Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
149/08.1GTGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DEPOIMENTO DE ÓRGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
CONVICÇÕES PESSOAIS
Data do Acordão: 01/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALMEIDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 127º, AL.A), N.º2, ART.130.º CPP
Sumário: 1. O princípio de livre apreciação da prova deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova
2. A averiguação das circunstâncias em que decorreu um acidente de viação impõem ao órgão de polícia criminal determinar, em face dos vestígios deixados no local e nos veículos intervenientes, nomeadamente, a direcção em que seguiam os veículos antes do acidente de viação, o local da via onde transitavam e o local provável do embate.
3. Quando se pretende conhecer em audiência de julgamento as circunstâncias em que terá ocorrido e se chama a depor como testemunha o órgão de polícia criminal , que se deslocou ao local, frequentemente, não é possível cindir a interpretação dos factos da narração dos factos concretos apreendidos pela testemunha.
4. A interpretação que a testemunha(órgão de polícia criminal) faz dos factos concretos que presenciou no local do acidente está a coberto da excepção prevista na al.a), n.º2, art.130.º do Código de Processo Penal e, como tal, é admissível a valoração integral do seu depoimento.
Decisão Texto Integral: Relatório

Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Almeida, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido
K..., divorciado, estudante, natural da Ucrânia, sucateiro, residente em V…, Castro Marim,
imputando-se-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 137º, nº 1 e 2, 13º e 15º do Código Penal, bem como a infracção ao disposto nas previsões conjugadas dos artigos 24º, 31º, nº1, alínea b), 73º, nº 2 do Código da Estrada, contra-ordenações causais do acidente, puníveis com sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir, nos termos dos artigos 133º, 135º, 136º, 137º, 138º, 139º, nº 1 e 145º, nº 1, alínea f), todos do Código da Estrada, se não for de aplicar a pena acessória de proibição de conduzir, ao abrigo do disposto no artigo 69º, nº 1, alínea b) do Código Penal , bem como a infracção ao disposto no n.º 2 do artigo 31.º do Decreto-Lei nº 257/2007 de 16 de Julho, contra-ordenação causal do acidente.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 7 de Maio de 2010, decidiu julgar a acusação parcialmente procedente por provada e, consequentemente, condenar o arguido K...:
- pela prática, na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 5 (cinco) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período;
- pela prática da contra-ordenação, prevista no artigo 31º, nº 2 do Decreto-Lei nº 257/2007 de 16 de Julho, na coima de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) e na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido K..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1. No presente julgamento não foram ouvidas testemunhas presenciais, porque não as há.
2. Ou seja, das testemunhas ouvidas nenhuma viu o acidente, sendo que apenas chegaram ao local após o mesmo.
3. Salvo melhor opinião, o depoimento que fundamenta a condenação é um depoimento proibido nos termos do artigo 130 do CPP.
4. O agente da PSP é um investigador inspector do NICAV (Núcleo de Investigação de Acidentes de Viação), uma pessoa que nos merece o maior respeito, mas que cujas opiniões não podem ser por si só valoradas, sem outras provas ou indícios.
5. O agente não é nenhum perito e por isso não podem ser valoradas as suas convicções pessoais.
6. Acresce que tais depoimentos são igualmente proibidos atenta a posição do silêncio do arguido:
7. Por outro lado as convicções do senhor agente estão aliás eivadas de contradições, pelo que a adesão do Tribunal às mesmas nos termos do artigo 410 n.º 2, constitui vício da decisão, a saber a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, bem como a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, erro notório na apreciação da prova, conforme se indica:
a) Não há testemunhas oculares que indiquem que o veículo de matrícula portuguesa circulava na via de aceleração e nenhuma das testemunhas o disse, nem há documentos que o provêm. Trata-se de especulações.
b) Não há testemunhas ou indícios que provem que o veículo de matrícula francesa circulava na via da direita, sabemos apenas que foi ai que se deu o embate (nada impede que o referido veiculo circulasse noutra via e que o condutor, tendo adormecido, tenha virado o carro para a direita embatendo com o veiculo do R).
c) Mais uma vez, os pontos d) e e) são apenas conjecturas, nenhuma prova existindo da sua veracidade.
d) Quanto ao ponto f) dá-se por provado um processo de intenção que não se tem como confirmar. Pode garantir-se que existiu a referida torção para a direita do veículo tripulado pela vítima mas não sabemos por que é que sucedeu. Estamos mais uma a falar em suposições.
e) nos pontos o), p) q) e r) considera mais uma vez o Tribunal que o R vinha da via de aceleração e que a vítima vinha na via da direita, coisa que não é possível de provar.
8. Por outro lado há provas que impõem decisão diferente
f) Na participação do acidente de viação, fls.18, refere-se que as condições psicofísicas da vítima eram de fadiga.
g) Há um documento nos autos que é elucidativo da velocidade da vitima, trata-se do talão de compra de gasolina numa bomba em Espanha (fls. 112) as 23:50 hora espanhola ou seja, aproximadamente, 1H25min antes do acidente, que se deu a cerca de 230 km da referida bomba de gasolina (o que implica uma velocidade média de circulação superior a 160 km\h por parte da vítima).
h) Está indicado na legenda a) de fotografias contidas na fls. 136 que o cinto de segurança do _veículo de matrícula francesa está rebentado, o que nas palavras do próprio inspector do NICAV, e das mais elementares regras de experiencia, indica uma colisão violentíssima, a grande velocidade.
i) Ambos os veículos capotaram, tendo a força exercida pelo veículo de matricula francesa na traseira do veiculo de matricula portuguesa tal que originou o seu capotamento, de acordo com o documento contido em fls. 63 e 64.
j) Sendo que o veículo de matrícula portuguesa, de acordo com os documentos contidos nas fls. 85 a 88 pesava, à data do acidente, 6620 kg o que mais uma vez indicia a enorme velocidade a que o veiculo de matricula francesa circulava quando se deu o impacto.
k) As contradições são evidentes: A fls. 150, na legenda de uma das fotografias diz-se que há marcas de travagem do veiculo NC, após a colisão, que vão da via de aceleração para a via de circulação e a fls. 59 é referida a ausência de marcas de travagem.
l) A folhas 311 o senhor agente indica um local de embate completamente errado, indica como local de embate o lado esquerdo da viatura do arguido (ver folhas 311) – a testemunha a folhas minutos 28.40 entra em completa contradição, sendo que até a Juíza afiram : “o senhor dr. tem razão...”.
m) A minutos 28 a 31 a testemunha entra em contradição com o anteriormente afirmado, ao dizer que o embate se pode dar na lateral direita.
n) As fotografias de folhas 150 são claras ao provar que o embate se dá entre a faixa de aceleração e a 1.ª via.
9. A minuto 44.55 o agente disse: se o carro português estivesse paralelo à via , seria projectado para a via de aceleração.”
10. A folhas 153 há claramente marcas do raspagem e derrapagem do carro de matrícula portuguesa na faixa de aceleração confirmadas pelo agente e folhas 153 e a minuto 45.53 a minutos , pelo que este estava a seguir em frente (paralelo e não na diagonal).
11. Assim, o embate não pode ter sido como disse o agente e como se escreve na sentença.
12. Nenhuma das testemunhas viu o acidente
13. O processo está eivado de Contradições e as convicções não tem qualquer fundamento
14. O artigo 130 estabelece 3 três proibições do prova resultantes do princípio da imediação, que decorre do Estado de direito e das garantias da defesa (CRP 32 )
15. A violação destes princípios tem por consequência a nulidade da sentença nos mesmos termos que o 379 n.º 1.
16. Acima de tudo como explicar as falhas da própria investigação e as contradições supra indicadas
17. Por outro lado o acidente foi algo complexo e a sua investigação impunha uma reconstituição do acidente, que não foi feita.
18. Humildemente parece-nos que se o agente escreveu tratar-se da sua opinião, que não é prova pericial ou um exame antes sendo a sua convicção, que não pode fundamentar a sentença.
19. Só com uma perícia técnica e com uma reconstituição do acidente em termos científicos seria possível chegar às conclusões referidas, que não tem qualquer fundamento e são meras convicções do agente do OPC.
20. O próprio tribunal, reconhece que valorou depoimentos do arguido antes do mesmo ter esta qualidade.
21. Tendo o arguido optado pelo silêncio processual não o podia fazer por violar o artigo 32 da CRP.
22. Ora, o Tribunal tem o dever de procurar a verdade, e não pode em caso algum violar o princípio in dúbio pró Reu.
23. Sendo uma hipótese ou uma convicção, sem uma perícia técnica, só poderia ser valorada no sentido da presunção da sua inocência.
24. Atenta a complexidade do processo oi excesso de velocidade da vítima, a colocação de hipóteses, faz todo o sentido aplicar o princípio “in dubio pro Réu”.
25. O Tribunal violou os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
26. Por outro lado, as penas são excessivas atenta a ausência de antecedentes criminais.

