Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
386/09.1TATNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
ELEMENTOS DO TIPO
Data do Acordão: 06/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 291º,Nº1,AL.B) E 3 DO CP
Sumário: 1.Comete o crime de condução perigosa de veículo rodoviário p.e p. pelo artº 291º nº 1 b) e 3 CP o agente que num local em que a via tem uma curva acentuada para a direita, e sem condições de visibilidade, procede a ultrapassagem de veículo no preciso momento em que se aproximava outra viatura em sentido contrário, obrigando a que o condutor do veículo ultrapassado, para evitar o embate iminente, tivesse de desviar o seu veículo para a berma do lado direito, pondo desse modo em perigo a integridade física dos ocupantes das viaturas e ainda a integridade estrutural do veículo em que se faziam transportar.
Decisão Texto Integral: 18
Proc. nº 386/09.1TATNV.C1
RELATÓRIO


Em processo comum singular do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, o arguido V, foi submetido a julgamento, tendo sido condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo artº 291º nº 1 b) e 3 CP, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6 Euros e 4 meses de inibição da faculdade de conduzir, nos termos do artº 69º nº 1 a) CP.
Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, e em cuja motivação produziu as seguintes conclusões:
“1. Os elementos fornecidos pelo processo, especialmente o depoimento das testemunhas, impõem c1aramente decisão diversa da que foi proferida no que concerne à prática do crime de tráfico de menor gravidade Seguramente que o recorrente queria dizer “ crime de condução perigosa de veículo rodoviário” e como tal será entendido., uma vez não foi para além disso sido produzida em sede de audiência de julgamento prova bastante da prática do crime daquele crime.
2. Consideram-se incorrectamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto constantes da sentença:
- Fls. 2, parágrafo 2 (alínea 2), deu por provado que nas circunstâncias de tempo e lugar, à frente do veículo do arguido, e no mesmo sentido de marcha, circulava o conduzido por MR.
- Fls. 2, parágrafo 2 (alínea 3), deu por provado que o veículo conduzido pelo arguido aproximou-se das traseiras da viatura tripulada por MR, e realizou uma manobra de ultrapassagem deste último veículo.
- Fls. 4, parágrafo 1 (alínea 15), o Tribunal a quo, aliás douto, dá por provado que o arguido é tido pelas pessoas que com quem priva como pessoa responsável quando se encontra na estrada, cuidadosa e respeitadora das regras de trânsito.
- Fls. 5, parágrafo 2, fundamenta o douto Tribunal a quo que a sua convicção quanto à factualidade apurada baseou-se no testemunho do ofendido MR, que o reputou como totalmente credível, evidenciando uma postura séria e autêntica, declarações estas corroboradas pelo testemunho de R, filho daquele, ocupante da mesma viatura.
- Fls. 6, parágrafo 2, refere o douto tribunal a quo aquando da inspecção ao local, que as declarações de MR e R, foram coerentes, esclarecedoras, convincentes e mais credíveis que as do arguido.
- Fls. 7, parágrafo 1, o douto tribunal a quo não dá suficiente credibilidade ao testemunho de RR, porquanto, e por um lado, considerou que nenhum dos dois intervenientes (MR e R) confirmou a presença da testemunha RR e de um automóvel por si conduzido, imediatamente atrás dos veículos do arguido e de MR, (tendo aquele primeiro feito referência à existência de um Volkswagen, portanto de marca diferente daquela que é indicada pela testemunha RR).
- Fls. 7, parágrafo 1, por outro lado considerou ainda o tribunal a quo, aliás douto, ser totalmente inverosímil a forma como esta testemunha explica a ligação que tem com o arguido (ou a falta dela). A testemunha refere que ambos frequentam o mesmo café, e que na data dos factos comentou a referida ocorrência nesse café, tendo associado a mesma ao arguido pois reconheceu a matrícula e em especial porque o automóvel do arguido tem por particularidade o facto de estar sempre limpa.
