, é o mesmo rejeitado.

b.

(i)

Sustentam os recorrentes que, perante a prova documental e testemunhal produzida, conjugada com as regras da experiência comum, não poderiam ter sido dados como provados os factos vertidos nos pontos 11., 12., 13., 14., 15 (parcialmente), 20., 21. (parcialmente), 23. (parcialmente), 24. (parcialmente), 25., 28 (parcialmente), 29 (parcialmente), 31., 32., 33., 34., 35., 36., 37. e 57. e, pelo contrário, deveriam ter sido aditados e dados como provados os factos reportados na motivação de recurso, concretamente a páginas 38 e 39 [cf. pontos 3., 37. e 38. das conclusões].

Consequência da rejeição do recurso enquanto incide na parte da sentença concernente aos pedidos de indemnização civil, por versar matéria, aos mesmos, pertinente, alegada pelos demandantes no respetivo pedido, mostra-se insuscetível de sindicância [em qualquer das vertentes teoricamente possíveis], por parte deste tribunal, a matéria transposta no ponto 57. [factos provados], bem como qualquer dos factos [provados ou não provados] àqueles respeitantes.

Isto dito.

Tendo sido documentadas, através de gravação, as declarações prestadas oralmente na audiência de discussão e julgamento pode, efetivamente, este tribunal conhecer de facto [cf. artigos 363.º e 428.º do CPP], na vertente alargada, isto para além do que resulta do texto da decisão recorrida, por si, ou conjugada com as regras da experiência, posto que se mostrem cumpridos os ónus previstos no artigo 412.º do CPP.

E porque assim é, com vista a evitar, a cada passo, o retorno às traves mestras – que não temos dúvida – ditam os parâmetros e limites da sindicância/conhecimento da matéria de facto, impõe-se deixar expressas algumas considerações de âmbito geral.

Assim:

1. De harmonia com o n.º 3 do citado preceito, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar:

a. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b. As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, eventualmente

c. As provas que devem ser renovadas [destaques nossos], prescrevendo, por seu turno, o n.º 4 [artigo 412.º do CPP] que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação».

2. O nível de exigência do recurso em sede de matéria de facto, reforçado com a Reforma de 2007, tem de ser encarado à luz do entendimento, sistematicamente afirmado pelos tribunais superiores, de que os recursos constituem remédios jurídicos destinados a corrigir erros de julgamento, não configurando, como tal, o recurso da matéria de facto para a Relação um novo julgamento em que este tribunal aprecia toda a prova produzida na 1.ª instância como se o julgamento ali realizado não existisse – [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 15.12.2005, 09.03.2006, 04.01.2007, proferidos respetivamente nos procs. n.º 05P2951, n.º 06P461, n.º 4093/06 – 3.ª];

3. «A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida … que considera incorretamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença», sendo que «A exigência legal de especificação das “concretas provas” só se queda satisfeita com a indicação do conteúdo específico do meio de prova» - [cf. acórdão do TRC de 22.10.2008, proferido no proc. n.º 1121/03.3TACBR.C1].

Significa, pois, que « … o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso da matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (…), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (…) nos pontos incorretamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida» [cf. acórdão do STJ de 24.10.2002, proc. n.º 2124/2] – (destaque nosso).

Aspeto que não se confunde com a eventualidade de uma outra aproximação à prova, pois caso a mesma consinta duas ou mais decisões de facto e o julgador, fundamentadamente, optar por uma delas em detrimento das outras, a decisão que proferir sobre a matéria de facto é, em princípio, inatacável.

4. A não observância nem nas conclusões nem na correspondente motivação, em toda a sua extensão, dos ónus de impugnação inviabiliza o convite ao aperfeiçoamento.

Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça tem-se vindo a pronunciar no sentido de que o seu não cumprimento não justifica o convite em referência uma vez que só se pode corrigir o que está mal cumprido e não o que se tem por incumprido – [cf., entre outros, os acórdãos de 17.02.2005 (proc. n.º 05P058), 09.03.2006 (proc. n.º 06P461), 28.06.2006 (proc. n.º 06P1940), 04.10.2006 (proc. n.º 812/06 – 3.ª), 04.01.2007 (proc. n.º 4093/06 – 3.ª e de 10.01.2007 (proc. n.º 3518/06. – 3.ª)], solução que o Tribunal Constitucional já considerou não violar o direito ao recurso, como decidiu no acórdão n.º 259/02, de 18.06.2002 [DR II Série, de 13.12.2002], posição retomada no acórdão n.º 140/04 [DR II Série, de 17.04.2004].

Debrucemo-nos, pois, sobre a concreta impugnação.

Em sede de conclusões, tendo presente o acima exposto, é manifesto não haverem os recorrentes observado, na dimensão legalmente exigível, os ónus de impugnação, restando, assim, apreciar o que a esse nível nos trazem na correspondente motivação.

Iniciam pela transcrição, praticamente integral, dos itens apontados nas conclusões como erros de julgamento; prosseguem com a transcrição de partes significativas de declarações e depoimentos, tecendo, pelo caminho considerações sobre o que não foi, mas no seu entender deveria ter sido, a convicção do tribunal, sem que, contudo, alguma vez, procedam como acima descrito [e não nos estamos já a reportar à indicação das concretas passagens das gravações] no que respeita quer ao concreto ponto de facto que, em cada momento, consideram incorretamente julgado, quer – decorrência dessa falta de especificação - às concretas provas que, na relação com cada um daqueles, imporiam decisão diversa da recorrida.

Em suma, os recorrentes, socorrendo-se, no essencial, dos mesmos meios de prova que surgem a sustentar a decisão de facto – refletidos na fundamentação - esgotam-se a apresentar o resultado do seu próprio julgamento, contestando, por um lado, a credibilidade devotada pelo julgador a certos meios de prova [cf. o caso da testemunha I... , Inspetora da Polícia Judiciária, subscritora do relatório final] e, por outro lado, a manifestar incompreensão pelas reservas colocadas relativamente aos demais [cf. o caso da testemunha F... , administrador da insolvência]; a formular conclusões que colidem com a prova pericial [cuja força probatória - estamos em crer - não desconhecem]; a enveredar pela antecipação do direito; a incorrer em juízos de valor sobre os méritos [patrão] ou deméritos [ex. empregados], denotando, assim, um total distanciamento sobre a essência de um recurso em sede de matéria de facto.

E se assim é quanto aos factos descritos nos itens acima identificados, coisa diferente não se passa no que concerne à lista [desenvolvida] daqueles que pretendiam ver a engrossar os provados [cf. fls. 38/39 da motivação], apresentados em bloco, na sequência de uma análise conjunta da prova, refletindo a convicção dos próprios, sem a especificação, na relação com cada um dos mesmos, da concreta prova que imporia a respetiva transposição para o elenco dos “provados”.