O Ministério Público na Comarca de Almeida respondeu ao recurso interposto pelo arguido pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

O Ex.mo Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
a) No dia 17 de Setembro de 2008, pelas 00h15, o arguido tripulava o veículo automóvel ligeiro de mercadorias matriculado com o nº ......, pela via de aceleração de acesso à AE n.º 25, seguindo no sentido E.N. n.º 324 / AE n.º 25 - Guarda,
b) Conduzia tal veículo automóvel transportando sucata/ferro velho, excedendo a sua capacidade (peso bruto do veículo = 3500 Kg) em 3120 Kg.
c) Nas mesmas circunstâncias de tempo, tripulava J… o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula …, pela via mais à direita da faixa de rodagem direita da AE nº 25, atento o sentido em que seguia, o qual era Vilar Formoso/Guarda, sentido a que, na presente acusação e na falta de indicação de um outro, deverá atender-se como referência.
d) Ao chegar ao Km. 184,3 da AE n.º 25, sito no concelho e comarca de Almeida, antes do final da via de aceleração por onde tripulava o seu veículo, pretendendo passar a seguir na AE n.º 25, no sentido Vilar Formoso/Guarda, o arguido fez penetrar naquela o veículo automóvel que tripulava;
e) Fê-lo, porém, num momento em que nela seguia o veículo automóvel tripulado pelo J…, apresentando-se-lhe pela direita, a distância não concretamente apurada.
f) Face ao surgimento do veículo tripulado pelo arguido na via em que dirigia o seu, antecipando o embate que se daria com a parte frontal deste seu veículo na parte lateral esquerda daquele, o J… torceu para a direita a direcção do veículo que guiava, dirigindo-o para a via de aceleração, não tendo contudo logrado atingir os seus intentos, embatendo com frente lateral esquerda na traseira direita do veículo tripulado pelo arguido.
g) Após a colisão, ambos os veículos entraram em desgoverno, capotando, tendo ficado imobilizados, o tripulado pelo arguido atravessado na via mais à esquerda da faixa de rodagem direita da AE n.º 25 e aquele que era tripulado por J… na via de aceleração.
h) Como consequência directa e necessária do embate, o J… sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 301 a 307 – o qual aqui se dá por integralmente reproduzido -, nomeadamente lesões traumáticas crânio encefálicas, vertebro-medulares, cervicais e dorsais, toraco-abdominopelvicas e dos membros.
i) Tais lesões viriam a causar-lhe, também de forma directa e necessária, a morte.
j) No local do embate, a largura da faixa de rodagem direita da AE nº 25 é de 5,80m, composta por duas vias afectas ao mesmo sentido de marcha e uma via de aceleração.
k) À data dos factos o piso encontrava-se seco e limpo.
l) Era noite.
m) O local do embate situa-se num troço recto da referida AE; o seu piso asfaltado encontrava-se em bom estado de conservação, seco e limpo.
n) Do local em que embateu o arguido divisava qualquer veículo que circulasse na AE, na sua retaguarda, a pelo menos uma distância de 60 metros; podia, desta forma, avistar a aproximar-se o veículo em que seguia J....
o) E assim, nada impedia o arguido de adequar a sua condução ao movimento de veículos que na AE n.º25 se fizesse sentir, nomeadamente no sentido Vilar Formoso/Guarda e de, consequentemente, só entrar na AE quando tivesse atingido uma velocidade que lhe permitisse tomar aquela via sem causar perigo e embaraço para quem nela circulasse, bem como quando nesta não seguissem veículos cuja trajectória pudesse contender com aquela que
seguia o veículo que tripulava.
p) Contudo, fosse por nem sequer o haver visto, fosse porque, por erro de cálculo, esperasse levar a cabo a manobra sem com ele contender, o arguido deu curso na mesma à manobra de penetração na AE n.º 25, fazendo, entre o mais, seguir o veículo que tripulava pela faixa de rodagem direita daquela via.
q) Deste modo, ou porque tripulasse o seu veículo de forma desatenta e descuida, não tendo visto como devia, o veículo tripulado por J..., bem como por ter entrado na referida AE sem que tivesse percorrido toda a via de aceleração, o arguido deu curso à manobra fazendo seguir o veículo que tripulava pela AE n.º 25, surpreendendo o J..., que por ai dirigia o seu veículo e não pôde evitar o embate.
r) O arguido agiu, assim, com manifesta falta de consideração pela normas legais relativas à circulação automóvel e, ao dirigir o veículo do modo e nas condições descritas, não agiu com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance, omitindo o cuidado normal de prever as consequências da sua conduta.
s) O arguido é sucateiro, trabalha por conta própria, auferindo rendimento mensal que ascende a cerca de € 500,00.
t) Vive com o seu filho, maior, em casa arrendada pela qual despende valor mensal de € 250,00, a título de renda.
u) Suporta encargo mensal de € 50,00 para aquisição de um computador portátil.
v) O arguido tem família na Ucrânia, nomeadamente filhos, para os quais envia quantias em dinheiro indeterminadas, conforme os rendimentos auferidos e possibilidades.
w) O arguido tem por habilitações literárias o 8º ano de escolaridade.
x) O arguido é pessoa trabalhadora, pacata e séria.
Factos não provados
y) O arguido tripulava o veículo automóvel ligeiro de mercadorias matriculado com o nº ...... a velocidade não concretamente apurada, porém inferior a 60 Km/h.
z) Que o facto de tripular o seu veículo com excesso de carga impediu o arguido de atingir uma velocidade adequada à circulação na auto-estrada.
Motivação
Nos termos e para os efeitos dos artigos 97.º n.º 5 e 374.º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, para a formação da sua convicção o Tribunal procedeu ao exame da prova produzida em audiência de julgamento.
No caso sub judice a convicção deste Tribunal sobre a factualidade considerada provada radicou na análise crítica e ponderada da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, globalmente considerada e de acordo com as regras de experiência comum, concretamente os depoimentos das testemunhas inquiridas e o teor dos documentos juntos aos autos.
O arguido não prestou declarações, em sede de audiência de julgamento, no que concerne aos factos descritos na acusação, no exercício do direito ao silêncio que lhe assiste, direito igualmente exercido pelo filho do arguido de recusa de prestação de depoimento.
No que concerne aos depoimentos prestados pelas testemunhas, valorou-se por relevantes as declarações prestadas:
- C..., agente do Destacamento de Trânsito da G.N.R. de Guarda, o qual se encontrava a efectuar patrulha ao troço da A25 quando se deparou com um acidente descritos nos factos supra, o qual se já se havia produzido. Trata-se assim da primeira pessoa a chegar ao local da colisão, no nó da A25, em Alto de Leomil, sentido Vilar Formoso-Guarda, declarando ter avistado um aglomerado de pesados tombados na via, um deles carregado de sucata, apercebendo-se da existência de um ferido ligeiro e um cadáver no interior do outro veículo de mercadorias, de matrícula francesa. Mais referiu que os ocupantes do veículo de transporte de sucata se encontravam já fora do mesmo, tendo-lhe sido referido no local pelo condutor deste veículo, o ora arguido, que não se havia apercebido da ocorrência e produção do acidente.
Esclareceu que foi o agente responsável pela elaboração do auto de participação de acidente de viação, descrevendo o local do acidente de forma clara – recta com boa visibilidade, iluminada por se tratar de nó de intersecção na auto-estrada – e as condições da via e do tempo – piso seco e bom tempo.
Questionado sobre a dinâmica do acidente, declarou que atentos os elementos visualmente observáveis e o que logrou apurar verificou que o veículo do arguido, carregado de sucata, vinha da Estrada Nacional, julga que de Freixo de Espada à Cinta e se encontrava a entrar na auto-estrada, pela via de aceleração, enquanto o veículo do falecido, de matrícula francesa se encontrava a circular na auto-estrada, de Vilar Formoso, entendendo que o arguido ao “fazer-se à estrada” teve um erro de visibilidade e percepção da aproximação do veículo francês, ocorrendo um embate entre a frente lateral esquerda do veículo francês e a parte direita traseira do veículo do arguido, entre a faixa de aceleração e a faixa da direita da auto-estrada, quando o primeiro se tentava desviar do veículo do arguido.
Referiu desconhecer a velocidade a que circulavam os veículos, por não apurada.
- M..., bombeiro profissional a exercer funções nos Bombeiros de Almeida, referiu ter sido chamado ao local para prestar auxílio às vítimas, não se afigurando o seu depoimento relevante para efeitos de demonstração da dinâmica do acidente porquanto conforme o mesmo afirmou apenas se concentrou nas funções que lhe estavam atribuídas, apenas recordando que o acidente ocorreu entre dois veículos de mercadorias, encontrando-se o veículo de matrícula francesa se encontrava imobilizado e capotado mais à direita na faixa de rodagem.
- E..., inspector do NICAV (Núcleo de Investigação de Acidentes de Viação) – Brigada de Trânsito, funções que desempenha há 5 anos, declarou ter sido o agente responsável pela elaboração do relatório final, em sede do qual descreve a dinâmica do acidente.
Prestou este um depoimento isento, coerente e coeso porquanto exaustivamente questionado sobre as conclusões tecidas no seu relatório, logrou descrever, de forma sustentada o percurso lógico assumido para o terminus do relatório apresentado, com base nos vestígios encontrados no local, mormente marcas no asfalto e os danos verificados nos veículos intervenientes e acidentados.
As suas declarações foram conformes ao descrito no croquis de fls. -----, por si elaborado e cujo percurso lógico subjacente expôs em sede de audiência de julgamento.
Esclareceu ter-se deslocado ao local do acidente cerca de 45 minutos após a sua produção, deparando-se com uma viatura francesa semi-capotada, posicionada do lado direito da via, ocupando a via de aceleração, quase no final da mesma, e parcialmente a 1ª faixa da auto-estrada e o veículo de sucata, que se encontrava imobilizada a meio da 1ª e 2ª vias da auto-estrada.
Descreveu o local do acidente como uma recta iluminada, com extensa visibilidade.
Referiu que atentas as marcas de derrapagem e vestígios dos danos dos veículos depositados no local, apurou que embate ocorreu na 1ª via de circulação da auto-estrada, com o veículo do arguido posicionado obliquamente nessa via, por ter entrado na mesma em posição diagonal; que o veículo de matrícula francesa ao aperceber-se da entrada e presença do veículo do arguido na sua faixa de rodagem realizou manobra de evasão para a direita, no sentido da via de aceleração, não conseguindo evitar o embate na traseira do veículo do arguido.
Mais esclareceu que a descrição da dinâmica do acidente decorre da avaliação dos vestígios, marcas encontrados no local, no asfalto (marcas de derrapagem dos veículos que apontou no croquis), e do posicionamento dos veículos e o percurso decorrido até à imobilização. Demonstrou que a posição dos veículos imobilizados na faixa de rodagem é compatível com o embate da frente lateral esquerda do veículo francês na traseira lateral direita do veículo do arguido e com o posicionamento diagonal do veículo do arguido, porquanto qualquer outro ponto de embate - nomeadamente um embate frontal dianteiro na totalidade da traseira, no caso dos veículos circularem na mesma faixa um atrás do outro - determinaria danos e um percurso e imobilização distintos dos ocorridos – sendo o veículo do arguido projectado para a frente ou para a direita e não para a esquerda na direcção do separador central. Frisou que a colisão se iniciou na traseira do veículo do arguido, razão pela qual assinalou tal ponto como local do embate no croquis elaborado, tendo como ponto forte de embate a traseira direita e que qualquer outro modo de produção do acidente seria incompatível com as marcas na via e danos nos veículos verificados.
Referiu que as marcas de raspagem na faixa de aceleração decorrem do tombamento do veículo francês.
Declarou não ter logrado apurar a velocidade a que circulavam ambos os veículos mas, de acordo com a sua experiência, os danos e a dinâmica do acidente, entender que o veículo do arguido circulava a velocidade de cerca de 50 Km/h, atento o facto de se encontrar a acabar de sair da via de aceleração e atento peso da carga que transportava, o dobro do peso bruto do veículo (segundo pesagem pelo seu Núcleo efectuada); e que a viatura do falecido não circularia a velocidade inferior a 120 Km/h.
Referiu inexistirem marcas de travagem do veículo francês no local do acidente.
