Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ESTEVES MARQUES | ||
Descritores: | CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO ELEMENTOS DO TIPO | ||
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Data do Acordão: | 06/16/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE TORRES NOVAS | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | 291º,Nº1,AL.B) E 3 DO CP | ||
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Sumário: | 1.Comete o crime de condução perigosa de veículo rodoviário p.e p. pelo artº 291º nº 1 b) e 3 CP o agente que num local em que a via tem uma curva acentuada para a direita, e sem condições de visibilidade, procede a ultrapassagem de veículo no preciso momento em que se aproximava outra viatura em sentido contrário, obrigando a que o condutor do veículo ultrapassado, para evitar o embate iminente, tivesse de desviar o seu veículo para a berma do lado direito, pondo desse modo em perigo a integridade física dos ocupantes das viaturas e ainda a integridade estrutural do veículo em que se faziam transportar. | ||
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Decisão Texto Integral: | 18 Proc. nº 386/09.1TATNV.C1 RELATÓRIO
FUNDAMENTAÇÃO
A matéria de facto dada como provada na 1ª instância é a seguinte: “ 1. No dia 23 de Dezembro de 2007, pelas 12.50 horas, o arguido conduzia um veículo de quatro rodas classificado como ‘automóvel ligeiro’, marca e modelo ‘Seat Ibiza’, de cor vermelha, matrícula 57--, circulando na Estrada Nacional nº 3, sentido Torres Novas – Entroncamento. * Conforme resulta da análise das conclusões da motivação, a divergência do recorrente relativamente à decisão recorrida assenta nos seguintes pontos:- Nulidade da sentença. - Impugnação da matéria de facto. - Violação do princípio in dubio pro reo - Qualificação jurídica dos factos Passemos à sua apreciação. A) Da nulidade da sentença Alega o recorrente que a sentença padece da nulidade prevista no artº 374º nº 2 e 379º nº 1 a) CPP, porquanto os factos que foram considerados provados não são susceptíveis de integrar o ilícito pelo qual o arguido foi condenado. Pois bem o que desde já se dirá é que se os factos dados como provados não chegam para suportar a condenação, a consequência é a absolvição e não a existência de uma nulidade. Realmente não vislumbramos como é que o recorrente pode fazer um tal diagnóstico. É que o preceito invocado está reservado para as situações em que existe inexistência ou insuficiência da motivação de facto e ou de exame crítico das provas. que serviram para formar a convicção do tribunal. O artº 374º nº 2 CPP é muito claro “ Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”. Ora no caso dos autos, a fundamentação apresentada não é merecedora de crítica já que observa exemplarmente aquela exigência legal. Saber se os factos provados integram ou não o crime por que foi condenado o arguido é pois questão diametralmente oposta à existência da invocada nulidade. Improcede por isso manifestamente o recurso neste ponto. B) Da impugnação da matéria de facto Na perspectiva do recorrente os pontos 2, 3 e 14 da matéria de facto provada, foram incorrectamente julgados. Alega para o efeito que o tribunal deu credibilidade ao depoimento de MR e RR e não a deu à testemunha R, sendo que a versão deste seria convincente. Pois bem, como é sabido o artº 127º CPP estabelece que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Tal princípio não é, como é lógico, uma apreciação imotivável e arbitrária da prova que foi produzida nos autos, já que é com a referida prova que se terá de decidir. É que quod non est in actis non es in mundo. Como escreve Figueiredo Dias Direito Processual Penal, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 140., essa convicção existirá quando “ o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na “ convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e quanto à dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”. Para além disso não podemos de modo algum ignorar que a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade. É que uma coisa é estar ao vivo a ouvir, ver, apreciar gestos, as hesitações ou o tom de voz e outra, bem diferente é proceder à audição de um CD. E é de tal envergadura a importância do princípio da oralidade que o Prof. Alberto dos Reis afirmava Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 566. “ A oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal.... Ao juiz que há-de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar”. E estes factores têm de ser tidos em conta. Na motivação do seu recurso o recorrente, como vimos, ao fim e ao cabo reconhece que as conclusões sobre a facticidade provada têm o seu suporte nas versões das testemunhas MR e RR, que o acompanhava, mas entende que a versão por si defendida e secundada pela testemunha R deveria ser aquela a ter acolhimento pelo tribunal, porquanto na sua perspectiva corresponderia ao que realmente aconteceu. Dito isto se avançará dizendo que da audição dos depoimentos prestados por aquelas testemunhas, de acordo com os critérios da experiência comum, da lógica do homem médio