É a propósito elucidativo o acórdão do STJ de 18.02.2016, proferido no proc. n.º 9/13.4PATVR.E1.S1, do qual se respiga: «Com a Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que deu atual redação ao preceito (…), o legislador propôs-se alcançar dois objetivos: «tornar mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida no recurso da decisão sobre a matéria de facto e de pôr cobro ao dever de transcrição dos registos gravados», e em matéria da especificação das provas concretas «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida», sendo «insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas pessoas», devendo o recorrente explicitar «por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o facto individualizado que considera incorretamente julgado (…)». E, convocando António Pereira Madeira [in Código de Processo Penal comentado, Almedina, Coimbra, 2014, anotação 3 ao artigo 412.º, pp. 1389-1390], prossegue o aresto: «No mesmo sentido, Pereira Madeira (…) afirma que estando em causa a matéria de facto, «o recorrente tem sobre si o ónus de: (…) concretizar (não bastando uma alusão genérica) os pontos de facto tidos por mal julgados; (…) indicar as provas concretas que em seu entender impõem julgamento diverso daquele também concreto ponto de facto (…)», concluindo a respeito do caso concreto: «No entanto, não se desonerou [reportando-se ao recorrente] da exigência implicada na norma da especificação das concretas provas que reclamavam decisão diversa, em relação a cada concreto ponto questionado, por, como se referiu antes, a alteração legislativa de 2007 ter imposto ao recorrente um ónus acrescido de relacionar o específico facto impugnado com a concreta prova que reclame outra solução», aduzindo: «O recorrente não cumpriu com essa imposição, por um lado, considerando os factos impugnados em bloco e, por outro lado, remetendo genericamente para os depoimentos das testemunhas (…) contrapondo em globo a valoração feita pelo tribunal, menosprezando todas as inferências retiradas pelo tribunal desses particulares depoimentos e dos demais meios de prova produzidos em audiência, nos termos em que a motivação da decisão melhor espelha».

De tudo o que se deixa exposto resulta inviável a sindicância, por parte deste tribunal, da matéria de facto [já no que respeita aos factos que pretendiam ver dados como não provados, já quanto aqueles outros, cujo aditamento aos provados almejavam] colocada em crise pelos recorrentes.

No que concerne aos pontos XI e XII dos factos tidos como não provados [cf. pontos 39 a 42 das conclusões], os quais, segundo os recorrentes, deveriam ter sido considerados provados, parece-nos evidente não deter a «nova RELAÇÃO DOS CRÉDITOS RECLAMADOS E RECONHECIDOS», apresentada nos autos de insolvência pelo respetivo administrador, força probatória para conduzir – muito menos impor - à respetiva inclusão no acervo factual provado e, assim, a dar por assente que «Na sentença de reconhecimento e graduação de créditos reclamados na insolvência da P... , o crédito do Instituto da Segurança Social, IP, no montante de € 10.000, foi graduado em primeiro lugar, relativamente ao produto da venda da verba n.º 33, porque garantida por penhor mercantil» e «Também pelo produto da venda da verba nº 15, moldadora marca MIDA, o crédito do Instituto da Segurança Social, IP, no montante de € 25.000, garantido por penhor, foi graduado em primeiro lugar, apenas cabendo, em segundo lugar, os créditos dos quatro trabalhadores, incluindo a ora arguida» - [destaques nossos].

(ii)

A violação do in dubio pro reo, princípio, que respeitando à matéria de facto, relevando na apreciação e valoração da prova, só pode ser afirmado quando seguindo o processo decisório evidenciado na motivação da convicção for de concluir que o tribunal tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, «… ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja de forma suficiente quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção … Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual fica afastado o princípio do in dubio pro reo, sendo que tal juízo factual não tem por fundamento uma inversão da prova, ou ónus da prova a cargo do arguido, mas resulta do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o art. 355.º n.º 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme art. 32.º n.º 1 da CRP» - [cf. acórdão do STJ de 14.10.2009, Proc. n.º 101/08.7PAABT.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.]

No caso em apreço, seguindo o processo decisório refletido na sentença não se deteta ter sido o julgador invadido pela dúvida no que respeita ao acervo factual, dúvida essa, que este tribunal de recurso, debruçando-se sobre a prova produzida e analisada em sede de audiência de discussão e julgamento, também não tem, cabendo aqui relembrar que «A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido» - [cf. Acórdão do STJ de 14.04.2011, Proc. n.º 117/08.3PEFUN.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.].

Dito de modo mais incisivo, da análise e ponderação crítica das provas, perante a matéria que vem posta em crise, ficou este tribunal seguro do juízo de convicção, o qual se corrobora, inexistindo margem para qualquer dúvida razoável e, consequentemente, para fazer intervir o princípio do in dubio pro reo que entronca na consagração constitucional do princípio da presunção de inocência [artigo 32.º, n.º 2 da CRP].

