Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
86/22.7YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL DO ESTADO PORTUGUÊS
PRIVILÉGIO DA NACIONALIDADE
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 980.º, N.º 1, ALÍNEA F), E 983.º, N.º 2, AMBOS DO CPC.
Sumário: I – O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é, em regra, de revisão meramente formal, face ao que o Tribunal português competente para a revisão e confirmação deve verificar se o documento apresentado como sentença estrangeira revidenda satisfaz certos requisitos de forma, tal como elencados no art.º 980.º do C. P. Civil, não existindo, em princípio, um controlo de boa aplicação do direito pelo tribunal estrangeiro.

II – O art.º 980.º, al. f) do C. P. Civil exige que a sentença a rever «não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português».

III – A partilha de bens comuns do casal, feita em ação de divórcio, proferida por tribunal estrangeiro, na qual se atribui a um dos cônjuges (aqui Requerente), sem qualquer contrapartida (tornas) para o outro (o aqui Requerido), os bens imóveis comuns situados em Portugal, se é certo que viola a ordem pública interna nacional [na medida em que, por força do princípio da imutabilidade do regime de bens consagrado no art. 1714º do C.Civil, a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo os imóveis sitos em Portugal, sendo bens comuns, jamais poderiam ser atribuídos em propriedade exclusiva à Requerente, sem qualquer contrapartida económica (tornas) para o Requerido], também viola a “ordem pública internacional do Estado Português” [cf. art. 980º, al. f) do n.C.P.Civil] enquanto violação do direito de propriedade, constitucionalmente garantido (cf. art. 62º da CRP), por se traduzir numa espécie de expropriação particular, sem qualquer indemnização.

IV – Por outro lado, se existe a regra afirmada em primeiro lugar, também existe a exceção à mesma quando a sentença tenha sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, caso em que a impugnação também pode ser fundada na circunstância de que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos da lei portuguesa – é o designado “privilégio da nacionalidade”, constante do art. 983º, nº2, do n.C.P.Civil.

V – Assim, se, segundo o direito substantivo português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao Requerido [por força do já aludido princípio da imutabilidade do regime de bens], também por aí existe obstáculo ao reconhecimento, com fundamento no “privilégio da nacionalidade”. 

Decisão Texto Integral:                                                                       

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                   *

            1 - RELATÓRIO

AA, divorciada, titular do cartão de cidadão PRT n.º ..., válido até 31/01/2028 e NIF n.º ..., com morada em Portugal na Travessa ..., ..., ... ... intentou a presente ação com processo especial de revisão de sentença estrangeira contra BB, divorciado, residente na Rua ..., ..., ... ..., titular do NIF n.º ..., pretendendo ser revista  e confirmada, para produzir efeitos em território nacional:

A) a sentença proferida, a 31.03.2006, pelo Tribunal Superior do Distrito Judicial ..., Estado do ..., que decretou o divórcio entre ambos (dissolvendo o casamento que haviam contraído em 18.08.1973, na freguesia ..., concelho ...) na parte respeitante ao demais que constava no “Acordo” de divórcio, isto é, quanto aos acordos que constam em tal decisão proferida pelo Supremo Tribunal do Distrito Judicial ..., Estado de ..., com o processo n.º ..., e que não foram objeto da revisão de sentença estrangeira que anteriormente correu termos neste tribunal da Relação com o n.º 198/16.... da secção cível, a qual transitou em julgado em 28/03/2017.

Mais concretamente, a Requerente vem agora pedir a revisão do seguinte segmento do acordo alcançado aquando do divórcio:

«(…)

- 6. ARTIGO VI- BENS IMÓVEIS

(…)

6.3. As partes reconhecem que os imóveis situados em Portugal pertencem actualmente a ambas partes (“Propriedades de Portugal). O cônjuge deve abdicar de todos os seus direitos, títulos e interesses sobre as propriedades de Portugal a favor da esposa. Esta, por sua vez, fica totalmente responsável pelas despesas, impostos, etc., e deve manter o cônjuge isento de qualquer responsabilidade quanto ás propriedades.