3. Por um lado as provas atrás referidas e por outro a insuficiência de prova, impunham decisão diversa da recorrida.
4. Da análise de todo o processo e da prova produzida, principalmente dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela douta acusação, constata-se existirem incongruências graves e patentes que põe em causa a credibilidade que lhe foi conferida pelo douto Tribunal a quo.
5. Resulta das declarações da testemunha MR que atrás do veículo conduzido por si seguia um outro de marca Volkswagen de cor clara.
6. Factualidade que a mesma testemunha reforça como verdadeira e sem qualquer dúvida.
7. Contudo, o douto Tribunal a quo, ainda que não se pronunciando quanto a este facto, dá-o como não provado (a contrario sensu dá por provado que o arguido aproximou-se das traseiras da viatura tripulada por MR. e realizou uma manobra de ultrapassagem).
8. O douto Tribunal a quo ainda que dando total credibilidade a esta testemunha, quanto a este facto não deu, e ao invés deu como credíveis as declarações do arguido, contrariamente ao demais.
7. Porém a exclusão desta factualidade põe em crise todo o depoimento daquela testemunha porquanto as suas declarações assentam, na íntegra, num pressuposto que foi dado por não provado.
8. Pressuposto este que põe em contradição tudo o demais, nomeadamente o local de início e fim da manobra de ultrapassagem, dado que se terá que concluir que a ultrapassagem foi realizada a um único automóvel.
9. Ainda mais quando resulta das declarações desta testemunha que existia uma distância de 15 metros entre o seu automóvel e o tal Volkswagen que seguia atrás de si, distância esta capaz de permitir que a manobra fosse efectuada por duas vezes.
10. Resulta também das declarações de MR que a ultrapassagem ocorre em local com traço contínuo. Porém o local é sinalizado por sinalização vertical que permite a ultrapassagem na descida junto ao antigo restaurante "O Retiro do Zé Manel" até imediatamente antes da curva acentuada à direita.
11. E caso dúvidas subsistam quanto à existência de sinalização vertical à data dos factos, existe igualmente sinalização no solo, quase imperceptível (conforme corrobora a testemunha MR), que é de traço descontínuo para que segue o sentido Torres Novas - Entroncamento (conforme prova documental junta ao autos).
12. Existem contudo, inúmeras contradições nos depoimentos das testemunhas MR e R R.
13. A testemunha MR refere que a ultrapassagem foi iniciada quando a sua viatura se encontrava a meio da curva acentuada à direita.
14. Depois refere teve que desviar o seu veículo para a berma a fim de permitir a passagem do veículo do arguido a meio dessa mesma curva.
15. A mesma testemunha depois quando novamente questionada quanto ao local refere que a ultrapassagem foi efectuada imediatamente antes da curva.
16. Por sua vez, a testemunha R R refere que aquela manobra foi realizada em local que permitia a visibilidade dos veículos que seguiam em sentido contrário, logo teria que ser antes da curva acentuada à direita ou depois da contra-curva à esquerda.
17. Todavia, questionado novamente quanto a este ponto, a testemunha refere que a ultrapassagem deu-se depois da curva à direita, portanto em local sem qualquer visibilidade dos veículos que seguissem em sentido contrário, contrariando assim o inicialmente afirmado.
18. Refere ainda a testemunha MR que o automóvel que apareceu em sentido contrário (um tal Fiat) só surge quando o arguido já havia ultrapassado o tal Volkswagen, estando este a 20-30 m quando se apercebe do mesmo (estando em plena curva à direita seguida de contra-curva à esquerda.
19. Outra incoerência é a velocidade que dizem ter sido praticada pelo arguido porquanto à referenciado pela testemunha RR que à frente do veículo do seu pai seguiam outros, o que torna o regresso do arguido à sua mão quase impossível.
20. Por sua vez, não deu o douto Tribunal a quo suficiente credibilidade às declarações de R, por um lado porque a sua presença não foi confirmada por nenhum dos outros intervenientes e por outro porque considerou totalmente inverosímil a sua ligação (ou falta dela) ao arguido e ainda a forma como reconheceu o mesmo.