Na verdade, sem sofisma, dispensando mesmo o recurso aos registos de prova, cuja audição integral por parte deste tribunal apenas serviu para reforçar o bem fundado da fundamentação da convicção, estamos em condições de afirmar que muito dificilmente outro poderia ter sido o convencimento do julgador.

Ademais, à míngua de outra prova que no caso, contudo, não escasseou – designadamente de natureza pericial [esta de valor reforçado – cf. artigo 163.º do CPP] e documental – as declarações do arguido/recorrente são bem elucidativas já quanto ao conhecimento da situação de défice patrimonial – por via quer de um ativo manifestamente insuficiente, quer da impotência económica - em que se encontrava a empresa, impossibilitando-a de cumprir as suas obrigações, designadamente os salários devidos aos trabalhadores; já quanto à qualidade de credores que tanto ele como a sua mulher (arguida) e sogra (testemunha Q... ) detinham perante a sociedade; já quanto às vendas realizadas e aos encontros de conta que, relacionados com as primeiras, vieram a ter lugar, pese embora se tenha esforçado no sentido de imputar a responsabilidade pelos atos a um mau aconselhamento jurídico.

Ora, ainda que não nos repugne admitir que o dito aconselhamento haja acontecido, não pode daí concluir-se que o recorrente não visasse o propósito que lhe é assacado até porque, pela própria natureza das coisas, com recurso às regras da experiência comum e às inferências que os fatos certos, sem margem para dúvida, no caso, mais do que consentir, ditam, o aconselhamento só se pode ter traduzido no delinear de um caminho com vista a garantir o que constituía a preocupação apresentada pelo(s) que o procuraram, ou seja, no que ora releva, a satisfação das dívidas em questão.

Neste domínio a prova pericial e documental falam por si!

Em suma, a sentença transparece sustentada, refletindo a dimensão correta do princípio da livre convicção, procedendo a uma interpretação ajustada das regras da experiência comum, em harmonia, portanto, com o artigo 127.º do CPP, sem que se detete violação do princípio em referência, compatível com os juízos de inferência, fundados em presunções naturais.

É, pois, de considerar, na ausência de vício que o impeça, definitivamente fixado, tal como decorre da decisão em crise, o acervo factual.

c.

Questionam igualmente os recorrentes a sua condenação pela prática, em coautoria material, de um crime agravado de favorecimento de credores, p. e p. pelos artigos 229º, n.º 1 e 229º - A do C. Penal, colocando em crise a verificação dos respetivos elementos típicos.

Vejamos.

Nos termos do artigo 229.º, sob a epígrafe Favorecimento de credores

 1 – O devedor que, conhecendo a sua situação de insolvência ou prevendo a sua iminência e com a intenção de favorecer certos credores em prejuízo de outros, solver dívidas ainda não vencidas ou as solver de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais, ou der garantias para as suas dívidas a que não era obrigado, é punido com pena (…), se vier a ser reconhecida judicialmente a insolvência.

2- É correspondentemente aplicável o disposto no nº 3 do artigo 227º.

No que à agravação concerne dispõe o artigo 229º - A:

As penas previstas (…) no nº 1 do artigo 229º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se, em consequência da prática de qualquer dos factos ali descritos, resultarem frustrados créditos de natureza laboral, em sede de processo executivo ou processo especial de insolvência.