E;

12. ARTIGO XII-DISPOSIÇÕES DIVERSAS

12.1 As disposições deste acordo e o seu efeito prático e legal foram devidamente explicados a cada uma das partes pelos seus advogados, e cada uma delas reconhece que este acordo é justo e equitativo, que é lavrado de livre vontade, e que não é resultado de um abuso de influência, ou de pressão exercida por uma parte sobre a outra parte, ou por qualquer pessoa.

12.2 Todos os pactos, promessas, estipulações, acordos e disposições aqui representadas são aplicáveis vinculativos e abrangem obrigatoriamente os herdeiros, executores, administradores, representantes pessoais, designados pelo cônjuge e pela sua esposa deste processo, sejam bem intencionados ou não.

Tudo conforme páginas 9; 10; 12; 23; 24 e 26 do DOC. ... já junto e que se dá aqui por legalmente reproduzido.»

                                                           ¨¨

B) a sentença proferida pelo mesmo tribunal (Supremo Tribunal do Distrito Judicial ..., Estado de ...) no âmbito da Medida por desobediência proferida no mesmo processo (processo: ...), em 14/01/2019, com o n.º 419130, na qual foi determinado que: « (…) O Requerido é considerado culpado por desobediência, o Requerido deve cumprir com as ordens do tribunal, conforme definidas na sentença, no que diz respeito aos bens de Portugal. O Requerido deve apresentar a escritura de renúncia ao Advogado no prazo de uma semana após a audiência de hoje. (…)», sustentando para tanto especificadamente o seguinte:

 «Já na pendência do processo de inventário (partilha por divórcio), que está a decorrer no Tribunal judicial da Comarca ...- Juízo de família e Menores ( Já mencionado em 7º e 8º da presente), a ora requerente- AA, moveu em 17/08/2018, nos EUA, junto do processo principal de divórcio e respetivos acordos, no Supremo Tribunal do Distrito Judicial ..., Estado de ..., (processo n.º ... que correu termos no e já junto sob DOC.n.º ... e ...), de uma ação de medida por desobediência.

Em tal ação (Medida Por desobediência), em sede de histórico factual e processual pediu a requerente CC (conforme páginas 11 a 17 e 31 a 38 inclusive do DOC. N.º ... já junto), em suma o que infra se transcreve:

“A requerente, CC, solicita respeitosamente a este tribunal que condene o requerido, BB, por desobediência pela sua violação intencional da decisão deste tribunal, proferida a 9 de maio de 2006, nos termos da qual deveria renunciar, a favor da esposa, a todos os seus direitos, títulos e interesses referentes aos bens de Portugal, de acordo com o parágrafo 6.3 do Acordo de Separação. O Requerido, BB, não cumpriu a referida ordem no sentido da transferência ser efetuada nos termos da lei em Portugal.

POR ESTE MOTIVO, a Requerente, CC, solicita a este Tribunal que:

1. Condene o Requerido, BB, por desobediência;

2. Condene o Requerido a pagar as custas judiciais referentes a este pedido de medida;

3. Condene o Requerido, BB a cumprir, de acordo com a lei em Portugal, a renunciar a favor de CC, das seguintes propriedades em Portugal:

(…)”

11º

Em tal ação de medida por desobediência (processo: ...), foi proferida Decisão em 14/01/2019, com o n.º 419130, na qual o Supremo Tribunal do Distrito Judicial ..., Estado de ..., decidiu o seguinte:

“ (…)

DECISÃO

DECISÃO REFERENTE:

17/08/2018 115.00 PEDIDO DE MEDIDA DE DESOBEDIÊNCIA

Todos os Advogados Presentes. Todas as Partes Presentes. Intérprete Presente e assistindo ambas as Partes.

Na sequência do supramencionado, ouvido pelo Tribunal, é proferida a seguinte

DECISÃO:

O Requerido é considerado culpado por desobediência.

O Requerido deve cumprir com as ordens do tribunal, conforme definidas na sentença, no que diz respeito aos bens de Portugal. O Requerido deve apresentar a escritura de renúncia ao Advogado no prazo de uma semana após a audiência de hoje.

419130

Juiz: DD

processado por: EE, Escrivã “

Tudo conforme páginas 21 e 41 do DOC. N.º ... já junto.»