Declarou que, atenta a sua experiência, caso o arguido tivesse percorrido a totalidade da via de aceleração não colidiria com a progressão de marcha do veículo francês e o acidente previsivelmente não teria ocorrido.
Descreveu a via de aceleração com comprimento de cerca de 300 metros planos, tendo, por confronto com as medições apresentadas no croquis elaborado, referido que o acidente se deu a 70 metros do final da mesma.
Referiu que o veículo do arguido foi pesado tendo apresentado o dobro da carga que poderia transportar por referência ao peso bruto do veículo, desconhecendo o modo como a mesma iria acondicionada e as implicações que provocaria na visibilidade do condutor.
O depoimento prestado pela testemunha supra identificada surge complementado pelo teor do relatório de fls. 312 a 322, o qual atesta o teor das declarações pelo mesmo prestadas sobre a dinâmica e causas do acidente, o croquis de fls. 310 e 311; e o relatório fotográfico de fls. 132 a 157.
Analisou o tribunal igualmente os documentos juntos aos autos, mormente auto de exame ao local de fls. 57/59 (que permitem afirmar as características da via e do local do embate); auto de avaliação de estragos de veículo de fls. 60/62 (que permitem aferir os danos ocorridos no veículo); elementos clínicos de fls. 186 a 199; documentos relativos aos veículos de fls. 74 a 83, 124; exame ao veículo do arguido de fls. 159 a 165; guia de acompanhamento de resíduos da sucata transportada pelo veículo NC, de fls. 115.
Enunciados os meios de prova produzida, explicitada a razão de ciência dos depoimentos bem como os factos sobre que incidiram, parece-nos já possível intuir de que forma chegou o Tribunal à conclusão assente nos factos provados e não provados.
Importa, porém, desenvolver a análise crítica das provas, mormente relativamente a factos que assumem particular relevância, o que se faz de seguida.
O facto dado como provado em a) e c) decorre das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pelo agente da GNR, C…, no confronto com o auto de participação de acidente de viação de fls. 17 a 21, que o mesmo declarou ter elaborado porquanto se tratou da primeira autoridade a chegar ao local do acidente e a confrontar-se com a sua ocorrência e com os seus intervenientes, recolhendo os elementos constantes no auto elaborado, cujo teor não se encontra impugnado, valorando-se o teor das declarações aí prestadas pelo condutor do NC.
Quando ainda não detinha a qualidade de arguido nestes autos.
A marcha dos veículos surge confirmada pelo depoimento prestado pela inspector do NICAV.
O facto consignado em b) decorre da análise do documento de fls. 86 e 88.
Os factos dados como provados em c) a g) decorrem do depoimento supra descrito e que mereceu credibilidade por parte deste tribunal prestado pelo inspector responsável pelo inquérito do acidente, E…, porquanto não surge infirmado por qualquer outro meio de prova produzido e se afigura consentâneo com as regras de experiência comum.
Tratam-se de factos de essencial relevância porquanto se prendem com a dinâmica de produção do acidente, acidente e embate este que não foi presenciado por qualquer pessoa e do qual resultou a morte de um dos seus intervenientes.
Assim resta a este tribunal a valoração do depoimento prestado pelos agentes da GNR, C... e E..., com relevância para o prestado por este último dado os seus específicos conhecimentos técnicos.
Verificamos que a testemunha desempenha funções de instrutor do núcleo de investigação de acidentes de viação, sendo relevantes e credíveis os seus conhecimentos técnicos específicos, expondo de forma coerente e consistente a dinâmica do acidente por reporte à análise efectuada aos vestígios, marcas no local do acidente deixados pelos veículos e aos danos ocorridos pelos mesmos, ainda que o mesmo não tenha presenciado e considerando que qualquer outra pessoa o presenciou, mas não surgindo os mesmos infirmados por qualquer outro elemento de prova.
Que o acidente ocorreu em local da via situado, ainda que paralelamente porquanto já na 1ª via de circulação, antes do final da via de aceleração, é facto que julgamos poder afirmar por reporte às regras de experiência comum, na medida em que o veículo de matrícula francesa se encontrava imobilizado no final da mesma, sendo coerente que após o embate se tenha projectado para a frente e para o lado, dado o desvio imprimido pelo condutor.
Atenta a descrição efectuada pelo instrutor e entendendo este tribunal que a mesma merece credibilidade, assenta num percurso lógico cabalmente justificado, com sustentação nos vestígios e danos observados no local imediatamente após a sua produção, demonstrando o posicionamento oblíquo do arguido na entrada na 1ª faixa de circulação da A25, mediante entrada na mesma antes do terminus da faixa de aceleração e em momento em que circulava em tal via, mais à direita o veículo tripulado pelo condutor falecido.
Decorre assim que o arguido entrou na A25 sem percorrer a totalidade da faixa de aceleração e sem se certificar que o podia fazer (ou seja iniciar a marcha na A25) mediante verificação prévia, mediante cuidado de visualização, se circulava na via na qual se propunha entrar um qualquer veículo, de modo a evitar proceder ao “corte” da sua progressão de marcha, situação que veio a ocorrer e que motivou o embate.
O facto de inexistirem marcas de travagem do veículo do falecido avaliado à luz das regras de experiência comum permite sustentar o facto de o mesmo ter sido surpreendido pela manobra encetada pelo arguido.
Deste modo, os factos dados como provados em n) a q) supra descritos.
Assim, entendemos não ser relevante a justificação da opção de manobra efectuada pelo falecido - de evasão para a direita - porquanto o facto de ter tido a necessidade de proceder à mesma, demonstra a imprevisibilidade da manobra prévia efectuada pelo arguido, sendo certo que os condutores esperam dos demais o comportamento de acordo com o cumprimento das regras estradais, mediante condução prudente e de respeito pelas normas de entrada e circulação nas autoestradas.
No mais, o facto constante e dado como provado em h) resulta da análise do relatório de autópsia de fls. 300 e seguintes.
Ao factos constantes de i) a l) resultam da análise do auto de exame ao local de fls. 57 a 59.
O facto dado como provado em m) encontra suporte bastante nas declarações prestadas por ambas as testemunhas, agentes da GNR, que descreveram o local do acidente como local em que a A25 desenvolve uma recta com extensa visibilidade.
Os factos atinentes às condições pessoais e sociais do arguido e demais relevantes quanto à sua personalidade do mesmo decorreram das declarações pelo mesmo prestadas e pela testemunha A… apresentada por este, as quais mereceram credibilidade, não surgindo infirmadas por qualquer outro meio de prova.
A inexistência de quaisquer antecedentes criminais do arguido fundou-se na análise do respectivo certificado de registo criminal, junto aos autos. (com o valor probatório resultante do artigo 169.º do Código de Processo Penal).
No demais, e mormente quanto aos factos dados como não provados, os mesmos decorrem do depoimento prestado pelo agente instrutor, que avançou uma suposição de velocidades imprimidas pelos veículos, mas declarou não poder afirmar as mesmas por inexistência de qualquer elemento de suporte.
Mais decorre a inexistência de prova produzida no sentido de afirmar o nexo de causalidade entre a velocidade, não apurado, e o excesso de carga que o veículo do arguido transportava.
Assim, em conformidade, a matéria dada como não provada.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação do arguido K... as questões a decidir são as seguintes :
- se o depoimento da testemunha E…, agente da PSP investigador do Núcleo de Investigação de Acidentes de Viação, é um depoimento proibido, não podendo ser valorado;
- se a adesão do Tribunal a quo às convicções testemunha E… , que estão eivadas de contradições, integram os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, bem como a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, erro notório na apreciação da prova;
- se há provas que impõem decisão diferente sobre a matéria dos pontos a), c), d), e) , f), o), p), q) e r) dos factos dados como provados, porquanto o embate não pode ter sido como disse o agente e se escreveu na sentença;
- se a violação das três proibições de prova estabelecidas no art.130.º do C.P.P., resultantes do princípio da imediação, que decorre do Estado de Direito e das garantias de defesa ( art.32.º da C.R.P.), tem como consequência a nulidade da sentença nos termos do art.379.º, n.º1 do C.P.P.;
- se o Tribunal a quo reconhece que valorou depoimentos do arguido antes do mesmo ter essa qualidade, mas tendo o arguido optado pelo silêncio não o podia fazer, por violar o art.32.º da C.R.P.;
- se o Tribunal a quo, violou o princípio in dubio pro reo; e
- se as penas são excessivas atenta a ausência de antecedentes criminais.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
O recorrente K... defende que o depoimento da testemunha E…, agente da PSP, e investigador do Núcleo de Investigação de Acidentes de Viação ( NICAV), é proibido, por duas razões.
A primeira, é porque o art.130.º, n.º2, al. b), do C.P.P., só permite a manifestação de meras convicções pessoais sobre os factos ou sua interpretação quando tiver lugar em função de qualquer ciência, técnica ou arte, e o agente da PSP E… não é um perito, não é um cientista ou um técnico, mas um investigador do Núcleo de Investigação de Acidentes de Viação ( NICAV).
A segunda razão do depoimento da testemunha ser proibido é porque o arguido se remeteu ao silêncio e os acórdãos do STJ de 11 de Julho de 2001 ( CJ, 2001 , tomo III, pág. 166), de 29 de Junho de 1995 ( in Maia Gonçalves, C.P.P., pág. 344), de 15 de Novembro de 2000 ( CJ, STJ, ano VII, tomo III, pág. 216) e o acórdão da Relação de Coimbra , de 18 de Junho de 2003 ( CJ, 2003, Tomo III, pág. 53) apoiarão esta posição.
Vejamos.
Como princípio, o objecto e limites do depoimento da testemunha, são os factos de que a testemunha possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova ( art.128.º, n.º1, do C.P.P.).
O conhecimento directo dos factos é aquele que advém à testemunha imediatamente através dos seus próprios sentidos.
É dentro desta exigência de conhecimento directo dos factos que o art.130.º, do Código de Processo Penal estabelece o seguinte:
« 1. Não é admissível como depoimento a reprodução de vozes ou rumores públicos.
2. A manifestação de meras convicções pessoais sobre factos ou a sua interpretação só é admissível nos casos seguintes e na estrita medida neles indicada:
a) Quando for impossível cindi-la do depoimento sobre factos concretos;
b) Quando tiver lugar em função de qualquer ciência, técnica ou arte;
c) Quando ocorrer no estádio de determinação da sanção.».
A proibição sobre o depoimento que reproduz vozes ou rumores públicos, é uma proibição absoluta de meio de prova.
Já no que concerne à manifestação de meras convicções pessoais sobre factos ou a sua interpretação a proibição como meio de prova de prova é relativa, pois se em regra elas não valem como meio de prova, o n.º 2 do art.130.º do C.P.P. concretiza, em três alíneas casos em que elas são admissíveis.
Só perante o caso concreto poderá o tribunal decidir se o depoimento integra alguma das excepções em que a convicção pessoal sobre os factos ou a sua interpretação é admissível, por integrar alguma das alíneas do n.º 2 do art.130.º do C.P.P..
Para decidir se no caso em apreciação a testemunha E…, soldado da GNR – e não agente da PSP – manifestou convicções pessoais sobre os factos ou os interpretou fora de qualquer das excepções consagradas no n.º2 do art.130.º do C.P.P., é essencial atender à fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida.
Da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida resulta, designadamente, que a testemunha E… declarou, em audiência de julgamento, que é há 5 anos investigador do Núcleo de Investigação de Acidentes de Viação – Brigada de Trânsito, e que se deslocou ao local do acidente cerca de 45 minutos após a sua produção, deparando-se com uma viatura francesa semi-capotada, posicionada do lado direito da via, ocupando a via de aceleração, quase no final da mesma, e parcialmente a 1ª faixa da auto-estrada e o veículo de sucata, que se encontrava imobilizada a meio da 1ª e 2ª vias da auto-estrada.
