Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3156/13.9YLPRT-A. C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
DESOCUPAÇÃO
RECURSO
EFEITO DEVOLUTIVO
CAUÇÃO
Data do Acordão: 10/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 647 Nº4 CPC, LEI Nº 6/2006 DE 27/2, LEI Nº 31/2012 DE 14/8
Sumário: 1.-No procedimento especial de despejo, o recurso de apelação da decisão judicial de desocupação do locado, nos termos do art. 15 – Q da Lei nº 6/06 de 27 de Fevereiro, tem sempre efeito meramente devolutivo.

2.-Não deve ser admitida liminarmente a prestação de caução que visa modificar tal efeito.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                        I
            A requerente A (…), LDA, nos autos principais, veio intentar o presente incidente de prestação de caução destinado a conferir efeito suspensivo ao recurso de apelação apresentado no processo principal.
Processo esse onde foi proferida sentença que declarou resolvido o contrato de subarrendamento e ordenou a restituição à Autora do imóvel sublocado, livre e devoluto de pessoas e bens.
A Ré mantém no locado a sua unidade industrial.
Foi então proferido o seguinte despacho:
«(…) Ora, o processo principal trata-se de um procedimento especial de despejo regulado pelos artigos 15.º e segs. da Lei n.º 6/2006 de 27/02 na redação dada pela Lei n.º 31/2012 de 14/08. Nesse processo foi proferida em 03/06/2014 sentença que condenou a ré a restituir à autora o imóvel que constitui o locado, livre e devoluto de pessoas e bens. De acordo com o disposto no artigo 15.º-Q do referido diploma legal, o recurso de apelação da decisão judicial para desocupação do locado tem sempre efeito meramente devolutivo.
Trata-se de norma especial que afasta a aplicação da norma prevista no n.º 4 do artigo 647.º do CPC que prevê a atribuição de efeito suspensivo ao recurso mediante a prestação de caução.
Deste modo, no presente caso, por força da aplicação do disposto no artigo 15.º-Q, independentemente de ser prestada caução, o recurso de apelação da sentença, interposto no processo principal, tem sempre efeito meramente devolutivo, pelo que a finalidade pretendida pela requerente, com a prestação de caução, é expressamente vedada por lei.
Assim, carecendo de utilidade a prestação de caução, não se justifica a existência do presente incidente, pelo que importa indeferi-lo liminarmente.
Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas, indefiro liminarmente o requerimento inicial de prestação de caução.
Custas do incidente pela ré, requerente do presente incidente, (artº 527º, nºs 1 e 2 do C.P.C.)., fixando-se a taxa de justiça em 1 UC».
Inconformado com tal decisão veio a Ré recorrer, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:
a) Acontece porém, que o novo Código de Processo Civil, com a redação que lhe foi conferida pela Lei 41/2013, entrou em vigor a 01/09/2013, sendo certo que o regime consagrado no artigo 15º - Q do RAU, não colide com a regra geral consagrada no artigo 647º n.º 4 do novo C.P.C.
b) Com efeito, e na esteira de António Santos Abrantes Geraldes “ o aditamento dos n.ºs 3 e 4 do referido artigo, em contraponto com o código anterior, visa conferir, de forma inequívoca, utilidade à caução que tenha sido prestada pelo recorrente para obter o efeito suspensivo, notando-se que a sua consagração expressa evita qualquer dúvida que pudesse suscitar-se, determinando que a caução seja aplicada ao objetivo que foi especificamente prosseguido.”
c) Toda a tramitação do incidente de prestação de caução, como condução de atribuição de efeitos suspensivo à decisão ou como alternativa à execução provisória da decisão, está orientada no sentido de, com a menor perturbação da marcha processual, garantir que, verificadas as condições, seja proferida ou efetivada com celeridade a decisão no incidente de prestação de caução. Tal objetivo é, aliás, reforçado pela sua qualificação como urgente do incidente de prestação de caução, nos termos do artigo 915º n.º 2 do C.P.C.
d) Apesar do artigo 15º- Q do RAU consagrar o efeito devolutivo do recurso de apelação, tal preceito não obsta a que o recorrente tenha a possibilidade, mediante prestação de caução, alcance o efeito suspensivo, desde que cumpridas os condicionalismos legais plasmados nos artigos 906º ss e 650º ss do C.P.C.
e) Pois no seguimento das alterações legislativas operadas ao nível dos recursos no C.P.C, o efeito suspensivo foi gradualmente limitado para situações excecionais, sendo a regra do efeito devolutivo da apelação, com a salvaguarda da última orientação seguida no sentido de permitir ao recorrente a possibilidade de, em todos os casos, prestar caução para obstar a esse efeito.
f) Mais diga-se, que no caso concreto (em que se encontram pagas as rendas dos dois meses em causa nos autos) e inclusive, efetuados dois depósitos a título de caução do acréscimo de 50%, um no prazo da contestação e o outro posteriormente, a Recorrente dificilmente iria criar uma situação danosa ao Recorrido, já que com a caução a prestar, o efeito útil do recebimento das rendas encontra-se sempre assegurado.
g) O efeito meramente devolutivo retira toda a utilidade do recurso, porquanto, a partir do momento em que se verifique o despejo, a Ré terá, necessariamente de proceder ao arrendamento ou aquisição de novas instalações com todos os equipamentos e logística do seu funcionamento, sendo certo que, após a sua efetivação, é totalmente inviável o regresso ao locado na eventualidade de procedência do recurso.
h) A deslocação dos serviços administrativos, secretárias, computadores, telefones, fax, internet, GPS, e outras telecomunicações, bem como da mercadoria armazenada, 8 funcionários, 4 viaturas pesadas e uma ligeira, reboques de viaturas pesadas e outros, revestem um caráter definitivo, pelo que, a ocorrer o despejo, não irão regressar ao locado.
i) O prejuízo decorrente do despejo imediato é, sem dúvida, elevado, causando a irreversibilidade de reocupação do locado, uma vez que a ré, perante a situação de despejo imediato, terá de firmar novos contratos em pavilhão similar para continuar a exercer a sua atividade industrial e manter os postos de trabalho, contratos esses que serão, naturalmente, de cinco anos.
j) Em caso de procedência do recurso, a consequência direta é a manutenção do subarrendamento e, naturalmente, da empresa a laborar no locado em que atualmente se encontra, desde 14.10.2010.
k) Pelo que nenhum prejuízo advém ao Recorrido pela atribuição do efeito suspensivo à apelação interposta.
l) Há por isso Erro na Interpretação e aplicação do Direito.
m) Na sequência do nosso modesto raciocínio, consideramos que o Senhor Juiz a quo violou os artigos 647º n.º 4, 650º e 906º do C.P.C, entre outros.
A final requer que se julgue procedente o recurso, sendo proferido acórdão que revogue a decisão proferida, julgando procedente a admissão do incidente de prestação de caução, nos termos requeridos com atribuição do efeito suspensivo à apelação.
Não foram apresentadas contra-alegações.
A factualidade a considerar consta do relatório supra.