                                                           *

O Requerido, após frustradas várias tentativas da sua citação, foi pessoalmente citado neste Tribunal da Relação de Coimbra, em cuja certidão ficou consignado «(…) actualmente a residir temporariamente em Portugal na Rua ..., ..., ... ... (…)».

 E, na oportuna sequência, o mesmo deduziu Oposição sustentando, em síntese, em primeiro lugar, que na medida em que o próprio foi dado como residente pela Requerente em localidade pertencente à comarca ..., era o Tribunal da Relação ... o competente para o presente litígio, «pelo que deve ser declarado incompetente o Tribunal da Relação de Coimbra»; por outro lado, argumentou que a decisão não podia ser confirmada por duas ordens de razão, a saber:

«1º. Porque existe já sentença proferida pelo Tribunal Português que transitou em julgado, que não considerou o acordo celebrado entre as partes nos Estados Unidos e julgou competente o Tribunal Português para efectuar o Inventário.

2º. Porque o que se pretende ver reconhecido conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios do sistema jurídico português.»

                                                           *

Em Resposta, a Requerente, para além de pugnar pela improcedência da exceção de incompetência territorial deduzida, terminou requerendo que «(…) as sentenças em causa sejam revistas e confirmadas nos termos requeridos em sede da p.i.».

                                                           *

Instruídos os autos, foi dado cumprimento ao disposto no art. 982° do n.C.P.Civil, no âmbito do que Requerente e M°P° produziram alegações sustentando que a sentença deve ser revista e confirmada e, em sentido contrário, o Requerido pugnando que não deve ter lugar a peticionada revisão e confirmação.

                                                           *

Incompetência Territorial deste Tribunal da Relação de Coimbra invocada pelo Requerido:

Salvo o devido respeito, é o próprio preceito legal invocado pelo Requerido a determinar a sem-razão da sua argumentação.

Na verdade, nos termos do artigo 979º do n.C.P.Civil, para a Revisão e Confirmação é competente o Tribunal da Relação da área em que esteja domiciliada a pessoa contra quem se pretende fazer valer a sentença, desde logo se ressalvando «(…), observando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 80º a 82.» .

Ora se assim é, temos que o Requerido não foi citado – nem encontrado ou dado como residente/domiciliado! – na área da comarca ... que havia sido indicada como sendo a sua “residência”.

Antes, na medida em que o Requerido, ao ser citado, deu conhecimento de estar «(…) actualmente a residir temporariamente em Portugal na Rua ..., ..., ... ... (…)», daqui decorre que o mesmo aceitou ser o seu domicílio atual em Portugal na área do concelho ..., consabidamente integrante da área da comarca ..., deste distrito judicial de Coimbra, no qual tem jurisdição precisamente este Tribunal da Relação de Coimbra.

Mas ainda que se sustente ser caso de o mesmo “não ter residência habitual”, ou o seu domicilio ser “incerto”, para tais casos rege o art. 80º, nº2 do n.C.P.Civil [para que remete o pré-citado art. 979º do n.C.P.Civil], preceituando-se então que o mesmo «(…) é demandado no tribunal do domicílio do autor», o que, no caso vertente determina que, atendendo a que a A./requerente está domiciliada em “...” [que consabidamente faz parte da área do concelho e comarca ..., integrante deste mesmo distrito judicial de Coimbra], estamos também por aqui reconduzidos à jurisdição deste Tribunal da Relação de Coimbra.

Nestes termos e sem necessidade maiores considerações, improcede a arguida incompetência territorial do Tribunal da Relação de Coimbra.

                                                           *

 Afirmada que esta a competência territorial deste Tribunal da Relação de Coimbra, não havendo nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento da pretensão aduzida, a tal se passará na imediata sequência.