21. Sucede porém que a presença desta testemunha não foi negada: a testemunha MR refere não se ter apercebido de outras viaturas além do tal Volkswagen que seguia a trás de si (facto que não pode ser valorado porquanto foi dado por não provado) e a testemunha RR afirma a existência de outras viaturas atrás da conduzida pelo seu pai.
22. Quanto ao demais, contrariamente ao douto entendimento do Tribunal a quo, é bastante comum e nada estranho a associação de matrículas a pessoas, ainda mais quando as viaturas têm alguma característica que a distinga.
23. Parece aceitável que o frequentador de um mesmo café, mesmo só o conhecendo de vista desse espaço, o reconheça pela sua viatura ainda mais quando é comentado nesse meio pelo facto de ter sempre o seu automóvel a brilhar.
24. Sendo ainda tanto mais válido que comentasse nesse local um episódio caricato em que um dos intervenientes é cliente habitual desse mesmo café, sendo conhecido por estimar exageradamente o seu automóvel.
25. Além do mais, Torres Novas é um meio pequeno, onde quase todos se conhecem e onde os frequentadores dos vários estabelecimentos comerciais, principalmente do comércio tradicional, são clientes habituais.
26. A rejeição do depoimento desta testemunha é injustificada, encontrando por isso insuficientemente infundada.
27. Ainda que dê por provado que o arguido é responsável, cuidador e respeitador das regras de trânsito, admite a realização da referida manobra nos termos expostos na douta sentença.
28. Assim, os factos dados provados em sede de audiência de julgamento, não são susceptíveis de integrar o tipo de ilícito considerado praticado pelo arguido pela douta sentença.
29. Em consequência é o douto acórdão nulo nos termos do artigo 374° nº 2 e 379° nº 1 alínea a) do C.P.P.
30. E ainda que assim não se entenda sempre se dirá que subsiste a dúvida quanto à prática deste crime pelo arguido, atento principalmente a incoerência das declarações das testemunhas.
31. A sentença recorrida violou claramente o princípio in dúbio pro réu, o artigo 355° do C.P.P., o artigo 40° do C.P. e o dever de fundamentação previsto da sentença previsto no artigo 374 nº 2 do CPP.”.
O MP respondeu à motivação, concluindo que o recurso não merece provimento.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

A matéria de facto dada como provada na 1ª instância é a seguinte:

“ 1. No dia 23 de Dezembro de 2007, pelas 12.50 horas, o arguido conduzia um veículo de quatro rodas classificado como ‘automóvel ligeiro’, marca e modelo ‘Seat Ibiza’, de cor vermelha, matrícula 57--, circulando na Estrada Nacional nº 3, sentido Torres Novas – Entroncamento.
2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, à frente do veículo do arguido, e no mesmo sentido de marcha, circulava um outro veículo automóvel, marca e modelo ‘Opel Corsa’, conduzido por MR, tendo ainda no seu interior o filho deste último, RR.
3. Nas circunstâncias acima descritas, num local em que a via tem uma curva acentuada para a direita, sem condições de visibilidade, o veículo conduzido pelo arguido aproximou-se das traseiras da viatura tripulada por MR e, então, realizou, de forma repentina, uma manobra de ultrapassagem deste último automóvel.
4. Nesse momento, circulava em sentido contrário, pelo menos, um outro veículo automóvel, pelo que, surpreendido pela manobra do arguido, MR, de forma a evitar o embate iminente com a viatura daquele, viu-se forçado a desviar o automóvel que conduzia e sair com o mesmo para a berma do seu lado direito.
5. Durante esta manobra do veículo conduzido pelo arguido, MR e RR ao presenciarem-na, temeram, pelo menos, pela sua integridade física.
6. O arguido previu e quis conduzir o veículo automóvel 57-. da forma acima descrita.
7. De forma voluntária e consciente, não manteve este veículo, como podia e devia, dentro da hemi-faixa direita, e o mais próximo possível do lado direito da via (atento o seu sentido de marcha), efectuando uma manobra de ultrapassagem numa curva sem visibilidade.