Trata-se de um crime, em que o bem jurídico protegido é o património dos credores não favorecidos, formal ou de mera atividade, cuja consumação coincide com a prática de qualquer das condutas típicas, residindo «a ofensa aos patrimónios dos credores (…), exclusivamente, no perigo (abstrato) de não ressarcimento integral das pretensões inscritas nos direitos de crédito que os credores podem fazer valer de acordo com o princípio da par condicio creditorum (…), independentemente de se vir a verificar, ou não, o efetivo favorecimento de um credor, ou o prejuízo dos restantes – [vide, Pedro Caeiro, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 448 e ss], entendimento, este, relativamente ao qual não se detetam divergências doutrinais [cf. v.g. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, em anotação ao artigo 229º; Victor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, in “Código Penal Anotado e Comentado”, Quid Juris, 2008, pág. 613 e ss.].

Será, assim, no quadro de uma situação de insolvência atual ou iminente - impeditiva do cumprimento das obrigações vencidas - a potencialidade que os atos de disposição patrimonial em benefício de alguns credores representa quanto à impossibilidade de satisfação dos créditos de outros que se visa reprimir.

No caso em apreço vem a condenação sustentada nos pontos 19., 20. e 21. dos factos provados relativos ao pagamento a Q... do crédito de que era titular pelos empréstimos por si efetuados à sociedade “ P... , Lda.”, 22., 23., 24., 25. e 26. referentes à satisfação, através de encontro de contas, precedida da venda de veículos pela sociedade aos filhos dos arguidos, do crédito de que era beneficiária, pelas entregas realizadas à sociedade, da qual era sócia, a arguida B... e 27., 28., 29. e 30. correspondentes ao pagamento, através de encontro de contas, precedida da venda de veículos pela sociedade aos filhos dos arguidos, do crédito, concernente a vencimentos/remunerações dos órgãos sociais, de que era titular o arguido A... , sócio gerente da “ P... ”.

Retornemos, então, o direito para, grosso modo, assentarmos no seguinte:

Quando numa situação atual de insolvência [traduzindo-se esta num défice patrimonial efetivo, na impossibilidade de cumprir porque o ativo é manifestamente insuficiente] ou na sua iminência [decorrente das denominadas prestações incongruentes potenciadoras do perigo de insolvência], sendo já tal estado do seu conhecimento, o devedor dolosamente com a intenção de favorecer certos credores no ressarcimento do seu crédito, intenção, essa, «assessorada por uma subintenção reflexa ou derivada de prejudicar os outros» - [cf. Victor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, ob. cit., pág. 613 e ss.]:

(i) Solve dívidas ainda não vencidas;

(ii) Solve dívidas de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais, ou

(iii) Presta garantias para as suas dívidas a que não era obrigado, incorre na prática do sobredito crime, pelo qual, verificando-se a condição objetiva de punibilidade, traduzida no reconhecimento judicial da insolvência, será responsabilizado.

Da identificação supra levada a efeito dos factos que conduziram à condenação, podemos, desde já, excluir a última das assinaladas condutas - não está em causa a prestação de garantias - restando, assim, as duas primeiras.

Não tem merecido unanimidade na doutrina o saber se o tipo legal em questão abarca as dívidas vencidas.

No sentido da respetiva exclusão pronuncia-se José António Barreiros quando, a propósito das ações típicas, refere: «Note-se que o solver dívidas vencidas com o propósito de prejudicar alguns dos credores é conduta não incriminada, como ilustra a discussão em sede de Comissão Revisora (Boletim do Ministério da Justiça, nº 287, página 70)» - [cf. “Crimes Contra o Património”, 1996, ULL, pág. 231].

Perfilhando semelhante entendimento, escreve Miguez Garcia «O solver dívidas vencidas com o propósito de prejudicar alguns dos credores é conduta não incriminada […]. Contra, se o pagamento de dívidas vencidas se fizer de modo diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais, PINTO DE ALBUQUERQUE, 2010, pág. 712, mas sem razão por assim se saltarem os padrões meramente intencionais» - [cf. Código Penal – Parte Geral e Especial, Almedina, 2014, pág. 963].