                                                           *

2 - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade que interessa à apreciação do mérito da pretensão da Requerente encontra-se provada documentalmente ou assente por acordo, sendo a seguinte:

1- Requerente e Requerido casaram um com o outro em 18/08/1973, na freguesia ..., concelho ...;

2- Casamento que foi objeto do Assento de Casamento n.º ...14 (informatização do Assento ..., de 22/08/1973) da C.R.Civil de ...;

3- A 31/03/2006, foi proferida pelo Tribunal Superior do Distrito Judicial ..., Estado de ..., sentença transitada em julgado, através da qual foi dissolvido o casamento que haviam contraído;

4- Essa sentença, no que ao divórcio diz respeito, já foi foram objeto da revisão de sentença estrangeira que anteriormente correu termos neste tribunal da Relação com o n.º 198/16.... da secção cível, a qual transitou em julgado em 28/03/2017;

5- Sucede que no dia em que foi proferido a sentença que decretou o divórcio, Requerente e Requerido também celebraram um acordo escrito quanto a vários aspetos pessoais e patrimoniais da futura relação entre eles, acordo esse que foi presente à Exma. Juíza que proferiu a sentença, a qual determinou que o mesmo era junto/anexado e «os seus termos são incorporados por referência.»

6- Para o que ora diretamente releva, dois dos segmentos desse Acordo têm as epígrafes de “6. ARTIGO VI – BENS IMÓVEIS” e “12. ARTIGO XII-DISPOSIÇÕES DIVERSAS”, respetivamente, e quanto a eles as partes estabeleceram o seguinte:

 «(…)

- 6. ARTIGO VI- BENS IMÓVEIS

(…)

6.3. As partes reconhecem que os imóveis situados em Portugal pertencem actualmente a ambas partes (“Propriedades de Portugal). O cônjuge deve abdicar de todos os seus direitos, títulos e interesses sobre as propriedades de Portugal a favor da esposa. Esta, por sua vez, fica totalmente responsável pelas despesas, impostos, etc., e deve manter o cônjuge isento de qualquer responsabilidade quanto ás propriedades.

(…)

«12. ARTIGO XII-DISPOSIÇÕES DIVERSAS

12.1 As disposições deste acordo e o seu efeito prático e legal foram devidamente explicados a cada uma das partes pelos seus advogados, e cada uma delas reconhece que este acordo é justo e equitativo, que é lavrado de livre vontade, e que não é resultado de um abuso de influência, ou de pressão exercida por uma parte sobre a outra parte, ou por qualquer pessoa.

12.2 Todos os pactos, promessas, estipulações, acordos e disposições aqui representadas são aplicáveis vinculativos e abrangem obrigatoriamente os herdeiros, executores, administradores, representantes pessoais, designados pelo cônjuge e pela sua esposa deste processo, sejam bem intencionados ou não.»

7- Está entretanto a decorrer uma ação de inventário (partilha por divórcio), em Portugal [processo de inventário judicial que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Família e Menores com o processo n.º 813/21....], ação essa movida pelo ora Requerido contra a ora Requerente, com vista a partilhar bens em Portugal, que eram comuns, mas que, por força do acordo alcançado aquando da decisão que proferiu o divórcio, serão bens exclusivos da ora Requerente, o que ocorre na medida em que o Requerido não renunciou a esse direito (partilha dos bens existentes em Portugal), estando a incumprir o acordo que havia celebrado no contexto do processo de divórcio;

8- Esse inventário começou por ser instaurado em Cartório Notarial, e a aqui Requerente opôs-se inicialmente ao mesmo com fundamento num contrato promessa de partilha outorgado anteriormente entre as partes, por via do qual os bens ora objeto do inventário já teriam sido partilhados nos EUA, oposição essa que foi julgada improcedente pela Exma. Notária que tinha então a titularidade do processo, sendo que esta decisão foi objeto de recurso por parte da aqui Requerente para o Tribunal, que não o admitiu com subida imediata, por se tratar de “decisão interlocutória” [considerando que o recurso de “decisões interlocutórias” deviam ser impugnados no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha];   

9- Já na pendência desse processo de inventário (partilha por divórcio), a ora Requerente moveu em 17/08/2018, nos EUA, junto do processo principal de divórcio e respetivos acordos, no Supremo Tribunal do Distrito Judicial ..., Estado de ... [processo n.º ...] de uma ação de medida por desobediência, pela alegada violação intencional da decisão deste tribunal, proferida a 9 de maio de 2006, nos termos da qual o aqui Requerido deveria renunciar, a favor da ex-esposa, a todos os seus direitos, títulos e interesses referentes aos bens de Portugal, de acordo com o parágrafo 6.3 do Acordo de Separação;