8. Sabia o arguido que, com essa manobra, poderia causar a colisão com outras viaturas e causar perigo para a integridade física dos respectivos ocupantes, concretamente para MR e RR, assim como perigo de perecimento do veículo automóvel em que estes seguiam, confiando que tal resultado não se iria verificar e que tal perigo não se iria concretizar.
9. Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, não se inibindo de a adoptar, não obstante ter capacidade de se determinar segundo as prescrições legais.
10. O arguido aufere, com o seu trabalho, um vencimento de € 900,00 mensais.
11. Vive com a sua companheira, que se encontra grávida.
12. Reside, com o seu agregado, em casa própria, pagando, por conta da mesma, uma prestação bancária no valor mensal de € 300,00.
13. Suporta, ainda, outras prestações bancárias, pela aquisição das viaturas automóveis do seu agregado, no valor mensal de € 600,00.
14. É tido, pelas pessoas que com ele privam, uma pessoa responsável e, quando se encontra na estrada, cuidadosa e respeitadora das regras de trânsito.
15. Não tem antecedentes criminais. “
Factos não provados:
“ a) os veículos conduzidos pelo arguido e por MR circulassem no sentido Entroncamento – Torres Novas;
b) no local da manobra não existisse sinal de proibição de ultrapassagem e o tracejado existente fosse descontínuo;
c) no momento da ultrapassagem não transitasse nenhum veículo em sentido contrário;
d) no momento da ultrapassagem o arguido tenha efectuado o sinal luminoso (pisca-pisca’);
e) quaisquer outros factos que pudessem assumir relevância na decisão da causa.”.
Motivação de facto:
“ Para formar a sua convicção quanto à factualidade apurada, baseou-se o Tribunal, essencialmente, na apreciação crítica das declarações prestadas pelo arguido e do depoimento das testemunhas MR e RR arroladas pelo Ministério Público, R, D, C e H indicadas pelo arguido.
Confrontando e aprofundando todos estes elementos de prova, o Tribunal atendeu, ainda, às percepções por si directamente obtidas através da inspecção realizada ao local.
O arguido, confirmando a versão dos factos descrita na sua contestação, reconhece que se encontrava a circular com o veículo automóvel ‘Seat Ibiza’, matrícula 57-.. nas circunstâncias de tempo e de espaço constantes da acusação (ainda que no sentido Torres Novas – Entroncamento, e não no sentido inverso – o que, aliás, é igualmente confirmado por MR), admitindo, ainda, ter encetado, em tais circunstâncias, uma manobra de ultrapassagem a um outro veículo que seguia no mesmo sentido, o qual, segundo também concede, era conduzido por MR. Afiança o arguido, no entanto, que esta ultrapassagem foi feita num ponto da estrada que se apresenta como recta, sem qualquer sinalização de proibição de ultrapassagem, e que, para além do mais, tomou todas as precauções na manobra, certificou-se que não vinha nenhum veículo em sentido contrário, fez o sinal luminoso (‘pisca-pisca’) e ultrapassou a viatura de MR de forma tranquila, sem qualquer perigo, apenas tendo aparecido um automóvel em sentido oposto já após a manobra ter sido efectuada.
Esta versão é totalmente refutada pelo testemunho de MR, condutor do veículo ultrapassado, o qual, para além de uma visão privilegiada dos factos (sendo, juntamente com o arguido, o principal interveniente nesta episódio rodoviário aqui em causa), prestou um depoimento seguro, esclarecido e que o Tribunal reputa como totalmente credível, não tendo qualquer ligação especial ao arguido, não demonstrando estar minimamente condicionado na suas declarações, evidenciando sempre uma postura séria e autêntica, com o único propósito de relatar os factos ocorridos e as condições da via, de forma concreta e objectiva. Tendo por base este depoimento, e complementando o mesmo com o testemunho de R R, filho de MR, ocupante da mesma viatura, e cujas declarações foram coerentes com as do seu pai (ainda que demonstrando um – compreensível – conhecimento menos aprofundado dos factos, por presenciá-los, como passageiro da viatura, no lugar dianteiro direito, sem acesso aos espelhos retrovisores), assim o Tribunal deu como apurada a manobra do ‘Seat Ibiza’ do arguido tal qual a mesma está relatada na acusação, e não conforme está descrita na contestação.