suposto na ordem jurídica e do bom senso, conclui-se que os factos provados têm um real e efectivo suporte na prova produzida. Não foi pois o Sr. juiz que imaginou a descrita conduta do arguido. Com efeito não só a forma como o arguido efectuou a ultrapassagem que corresponde à descrição feita pelo ultrapassado, testemunha MR, como a mesma foi presenciada pela testemunha RR, que o acompanhava, as quais foram muito claras e convincentes quanto ao tempo, objecto, lugar e ao modo como tudo se desenrolou. E não se argumente, como o faz o arguido, dizendo que o depoimento de MR não merece credibilidade porque não se deu como provado uma parte do seu depoimento, isto é que atrás de si circulava um Volkswagen conduzido por uma senhora. É verdade que tal não foi dado como provado. E também não tinha que o ser. Desde logo porque era um facto completamente irrelevante. O que importa é as circunstâncias em que concretamente o recorrente fez a manobra de ultrapassagem à testemunha MR e as consequências que daí advieram para este e não a ultrapassagem anteriormente feita a outro veículo. É que apenas os factos que sejam relevantes ou que tenham interesse para a decisão é que são relacionados entre a facticidade provada e não provada, isto é os factos essenciais “ Não existe violação do Artº 374º nº 2, do CPP por nem todos os factos constantes da acusação/pronúncia e da contestação terem sido enumerados como provados ou não provados. Só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar da enumeração” – AcSTJ 98.02.11, BMJ 474, pág. 151. “ O disposto no Artº 374º nº 2, do CPP apenas exige que sejam enumerados os factos essenciais para a descoberta da verdade, e não aqueles que são indiferentes para esta, como acontece com os meramente instrumentais” – AcSTJ 98.10.07, CJSTJ 3, pág. 183. Os factos impertinentes ou desnecessários não têm pois aqui cabimento. Mais refere o arguido que a ultrapassagem não poderia ter sido feita no local referido pela testemunha MR, mas sim antes. Quer dizer o recorrente põe em causa apenas a credibilidade da referida testemunha. É um problema claramente de valoração da prova. Quer dizer o recorrente impugnou a convicção do julgador em contraposição com a convicção que ele próprio adquiriu, esquecendo o princípio da livre apreciação da prova, sendo certo que o tribunal recorrido beneficiou da vantagem da oralidade e imediação, o que significa estar mais apetrechado para avaliar da credibilidade dos meios de prova, relativamente a este tribunal de recurso. E conforme resulta da sua audição é peremptória e convincente “ a ultrapassagem foi à entrada da curva à direita… de frente vinha um Fiat, eu encostei-me o mais possível à berma da estrada, encostei as rodas direitas à berma… de terra batida… a ultrapassagem foi iniciada em local onde havia traço contínuo… se não tivesse feito o desvio havia um acidente… passaram os três carros pela mesma faixa”. E não se invoque a testemunha R, cuja audição do depoimento nos deixa muitíssimas dúvidas que tivesse estado no local na altura em que os factos ocorreram, tendo prestado um depoimento apenas preocupado em referir que o arguido fez uma manobra de ultrapassagem perfeitamente regular e em local onde o podia fazer, mas sem que conhecesse então o arguido. Ora não deixa de ser estranho à luz da experiência comum que a testemunha tivesse prestado uma tal atenção à realização de uma manobra de ultrapassagem, incluindo à alegada prévia sinalização luminosa feita, sendo que até nem conhecia o condutor nem houve qualquer acidente que justificasse a memorização do acontecimento. Por outro lado também é de estranhar que esta testemunha tivesse reconhecido o condutor/arguido, como frequentador do mesmo café, quando este estava mais à frente parado no semáforo, “ porque era um carro que estava sempre limpinho, todo lavado, brilhante e a matrícula”, quando pelo menos haveria entre si e o arguido a viatura da testemunha MR. É que não é normal que as pessoas que frequentam cafés andem a reparar no estado em que as viaturas desses frequentadores se apresentam e a fixar-lhe as matrículas. Não merecia pois qualquer credibilidade, como muito bem entendeu o Mmº juiz. É que ao atacar a decisão da matéria de facto, pela via de um simples diferente juízo sobre a credibilidade dos diversos depoimentos e declarações, o recorrente põe apenas em causa o princípio da livre apreciação da prova, o que não pode colher. É que é exactamente nestes casos em que se dá credibilidade a uns depoimentos e não se dá tal credibilidade a outros, que o princípio da livre apreciação da prova tem aplicação. Finalmente, não se vê, antes pelo contrário, que a convicção do julgador se tenha formado contra as regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Mais refere o arguido haver contradição ao dar-se como provada a realização da manobra de ultrapassagem nos termos consagrados na matéria de facto e simultaneamente que o mesmo “ é tido, pelas pessoas que com ele privam, uma pessoa responsável e, quando se encontra na estrada, cuidadosa, e respeitadora das regras de trânsito”. Mas também aqui não tem razão. Na verdade é perfeitamente