10- Por sentença proferida por este último tribunal (Supremo Tribunal do Distrito Judicial ..., Estado de ...) no âmbito da dita Medida por desobediência, em 14/01/2019, também já transitada em julgado, com o n.º 419130, foi determinado que: «(…) O Requerido é considerado culpado por desobediência, o Requerido deve cumprir com as ordens do tribunal, conforme definidas na sentença, no que diz respeito aos bens de Portugal. O Requerido deve apresentar a escritura de renúncia ao Advogado no prazo de uma semana após a audiência de hoje. (…)»;

11- Em consequência da entrada e pendência neste Tribunal da Relação de Coimbra da presente ação de revisão de sentença estrangeira [que tem por objeto quer alguns segmentos do Acordo aquando do divórcio, na parte que diz respeito aos bens situados em Portugal (no seu global), quer a Decisão proferida em 14/01/2019 no âmbito do pedido de Medida de desobediência], o dito processo de inventário judicial que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Família e Menores [com o processo n.º 813/21....], ficou suspenso, até ser proferida decisão final neste processo;

12- Um outro segmento do supracitado Acordo aquando do divórcio tem a epígrafe de “11. ARTIGO XI – LEI E EFEITO VINCULATIVO”, tendo o seguinte concreto teor:

«11.1. Sem prejuízo da incorporação das disposições substantivas deste acordo em qualquer lei de dissolução, divórcio ou separação, este acordo não pode ser integrado em tal lei mas permanecerá válido e terá efeito vinculativo, devendo ser cumprido pelas partes.»

                                                           *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Trata-se na presente ação de apreciar e decidir se estão verificados os requisitos para a requerida revisão e confirmação de sentença estrangeira, mais concretamente quanto a segmentos do Acordo aquando do divórcio, na parte que diz respeito aos bens situados em Portugal (no seu global), e bem assim quanto à Decisão proferida em 14/01/2019 no âmbito do pedido de Medida de desobediência, tudo melhor identificado supra.

Dispõe o art. 978°, n°1 do n.C.P.Civil que «Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro ou por árbitros no estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.»

Por outro lado, para que uma sentença seja confirmada, é necessário, segundo o art. 980° do mesmo n.C.P.Civil:

a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b)  Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c)  Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d)  Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

e)  Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;

f)  Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.

Ademais, preceitua-se pela seguinte forma no artigo 983º do mesmo n.C.P.Civil, com a epígrafe de “Fundamentos da impugnação do pedido”:

«1 - O pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980.º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do artigo 696.º.

2 - Se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou coletiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.»

Dispõe, finalmente, o art. 984º do mesmo diploma legal que «O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980°; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.»

No caso vertente, afigura-se-nos não existirem dúvidas sobre a autenticidade dos documentos juntos aos autos, onde constam as sentenças/acordo, nem sobre a inteligibilidade das decisões e do seu conteúdo.

Mas vejamos agora dos demais requisitos.

Quanto a segmentos do Acordo aquando do divórcio cuja revisão e confirmação em primeiro lugar vem requerida, desde logo vislumbramos um obstáculo liminar e de base ao deferimento.

É ele o de que o Acordo feito entre os cônjuges relativo à propriedade conjugal não é uma parte decisória da sentença, nem sequer havendo homologação expressa do mesmo, constituindo mero anexo da decisão.

Isto é, s.m.j., quanto a ele a sentença estrangeira [de divórcio] não homologou qualquer Acordo sobre partilha dos bens comuns pois apenas ordenou que fosse registado como anexo, considerando-o um contrato separado.

Autonomia essa [“contrato separado”], que o próprio em si cuidou de afirmar/salvaguardar ao estabelecer no seu Artigo “11.” que «Sem prejuízo da incorporação das disposições substantivas deste acordo em qualquer lei de dissolução, divórcio ou separação, este acordo não pode ser integrado em tal lei (…)» [cf. facto “provado” sob “12.” supra].