Conjugando estes dois testemunhos com as percepções directamente obtidas pelo Tribunal com a inspecção ao local – a qual, contando com os esclarecimentos complementares do arguido, de MR e de RR, foi importante para se definir qual o ponto em concreto em que a manobra foi realizada e quais as características que a via tem nesse local (sendo certo que, também neste ponto, as declarações das testemunhas, em particular de MR, foram coerentes, esclarecedoras, convincentes e, embora divergentes das do arguido, mais credíveis que as deste último) –, assim o Tribunal, apelando, também, às regras da experiência comum, reforçou a sua convicção quanto à forma como esta manobra de ultrapassagem foi realizada, a consciência que o arguido tinha de todas essas circunstâncias e a sua respectiva motivação.
Não ignora o Tribunal que a testemunha R, por sua vez, afirmou que também circulava no mesmo local, com o seu automóvel, que seguia atrás das viaturas do arguido e de MR, que presenciou a ultrapassagem realizada e que, segundo aquilo que alegadamente observou, essa manobra foi realizada sem qualquer perigo, sem qualquer viatura em sentido contrário, só tendo esta testemunha se apercebido de algo de ‘errado’ quando, mais à frente, num semáforo, viu MR a ‘esbracejar’ na direcção do automóvel do arguido. O Tribunal, contudo, não deu suficiente credibilidade a este depoimento, desde logo no que diz respeito à presença desta testemunha (arrolada pelo arguido) no mesmo local, na altura em que a manobra aqui em causa foi feita. Na verdade, a alegada presença da testemunha R e de um automóvel por si conduzido imediatamente atrás dos veículos do arguido e de MR não é confirmada por nenhum destes dois intervenientes (com MR a aludir à existência de uma outra viatura, mas de marca diferente – WV – daquela que é indicada por R), para além de que a forma como esta testemunha explica a ligação que tem ao arguido (ou a falta dela) é totalmente inverosímil, afirmando que apenas conhece o arguido ‘de vista’, por frequentar o mesmo café, mas que, naquela data, embora assegure que se tratou de uma ‘normal ultrapassagem’, igual a tantas outras, comentou nesse café o facto de ter visto o outro condutor a ‘esbracejar’ com o arguido (tendo, por outro lado, reconhecido este último – embora o mesmo fosse à sua frente – por, segundo afirma, “costumar fixar as matrículas das viaturas” e aquela “normalmente lhe chamar a atenção por se apresentar sempre limpa”).
Os factos relativos à condição económica e social do arguido foram apurados tendo por base, para além das declarações deste último, o depoimento (credível) de D, C e H.
No que diz respeito à ausência de antecedentes criminais do arguido, teve-se em consideração a informação obtida junto do registo criminal, a fls. 57.”.

*
Conforme resulta da análise das conclusões da motivação, a divergência do recorrente relativamente à decisão recorrida assenta nos seguintes pontos:
- Nulidade da sentença.
- Impugnação da matéria de facto.
- Violação do princípio in dubio pro reo
- Qualificação jurídica dos factos
Passemos à sua apreciação.
A) Da nulidade da sentença
Alega o recorrente que a sentença padece da nulidade prevista no artº 374º nº 2 e 379º nº 1 a) CPP, porquanto os factos que foram considerados provados não são susceptíveis de integrar o ilícito pelo qual o arguido foi condenado.
Pois bem o que desde já se dirá é que se os factos dados como provados não chegam para suportar a condenação, a consequência é a absolvição e não a existência de uma nulidade.
Realmente não vislumbramos como é que o recorrente pode fazer um tal diagnóstico.