Seguidamente, descreve-se na fundamentação da sentença, de modo assaz completo, a descrição que a testemunha fez do local do acidente e do local do embate por si assinalado nos croquis de folhas 310 e 311, bem com o percurso lógico que os veículos terão seguido aquando do acidente, considerando para o efeito os vestígios deixados pelos veículos na estrada, os vestígios dos danos nos veículos, o posicionamento dos veículos imobilizados, e a sua experiência profissional, corroborando os relatórios fotográfico de folhas 132 a 157 e de folhas 312 a 322.
A testemunha demonstrou, designadamente, que a posição dos veículos imobilizados na faixa de rodagem é compatível com o embate da frente lateral esquerda do veículo francês na traseira lateral direita do veículo do arguido e com o posicionamento diagonal do veículo do arguido, porquanto qualquer outro ponto de embate - nomeadamente um embate frontal dianteiro na totalidade da traseira, no caso dos veículos circularem na mesma faixa um atrás do outro - determinaria danos e um percurso e imobilização distintos dos ocorridos – sendo o veículo do arguido projectado para a frente ou para a direita e não para a esquerda na direcção do separador central, tendo frisado que a colisão se iniciou na traseira do veículo do arguido, razão pela qual assinalou tal ponto como local do embate no croquis elaborado, tendo como ponto forte de embate a traseira direita e que qualquer outro modo de produção do acidente seria incompatível com as marcas na via e danos nos veículos verificados.
A testemunha E…, como órgão de polícia criminal que é ( art.1.º, al. c) do C.P.P.), tem o dever de averiguar, designadamente, “… as circunstâncias em que o crime foi cometido.” ( art.243.º, n.º al. b) do C.P.P.).
A averiguação das circunstâncias em que decorreu um acidente de viação impõem ao órgão de polícia criminal determinar, em face dos vestígios deixados no local e nos veículos intervenientes, nomeadamente, a direcção em que seguiam os veículos antes do acidente de viação, o local da via onde transitavam e o local provável do embate.
Quando se pretende conhecer em audiência de julgamento as circunstâncias em que terá ocorrido e se chama a depor como testemunha o órgão de polícia criminal , que se deslocou ao local, frequentemente, não é possível cindir a interpretação dos factos da narração dos factos concretos apreendidos pela testemunha.
É o que acontece no presente caso, em que a interpretação dos factos em que terá ocorrido o acidente de viação é inerente à narração dos factos concretos pela testemunha E…, não sendo possível cindi-la, sob pena de ficar por explicar racionalmente a possível dinâmica do acidente e as circunstâncias em que ocorreu o eventual crime de homicídio por negligência.
Deste modo, entendemos que a interpretação que a testemunha faz dos factos concretos que presenciou no local do acidente está a coberto da excepção prevista na al.a), n.º2, art.130.º do Código de Processo Penal e, como tal, é admissível a valoração integral do seu depoimento.
Também não nos repugna verificar-se na presente situação a excepção prevista na al.b), n.º2, art.130.º do Código de Processo Penal, embora estejamos de acordo com o recorrente que a testemunha E… não é um perito.
Formalmente o perito é a pessoa nomeada pela autoridade judiciária para realizar uma perícia, que é um meio de prova que «… tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.» ( art.151.º do C.P.P.)
Em regra, a perícia deve ser realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado e só, subsidiariamente, por perito nomeado pelo tribunal ( art.152.º, n.º1 do C.P.P.).
O E… não foi ouvido em audiência como perito, que tenha participado na elaboração de uma perícia, mas como testemunha.
A al.b) n.º 2 do art.130.º do C.P.P. visa excepcionar da proibição de prova a convicção e interpretação de factos por testemunha em função de qualquer ciência, técnica ou arte desta, não se exigindo à testemunha, como se exige ao perito, especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
A testemunha E... é um investigador do Núcleo de Investigação de Acidentes de Viação.
É do conhecimento público que os Núcleos de Investigação de Acidentes de Viação, da GNR, são constituídos por um grupo específico de militares a quem foi dada formação específica para estudar como decorreram os acidentes de viação, as suas circunstâncias e as suas causas.
Os relatórios produzidos pelos Núcleos de Investigação de Acidentes de Viação da GNR mostram hoje uma elaborada técnica por parte de quem os elabora sobre as circunstâncias e as causas em que terão ocorrido os acidentes de viação.
As declarações prestadas pela testemunha E..., constantes da fundamentação da sentença não são as de uma qualquer testemunha, mas as de alguém que tem formação técnica específica para interpretar os factos concretos que presenciou no âmbito do acidente de viação.
É evidente que o depoimento desta testemunha, como de todas as outras, é apreciado livremente pelo tribunal nos termos do art.127.º do C.P.P., ou seja, tendo em conta as regras da experiência e a livre convicção do tribunal.
O recorrente K... defende ainda que o depoimento da testemunha E..., deve ser considerado proibido porque o arguido se remeteu ao silêncio, mas não indica qualquer norma que proíba esse depoimento.
Remete apenas, na motivação do recurso, para o acórdão do STJ, de 11 de Julho de 2001 ( CJ, 2001 , tomo III, pág. 166), que decidiu que os órgãos de polícia criminal que tiverem recolhido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer outras pessoas que a qualquer título tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas, nomeadamente se o arguido se remeteu ao silêncio e que as “conversas informais” não têm validade probatória; o acórdão do STJ de 29 de Junho de 1995 ( in Maia Gonçalves, C.P.P., pág. 344), que decidiu que recusando-se o arguido a prestar declarações em julgamento não podem ser inquiridos os órgãos de polícia criminal sobre as declarações do arguido que não foram lidas em julgamento; o acórdão do STJ de 15 de Novembro de 2000 ( CJ, 2000, tomo III, pág. 216) , que decidiu que são de considerar os depoimentos de agentes policiais baseados em diligências que fizeram para apurar a autoria do crime quer por se tratar de depoimento indirecto, quer por não ofender o disposto no art.356.º, n.º7 do C.P.P.; e para o acórdão da Relação de Coimbra , de 18 de Junho de 2003 ( CJ, 2003, Tomo III, pág. 53), que decidiu, designadamente, que a proibição de depoimentos dos órgãos de polícia criminal ou das pessoas a que se refere o art.356.º, n.º7 do C.P.P. apenas incide sobre o conteúdo das declarações prestadas pelo arguido em inquérito ou em instrução.
Resultando da fundamentação da matéria de facto que o depoimento da testemunha E... recaiu sobre as diligências por realizadas tendo por base os vestígios que encontrou no local do acidente, sem que ali seja feita qualquer menção a declarações prestadas pelo arguido antes ou já na pendência do inquérito ou da instrução, temos de concluir que da jurisprudência citada pelo arguido/recorrente na motivação do recurso não resulta qualquer proibição do depoimento prestado por aquela testemunha perante o silêncio exercido pelo arguido em audiência de julgamento.
Em suma, o depoimento da testemunha E... é admissível, mesmo na parte em que interpreta factos concretos por si presenciados no âmbito da averiguação do acidente por estar a coberto do n.º2 do art.130.º do Código de Processo Penal, e a jurisprudência citada pelo arguido/recorrente na motivação do recurso não impediria a valoração daquele depoimento pelo Tribunal a quo nos termos em que foi prestado e que resulta da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrido.
Improcede, deste modo, a primeira questão.
Por uma questão de ordem lógica importa agora passar a conhecer da quarta questão atrás enunciada, uma vez que respeita ainda ao disposto no art.130.º do Código de Processo Penal, mais concretamente à sua violação.
O recorrente K... defende que a violação das três proibições de prova estabelecidas no art.130.º do C.P.P., resultantes do princípio da imediação, que decorre do Estado de Direito e das garantias de defesa ( art.32.º da C.R.P.), tem como consequência a nulidade da sentença nos termos do art.379.º, n.º1 do C.P.P..
Na motivação do recurso nada mais é adiantado pelo recorrente sobre esta problemática.
O art.32.º da Constituição da República Portuguesa estabelece as garantias de processo criminal.
Ao estabelecer no seu n.º1 que « O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.», condensa numa cláusula geral todas as garantias explicitadas nos nove números seguintes, mas também todas as demais que decorressem da necessidade de efectiva defesa do arguido em processo penal.
O preceito deve ser apreciado à luz do denominado processo equitativo, na designação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
O art.379.º do Código de Processo Penal, estatui, por sua vez, designadamente, o seguinte:
« 1. É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359:º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.».
A nulidade da sentença da alínea a) respeita à falta de fundamentação ou de decisão condenatória ou absolutória no dispostivo; a nulidade da sentença da alínea b) respeita à inobservância do disposto nos artigos 358.º e 359:º, e a nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista.
No caso em apreciação o recorrente limita-se a mencionar, em abstracto, que existem três proibições de prova estabelecidas no art.130.º do C.P.P..
Uma vez que ao colocar esta questão o recorrente não indica em concreto qual ou quais dessas proibições terão sido violadas pelo Tribunal recorrido, temos de entender que se refere à violação da proibição a que alude a al.b), n.º2 do art.130.º do C.P.P., a que aludia na primeira questão.
Na decisão dessa questão já se deixou consignado que a manifestação das convicções pessoais sobre factos e sua interpretação por parte da testemunha E... é admissível na estrita medida em que não se pode cindir do depoimento sobre os factos concretos que presenciou no âmbito de averiguação das circunstâncias em que se produziu o acidente e, por outro lado, o depoimento da testemunha é ainda admissível porque tem lugar ainda em função de conhecimento técnicos que lhe advêm de ser investigador do Núcleo de Investigação de Acidentes de Viação, que é constituído por um grupo específico de militares a quem foi dada formação específica para estudar como decorreram os acidentes de viação, as suas circunstâncias e as suas causas.
Não tendo sido valorada uma qualquer das proibições de prova a que alude o art.130.º do Código de Processo Penal, não se pode concluir que a sentença padece de nulidade, seja ela qual for, dentre as enunciadas nas três alíneas do n.º2 do art.379.º do C.P.P., que o recorrente não especificou.
A questão seguinte é se a adesão do Tribunal a quo às convicções da testemunha E..., que estão eivadas de contradições, integram os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, bem como a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, erro notório na apreciação da prova;
Para este efeito, alega o recorrente que não há testemunhas oculares que indiquem que o veículo de matrícula portuguesa circulava na via de aceleração ( ponto a) dos factos dados como provados) e nenhuma das testemunhas o disse, nem há documentos que o provêm. Trata-se de especulações.
Não há testemunhas ou indícios que provem que o veículo de matrícula francesa circulava na via da direita ( ponto c) dos factos dados como provados); sabemos apenas que foi aí que se deu o embate (nada impede que o referido veiculo circulasse noutra via e que o condutor, tendo adormecido, tenha virado o carro para a direita embatendo com o veiculo do arguido).
Os pontos d) e e) dos factos dados como provados são apenas conjecturas, nenhuma prova existindo da sua veracidade.
Quanto ao ponto f) dos factos dados como provados, dá-se por provado um processo de intenção que não se tem como confirmar. Pode garantir-se que existiu a referida torção para a direita do veículo tripulado pela vítima mas não sabemos por que é que sucedeu. Estamos mais uma a falar em suposições.
Nos pontos o), p) q) e r) dos factos dados como provados considera mais uma vez o Tribunal que o arguido vinha da via de aceleração e que a vítima vinha na via da direita, coisa que não é possível de provar.
Só com uma perícia técnica e com uma reconstituição do acidente em termos científicos seria possível chegar às conclusões do agente do OPC.
A resposta à questão impõe que se explicite, embora de modo sucinto, em que consistem os vícios do art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal que estatui que, « Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou

c) O erro notório na apreciação da prova.».

Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P. têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.

Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º2 do art. 410.º do C.P.P., quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação ( e a medida desta) ou a absolvição ( existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto existe se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa. – neste sentido, cfr. entre outros, os Acórdãos do STJ de 7/04/2010 ( proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49) e os Cons. Simas Santos e Leal Henriques , in “Código de Processo Penal anotado” , 2ª ed., pág. 737 a 739.

Em termos sintéticos diremos que o vício da contradição existirá quando se afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa.

Duas proposições contraditórias não podem ser , ao mesmo tempo , verdadeiras e falsas.

“Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados”- Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques , in “Código de Processo Penal anotado” , 2ª ed., pág. 739.

O vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, elencado na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P., não se verifica quando o resultado a que o juiz chegou na sentença advém, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu melhor corresponder aos factos provados.
Já o erro notório na apreciação da prova tem lugar “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo ) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, Rei dos Livros , 2ª ed. ,Vol. II , pág. 740. No mesmo sentido decidiram , entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).

Por esta razão, na fundamentação da sentença , para além da enumeração dos factos provados e não provados , deve constar uma exposição , tanto quanto possível completa , ainda que concisa , dos motivos de facto que fundamentam a decisão , com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal ( art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal) .

O erro notório na apreciação da prova, que tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média, nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento.

Retornando ao caso concreto, e com este entendimento dos vícios do art.410.º, n.º2 do C.P.P., vejamos se todos, ou algum deles, se verifica.
O recorrente K... ao sustentar, que não há testemunhas oculares ou documentos que indiquem que o veículo de matrícula portuguesa circulava na via de aceleração, como consta do ponto a) dos factos dados como provados; que o veículo de matrícula francesa circulava na via da direita, como resulta do ponto c) dos factos dados como provados, ou que comprovem o que consta dos pontos d), e), f), o), p) q) e r) dos factos dados como provados, confunde o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, a qual resulta da convicção do julgador e das regras da experiência.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, relevante para efeitos do disposto no art. 410.º do CPP, consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis, e que impede que sobre a matéria da causa seja proferida uma decisão segura. Não se confunde com insuficiência de prova para a decisão de facto proferida.

O recorrente não aponta nas conclusões da motivação que existe carência de factos para a decisão de direito tomada pelo Tribunal a quo, mas sim uma carência de prova para este considerar alguns dos factos como provados.