Ora se assim é, faltando o requisito basilar a um pedido de revisão e confirmação, qual seja, o de que se trate de uma (parte da) “sentença”, logo por aí se impunha a não concessão do respetivo pedido de revisão e confirmação.

Mas a entender-se que o dito Acordo constituía uma (parte da) “sentença”, nem assim, em nosso entender, o pedido de revisão e confirmação pode ser concedido, e por duas ordens de razões.

Preliminarmente se dirá que entre elas não se encontra a do caso julgado invocado pelo Requerido [«Porque existe já sentença proferida pelo Tribunal Português que transitou em julgado, que não considerou o acordo celebrado entre as partes nos Estados Unidos e julgou competente o Tribunal Português para efectuar o Inventário»], pela decisiva e incontornável circunstância de que os ditos segmentos do Acordo aquando do divórcio ainda não foram, como tal[2], objeto de apreciação no processo de Inventário pendente.

Vejamos, então, das duas ordens de razões efetivamente existentes em nosso entender.

Uma primeira é a de que o segmento nuclear do Acordo invocado e que está em causa, se traduz na violação da ordem pública internacional do Estado Português [cf. art. 980º, al. f) do n.C.P.Civil].

Temos presente que a lei (isto é, quer o citado art. 980º, al. f) do n.C.P.Civil, quer o art. 22º do C.Civil] não define o conceito de “ordem pública internacional“, tratando-se de um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo na análise casuística.

Relativamente a tal, é prevalecente o entendimento de que «(…) a ordem pública internacional do Estado Por­tuguês não se confunde com a sua ordem pública interna. Enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional res­tringe-se aos valores essenciais do Estado português [10]. Só quando os nossos interes­ses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não é possível tolerar a declaração do direito efectuada por um sistema jurídico estrangeiro.»[3]

Nesta linha de entendimento, não bastará que a solução dada ao caso pelo direito estrangeiro seja divergente da do direito interno português, exigindo-se que o resultado seja “manifestamente incompatível” com os princípios da “ordem pública internacional” do Estado Português.[4]

Revertendo ao nosso caso, temos que se encontra assente entre as partes que os imóveis do ex-casal situados em Portugal eram bens comuns.

Sucede que o segmento do Acordo invocado quanto a tal [Artigo “6.”, mais concretamente, «6.3. As partes reconhecem que os imóveis situados em Portugal pertencem actualmente a ambas partes (“Propriedades de Portugal). O cônjuge deve abdicar de todos os seus direitos, títulos e interesses sobre as propriedades de Portugal a favor da esposa. Esta, por sua vez, fica totalmente responsável pelas despesas, impostos, etc., e deve manter o cônjuge isento de qualquer responsabilidade quanto ás propriedades.»] se traduziu na deslocação compulsiva da transferência do direito do Requerido para a Requerente, sem qualquer contrapartida para aquele.

Ora, o art.1714º nº1 do C.Civil consagra o princípio da imutabilidade do regime de bens, o que implica a proibição da modificação concreta da situação dos bens dos cônjuges, isto é, temos que por força da imutabilidade, não podem bens comuns ser atribuídos em propriedade exclusiva a qualquer deles sem contrapartida para o outro (tornas), norma esta que é uma norma imperativa.

A esta luz, o segmento do Acordo em apreciação[5] acolhido pela sentença revidenda viola a ordem pública interna nacional.

Mas será que também afronta a “ordem pública internacional”?

A resposta a uma tal questão não tem sido unívoca na doutrina e jurisprudência.

A tal propósito já foi entendido que a norma do art. 1714º do C.Civil seria  “porta-voz de um princípio de ordem pública internacional do Estado português”.[6]

Mas também já foi sustentado doutrinariamente, de forma diversa[7], que «o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, fixado como regra no direito português, não é, pois, um princípio de ordem pública internacional», isto face às regras dos arts. 52º e 54º do C.Civil, donde um forte entendimento no sentido de que que a imutabilidade do regime de bens do casamento estabelecida no art. 1714º do C.Civil não é princípio de “ordem pública internacional”.[8]

Como quer que seja, parece-nos que o segmento do Acordo em apreciação acolhido pela sentença revidenda, sempre e em último caso, viola a “ordem pública internacional do Estado Português”, precisamente na medida em que se reconduz à violação do direito de propriedade, constitucionalmente garantido (cf. art. 62º da CRP) e a uma espécie de expropriação particular sem qualquer indemnização.