É que o preceito invocado está reservado para as situações em que existe inexistência ou insuficiência da motivação de facto e ou de exame crítico das provas. que serviram para formar a convicção do tribunal.
O artº 374º nº 2 CPP é muito claro “ Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
Ora no caso dos autos, a fundamentação apresentada não é merecedora de crítica já que observa exemplarmente aquela exigência legal.
Saber se os factos provados integram ou não o crime por que foi condenado o arguido é pois questão diametralmente oposta à existência da invocada nulidade.
Improcede por isso manifestamente o recurso neste ponto.
B) Da impugnação da matéria de facto
Na perspectiva do recorrente os pontos 2, 3 e 14 da matéria de facto provada, foram incorrectamente julgados.
Alega para o efeito que o tribunal deu credibilidade ao depoimento de MR e RR e não a deu à testemunha R, sendo que a versão deste seria convincente.
Pois bem, como é sabido o artº 127º CPP estabelece que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio não é, como é lógico, uma apreciação imotivável e arbitrária da prova que foi produzida nos autos, já que é com a referida prova que se terá de decidir. É que quod non est in actis non es in mundo.
Como escreve Figueiredo Dias Direito Processual Penal, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 140., essa convicção existirá quando “ o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na “ convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e quanto à dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”.
Para além disso não podemos de modo algum ignorar que a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade. É que uma coisa é estar ao vivo a ouvir, ver, apreciar gestos, as hesitações ou o tom de voz e outra, bem diferente é proceder à audição de um CD.
E é de tal envergadura a importância do princípio da oralidade que o Prof. Alberto dos Reis afirmava Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 566. “ A oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal.... Ao juiz que há-de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar”.
E estes factores têm de ser tidos em conta.
Na motivação do seu recurso o recorrente, como vimos, ao fim e ao cabo reconhece que as conclusões sobre a facticidade provada têm o seu suporte nas versões das testemunhas MR e RR, que o acompanhava, mas entende que a versão por si defendida e secundada pela testemunha R deveria ser aquela a ter acolhimento pelo tribunal, porquanto na sua perspectiva corresponderia ao que realmente aconteceu.
Dito isto se avançará dizendo que da audição dos depoimentos prestados por aquelas testemunhas, de acordo com os critérios da experiência comum, da lógica do homem médio suposto na ordem jurídica e do bom senso, conclui-se que os factos provados têm um real e efectivo suporte na prova produzida. Não foi pois o Sr. juiz que imaginou a descrita conduta do arguido.
Com efeito não só a forma como o arguido efectuou a ultrapassagem que corresponde à descrição feita pelo ultrapassado, testemunha MR, como a mesma foi presenciada pela testemunha RR, que o acompanhava, as quais foram muito claras e convincentes quanto ao tempo, objecto, lugar e ao modo como tudo se desenrolou.
E não se argumente, como o faz o arguido, dizendo que o depoimento de MR não merece credibilidade porque não se deu como provado uma parte do seu depoimento, isto é que atrás de si circulava um Volkswagen conduzido por uma senhora.
É verdade que tal não foi dado como provado.
E também não tinha que o ser.
Desde logo porque era um facto completamente irrelevante.
O que importa é as circunstâncias em que concretamente o recorrente fez a manobra de ultrapassagem à testemunha MR e as consequências que daí advieram para este e não a ultrapassagem anteriormente feita a outro veículo.
É que apenas os factos que sejam relevantes ou que tenham interesse para a decisão é que são relacionados entre a facticidade provada e não provada, isto é os factos essenciais “ Não existe violação do Artº 374º nº 2, do CPP por nem todos os factos constantes da acusação/pronúncia e da contestação terem sido enumerados como provados ou não provados. Só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar da enumeração” – AcSTJ 98.02.11, BMJ 474, pág. 151.
“ O disposto no Artº 374º nº 2, do CPP apenas exige que sejam enumerados os factos essenciais para a descoberta da verdade, e não aqueles que são indiferentes para esta, como acontece com os meramente instrumentais” – AcSTJ 98.10.07, CJSTJ 3, pág. 183.