Já Maia Gonçalves, identificando a questão, discorre nos seguintes termos: «(…) há, porém, a assinalar que se as dívidas já vencidas forem solvidas de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais, ou se o devedor der garantias para as suas dívidas já vencidas a que não era obrigado, a solução não é inteiramente líquida. Os Drs. J... e L... fizeram consignar na ata da sessão da Comissão Revisora ser seu entendimento que a solvência de dívidas já vencidas, quando feita para prejudicar outros credores, deve ser punida no âmbito deste artigo – BMJ, 287, pág. 70. Este entendimento, sem quaisquer restrições, afigura-se-nos não ter cabimento no texto legal e foi mesmo rejeitado pela Comissão Revisora; já porém é viável, dentro de uma interpretação declarativa lata, estender o texto ao devedor que solve dívidas já vencidas, para prejudicar outros credores, fazendo-o de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais, bem como ao que dá garantias para as suas dívidas já vencidas, que não era obrigado a dar.

Impressiva, ainda, a referência feita pelo Autor ao que consignado se mostra a páginas 331 do Código Penal, Notas de Trabalho, pelos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, sustentando a propósito do então artigo 327º abranger este a incriminação dos atos de pagamento de quaisquer dívidas vencidas, com o argumento de que se assim não fosse sempre a referência «as solver de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais», perante a descrição da primeira ação típica «solver dívidas vencidas», redundaria em inutilidade – [cf. Código Penal Português, 17.ª edição].

Não sem alguma reserva, afigura-se-nos, contudo, mais defensável a posição de Pedro Caeiro quando, com referência à ação típica traduzida em «solver dívidas de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais» aduz: «Atendendo a que a espécie do meio através do qual se cumpre a dívida é absolutamente indiferente para o preenchimento da incriminação anterior, poderia parecer que esta norma é redundante. Contudo, ela pode ganhar um sentido útil e fundamentar uma proibição autónoma se se entender que aqui se inclui o pagamento de dívidas vencidas “através da entrega de objeto diferente do devido e de maior valor que este” (LOPES DO REGO 125; no mesmo sentido CARLOS ALEGRE 148). A exigência de que o valor da prestação seja superior ao devido significa que a punição assenta não no meio escolhido – que é, como se disse, irrelevante -, mas sim na diminuição do património líquido do devedor que essa disposição patrimonial acarreta» - [cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 448 e ss.].

Linha de orientação de que não se afastam Victor Sá Pereira e Alexandre Lafayette quando, discernindo sobre a concreta modalidade da conduta típica em questão [solver dívidas de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais], adiantam: «Aqui cabem os casos em que se pagam dívidas vencidas «através de objeto diferente do devido e de maior valor que este (…) o que fica em jogo é, a todas as luzes, a diminuição patrimonial provocada pelo excesso» - [ob. cit. pág. 613 e ss.]; o mesmo decorrendo das palavras de Paulo Pinto de Albuquerque ao assim exemplificar a dita ação típica «O pagamento das dívidas vencidas de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais, como por exemplo, através de objeto diferente do devido e de maior valor do que o devido (…) é o caso de uma venda de prédio por preço inferior ao seu valor real (…)» - [cf. ob. cit.].

Debruçando-nos sobre o caso concreto, não nos merecendo reserva a situação de insolvência, decorrente do efetivo défice patrimonial existente, em que a sociedade se encontrava – o que era do conhecimento de ambos os arguidos - já aquando da satisfação dos créditos que sobre a mesma detinham Q... , B... e A... , ou últimos respetivamente sócia e sócio gerente da “ P... , Lda.”, com referência às condutas típicas passíveis de integrar o crime há que excluir a que se traduz no solver dívidas não vencidas. Com efeito, pese embora, em sede de direito, a sentença recorrida tenha considerado nessa situação [não vencida] a dívida resultante do crédito de que era titular Q... , sendo, embora, por recurso às normas civis – atendendo ao respetivo regime à data em que o estado de insolvência se torna conhecido dos devedores - que se há-de aferir da exigibilidade do cumprimento das obrigações, o certo é que não foi levada ao acervo factual provado matéria que permita concluir nesse sentido, ausência de concretização igualmente detetada na acusação, comprometendo, assim [dado tratar-se de elemento objetivo indispensável à dita configuração típica], em definitivo, a subsunção da conduta dos arguidos à modalidade da ação em questão.