                                                                        II
É a seguinte a questão do recurso:
- Se, não obstante o artigo 15º- Q do RAU (Lei n.º 6/2006, de 27/02) consagrar sempre o efeito devolutivo do recurso de apelação da decisão judicial para desocupação do locado, pode, ainda assim, ser alcançado o efeito suspensivo do mesmo, se o recorrente prestar caução, por aplicação do art. 647 nº 4 do CPC.

Dispõe o artigo 15º do RAU que:
“Procedimento especial de despejo:
1 - O procedimento especial de despejo é um meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes. (…)”.
Dispondo, por sua vez o artigo 15.º-Q que:
“Recurso da decisão judicial para desocupação do locado
Independentemente do valor da causa e da sucumbência, da decisão judicial para desocupação do locado cabe sempre recurso de apelação, nos termos do Código de Processo Civil, o qual tem sempre efeito meramente devolutivo”.
A apelante pretende que, não obstante o disposto no art. 15-Q do RAU (Lei n.º 6/2006, de 27/02), é possível obter o efeito suspensivo do recurso da decisão judicial para desocupação do locado, desde que prestada caução, com fundamento em que o regime especial consagrado no artigo 15º - Q do RAU, não colide com a regra geral consagrada no artigo 647º n.º 4 do novo C.P.C.
Dispõe este nº 4 que: “Fora dos casos previstos no número anterior, o recorrente pode requerer, ao interpor o recurso, que a apelação tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação de caução, no prazo fixado pelo tribunal”.
Mas tal colisão existe e, assenta inequivocamente, na utilização da expressão “sempre” consignada no art. 15-Q do RAU.
Com a utilização de tal expressão a Lei n.º 6/2006, de 27/02 quis sem qualquer dúvida, impedir o efeito suspensivo, com ou sem caução.
Quando o Código de Processo Civil, com a redação que lhe foi conferida pela Lei 41/2013, entrou em vigor a 01/09/2013, estava já em vigor a lei especial do artigo 15º - Q do RAU, que havia entrado em vigor em Junho de 2006.
A lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador (art. 7º do C.Civ).
Não tendo o legislador na lei geral afirmado essa “intenção inequívoca de revogação”, teremos de concluir, sob pena de legitimar uma total inversão das regras de vigência das leis, que a apelação de decisão judicial de desocupação do locado, nos termos do art. 15 – Q da Lei nº 6/06 de 27 de Fevereiro, tem sempre efeito meramente devolutivo.
Nenhuma censura merece, assim, a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a prestação de caução que visava obter um efeito não devolutivo do recurso.

Em suma:
-A apelação de decisão judicial de desocupação do locado, nos termos do art. 15 – Q da Lei nº 6/06 de 27 de Fevereiro, tem sempre efeito meramente devolutivo.
- Não deve assim ser admitida liminarmente a prestação de caução que visa modificar tal efeito.

                                                            III
Termos em que, acorda-se julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.


 Anabela Luna de Carvalho( Relatora)
 João Moreira do Carmo
 José Fonte Ramos