Os factos impertinentes ou desnecessários não têm pois aqui cabimento.
Mais refere o arguido que a ultrapassagem não poderia ter sido feita no local referido pela testemunha MR, mas sim antes.
Quer dizer o recorrente põe em causa apenas a credibilidade da referida testemunha.
É um problema claramente de valoração da prova.
Quer dizer o recorrente impugnou a convicção do julgador em contraposição com a convicção que ele próprio adquiriu, esquecendo o princípio da livre apreciação da prova, sendo certo que o tribunal recorrido beneficiou da vantagem da oralidade e imediação, o que significa estar mais apetrechado para avaliar da credibilidade dos meios de prova, relativamente a este tribunal de recurso.
E conforme resulta da sua audição é peremptória e convincente “ a ultrapassagem foi à entrada da curva à direita… de frente vinha um Fiat, eu encostei-me o mais possível à berma da estrada, encostei as rodas direitas à berma… de terra batida… a ultrapassagem foi iniciada em local onde havia traço contínuo… se não tivesse feito o desvio havia um acidente… passaram os três carros pela mesma faixa”.
E não se invoque a testemunha R, cuja audição do depoimento nos deixa muitíssimas dúvidas que tivesse estado no local na altura em que os factos ocorreram, tendo prestado um depoimento apenas preocupado em referir que o arguido fez uma manobra de ultrapassagem perfeitamente regular e em local onde o podia fazer, mas sem que conhecesse então o arguido.
Ora não deixa de ser estranho à luz da experiência comum que a testemunha tivesse prestado uma tal atenção à realização de uma manobra de ultrapassagem, incluindo à alegada prévia sinalização luminosa feita, sendo que até nem conhecia o condutor nem houve qualquer acidente que justificasse a memorização do acontecimento.
Por outro lado também é de estranhar que esta testemunha tivesse reconhecido o condutor/arguido, como frequentador do mesmo café, quando este estava mais à frente parado no semáforo, “ porque era um carro que estava sempre limpinho, todo lavado, brilhante e a matrícula”, quando pelo menos haveria entre si e o arguido a viatura da testemunha MR.
É que não é normal que as pessoas que frequentam cafés andem a reparar no estado em que as viaturas desses frequentadores se apresentam e a fixar-lhe as matrículas.
Não merecia pois qualquer credibilidade, como muito bem entendeu o Mmº juiz.
É que ao atacar a decisão da matéria de facto, pela via de um simples diferente juízo sobre a credibilidade dos diversos depoimentos e declarações, o recorrente põe apenas em causa o princípio da livre apreciação da prova, o que não pode colher.
É que é exactamente nestes casos em que se dá credibilidade a uns depoimentos e não se dá tal credibilidade a outros, que o princípio da livre apreciação da prova tem aplicação.
Finalmente, não se vê, antes pelo contrário, que a convicção do julgador se tenha formado contra as regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.
Mais refere o arguido haver contradição ao dar-se como provada a realização da manobra de ultrapassagem nos termos consagrados na matéria de facto e simultaneamente que o mesmo “ é tido, pelas pessoas que com ele privam, uma pessoa responsável e, quando se encontra na estrada, cuidadosa, e respeitadora das regras de trânsito”.
Mas também aqui não tem razão.
Na verdade é perfeitamente normal que um condutor que seja assim rotulado pelas pessoas que com ele privam, possa em certos momentos não o ser, sem que daí decorra qualquer contradição.
Refira-se por último que não se lobrigando na decisão recorrida qualquer um dos vícios a que alude o artº 410º nº 2 CPP, temos, pois, como bem fixada a matéria de facto.
Por isso o recurso terá de improceder.
C) Da violação do princípio in dubio pro reo
Invoca ainda o arguido a violação do princípio in dubio pro reo, por existirem dúvidas sobre a verificação dos factos.
Aquele princípio estabelece que a dúvida sobre os factos favorece o arguido.
Tem o seu campo de aplicação no âmbito da matéria de facto.