O Tribunal recorrido apreciou os factos constantes da acusação e o recorrente não apresentou contestação. Os factos dados como provados permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento e, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se vislumbram factos que ficaram por apurar .

Assim, não temos por verificado este vicio .

O recorrente alega que o depoimento da testemunha E... está eivado de contradições e que a decisão padece do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Porém, não indica quais são, em concreto, essas contradições, quer na fundamentação, quer entre esta e a decisão, que como vimos têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.

Lendo o depoimento da testemunha, nos termos que constam do texto da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, não vislumbramos qualquer colisão racional entre o que ele terá dito em julgamento e a decisão tomada nos pontos a), c), d), e), f), o), p) q) e r) dos factos dados como provados.

O seu depoimento apresenta-se coerente, não só com o croquis que elaborou, como com o depoimento da testemunha C..., reproduzido também no texto da mesma fundamentação.

Consequentemente, não se reconhece a existência deste vício.

Importa agora decidir se perante a alegada ausência de testemunhas oculares ou documentos que indiquem que o veículo de matrícula portuguesa circulava na via de aceleração, que o veículo de matrícula francesa circulava na via da direita, e que comprovem o que consta dos pontos d), e), f), o), p) q) e r) dos factos dados como provados, se deve concluir que a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, a que alude a alínea c), n.º2 do art.410.º do C.P.P..

No entender do recorrente só com uma perícia técnica e com uma reconstituição do acidente em termos científicos seria possível chegar às conclusões do agente do OPC.
Vejamos.

O objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem , com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).
A prova indirecta “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289.
Como salienta o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996 , “ a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal , ano 6.º , tomo 4.º, pág. 555. No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1.º, pág. 51.
O erro notório na apreciação da prova, nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento, e que no caso passaria por dever ser dado como não provado que o arguido circulava pela via de aceleração, que o J... circulava na via da direita, e ainda o que consta dos pontos d), e), f), o), p) q) e r) dos factos dados como provados, dada a ausência de testemunhas oculares ou documentos que assim o indiquem.

Para o reconhecimento deste vício o que importa é saber se da analise do texto da decisão recorrida , nomeadamente da fundamentação da matéria de facto e das referências que nela são feitas aos depoimentos das testemunhas C..., M... e E... e aos documentos, pode ou não racionalmente concluir-se que o arguido circulava pela via de aceleração, que o J... circulava na via da direita, e ainda o que consta dos pontos d), e), f), o), p) q) e r) dos factos dados como provados.

A “perícia” ou uma “reconstituição do acidente em termos científicos” , que não foi realizada, nada importa para o conhecimento deste vício.

No caso em apreciação tem particular relevo o depoimento da testemunha E..., pois este explicou as características da via, e elaborou um croquis descrevendo a mesma via como uma auto-estrada com duas vias de circulação no sentido de marcha do veículos, Vilar Formoso – Guarda, e uma via de aceleração para acesso à AE n.º 25 de quem circulava na EN 234.
Esclareceu, designadamente, que a viatura francesa semi-capotada, estava posicionada do lado direito da via, ocupando a via de aceleração, quase no final da mesma, e parcialmente a 1ª faixa da auto-estrada e o veículo de sucata, que se encontrava imobilizada a meio da 1ª e 2ª vias da auto-estrada e que atentas as marcas de derrapagem e vestígios dos danos dos veículos depositados no local, apurou que embate ocorreu na 1ª via de circulação da auto-estrada, com o veículo do arguido posicionado obliquamente nessa via, por ter entrado na mesma em posição diagonal; que o veículo de matrícula francesa ao aperceber-se da entrada e presença do veículo do arguido na sua faixa de rodagem realizou manobra de evasão para a direita, no sentido da via de aceleração, não conseguindo evitar o embate na traseira do veículo do arguido.
Referiu que a descrição da dinâmica do acidente decorre da avaliação dos vestígios, marcas encontrados no local, no asfalto (marcas de derrapagem dos veículos que apontou no croquis), e do posicionamento dos veículos e o percurso decorrido até à imobilização.
« Demonstrou que a posição dos veículos imobilizados na faixa de rodagem é compatível com o embate da frente lateral esquerda do veículo francês na traseira lateral direita do veículo do arguido e com o posicionamento diagonal do veículo do arguido, porquanto qualquer outro ponto de embate - nomeadamente um embate frontal dianteiro na totalidade da traseira, no caso dos veículos circularem na mesma faixa um atrás do outro - determinaria danos e um percurso e imobilização distintos dos ocorridos – sendo o veículo do arguido projectado para a frente ou para a direita e não para a esquerda na direcção do separador central.
Frisou que a colisão se iniciou na traseira do veículo do arguido, razão pela qual assinalou tal ponto como local do embate no croquis elaborado, tendo como ponto forte de embate a traseira direita e que qualquer outro modo de produção do acidente seria incompatível com as marcas na via e danos nos veículos verificados.».
Considerando o ponto de colisão dos veículos e o local na via indicado como de embate em resultado da presença de vestígios no croquis de folhas 310 e 311, é perfeitamente racional considerar que o acidente ocorreu quando o veículo conduzido pelo arguido estava na diagonal na 1.ª via da direita e o veículo de matrícula circulando na mesma via, guinou para a sua direita, com vista a tentar evitar o embate no veículo que se lhe atravessou no espaço à sua frente. Ocorrendo o embate com o veículo conduzido pelo arguido naquela posição é ainda racional concluir que o arguido circulava momentos antes do embate na via de aceleração para acesso à AE n.º 25 de quem circulava na EN 234.
Perante o depoimento desta testemunha, corroborado em algumas partes pelos das testemunhas C... e M…, não vemos que o Tribunal recorrido , ao dar como provada a matéria de facto constante dos pontos a) , c), d), e), f), o), p) q) e r), tenha seguido um raciocínio ilógico , arbitrário ou contraditório , por si só ou conjugado com as regras da experiência comum , de onde se possa concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova.

Não se tem , pois , também por verificado este vício .

A questão seguinte é se há provas que impõem decisão diferente sobre a matéria dos pontos a), c), d), e) , f), o), p), q) e r) dos factos dados como provados, porquanto nenhuma das testemunhas viu o acidente e o embate não pode ter sido como disse o agente e se escreveu na sentença.
O art. 412.º, n.º3, do Código de Processo Penal, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:

« a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
c) As provas que devam ser renovadas
E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal :
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação

O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. ( n.º 6 do art.412.º do C.P.P.).