Na verdade, como já foi doutamente salientado para uma situação com paralelismo à aqui ajuizada, «O direito de propriedade, constitucionalmente garantido, abrange, além do mais, o direito de não ser privado dela, impondo a lei a indemnização para a hipótese de expropriação. Neste contexto, o reconhecimento da sentença revidenda, nos segmentos decisórios impugnados, relativamente à partilha dos bens do casal, conduziria a um resultado não permitido pelos princípios fundamentais do Estado de Direito.»[9]

Sem embargo do vindo dizer, vislumbramos uma segunda ordem de razões no sentido de que o pedido de revisão e confirmação não pode ser concedido.

É ela a que decorre do chamado privilégio da nacionalidade.

Consabidamente, o nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é, em regra, de revisão meramente formal, face ao que o Tribunal português competente para a revisão e confirmação deve verificar se o documento apresentado como sentença estrangeira revidenda satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa.

A exceção à referida regra só ocorre se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, caso em que a impugnação também pode ser fundada na circunstância de que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos da lei portuguesa – art. 983º, nº2, do n.C.P.Civil.

Sucede que à luz das normas de conflitos da lei portuguesa [leia-se, do Código Civil], sendo ambos os cônjuges de nacionalidade portuguesa, as relações entre eles são reguladas pela lei nacional comum (cf. art. 52º, nº1 do C.Civil), acrescendo que  a substância e efeitos do regime legal de bens são definidos pela lei nacional dos nubentes ao tempo do casamento (cf. art. 53º, nº1 do mesmo C.Civil).

Ora se assim é, temos que para uma situação como a ajuizada, segundo o direito material português, o resultado da decisão, no que concerne à partilha dos bens do casal, seria inquestionavelmente mais favorável ao aqui Requerido, na medida em que, por força do princípio da imutabilidade do regime de bens já supra referido [art. 1714º do C.Civil], a partilha sempre teria que respeitar a regra da metade, logo os imóveis sitos em Portugal, sendo bens comuns, jamais poderiam ser atribuídos em propriedade exclusiva à Requerente, sem qualquer contrapartida económica (tornas) para o Requerido.

E nem se argumente que por força da preconizada interpretação restritiva deste critério constante do art. 983º, nº2, do n.C.P.Civil[10], se alcançaria uma solução diversa numa situação como a ajuizada.

É certo que o art. 31º, nº2 do C.Civil preceitua que, apesar de a lei pessoal dos indivíduos ser a da respectiva nacionalidade, serão reconhecidos em Portugal os negócio jurídicos celebrados no país da “residência habitual” das partes, em conformidade com a lei desse país, desde que ela se considere competente.

Sucede que se a ratio legis é a tutela da confiança dos interessados na validade da situação jurídica que criaram à sombra da lei do país em que têm “residência habitual”, também não pode ser olvidado que «A favor do reconhecimento só pode ser invocada a tutela da confiança objectivamente justificada na definição da situação jurídica sob a égide da ordem jurídica de outro Estado. Ora, esta justificação objectiva só se verifica se existir uma conexão significativa entre este Estado e a relação em causa. (…) Parece que a competência dos tribunais de um Estado que não apresente conexão pessoal ou territorial com a relação controvertida, nem resulte da autonomia da vontade ou do critério da necessidade, é exercida fora da sua jurisdição[11] [sublinhados nossos]

Ora se assim é, na medida em que os aqui Requerente e Requerido são de nacionalidade portuguesa e casaram-se entre si em Portugal, e estando como estão em causa bens imóveis adquiridos e detidos pelos mesmos em Portugal,  cremos poder afirmar-se que a imutabilidade do regime de bens e a natureza comum dos bens a partilhar resulta diretamente da lei nacional, visto ser diretamente derivada do casamento, face ao que não se pode afirmar que a titularidade de tais bens pelos mesmos foi criada à sombra da lei estrangeira ou que este Estado [EUA] tinha qualquer conexão significativa com os bens sitos em Portugal em termos de estar legitimada a jurisdição/partilha deles.