Como já se viu anteriormente inexistem razões para pôr em dúvida a matéria de facto que foi considerada provada que pudesse determinar a absolvição do arguido.
O processo lógico do julgamento de facto levado a cabo pelo tribunal com base no princípio da livre apreciação da prova e tendo em conta a fundamentação invocada para o mesmo, não deixa qualquer margem para dúvidas de que concorrem, todos os elementos de facto e de direito, objectivos e subjectivos, para se poder dizer que se encontra verificado o crime por que foi condenado o arguido.
Por isso improcede também o recurso quanto a esta matéria.
D) Da qualificação jurídica dos factos
O recorrente neste segmento alega que existem dúvidas quanto à prática do crime pelo arguido, devido principalmente à “incoerência das declarações das testemunhas”.
Ora com tal alegação nada justificava a apreciação sobre a qualificação jurídica dos factos, tanto mais que a impugnação da matéria de facto onde teria lugar a apreciação da invocada “ incoerência das declarações das testemunhas” não colheu.
De todo o modo sempre se dirá que o enquadramento jurídico feito é o correcto.
Vejamos.
Estabelece o artº 291º CP:
“ 1 - Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva; ou
b) Violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - ……….
3 – Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão até…………..
4 -……….”.
Ora conforme se alcança da análise da referida alínea b), do nº 1, constata-se que aí se enumeram as manobras que podem constituir violações grosseiras das regras de condução.
A saber, as relativas:
- à prioridade;
- à obrigação de parar;
- à ultrapassagem;
- à mudança de direcção;
- à passagem de peões;
- à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações;
- à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações;
- ao limite de velocidade;
- à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita;
Assim este elenco de manobras consubstancia as mais graves violações das condições de segurança rodoviária, que são susceptíveis de constituir violações grosseiras das regras de condução.
Como escreve Maia Gonçalves Código Penal Português, 16ª ed., pág. 894. “Não se refere somente este artigo às condições de segurança, mas adianta em que consiste essa violação; e
- Elencou as mais graves violações das condições de segurança da condução rodoviária; e sendo certo que todas elas são para prevenir perigos, há no entanto algumas que têm conexão directa com alguns perigos.”.
Trata-se de um crime doloso de perigo concreto, bastando-se com esse perigo AcSTJ 97.06.12, BMJ 468, 124; Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança, pág. 14; Maia Gonçalves, Obra citada, pág. 894..
Ora o arguido ao iniciar a manobra de ultrapassagem numa curva acentuada para a direita, sem condições de visibilidade, infringiu a norma contida no artº 41º nº 1 e) do Código da Estrada que estabelece que é proibida a ultrapassagem nas curvas de visibilidade reduzida.
Acresce que as manobras de ultrapassagem são das mais perigosas e, por isso, da sua execução de forma inconveniente ou imprópria resulta a larga percentagem de acidentes de trânsito.
Violação manifestamente grosseira das regras de trânsito susceptível de criar um risco de ocorrência de acidente para o veículo conduzido pelo queixoso.
E em concreto no caso em análise essa manobra foi feita no preciso momento em que se aproximava outra viatura em sentido contrário, obrigando a que o condutor do veículo ultrapassado, para evitar o embate iminente, se tenha visto forçado a desviar o seu veículo para a berma do lado direito, pondo desse modo em perigo a integridade física dos respectivos ocupantes das viaturas e ainda a integridade estrutural do veículo em que se faziam transportar.
E mais grave ainda quando o arguido sabia que com tal manobra punha em risco a integridade física dos ocupantes dessa viatura, o que revela a grande imprudência como exercia a condução, criando por isso um perigo concreto para os bens jurídicos individuais.
Do exposto resulta que face à matéria de facto que foi considerada provada, o arguido cometeu o crime de condução perigosa de veículo rodoviário por que foi condenado.

DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando integralmente a douta decisão recorrida.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em cinco Ucs.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (Artº 94º nº 2 CPP).
Tribunal da Relação de Coimbra, 16 de Junho de 2010.