Fica-nos, pois, quanto à satisfação da divida à dita credora, a segunda ação típica, qual seja: solver dívidas de maneira diferente do pagamento em dinheiro ou valores usuais, o mesmo sucedendo quanto aos demais credores – como aliás foi encarado na sentença -, o que transparecendo líquido no que respeita ao pagamento das remunerações salarias em atraso devidas ao arguido, gerente e simultaneamente trabalhador da sociedade insolvente, também não pode deixar de assim ser no que concerne ao pagamento relativo à dívida correspondente às «entregas» realizadas pela arguida [sócia e simultaneamente trabalhadora, então com salários em atraso na empresa] à sociedade, as quais, pese embora contabilisticamente registadas a débito da conta “outros credores”, pelo menos em parte continham a menção “para pagamento de salários”. Seja como for, uma vez mais, os factos que vem dados por assentes, por ausência da exigível concretização [défice que já vem da acusação] – sendo que se deteta ao longo de ambas as peças uma considerável imprecisão técnica na qualificação da fonte do crédito – sempre impediriam a sua integração na modalidade do pagamento de dívidas não vencidas.

Postas as coisas nestes termos, isto é perspetivando a conduta dos arguidos no confronto com a segunda modalidade da ação típica, afigura-se-nos que a ausência, quer nos factos provados, quer na contestação, dos valores, por um lado da topia, por outro lado dos veículos, não permite - à luz da interpretação que, mesmo admitindo a inclusão no tipo de dívidas não vencidas, tem como pressuposto que o objeto diferente do devido, através do qual se satisfaz a obrigação, seja de maior valor do que aquele - a subsunção das condutas em questão no crime de favorecimento de credores. Ou seja, não vindo concretizado o valor dos bens em causa [topia e/ou veículos], não é possível afirmar haverem sido as dívidas satisfeitas através de prestações diferentes do dinheiro e de valor superior ao devido e, assim, que a diminuição do património líquido da insolvente tenha tido origem nessa diferença.

Em suma por, em nosso entender, não se mostrarem reunidos todos os elementos típicos do específico crime pelo qual os arguidos/recorrentes foram acusados, impõe-se proceder à respetiva absolvição e, nessa medida revogar a sentença recorrida.

d.

Porque o recurso interposto pelo arguido aproveita ao responsável civil, existindo o dever de retirar da procedência do mesmo as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida [cf. artigos 402.º e 403º do CPP], fundando-se o pedido de indemnização civil enxertado na ação penal na prática de um crime [artigo 71.º do CPP], não se tendo logrado apurar os elementos [desde logo objetivos] do ilícito tipo em referência, em crise ficam os pressupostos da responsabilidade civil e, assim, os da obrigação de indemnizar, razão pela qual devem igualmente os demandados ser absolvidos dos pedidos contra eles formulados, circunstância que conduz, também nesta parte, à revogação da sentença.

III. Dispositivo

a. Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar procedente o recurso e em consequência:

b. Absolver os arguidos B... e A... do crime agravado de favorecimento de credores, p. e p. pelos artigos 229º, nº 1 e 229º - A do Código Penal;

c. Julgar improcedentes os pedidos de indemnização civil, deduzidos pelos demandantes C... , D... e E... , e dos mesmos absolver os demandados B... e A... ;

d. Revogar em correspondência a decisão recorrida.

Sem custas na parte criminal

Custas cíveis a cargo dos demandantes [artigos 523.º do CPP e 527.º do CPC].

Coimbra, 7 de Junho de 2017

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)