normal que um condutor que seja assim rotulado pelas pessoas que com ele privam, possa em certos momentos não o ser, sem que daí decorra qualquer contradição. Refira-se por último que não se lobrigando na decisão recorrida qualquer um dos vícios a que alude o artº 410º nº 2 CPP, temos, pois, como bem fixada a matéria de facto. Por isso o recurso terá de improceder. C) Da violação do princípio in dubio pro reo Invoca ainda o arguido a violação do princípio in dubio pro reo, por existirem dúvidas sobre a verificação dos factos. Aquele princípio estabelece que a dúvida sobre os factos favorece o arguido. Tem o seu campo de aplicação no âmbito da matéria de facto. Como já se viu anteriormente inexistem razões para pôr em dúvida a matéria de facto que foi considerada provada que pudesse determinar a absolvição do arguido. O processo lógico do julgamento de facto levado a cabo pelo tribunal com base no princípio da livre apreciação da prova e tendo em conta a fundamentação invocada para o mesmo, não deixa qualquer margem para dúvidas de que concorrem, todos os elementos de facto e de direito, objectivos e subjectivos, para se poder dizer que se encontra verificado o crime por que foi condenado o arguido. Por isso improcede também o recurso quanto a esta matéria. D) Da qualificação jurídica dos factos O recorrente neste segmento alega que existem dúvidas quanto à prática do crime pelo arguido, devido principalmente à “incoerência das declarações das testemunhas”. Ora com tal alegação nada justificava a apreciação sobre a qualificação jurídica dos factos, tanto mais que a impugnação da matéria de facto onde teria lugar a apreciação da invocada “ incoerência das declarações das testemunhas” não colheu. De todo o modo sempre se dirá que o enquadramento jurídico feito é o correcto. Vejamos. Estabelece o artº 291º CP: “ 1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada: a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 - ………. 3 – Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até………….. 4 -……….”. Ora conforme se alcança da análise da referida alínea b), do nº 1, constata-se que aí se enumeram as manobras que podem constituir violações grosseiras das regras de condução. A saber, as relativas: - à prioridade; - à obrigação de parar; - à ultrapassagem; - à mudança de direcção; - à passagem de peões; - à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações; - à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações; - ao limite de velocidade; - à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita; Assim este elenco de manobras consubstancia as mais graves violações das condições de segurança rodoviária, que são susceptíveis de constituir violações grosseiras das regras de condução. Como escreve Maia Gonçalves Código Penal Português, 16ª ed., pág. 894. “Não se refere somente este artigo às condições de segurança, mas adianta em que consiste essa violação; e - Elencou as mais graves violações das condições de segurança da condução rodoviária; e sendo certo que todas elas são para prevenir perigos, há no entanto algumas que têm conexão directa com alguns perigos.”. Trata-se de um crime doloso de perigo concreto, bastando-se com esse perigo AcSTJ 97.06.12, BMJ 468, 124; Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança, pág. 14; Maia Gonçalves, Obra citada, pág. 894.. Ora o arguido ao iniciar a manobra de ultrapassagem numa curva acentuada para a direita, sem condições de visibilidade, infringiu a norma contida no artº 41º nº 1 e) do Código da Estrada que estabelece que é proibida a ultrapassagem nas curvas de visibilidade reduzida. Acresce que as manobras de ultrapassagem são das mais perigosas e, por isso, da sua execução de forma inconveniente ou imprópria resulta a larga percentagem de acidentes de trânsito. Violação manifestamente grosseira das regras de trânsito susceptível de criar um risco de ocorrência de acidente para o veículo conduzido pelo queixoso. E em concreto no caso em análise essa manobra foi feita no preciso momento em que se aproximava outra viatura em sentido contrário, obrigando a que o condutor do veículo ultrapassado, para evitar o embate iminente, se tenha visto forçado a desviar o seu veículo para a berma do lado direito, pondo desse modo em perigo a integridade física dos respectivos ocupantes das viaturas e ainda a integridade estrutural do veículo em que se faziam transportar. E mais grave ainda quando o arguido sabia que com tal manobra punha em risco a integridade física dos ocupantes dessa viatura, o que revela a grande imprudência como exercia a condução, criando por isso um perigo concreto para os bens jurídicos individuais. Do exposto resulta que face à matéria de facto que foi considerada provada, o arguido cometeu o crime de condução perigosa de veículo rodoviário por que foi condenado. DECISÃO Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando integralmente a douta decisão recorrida. Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em cinco Ucs. Notifique. Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (Artº 94º nº 2 CPP). Tribunal da Relação de Coimbra, 16 de Junho de 2010. |