No presente caso, o recorrente K... indica nas conclusões da motivação os concretos factos que foram dados como provados na sentença recorrida e que considera incorrectamente julgados e, ainda, minimamente, as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida, bem como as concretas passagens, em que se fundamenta a impugnação com base na prova produzida oralmente na audiência, por referência ao consignado na acta.
Deste modo, o Tribunal da Relação considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, que o recorrente impugna, ao abrigo do disposto nos artigos 412.º, n.ºs 3 e 4 e 431.º, al. b), do C.P.P..
No âmbito de impugnação da matéria de facto, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova , previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal , que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento , encontrando afloramento , nomeadamente , no art. 355.º do Código de Processo Penal . È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova , na recepção directa de prova.
O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias , ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade , que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita , desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha , e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios , com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais “. - In “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .
Na verdade, a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Do exposto resulta que, para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Em suma, o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
O recorrente K... impugna a matéria de facto dada como provada alegando para o efeito o seguinte:
- dos documentos de folhas 18 ( Participação do acidente de viação), de folhas 112 ( talão de compra de gasolina pela vítima num posto de abastecimento em Espanha, às 23h50m , a cerca de 230 km do local do acidente ), de folhas 63 e 64 ( “Auto de conhecimento de comparência” elaborado pelo Soldado da GNR E..., de onde resulta o capotamento dos veículos pela força exercida pelo veículo de matrícula francesa na traseira do veículo de matrícula portuguesa ) e de folhas 85 a 88 ( pesagem do veículo de matrícula portuguesa à data do acidente, de 6620 kg), resulta indiciada a enorme velocidade a que o veículo de matrícula francesa circulava quando se deu o embate;
- a folhas 150, na legenda de uma das fotografias diz-se que há marcas de travagem do veiculo NC, após a colisão, que vão da via de aceleração para a via de circulação e a fls. 59 é referida a ausência de marcas de travagem, o que se configura contraditório;
- a folhas 311 o senhor agente indica um local de embate completamente errado, indica como local de embate o lado esquerdo da viatura do arguido (ver folhas 311) – a testemunha a folhas minutos 28.40 entra em completa contradição, sendo que até a Juíza afirma : “o senhor dr. tem razão...”.
- a minutos 28 a 31 a testemunha entra em contradição com o anteriormente afirmado, ao dizer que o embate se pode dar na lateral direita;
- as fotografias de folhas 150 são claras ao provar que o embate se dá entre a faixa de aceleração e a 1.ª via;
- a minuto 44.55 o agente disse: se o carro português estivesse paralelo à via , seria projectado para a via de aceleração.”
- a folhas 153 há claramente marcas do raspagem e derrapagem do carro de matrícula portuguesa na faixa de aceleração confirmadas pelo agente e folhas 153 e a minuto 45.53 a minutos, pelo que este estava a seguir em frente (paralelo e não na diagonal).
Vejamos.
No atinente à velocidade a que a vítima circulava, o recorrente K... menciona vários documentos no sentido de permitir o seu cálculo, chegando a indicar que circularia a uma média superior a 160 km/h. O que o recorrente não indica, porém, é a velocidade a que a vítima circulava aquando do acidente, ficando-se pela mera conclusão de que se indicia que era “enorme”.
Resulta da fundamentação da matéria de facto que a testemunha E... declarou em audiência que a viatura do falecido não circularia a velocidade inferior a 120 km/h, mas que essa velocidade era “uma suposição” e que não pode confirmar aquela velocidade por “ inexistência de qualquer elemento de suporte.”.
O Tribunal da Relação, com base nos documentos para que o recorrente remete, não pode concluir que a vítima, aquando do acidente, circulava a uma velocidade superior à legal para o local, que era de 120 km/h.
Aliás a circulação a 120 km/h embora legal, não deixa de ser enorme para efeitos de embate num veículo com carga em excesso, como acontecia com o veículo conduzido pelo arguido/recorrente.
Quanto à alegada contradição que resultará entre folhas 59 do “Auto de exame directo ao local” e folhas 150 do “Relatório fotográfico”, ambos elaborados pela testemunha E..., é manifesto que ela não existe.
A folhas 59 do “Auto de exame directo ao local” consta que inexistem marcas e vestígios “de travagem” dos veículos e que existem marcas e vestígios de “derrapagem” e “sulcos no pavimento” causados pelo capotamento dos veículos .
O que é assinalado na legenda da alínea c), fotografia 3, de folhas 150, são « Marcas de derrapagem e raspagem do veículo de matrícula .......».
Na legenda das fotografias juntas a folhas 150 não se menciona, em lado algum a existência de travagem do veículo de matrícula ...... – ou sua inexistência –, apenas se mencionando a existência de marcas de derrapagem e raspagem do mesmo veículo.
O recorrente alega que a folhas 311 a testemunha E... “indica um local de embate completamente errado, indica como local de embate o lado esquerdo da viatura do arguido.” e que a mesma testemunha a minutos 28.40 entra em completa contradição, sendo que até a Juíza afirma : “o senhor dr. tem razão...”. E a minutos 28 a 31 a testemunha entra em contradição com o anteriormente afirmado, ao dizer que o embate se pode dar na lateral direita.
Salvo o devido respeito, a representação dos veículos no croquis de folhas 311 mostra, sem qualquer dúvida, que a viatura de matrícula francesa embateu na traseira do veículo conduzido pelo arguido, atingindo-a mais do lado direito traseiro; não no lado esquerdo da viatura do arguido.
Por volta dos minutos 28:31 a 28:40 – sensivelmente – a testemunha E... não diz o contrário do que consta do croquis, sobre o ponto em que os veículos embateram entre si.
Em determinado momento o Ex.mo Advogado do arguido vai fazendo afirmações sobre fotografias e um croquis, chegando a afirmar para a testemunha que o veículo de matrícula francesa embateu no “lado esquerdo da viatura portuguesa”. Perante a afirmação da Ex.ma Juíza e da testemunha que o embate foi na traseira, é o Ex.mo Advogado que fala então em embate na lateral direita.
A testemunha E... já antes afirmara claramente que o embate entre as viaturas se deu entre a frente do lado esquerdo do veículo de matrícula francesa, “tipo cunha”, na traseira, do meio para o lado direito, do veículo de matrícula portuguesa - cfr. designadamente gravação do depoimento da testemunha , de minutos 16:15 a 25:15.
Quando o Ex.mo Advogado do arguido questionava a coincidência entre o croquis e as fotografias tiradas pela testemunha, e numa altura em que as afirmações trocadas entre ele e a testemunha se mostram pouco clarificadoras, a Ex.ma Juíza afirma : “o senhor Dr. tem razão...”; mas acrescenta logo para a testemunha “ o senhor aqui indica…, mas uma coisa é o local do inicio do embate, outro é o local dos danos , isto é o local dos danos ou é o local do início do embate?”.
A Ex.ma Juíza questiona a testemunha sobre o “local do embate” na via, apontado no croquis; não sobre o ponto de embate entre os veículos de matrícula francesa e portuguesa.
As quatro fotografias de folhas 150 , que permitem ver marcas na 1.º via da direita da AE. n.º 25 , que se prolongam por alguns centímetros na via de aceleração, não provam minimamente que o embate se dá entre a faixa de aceleração e a 1.ª via. Basta para o efeito considerar que as marcas embora pertencendo ao veículo conduzido pelo arguido não são de travagem, mas sim de derrapagem e de raspagem na sequência do capotamento; com estes elementos temos como perfeitamente plausível que o embate tenha ocorrido na 1.ª via da AE. n.º 25, embora próximo da via de aceleração, como consta do croquis de folhas 311 dos autos e o Tribunal a quo deu como assente no âmbito da imediação e da oralidade.
A testemunha E... declarou ainda, designadamente, que num embate frontal dianteiro, com a totalidade da traseira do veículo, o veículo embatido seria projectado para a frente ou para a via de aceleração.
A folhas 153 estão assinaladas marcas de derrapagem e raspagem na via, que se iniciam alguns centímetros dentro da via de aceleração. De acordo com a legendagem foram “ efectuadas pelo veículo de matrícula ...... no momento do capotamento” . Tal facto foi confirmado pela testemunha E....
O Tribunal da Relação, apreciando estes últimos argumentos do recorrente, como os restantes, visando a impugnação da matéria de facto em causa dada como provada pelo Tribunal a quo , não vislumbra razões para modificar essa matéria, pois a versão dos factos dados como provados pelo Tribunal recorrido na sentença , adquirida na base da imediação e da oralidade e na livre apreciação da prova, é perfeitamente admissível em face dos meios de prova indicados e examinados criticamente na fundamentação da matéria de facto da sentença.