O que tudo serve para dizer que, ao invés, se vislumbra uma intensa ligação com o Estado Português, onde até ambos se encontram atualmente, e onde a partilha irá produzir efeitos, a justificar o privilégio da nacionalidade.

Dito de outra forma: também a esta luz existe obstáculo ao reconhecimento e revisão que vêm peticionados dos ditos segmentos do Acordo aquando do divórcio.

Sendo certo que do vindo de perfilhar e decidir decorre a necessária improcedência do pedido de reconhecimento e revisão relativamente à Decisão proferida em 14/01/2019 no âmbito do pedido de Medida de desobediência.

Na verdade, são os termos dessa mesma decisão que assim o determinam, a saber, quando aludem a que «(…) O Requerido é considerado culpado por desobediência, o Requerido deve cumprir com as ordens do tribunal, conforme definidas na sentença, no que diz respeito aos bens de Portugal.»

Isto é, se está em causa a “desobediência” relativamente a ordens do Tribunal definidas por uma sentença que não se reconhece nem revê para produzir efeitos na ordem jurídica portuguesa, decorrente e consequentemente não se pode reconhecer nem rever uma subsequente sentença que é a sequência lógica e tem como fundamento o constante da primeira.

Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, improcede inteiramente a requerida concessão da revisão e confirmação da sentença.

                                                           *                                            


(…)

5 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, na total improcedência da ação, decidem:

1) Não confirmar os segmentos do Acordo aquando do divórcio, na parte que diz respeito aos bens situados em Portugal (no seu global), nem a Decisão proferida em 14/01/2019 no âmbito do pedido de Medida de desobediência, tudo melhor identificado supra.

2) Condenar a Requerente nas custas.                                     

Coimbra, 13 de Dezembro de 2022

Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira





[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] Recorde-se que, tanto quanto é dado perceber, o que fundamentou a Oposição deduzida no processo de Inventário foi um “contrato promessa de partilha” donde, distinto do que está em causa na presente ação de revisão e confirmação!
[3] Citámos o acórdão do TRC de 18.11.2008, proferido no proc. nº 3/08.7YRCBR, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[4] Neste sentido, vide LIMA PINHEIRO, in “Direito Internacional Privado”, vol. I, pág. 584 e segs., vol.III, pág.368 e segs, e MARQUES DOS SANTOS, in Aspectos do novo Código de Processo Civil, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras”, a págs. 140.
[5] De referir que não vamos atribuir qualquer autonomia nesta apreciação ao segmento do Acordo em referência numerado sob “Artigo 12.”, na medida em que o conteúdo do mesmo é unicamente injuntivo e normativo, não se justificando, assim, apreciação particularizada.
[6] Assim por QUIRINO SOARES, in “Lex Familiae”, ano 3, nº5, a págs.101.
[7] Cf. PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA in “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed., a págs. 89.  
[8] Inter alia no acórdão do TRL de 23/10/2008, proferido no proc. nº 637/2008-2, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[9] Trata-se do acórdão do TRC de 03.03.2009, proferido no proc. nº 237/07.1YRCBR, acessível em www.dgsi.pt/jtrc. 
[10] Segundo a qual o art. 983º, nº2 do n.C.P.Civil não poderia ser acionado quando a situação resultante da decisão estrangeira, ainda que com desrespeito do disposto pelas nossas regras de conflitos, deva ser reconhecida, face ao princípio consagrado pelo nosso sistema conflitual no artigo 31º nº2 do nosso Código Civil [neste sentido, face à norma correspondente do anterior Código de Processo Civil (art. 1100º, nº2), FERRER CORREIA, in RLJ, ano 116, págs.163 e 164  e MOURA RAMOS, in RLJ, ano 130, pág. 237].    
[11] Citámos agora LIMA PINHEIRO, in “Regime interno de reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras”, ROA 61 (2001), a págs. 572 e 611, respetivamente.