Não se detectando na apreciação da prova erro de julgamento, por parte do Tribunal recorrido, improcede esta questão.
Importa agora decidir se o Tribunal a quo reconheceu que valorou depoimentos do arguido antes do mesmo ter essa qualidade e se, tendo o arguido optado pelo silêncio, não o podia fazer, por violar o art.32.º da C.R.P.
Consta da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, designadamente, que a testemunha C..., do Destacamento de Trânsito da GNR da Guarda, declarou que no âmbito da patrulha à AE n.º 25, se deparou com o acidente no nó da auto-estrada, sito no Alto do Leomil, sentido Vilar Formoso – Guarda e que o condutor da veículo de sucata, que se encontrava fora do veículo lhe referiu que não se havia apercebido da ocorrência e produção do acidente.
Menciona-se ainda na mesma fundamentação que « O facto dado como provado em a) e c) decorre das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pelo agente da GNR, C..., no confronto com o auto de participação de acidente de viação de fls. 17 a 21, que o mesmo declarou ter elaborado porquanto se tratou da primeira autoridade a chegar ao local do acidente e a confrontar-se com a sua ocorrência e com os seus intervenientes, recolhendo os elementos constantes no auto elaborado, cujo teor não se encontra impugnado, valorando-se o teor das declarações aí prestadas pelo condutor do NC.
Quando ainda não detinha a qualidade de arguido nestes autos.
A marcha dos veículos surge confirmada pelo depoimento prestado pela inspector do NICAV
No auto de participação de acidente de viação de fls. 17 a 21 consta que o condutor do veículo n.º 2 lhe declarou que ambos os veículos circulavam na AE n.º 25 , no sentido Vilar Formoso – Guarda e ao chegar sensivelmente ao nó de acesso AE n.º25/ Alto de Leomil, o veículo n.º 1 foi embater com a parte da frente lateral esquerda, na parte lateral direita do veículo n.º2.
Do exposto resulta que o Tribunal a quo valorou declarações da testemunha C..., designadamente na parte em, como primeira pessoa a chegar ao local do acidente, esclareceu como recolheu os elementos com que elaborou o auto de participação do acidente, reproduzindo o que o condutor do veículo n.º 2 lhe declarou no local sobre o acidente.
Para decidirmos se pode ser valorado o depoimento do órgão de polícia criminal enquanto se limita a reproduzir em audiência as declarações prestadas por pessoa que antes da existência de inquérito e que posteriormente constituída arguida se remete ao silêncio durante a audiência de julgamento, julgamos necessário deixar expressas algumas considerações.
A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal. De um modo geral, cabe-lhes coadjuvar as autoridades judiciais com vista à realização das finalidades do processo, actuando sob a directa orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional. ( artigos 55.º, n.º 1 , 263.º, n.ºs 1 e 2 e 270.º do C.P.P.).
Contudo, por vezes, antes da intervenção do Ministério Público e da existência de inquérito, perante a notícia de um crime, impõe-se a tomada por parte dos órgãos de polícia criminal, de medidas cautelares de polícia. Para salvaguardar estas necessidades, o art.55.º, n.º 2 do C.P.P., estatui que, « Compete em especial aos órgãos de polícia criminal, mesmo por iniciativa própria, colher notícia dos crimes e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova.».
Neste âmbito de recolha de informações, o art.250.º, n.º 8 do C.P.P. estabelece que « Os órgãos de polícia criminal podem pedir ao suspeito, bem como a quaisquer pessoas susceptíveis de fornecerem informações úteis, e deles receber, sem prejuízo do disposto no artigo 59.º, informações relativas a um crime e, nomeadamente, à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária.».
A ressalva, no n.º 8 do artº 250º.º, do C.P.P., em relação ao suspeito, do cumprimento do disposto no art. 59.º do C. P. Penal, impõe que se sobre ele vier a surgir “ fundada suspeita de crime”, deve ser constituído arguido, com atribuição dos consequentes direitos e deveres processuais, sob pena de as informações obtidas através do suspeito não poderem ser usadas contra ele.
Relativamente à notícia do crime, o art.242.º, n.º1, do C.P.P., estatui que « A denúncia é obrigatória, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos:
a) Para as entidades públicas, quanto a todos os crimes de que tomarem conhecimento;
b) Para os funcionários, na acepção do artigo 386.º do Código Penal, quanto a crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas.».
Por fim , o art. 356.º, n.º 7, do C.P.P., estabelece que « Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.».
Da conjugação deste preceito com o disposto no art.357.º do C.P.P., resulta que não pode ser valorado o depoimento dos órgãos de polícia criminal enquanto se limitam a reproduzir em audiência as declarações do arguido prestadas no inquérito ou na instrução, quando este se remete ao silêncio durante a audiência de julgamento.
Cremos ainda ser pacífico o entendimento de que os órgãos de polícia criminal, perante o silêncio do arguido na audiência de julgamento, não ficam impedidos de relatar os factos que sabem por conhecimento directo através de meios diferentes das declarações prestadas pelo arguido - cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 24 de Fevereiro de 1993, in CJ., STJ ano 1, tomo 1, pág. 202; e de 22 de Abril de 2004, in CJ, STJ, ano XII, tomo 2, pág. 165.
Onde a jurisprudência se mostra dividida é quanto á utilização e valorização dos depoimentos dos órgãos de polícia criminal prestados em audiência de julgamento enquanto reproduzem informações/declarações obtidas de quem ainda não é arguido, durante a prática de actos cautelares e urgentes para assegurar os meios de prova, e que posteriormente vem a ser constituído arguido.
Expressando essa divisão, através de votos de vencido, encontramos, no sentido da sua utilização e valoração, os acórdãos deste Tribunal da Relação, de 18 de Junho de 2003 – relatado pelo então Ex.mo Desembargador Oliveira Mendes, com um voto de vencido ( CJ, ano XXVIII, tomo 3, pág. 51) – e de 9 de Julho de 2008 – proc. n.º 601/07.6GBCNT.C1, relatado pelo Ex.mo Desembargador Jorge Dias, com um voto de vencido, ( www.dgsi.pt/trc).
No primeiro desses acórdãos, de 18 de Junho de 2003, defende-se que a proibição de depoimentos dos órgãos de polícia criminal ou das pessoas a que se refere o art. 356.º, n.º 7 do C.P.P. apenas incide sobre o conteúdo das declarações prestadas pelo arguido em inquérito ou em instrução e que o silêncio do arguido em audiência de julgamento não obsta à valoração e utilização dos depoimentos prestados em audiência por dois agentes da GNR na parte em que transmitiram ao tribunal terem ouvido dizer ao arguido, no Hospital, para onde havia sido levado após um acidente de viação, e no âmbito de apuramento da identidade do condutor do veículo interveniente no acidente de que resultou uma vítima mortal, que era ele o condutor. No mesmo sentido, o citado acórdão deste Tribunal da Relação, de 9 de Julho de 2008 , decidiu que deve ser valorado em audiência de julgamento o depoimento de um agente da autoridade que, no exercício das suas funções, ao tomar conta de uma ocorrência, foi informado por um interveniente em acidente de viação, que era ele o condutor – in www.dgsi.pt/trc.
O acórdão do STJ de 15 de Fevereiro de 2007 – proc. n.º 06P4593, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Maia Costa,, in www.dgsi.pt/stj -, defende que quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia compete a esta praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” ( art.249.º do C.P.P.). Está é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo. Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhado a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito. O que o art.129.º do C.P.P. proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249.º do C.P.P..
Retornado ao caso concreto diremos que as informações/declarações do K… à GNR, no local do acidente e sobre o acidente foram prestadas quando não era arguido, nem havia razões para já estar constituído como tal uma vez que não se verificava qualquer dos casos previstos nas alíneas a), b), c) e d), n.º1 do art.58.º do C.P.P..
Do n.º 5 deste mesmo preceito não resulta, consequentemente, que o Tribunal a quo não pudesse valorar as informações/declarações por ele prestadas.
Seguindo a doutrina maioritária dos acórdãos deste Tribunal da Relação atrás citados e do acórdão do STJ de15 de Fevereiro de 2007, afigura-se-nos que não existe qualquer violação ou fraude à lei, designadamente ao art.32.º da C.R.P., na livre valoração das informações/declarações prestadas pelo K… no local do acidente, como consta da fundamentação da matéria de facto da douta sentença recorrida.
Tais informações/declarações prestadas pelo K… no local do acidente à testemunha C... têm aliás escasso significado para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, pois o local do acidente e o sentido em que circulavam os veículos pode ser percebido independentemente delas, como resulta claramente da fundamentação da matéria de facto da douta sentença recorrida.
Improcede assim esta questão.
A penúltima questão a decidir é se o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo.
O recorrente defende que atenta a complexidade do processo, o excesso de velocidade da vítima e a colocação de hipóteses, faz tido o sentido aplicar o princípio in dubio pro reo.
Para decisão da questão importa consignar que o princípio in dubio pro reo, que o recorrente alega ter sido violado pelo Tribunal a quo, estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido. Ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
Decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele , escolheu a tese desfavorável ao arguido .- Cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 ( C.J. , ASTJ , ano IV , 1º, pág. 177 ) .
Os processos de acidentes de viação, pela diversidade da sua ocorrência e pelos elementos que é necessário apurar relativos à ilicitude típica, à culpa, aos danos e ao nexo de causalidade, são processos de alguma complexidade.
Diremos, em termos gerais, que a ausência de testemunhas oculares do acidente de viação e o silêncio do arguido no esclarecimento do mesmo, não são circunstâncias raras, mas o que torna complexo o processo, no apuramento da verdade, não é tanto a ausência de testemunhas oculares ou o silêncio do arguido, mas a quase ausência de vestígios dos veículos no local do acidente, impossibilitando e a sua interpretação racional.
No caso em apreciação, pese embora a ausência de testemunhas oculares do acidente de viação e o silêncio do arguido existe um razoável número de vestígios recolhidos no local do acidente, que permitiram, numa interpretação racional que o Tribunal a quo desse como assente a dinâmica do acidente, não o Tribunal da Relação motivos para concluir que o acidente de viação em apreciação, com as suas próprias circunstâncias, é de uma complexidade fáctica fora do comum.
Quanto ao alegado excesso de velocidade da vítima, resulta do texto da fundamentação da matéria de facto que não foi possível apurar as velocidades a que seguiam os veículos automóveis, aquando do acidente, por inexistência de qualquer elemento de suporte.
Por outro lado, a dinâmica do acidente dada como provada não resulta da colocação de hipóteses, mas da interpretação dos vestígios deixados no local pelo embate dos veículos intervenientes no acidente.
Da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da matéria de facto, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido dos factos dados como provados.
O que resulta daquela é um estado de certeza do Tribunal recorrido relativamente à prática pelo arguido/recorrente K... dos factos dados como provados.
Está deste modo afastada a violação pelo Tribunal recorrido do princípio in dubio pro reo.
Passemos agora a conhecer da última questão.
O recorrente defende, nas conclusões da motivação, que as penas que lhe foram aplicadas são excessivas, atenta a ausência de antecedentes criminais.
Na impugnação desta matéria de direito, as conclusões da motivação apresentadas pelo recorrente não dão cumprimento mínimo ao disposto no art.412.º, n.º 2 do C.P.P., que manda que dela constem as normas violadas, o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou a norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou devia ter sido aplicada e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que no entender do recorrente, deve ser aplicada.
O recorrente não fez estas indicações nem nas conclusões, nem na motivação do recurso; na motivação esta questão não mereceu ao recorrente qualquer menção.
Em circunstâncias como estas, em que o incumprimento se estende à motivação, não há que convidar o recorrente a aperfeiçoar as conclusões da motivação, como abundantemente tem sido decidido pelo Tribunal Constitucional e resulta do art.417.º, n.º 3 do C.P.P..
Pese embora o incumprimento do disposto no art.412.º, n.º 2 do C.P.P. seja motivo para não conhecimento da questão, não deixaremos de consignar que a sentença recorrida apreciou adequadamente a culpa do arguido, que considerou elevada, tal como a ilicitude; atendeu às exigências de prevenção, realçando as elevadas exigências da prevenção geral; e considerou ainda as outras circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depunham a favor ou contra ele, designadamente a ausência de antecedentes criminais, e a sua situação social e económica.
Tendo em conta que o crime de homicídio por negligência, p e p. pelo art.137.º, n.º1 do Código Penal, tem uma pena abstracta de prisão até 3 anos ou pena de multa, tendo o Tribunal optado pela pena de prisão – e bem face às exigências de prevenção geral, num contexto de violação de regras estradais básicas –, consideramos que, face aos critérios definidos nos artigos 40.º , 70.º e 71.º do Código Penal, a condenação do arguido em 1 ano e 5 meses de prisão, suspensa na execução por igual período, é adequada e proporcional à sua culpa e às razões de prevenção. Pelas mesmas razões são adequadas e proporcionais a coima e a sanção acessória fixadas na douta sentença recorrida.
Improcede assim integralmente o recurso.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido K... e manter a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando em 6 Ucs a taxa de justiça.

ORLANDO GONÇALVES (RELATOR)
ALICE SANTOS